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O silêncio, o silenciamento e o silêncio cúmplice como mecanismos de perpetuação do racismo nas organizações

Silencio, silenciamiento y silencio cómplice como mecanismos de perpetuación del racismo en las organizaciones

Resumo

O presente ensaio tem como objetivo interpretar os processos de silêncio, silenciamento e silêncio cúmplice como fatores que contribuem para a perpetuação do racismo, das desigualdades e exclusões que ocorrem nas organizações. Por meio de referenciais teóricos sobre silêncio, silenciamento e silêncio cúmplice, pretende-se apresentar uma forma complementar de se demonstrar como os ecos de processos históricos de racismo contra pessoas negras podem ainda ser responsáveis pela estruturação de práticas nas organizações. Adicionalmente, busca-se indicar como os estudos sobre silêncio, silenciamento e silêncio cúmplice podem oferecer alternativas de práxis para administradores e acadêmicos de estudos organizacionais, visando à mudança de práticas estruturais, de modo a quebrar o ciclo de racismo estrutural nas organizações.

Palavras-chave:
Silêncio; Silenciamento; Racismo; Desigualdade; Exclusão; Organizações

Resumen

Este ensayo tiene como objetivo interpretar los procesos de silencio, silenciamiento y silencio cómplice como factores que contribuyen a la perpetuación del racismo, las desigualdades y las exclusiones que se dan en las organizaciones. A partir de la presentación de referentes teóricos sobre el silencio, el silenciamiento y el silencio cómplice, se pretende presentar una forma complementaria de demostrar cómo los ecos de procesos históricos de racismo contra las personas negras aún pueden ser responsables de estructurar prácticas en las organizaciones. Además, pretendemos demostrar cómo los estudios sobre el silencio, el silenciamiento y el silencio cómplice pueden ofrecer alternativas de praxis para administradores y académicos de estudios organizacionales, con el objetivo de cambiar las prácticas estructurales para romper el ciclo del racismo estructural en las organizaciones.

Palabras clave:
Silencio; Silenciamiento; Racismo; Desigualdad; Exclusión; Organizaciones

Abstract

This essay aims to interpret the processes of silence, silencing, and complicit silence as factors that contribute to the perpetuation of racism, inequalities, and exclusions that occur in organizations. From the presentation of theoretical references on silence, silencing, and complicit silence, the essay presents a complementary way of demonstrating how the echoes of historical processes of racism against Black people can still be responsible for structuring practices in organizations. Additionally, we demonstrate how studies on silence, silencing, and complicit silence can offer praxis alternatives for administrators and academics of organizational studies to change structural practices to break the cycle of structural racism in organizations.

Keywords:
Silence; Silencing; Racism; Inequality; Exclusion; Organizations

INTRODUÇÃO

“A carne mais barata do mercado é a carne negra

[...]

Que vai de graça pro presídio

E para debaixo do plástico

Que vai de graça pro subemprego

E pros hospitais psiquiátricos

Que fez e faz a história pra caralho

Segurando esse país no braço, meu irmão

O gado aqui não se sente revoltado

Porque o revólver já está engatilhado [...]”

(Yuka, Seu Jorge, & Cappelletti, 1998Yuka, M., Seu Jorge, & Cappelletti, U. (1998). A carne. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=cjYsrcoMoAk
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).

Se o Brasil é um país miscigenado, onde, supostamente, impera a democracia racial (Freyre, 1981Freyre, G. (1981). Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal(21a ed.). Rio de Janeiro, RJ: José Olympio.) e as pessoas negras1 1 Os termos “negros”, “negras”, “pessoas negras” foram empregados no texto para tratar de pessoas pretas e pardas, sem distinção, de acordo com a definição adotada oficialmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os termos “pretos” e “pretas” são empregados na citação de autores que utilizam esta terminologia e/ou em casos específicos para tratar de pessoas com perfil definido como pretos (e não pardos). O objetivo da utilização de mais de um termo é a naturalização das terminologias empregadas por diferentes correntes de pensamento na luta antirracista. ‒ que compõem mais de 55% da população (Departamento Intersidical de Estatística e Estudos Socioeconômicos [DIEESE], 2021Departamento Intersidical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. (2021, novembro). Gráficos - Inserção da população negra no mercado de trabalho (Brasil e regiões). Recuperado de https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/graficosPopulacaoNegra2021.html
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) ‒ têm igualdade de oportunidades de trabalho, emancipação e realização pessoal, por que negras e negros são minoria em posições de liderança nas organizações, ao mesmo tempo que são a maioria em trabalho com condições precarizadas? (Pauli, Comin, Ruffatto, & Oltramari, 2021Pauli, J., Comin, L. C., Ruffatto, J., & Oltramari, A. P. (2021). Relação entre trabalho precário e racismo para migrantes no Brasil. Cadernos EBAPE.BR, 19(2), 234-251. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1679-395120200019
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). A ausência de pessoas pretas nas posições de liderança já é um ponto reconhecido por diversos autores (Adamson, Kelan, Lewis, & Rumens, 2021Adamson, M., Kelan, E., Lewis, P., Śliwa, M., & Rumens, N. (2021). Introduction: Critically interrogating inclusion in organisations. Organization, 28(2), 211-227. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1350508420973307
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; Arciniega, 2021Arciniega, L. C. (2021). Selling diversity to white men: how disentangling economics from morality is a racial and gendered performance. Organization, 28(2), 228-246. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1350508420930341
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; Ortlieb, Glauninger, & Weiss, 2021Ortlieb, R., Glauninger, E., & Weiss, S. (2021). Organizational inclusion and identity regulation: how inclusive organizations form ‘Good’, ‘Glorious’ and ‘Grateful’ refugees. Organization, 28(2), 266-288. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1350508420973319
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; Tyler & Vachani, 2021Tyler, M., & Vachhani, S. (2021). Chasing rainbows? A recognition-based critique of Primark’s precarious commitment to inclusion. Organization, 28(2), 247-265. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1350508420961530
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; van Eck, Dobusch, & van den Brink, 2021van Eck, D., Dobusch, L., & van den Brink, M. (2021). The organizational inclusion turn and its exclusion of low-wage labor. Organization, 28(2), 289-310. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1350 508420966743
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). Porém, uma questão que chama a atenção de pesquisadores, tanto no Brasil quanto no exterior, é a tentativa de identificar as causas desse baixo índice de representatividade (Rosa, 2014Rosa, A. R. (2014). Relações raciais e estudos organizacionais no Brasil. Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 240-260. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1982-7849rac20141085
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) conforme o contexto sócio-histórico de cada país e região (Teixeira, J. S. Oliveira, Diniz, & Marcondes, 2021Teixeira, J. C., Oliveira, J. S., Diniz, A., & Marcondes, M. M. (2021). Inclusão e diversidade na administração: Manifesta para o futuro-presente. Revista de Administração de Empresas, 61(3), e0000-0016. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0034-759020210308
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). Acrescente-se a isso a sugestão de possíveis ações corretivas para que as pessoas desses grupos sociais tenham um ganho em oportunidades de emprego e renda e, também, para minimizar as desigualdades e discriminações dentro e fora do ambiente organizacional (van Eck et al., 2021van Eck, D., Dobusch, L., & van den Brink, M. (2021). The organizational inclusion turn and its exclusion of low-wage labor. Organization, 28(2), 289-310. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/1350 508420966743
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).

Considerando que raça não diz respeito a uma discussão biológica, mas sim a uma categoria social-discursiva (Rosa, 2014Rosa, A. R. (2014). Relações raciais e estudos organizacionais no Brasil. Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 240-260. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1982-7849rac20141085
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), pode-se compreender que a contribuição da linguística e das análises de discurso (Orlandi, 2012Orlandi, E. P. (2012). Análise de discurso: princípios & procedimentos. Campinas, SP: Pontes.) sobre silêncio (Kurzon, 1998Kurzon, D. (1998). Discourse of silence(Vol. 49). Amsterdan, The Netherlands: John Benjamins Publishing.), silenciamento (Orlandi, 2011Orlandi, E. P. (2012). Análise de discurso: princípios & procedimentos. Campinas, SP: Pontes.), política de silêncio (Freire, 2011Freire, P. (2011). Pedagogia do oprimido. São Paulo, SP: Paz e Terra.) e silêncio cúmplice (Chrispal, Bapuji, & Zietsma, 2020Chrispal, S., Bapuji, H., & Zietsma, C. (2020). Caste and organization studies: our silence makes us complicit. Organization Studies, 42(9), 1501-1515. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/0170840620964038
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) pode ampliar o debate sobre racismo, desigualdade e exclusão no ambiente organizacional. Entendemos ser válido investigar práticas e discursos contemporâneos de exclusão velada praticada por gestores nas organizações; práticas que são operadas por meio do silenciamento do debate sobre racismo e exclusão, e sua relação dialética com ecos da escravidão, violência e silenciamentos explícitos praticados contra a população negra no Brasil.

Não é possível tratar da temática do racismo no Brasil de forma crítica sem passar pela desconstrução do mito da democracia racial, conforme propagado principalmente por Gilberto Freyre, o qual afirmava que o país não sofria dos mesmos conflitos raciais observados, por exemplo, na América do Norte. Segundo essa ideia de democracia racial, o Brasil seria um caso à parte no Ocidente, justamente por haver no país uma relação harmoniosa entre pessoas escravizadas e seus “senhores”. Esse contexto seria observado, segundo o autor, antes mesmo da abolição da escravidão, permitindo um intercâmbio cultural e uma integração até mesmo no nível sexual, fatores que teriam feito do brasileiro uma espécie de “meta-raça”, a qual seria chave para a superação de discriminações (Freyre, 1981Freire, P. (2011). Pedagogia do oprimido. São Paulo, SP: Paz e Terra.). Para Ferreira (2002Ferreira, R. F. (2002). O brasileiro, o racismo silencioso e a emancipação do afro-descendente. Psicologia & Sociedade, 14(1), 69-86. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0102-71822002000100005
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, p. 75), o mito da democracia racial tornou-se “[...] o fértil terreno para a constituição do racismo silencioso, o peculiar racismo à brasileira”. Para o autor, esse racismo silencioso gera uma visão negativa da população negra e, ao mesmo tempo, opera para negar essa visão, formando, assim, a identidade do brasileiro descendente de escravizados. Ou, ainda, citando Sales (2006Sales, R. Jr. (2006). Democracia racial: o não-dito racista. Tempo social, 18(2), 229-258. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0103-20702006000200012
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, p. 255): “A expressão ‘democracia racial’ é uma contradictio in adjecto, isto é, uma contradição nos termos, pois só há democracia sob a condição de não ser ‘racial’”. Apresentaremos a problemática do mito da democracia racial na segunda seção deste trabalho.

O objetivo neste ensaio teórico é interpretar os processos de silêncio, silenciamento e política do silêncio como fatores que contribuem para a perpetuação do racismo e das desigualdades e exclusões que ocorrem nas organizações.

Antes da apresentação da estrutura deste ensaio, é importante questionar: o que duas pessoas brancas têm a contribuir para essa discussão sobre racismo, desigualdade, exclusão nas organizações e processos de silenciamento das vozes negras em plena década de 2020 como ecos da escravidão negra no Brasil? Essa pergunta pode carregar uma compreensão equivocada do conceito de “lugar de fala”, conforme apresentado ao debate público brasileiro por Djamila Ribeiro (2019aRibeiro, D. (2019a). Lugar de fala. São Paulo, SP: Pólen Produção Editorial LTDA.) e que pretendemos rever à luz da própria autora. Uma compreensão superficial, que se tornou senso comum sobre o tema, afirma que um determinado grupo social, como o de pessoas brancas, não deveria interferir na narrativa de outro grupo, o que poderia causar um tipo de furto do protagonismo dessas pessoas (Ribeiro, 2019bRibeiro, D. (2019a). Lugar de fala. São Paulo, SP: Pólen Produção Editorial LTDA.). A autora define, na obra O que é Lugar de Fala (Ribeiro, 2019aRibeiro, D. (2019a). Lugar de fala. São Paulo, SP: Pólen Produção Editorial LTDA.), que todos têm um lugar de fala, pois cada pessoa se expressa de um “lugar social”. Por isso, a autora retoma essa argumentação e afirma que:

A ausência ou a baixa incidência de pessoas negras em espaços de poder não costuma causar incômodo ou surpresa em pessoas brancas. Para desnaturalizar isso, todos devem questionar a ausência de pessoas negras em posições de gerência, autores negros em antologias, pensadores negros na bibliografia de cursos universitários, protagonistas negros no audiovisual. E, para além disso, é preciso pensar em ações que mudem essa realidade (Ribeiro, 2019bRibeiro, D. (2019b). Pequeno manual antirracista. São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 16, grifo nosso).

A reflexão proposta neste trabalho caminha na mesma direção e é inspirada pela provocação da autora, a qual desafia o leitor a propor ações que atravessem os discursos e impactem a práxis na Academia e no mercado para esperançar uma nova realidade. Lembrando que o racismo, salienta Sales (2006Sales, R. Jr. (2006). Democracia racial: o não-dito racista. Tempo social, 18(2), 229-258. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0103-20702006000200012
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), deve ser rompido por intermédio da consciência sobre a existência de um “pacto do silêncio”, justamente porque esse discurso de silenciamento do tema ativa a condição de segregação racial.

Nessa mesma linha de raciocínio, o professor Sílvio de Almeida (Roda Viva, 2020Roda Viva. (2020, junho 22). “Sem os brancos, não é possível superar o racismo”, afirma Silvio Almeida no Roda Viva. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=cqPduxB7woE
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) afirma que “[...] sem os brancos não é possível superar o racismo, justamente porque os brancos também são uma criação do racismo”, e aponta, ainda, que esse combate acontecerá somente quando houver um esforço coletivo para a desnaturalização do racismo. Os pensadores do movimento negro denunciam, também, a existência de um “pacto narcísico”, por meio do qual a branquitude se fecha em uma espécie de bolha discursiva, na qual os discursos aceitos são aqueles praticados por “iguais” e, portanto, acabam por desqualificar as vozes negras por meio de estratégias de silenciamento (Bento, 2002Bento, M. A. S. (2002). Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.). Para além de nossa posição como pessoas “brancas” no contexto brasileiro, adentramos respeitosamente nessa temática da luta antirracista com o objetivo de ‒ juntamente com todos os outros autores e autoras, de quaisquer etnias ‒, “estourar” essa “bolha” discursiva e somar vozes para denunciar esse sistema de privilégios, visando erradicá-lo.

Dito isso, após esta introdução, discutiremos brevemente sobre as definições de racismo e como o racismo estrutural é considerado parte das organizações brasileiras. Em seguida, trataremos de silêncio, silenciamento e silêncio cúmplice sob a perspectiva de análise de discurso, com o intuito de explorar como essas formas de silêncio contribuem para o racismo, desigualdade e exclusões nas organizações. Nossas considerações finais e indicações de possíveis estudos futuros encerram o presente estudo.

RACISMO, DESIGUALDADE E EXCLUSÃO NAS ORGANIZAÇÕES

Não cabe, neste trabalho, a tarefa de detalhar a história do racismo e as tentativas de esquecimento do histórico racista que compõem parte importante do inconsciente coletivo e do discurso fundador do Brasil (Fernandes, 2017Fernandes, F. (2017). Significado do Protesto Negro. São Paulo, SP: Expressão Popular.). Entretanto, é importante lembrar que essa característica racista da sociedade brasileira, destacada por Florestan Fernandes (2017Fernandes, F. (2017). Significado do Protesto Negro. São Paulo, SP: Expressão Popular.), é oposta ao mito de democracia racial e harmonia entre brancos, negros e indígenas, o qual foi propagado desde a década de 1930 (Rosa, 2014Rosa, A. R. (2014). Relações raciais e estudos organizacionais no Brasil. Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 240-260. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1982-7849rac20141085
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) por autores influenciados ‒ especialmente ‒ pelo trabalho de Gilberto Freyre (1981Freyre, G. (1981). Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal(21a ed.). Rio de Janeiro, RJ: José Olympio.). Para Fernandes (2017Fernandes, F. (2017). Significado do Protesto Negro. São Paulo, SP: Expressão Popular.), essa lógica de democracia racial seria extremamente maléfica à busca de emancipação das pessoas negras, visto que a declaração de completa harmonia, popularizada nos discursos da sociedade, causaria uma “acefalização” do debate, desarmando a capacidade de crítica social por meio de um argumento que afirma que essa questão já estaria superada no país. O autor afirma que essa suposta integração, por trocas culturais e relações sexuais, não trouxera qualquer benefício para a população negra, dado que “[...] a miscigenação não contribuía para criar classificação e muito menos igualdade racial. Ela não promovia a ascensão do mulato e do negro escravo, liberto ou livre” (Fernandes, 2017Fernandes, F. (2017). Significado do Protesto Negro. São Paulo, SP: Expressão Popular., p. 118). Para Almeida (2019Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo, SP: Pólen Produção Editorial LTDA.), o discurso da democracia racial “[...] ainda hoje é tido como um elemento da identidade brasileira” (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo, SP: Pólen Produção Editorial LTDA., p. 110). Por isso, é importante manter viva no debate público essa rejeição ao mito (M. A. F. Silva & Saraiva, 2020Silva, M. A. F., & Saraiva, L. A. S. (2020). Relações raciais e histórias de vida: trabalhadores industriais negros em foco. Organizações & Sociedade, 27(94), 532-555. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1984-9270947
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), para evitar que ele retome seu espaço, como tentam fazer os negacionistas do racismo estrutural no país.

O discurso da democracia racial, salienta Sales (2006Sales, R. Jr. (2006). Democracia racial: o não-dito racista. Tempo social, 18(2), 229-258. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0103-20702006000200012
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), intensificou e neutralizou os conflitos raciais latentes, gerando uma ilusão de paz e ordem social baseada em uma suposta cordialidade, em que as trocas de favores e a gratidão seriam formas de obrigação social. Essa cordialidade é também travestida de possíveis trânsitos sociais e uma aparente “igualização” das condições de ascensão social. Para Sales (2006Sales, R. Jr. (2006). Democracia racial: o não-dito racista. Tempo social, 18(2), 229-258. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0103-20702006000200012
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), esse discurso, na verdade, estabelece um “pacto de silêncio”, que mantém as distâncias sociais e as hierarquias, e é rompido, por exemplo, nas situações conflitivas. Sales (2006Sales, R. Jr. (2006). Democracia racial: o não-dito racista. Tempo social, 18(2), 229-258. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0103-20702006000200012
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) considera que o conflito rompe com a ordem social estabelecida, o que leva à ativação da injúria racial como uma forma legítima de restabelecer a ordem social (racial). Na análise de Sales (2006Sales, R. Jr. (2006). Democracia racial: o não-dito racista. Tempo social, 18(2), 229-258. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0103-20702006000200012
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), o efetivo papel do racismo não está naquilo que é dito, mas principalmente naquilo que é não dito, porém, praticado. Nessa vertente, o silêncio, o silenciamento e a política do silêncio (conforme exemplificamos adiante) levam à reflexão sobre a perpetuação do racismo nas organizações.

A ilusão de uma democracia ou harmonia racial natural no Brasil também não se sustentaria ao ser confrontada com a materialidade na realidade atual, em que a desigualdade salarial entre pessoas brancas e negras é proporcional à ausência de pessoas negras em cargos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nas universidades ‒ especialmente no corpo docente ‒ e na diretoria das organizações privadas (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo, SP: Pólen Produção Editorial LTDA.; DIESSE, 2021Departamento Intersidical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. (2021, novembro). Gráficos - Inserção da população negra no mercado de trabalho (Brasil e regiões). Recuperado de https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/graficosPopulacaoNegra2021.html
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; Ribeiro, 2019bRibeiro, D. (2019b). Pequeno manual antirracista. São Paulo, SP: Companhia das Letras.). Assim, não podemos negar que o Brasil sofre de um racismo estrutural, cujas raízes remontam ao período de escravização, perpetuando uma herança de escravidão que, de acordo com Clóvis Moura (1988Moura, C. (1988). Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, SP: Editora Ática.), consolida um status quo, em que as oportunidades de ascensão social e de presença nos espaços de poder fluem “naturalmente” para as mãos brancas.

A herança da escravidão que muitos sociólogos dizem estar no negro, ao contrário, está nas classes dominantes que criam valores discriminatórios através dos quais conseguem barrar, nos níveis econômico, social, cultural e existencial a emergência de uma consciência crítica negra capaz de elaborar uma proposta de nova ordenação social e de estabelecer uma verdadeira democracia racial no Brasil (Moura, 1988Moura, C. (1988). Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, SP: Editora Ática., p. 70).

O racismo, que é anterior à escravidão e gerador desta (Ferreira, 2002Ferreira, R. F. (2002). O brasileiro, o racismo silencioso e a emancipação do afro-descendente. Psicologia & Sociedade, 14(1), 69-86. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0102-71822002000100005
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), encontra novas formas de operar após a abolição da escravidão negra no Brasil. As mesmas ideologias racistas, que fundaram o período de escravidão e impossibilitaram a mobilidade social da população negra em algum nível de igualdade para com os não negros (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo, SP: Pólen Produção Editorial LTDA.), “[...] inspiraram a criação de instituições (leis, políticas públicas, práticas padronizadas etc.) que podem continuar discriminando sem que permaneçam sendo justificadas por discursos explicitamente racistas” (Campos, 2017Campos, L. A. (2017). Racismo em três dimensões: uma abordagem realista-crítica. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(95), e329507. Recuperado dehttps://doi.org/10.17666/329507/2017
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, p. 5). Como não era mais possível escravizar o negro oficialmente, o colonizador aposta na ciência (racismo científico e racismo institucional) para justificar a existência de cidadãos de segunda classe que possam ser dominados ou descartados (Guimarães, 2004Guimarães, A. S. A. (2004). Preconceito de cor e racismo no Brasil. Revista de antropologia, 47(1), 9-43. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0034-77012004000100001
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).

Gonzalez e Hazenbalg (2022Gonzalez, L., & Hasenbalg, C. (2022). Lugar de negro. Rio de Janeiro, RJ: Editora Zahar.) tratam, de forma cirúrgica, do lugar do negro no Brasil, evidenciando que as ideologias racistas difundidas na sociedade brasileira tinham como elemento central os lugares ocupados. Gonzalez e Hazenbalg (2022Gonzalez, L., & Hasenbalg, C. (2022). Lugar de negro. Rio de Janeiro, RJ: Editora Zahar.) salientam que o negro no Brasil passou a ocupar um lugar distinto e oposto ao do branco. A relação entre dominantes (brancos) e dominados (negros) tinha como manifestação última os espaços ocupados. Enquanto os dominantes ocupam os espaços ligados às grandes casas, aos condomínios, aos espaços de lazer e entretenimento, os dominados ocupam os espaços da senzala, das favelas, dos cortiços e das invasões. Isso mostra que, para além dos elementos simbólicos que integram e determinam as condições racistas, também os lugares (dominação e ocupação dos espaços) surgem como elementos de manutenção do racismo estrutural. Essa é uma das formas mais perversas de segregação racial, pois o silenciamento sobre esse processo impõe barreiras invisíveis sobre quem pode ou não ter acesso a determinados espaços. Tal processo de segregação espacial, em que lugares estão determinados, levou Faustino e L. M. Oliveira (2022Faustino, D. M., & Oliveira, L. M. (2022). Xeno-racismo ou xenofobia racializada? Problematizando a hospitalidade seletiva aos estrangeiros no Brasil. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, 29(63), 193-210. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1980-85852503880006312
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) a retomar o conceito de xeno-racismo, evidenciando que, no Brasil, negros ou mesmo moradores das regiões Norte e Nordeste do país enfrentam situações racistas pelos grupos constituídos na região Sul do país. Isso os coloca na condição de “estrangeiros”, o que impede seu reconhecimento nos lugares dominados pelos brancos.

A condição sobre o lugar do negro transcende a relação casa-grande e senzala e pode ser observada no lugar ocupado pelo negro no sistema empresarial-industrial. Apenas com alguns números obtidos por estudos contínuos realizados pelo DIEESE (2021Departamento Intersidical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. (2021, novembro). Gráficos - Inserção da população negra no mercado de trabalho (Brasil e regiões). Recuperado de https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/graficosPopulacaoNegra2021.html
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), já é possível observar o abismo social entre negros e brancos. Enquanto 6,6% dos homens não negros estão em cargos de direção, apenas 2,4% dos homens negros estão em posições do mesmo nível. Entre as mulheres, 5,3% das mulheres não negras atuam em cargos de direção contra 1,9% das mulheres negras. Em relação à remuneração, o rendimento médio do trabalhador homem não negro no país é de R$ 3.484, enquanto o de homens negros é de R$ 1.950; já os rendimentos médios de mulheres não negras e mulheres negras são de R$ 2.660 e R$ 1.573 respectivamente - DIEESE (2021Departamento Intersidical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. (2021, novembro). Gráficos - Inserção da população negra no mercado de trabalho (Brasil e regiões). Recuperado de https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/graficosPopulacaoNegra2021.html
https://www.dieese.org.br/outraspublicac...
), em dados do segundo semestre de 2020. Pesquisa realizada pela Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike, 2019Aliança Bike. (2019). Perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo. Recuperado de http://aliancabike.org.br/pagina.php
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), com apoio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e objetivo de traçar o perfil dos trabalhadores precarizados que atuam com entregas de alimentos na cidade de São Paulo, demonstra que 71% deles são negros (pretos 27% e pardos 44%). Entretanto, conforme apontado por Almeida (2019Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo, SP: Pólen Produção Editorial LTDA.), reconhecer que esses dados são fruto do racismo estrutural não deve ser motivo para que as pessoas engajadas na luta antirracista desistam, mas, sim, que encontrem novas abordagens para o combate a essa forma de opressão.

Essa perspectiva atualizada sobre a relação entre inclusão, diversidade e ações afirmativas frente ao racismo estrutural velado, presente no Brasil, é compartilhada por Teixeira, J. S. Oliveira, e Carrieri (2020Teixeira, J. C., Oliveira, J. S., & Carrieri, A. P. (2020). Por que falar sobre raça nos estudos organizacionais no Brasil? Da discussão biológica à dimensão política. Perspectivas Contemporâneas, 15(1), 46-70. Recuperado de https://revista2.grupointegrado.br/revista/index.php/perspectivascontemporaneas/article/view/2958
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), autores que denunciam como o próprio conceito de diversidade e inclusão de pessoas negras nas organizações é inviabilizado justamente devido à visão equivocada de uma democracia racial que se enraizou no discurso do brasileiro. Segundo a autora, o mito da democracia racial impede, ainda hoje, a implementação de políticas afirmativas. Além disso, força o discurso de diversidade a utilizar uma abordagem de meritocracia e, não, de favorecimento ‒ impossibilitando uma transformação real da condição racista estruturada no mercado de trabalho. Os autores destacam que, no contexto atual, as ações superficiais, que redundam em despolitização, levam à cooptação da pauta de inclusão.

LINGUAGEM, DISCURSO E TRANSITIVIZAÇÃO DO SILÊNCIO

Abordar a linguagem como ponto de partida para tratar das questões de diversidade e inclusão exige a compreensão das representações da linguagem e da análise de discurso relacionadas aos fenômenos de discursividade e poder. Para isso, recorreremos à gramática (Lopes, 1999Lopes, E. (1999). Fundamentos da lingüística contemporânea. São Paulo, SP: Editora Cultrix.; M. C. P. S. Silva & Koch, 1994Silva, M. C. P. S., & Koch, I. G. V. (1994). Linguística aplicada ao português: morfologia (7a ed.). São Paulo, SP: Cortez.), à análise de discurso (Ephratt, 2008Ephratt, M. (2008). The functions of silence. Journal of pragmatics, 40(11), 1909-1938. Recuperado dehttps://doi.org/10.1016/j.pragma.2008.03.009
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; Kurzon, 1998Kurzon, D. (1998). Discourse of silence(Vol. 49). Amsterdan, The Netherlands: John Benjamins Publishing.; Orlandi, 2011Orlandi, E. P. (2011). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.) e, novamente, ao construto de racismo estrutural (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. São Paulo, SP: Pólen Produção Editorial LTDA.; Ribeiro, 2019bRibeiro, D. (2019b). Pequeno manual antirracista. São Paulo, SP: Companhia das Letras.).

Com base na linguística, podemos abordar o silêncio desde os menores elementos da gramática, como os morfemas, até dispositivos linguísticos mais amplos, como a repetição ou ausência de determinados termos em grandes conjuntos de dados, conforme é realizado na linguística de corpus. Na gramática, o conceito de “morfema zero” (Lopes, 1999Lopes, E. (1999). Fundamentos da lingüística contemporânea. São Paulo, SP: Editora Cultrix.) demonstra que os silêncios e as omissões carregam significados evidentes para a comunicação. De acordo com M. C. P. S. Silva e Koch (1994Silva, M. C. P. S., & Koch, I. G. V. (1994). Linguística aplicada ao português: morfologia (7a ed.). São Paulo, SP: Cortez., p. 23): “No morfema mar, a ausência da marca de plural /-es/ indica a noção de singular. [...] professor, a ausência do morfema /-a/ expressa a noção de masculino”. Por meio dessa observação, é possível perceber como os silêncios interferem na percepção humana sobre os sentidos da linguagem, mesmo quando o silêncio se faz “ouvir” no nível mais básico da linguagem: a análise de classes de palavras. O morfema-zero nos chama a atenção por ser um símbolo de ausência como oposição a uma presença que constituiria um sentido. Falaremos mais adiante sobre a ausência como forma de silêncio no discurso.

A análise de discurso é definida por Gill (2002Gill, R. (2002) Análise de discurso. In M. W. Bauer, & G. Gaskell (Eds.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático (7a ed., pp. 244-270). Petrópolis, RJ: Vozes., p. 266) como “[...] uma leitura cuidadosa, próxima, que caminha entre o texto e o contexto, para examinar o conteúdo, organização e funções do discurso”. Assim, o ato de analisar um discurso constitui uma investigação para identificar quais são as vozes e os sentidos que “falam” com o indivíduo e compõem seu ato enunciativo. Isso não significa que uma análise de discurso visa “[...] adivinhar o que o outro quis dizer” ‒ esse desafio seria impossível para qualquer outro agente discursivo e pode ser difícil até mesmo para o próprio indivíduo (Orlandi, 2012Orlandi, E. P. (2012). Análise de discurso: princípios & procedimentos. Campinas, SP: Pontes.). O objetivo da análise de discurso é entender o que é dito, quais são as origens daquele discurso (formação discursiva) e quais influências implícitas ou explícitas de pessoas, grupos ou ideologias participaram da construção daquela afirmação ‒ fenômeno denominado de interdiscurso por Fairclough (2001Fairclough, N. (2001). Discurso e mudança social. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília.).

Para as análises de discurso, a linguagem não é um simples “veículo” que possibilita a comunicação, pois, não é “transparente”. Na verdade, é por meio da linguagem que o discurso influencia o mundo e é influenciado por ele. Por isso, podemos afirmar que o discurso é uma prática social como qualquer outra (Batinga-Georgiana, Saraiva, & Pinto, 2019Batinga-Georgiana, G. L., Saraiva, L. A. S., & Pinto, M. R. (2019). A análise crítica do discurso para além de procedimentos metodológicos. In Anais do 43º Encontro da ANPAD, São Paulo, SP.), dotada de caráter constitutivo (Orlandi, 2012Orlandi, E. P. (2012). Análise de discurso: princípios & procedimentos. Campinas, SP: Pontes.). Em outras palavras, o discurso é uma força criadora que molda a maneira como os indivíduos constroem socialmente a realidade ao seu redor, por meio da constituição de narrativas sociais que são gradualmente adotadas por uma sociedade. Como veremos à frente, os próprios processos de silêncio e silenciamento, por serem formas discursivas poderosas, operam uma constituição da realidade que leva à formação e perpetuação de um status quo racista e excludente.

Antes de tratar diretamente da análise do silêncio como dispositivo discursivo constitutivo, faz-se necessário diferenciar esses silêncios significativos do fenômeno conhecido como “não dito”. Orlandi (2011Orlandi, E. P. (2011). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.), interpretando texto seminal de Ducrot (1972Ducrot, O. (1972). Princípios de semântica lingüística: (dizer e não dizer). São Paulo, SP: Cultrix.), define que a leitura dos silêncios como significados implícitos ‒ quase como sinônimo de “ambiguidade” ‒ é uma espécie de “domesticação” do não dito pela semântica. Para a presente discussão sobre silenciamento, não consideraremos ambiguidades e significados implícitos “nas entrelinhas” como formas de silêncio, mas, sim, como meios de codificação de sentidos em um discurso, já que pessoas que participam da mesma formação discursiva conseguem compreendê-los. Entretanto, o não dito como silenciamento de pautas, grupos e indivíduos ‒ no caso, pessoas negras ‒ está intrinsecamente vinculado à discussão neste estudo.

Orlandi (2012Orlandi, E. P. (2012). Análise de discurso: princípios & procedimentos. Campinas, SP: Pontes.) salienta que uma das funções da análise de discurso é estabelecer a relação entre o que é dito com aquilo que não é dito. Assim, o contexto, ou mesmo as relações ideológicas, determina o que é dito. Com isso, o papel do analista do discurso seria o de compreender, no interior do que é dito, especificamente o que não é dito; ou seja, ouvir aquilo que ele não diz no que ele diz. Dada a proximidade da obra de Orlandi (2012Orlandi, E. P. (2011). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.) com o trabalho de Pêcheux, muitos desses elementos não ditos estão vinculados ao que Pêcheux chamou de esquecimento. Para o autor, existem dois tipos de esquecimento. O primeiro é o esquecimento enunciativo, no qual há a falsa impressão de integridade do enunciado, ou seja, de que o enunciado ou a fala seriam compostos apenas pela “voz” de quem o emite. Coracini (2005Coracini, M. J. R. F. (2005). Ler Pêcheux hoje: no limiar das dúvidas e (in)certezas. Estudos Da Língua(Gem), 1(1), 31-40. Recuperado dehttps://doi.org/10.22481/el.v1i1.976
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, p. 39) exemplifica esse esquecimento como a “[...] ilusão de que o sujeito enunciador é a fonte dos sentidos”. O segundo tipo de esquecimento é o ideológico, no qual há também a falsa percepção de que o elemento ideológico afeta as formações discursivas. Coracini (2005Coracini, M. J. R. F. (2005). Ler Pêcheux hoje: no limiar das dúvidas e (in)certezas. Estudos Da Língua(Gem), 1(1), 31-40. Recuperado dehttps://doi.org/10.22481/el.v1i1.976
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, p. 35) menciona que essa “ilusão” é uma crença do sujeito em uma “[...] possibilidade monossêmica da linguagem, e a impossibilidade de produção de sentido fora de uma dada formação discursiva”. Esses tipos de esquecimento atestam as formas de silenciamento e de silêncio cúmplice nos processos discursivos. Por esse motivo, revelá-los é uma ação importante para o analista de discurso, uma vez que busca compreender o não dito nas formações discursivas.

Para finalizar esta parte, é importante salientar a condição do silêncio fundante, na medida em que o que foi discutido anteriormente refere-se à condição do silêncio na estrutura da linguagem e no discurso. No entanto, há também a condição própria do silêncio deliberado. Nessa linha, Gurevitch (1989Gurevitch, Z. D. (1989). Distance and conversation. Symbolic Interaction, 12(2), 251-263. Recuperado dehttps://doi.org/10.1525/si.1989.12.2.251
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) definiu três formas de silêncio em uma conversa, ao escrever seu artigo seminal “Distance and conversation”: o silêncio ritualístico de um diálogo ‒ as idas e vindas de uma conversa entre interlocutores ‒; uma interrupção involuntária na comunicação que deixa a conversa “cair” em silêncio; e o silêncio voluntário de um indivíduo para dar atenção a seu interlocutor, levando o sujeito a se colocar na posição de “outro”. As práticas discursivas de silêncio intencional foram denominadas “silêncio eloquente” por Ephratt (2008Ephratt, M. (2008). The functions of silence. Journal of pragmatics, 40(11), 1909-1938. Recuperado dehttps://doi.org/10.1016/j.pragma.2008.03.009
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). Este autor define como “silêncio eloquente” os silêncios intencionais, aqueles exercidos voluntariamente por um enunciador como mecanismo de defesa em relação a um ponto ou mesmo por não ter interesse no assunto. Seria o oposto do “silenciamento”, que é o silêncio imposto por algum ente externo como forma de privação do direito à expressão.

Para Orlandi (2011Orlandi, E. P. (2011). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.), os silêncios podem ser divididos entre dois grupos mais amplos: silêncio fundante ‒ intencional, com significado próprio ‒ e silenciamento ‒ censura, impedimento de pessoas e grupos de participarem do debate. Kurzon (1998Kurzon, D. (1998). Discourse of silence(Vol. 49). Amsterdan, The Netherlands: John Benjamins Publishing.) faz uma classificação semelhante, porém, com uma camada adicional. Para o autor, o silêncio expresso por um indivíduo pode ser: não intencional (representado pelo substantivo “silêncio”, apenas como ausência de fala); intencional (representado pelo verbo intransitivo “silenciar” no sentido de “eu silencio”); ou externo (“silenciar” como verbo transitivo direto, indicando um processo de silenciamento intencional por parte de alguém que detém poder simbólico ‒ exemplo: “O professor silenciou o aluno”). O silêncio externo, transitivizado, pode ser também denominado política de silêncio (Freire, 2011Freire, P. (2011). Pedagogia do oprimido. São Paulo, SP: Paz e Terra.) ou silenciamento (Orlandi, 2011Orlandi, E. P. (2011). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.).

Aqui vale a pena retomar brevemente o tema da democracia racial, apresentado anteriormente como forma de silenciamento de negros por meio do simples silenciamento do debate em si. Para M. A. F. Silva e Saraiva (2020Silva, M. A. F., & Saraiva, L. A. S. (2020). Relações raciais e histórias de vida: trabalhadores industriais negros em foco. Organizações & Sociedade, 27(94), 532-555. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1984-9270947
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, p. 8) “[...] o que se toma por sociedade brasileira foi construído sobre um processo deliberado de apagamento e violento silenciamento da população negra, a quem foi, na prática, negado o status de ‘povo brasileiro’”. Essa forma de silêncio, que causa o silenciamento de grupos inteiros da sociedade, está diretamente vinculada ao mito da democracia racial, visto que esta gerou um tabu, levando o tema do racismo a ser evitado, afinal, não há por que discutir algo supostamente superado ‒ ou que nunca existira. Nessa linha, já salientava Sales (2006Sales, R. Jr. (2006). Democracia racial: o não-dito racista. Tempo social, 18(2), 229-258. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0103-20702006000200012
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) que o não dito sobre o racismo, o qual estrutura um “pacto do silêncio”, torna eloquente a condição de que as manifestações racistas e ditas só são possíveis dentro de uma condição estrutural. Isso quer dizer que qualquer injúria racial, qualquer insulto ou qualquer discurso espirituoso (piada, chiste, trocadilhos, etc.) possuem sua condição de enunciação em virtude de tal “pacto do silêncio”. É o conflito gerado pela vítima do racismo que traz à tona a condição manifesta do racismo, que rompe com o pacto do silêncio, abrindo o abismo escondido e revelador da segregação racial, da hierarquização e da desigualdade social. Nesse contexto, o silêncio deve ser compreendido como o componente fundamental para se compreender o racismo, não apenas na sociedade em geral, mas também nas organizações.

O SILÊNCIO COMO COMPONENTE FUNDANTE DE RACISMO, DESIGUALDADE E EXCLUSÃO NAS ORGANIZAÇÕES

Conforme vimos no trecho sobre racismo e exclusão, cabe à Academia e às organizações uma reflexão sobre a adoção de uma agenda de transformação, a qual terá o papel de “desnaturalizar” e “desestruturar” esses processos segregacionistas (Teixeira et al., 2021Teixeira, J. C., Oliveira, J. S., Diniz, A., & Marcondes, M. M. (2021). Inclusão e diversidade na administração: Manifesta para o futuro-presente. Revista de Administração de Empresas, 61(3), e0000-0016. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0034-759020210308
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), evitando a perpetuação de um sistema de estratificação racial no ambiente organizacional, que acaba por dividir os grupos raciais em castas de privilégios e privações em nome de ganhos econômicos a qualquer custo (Cox, 1948Cox, O. C. (1948). Caste, class and race: a study in social dynamics. New York, NY: Monthly Review Press.). Por isso, além de todas as formas de silêncio discutidas e apresentadas anteriormente e que estão manifestas nas organizações, ainda é possível constatar um tipo de silêncio que tende a ser a base da perpetuação do racismo, da desigualdade e exclusão nas organizações: o silêncio cúmplice. Chrispal et al. (2020Chrispal, S., Bapuji, H., & Zietsma, C. (2020). Caste and organization studies: our silence makes us complicit. Organization Studies, 42(9), 1501-1515. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/0170840620964038
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) concluem que a ausência da discussão sobre a estrutura de castas na Índia é uma ferramenta para aquisição de mão de obra a baixo custo. Os autores mencionam também uma possível relação com questões de escravidão moderna e alertam para a falta de estudos nessa área. Salientam que essa estrutura é uma espécie de domesticação das castas consideradas inferiores, a qual evitaria o surgimento de conflitos adicionais no ambiente organizacional.

Desse modo, administradores e acadêmicos de estudos organizacionais seriam ambos cúmplices da desigualdade praticada contra os grupos minorizados indianos, ao se manterem em silêncio diante da injustiça cometida, historicamente, contra as pessoas designadas a essas castas. Chrispal et al. (2020Chrispal, S., Bapuji, H., & Zietsma, C. (2020). Caste and organization studies: our silence makes us complicit. Organization Studies, 42(9), 1501-1515. Recuperado dehttps://doi.org/10.1177/0170840620964038
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) salientam, ainda, que os administradores e acadêmicos estariam praticando uma política de silenciamento, visto que todos os envolvidos nesse processo estão cientes da desigualdade estrutural e a maioria não se manifesta no sentido de modificá-la. Ribeiro (2019bRibeiro, D. (2019b). Pequeno manual antirracista. São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 19) aponta um exemplo desse silêncio cúmplice, qual seja: “[...] ao escutar uma piada racista, as pessoas riem ou silenciam, em vez de repreender quem a fez ‒ o silêncio é cúmplice da violência”. Para além do silêncio no interior das organizações, consideramos importante manter o alerta à nossa comunidade acadêmica para que, atentos, denunciemos as práticas racistas, em vez de silenciarmos diante delas. Em uma perspectiva histórica, Fischer (2020Fischer, B. M. (2020). A ética do silêncio racial no contexto urbano: políticas públicas e desigualdade social no Recife, 1900-1940. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, 28, d1e15. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1982-02672020v28d1e15
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) relembra a existência de um pacto de silêncio que favorece a branquitude: trata-se de uma forma de “silêncio racial”, prática que mantém relação dialógica com o mito de democracia racial - propagado por Freyre (1981Freyre, G. (1981). Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal(21a ed.). Rio de Janeiro, RJ: José Olympio.) -, que o influenciou e foi amplificado por ele.

M. A. F. Silva e Saraiva (2020Silva, M. A. F., & Saraiva, L. A. S. (2020). Relações raciais e histórias de vida: trabalhadores industriais negros em foco. Organizações & Sociedade, 27(94), 532-555. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1984-9270947
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) retomam esse silêncio indiferente ‒ o qual denominamos cúmplice no presente estudo ‒ como parte da cultura nacional, que reflete o já mencionado mito da democracia racial. Segundo os autores, o conhecimento sobre questões raciais é silenciado no país desde a educação infantil, gerando um tabu que impede os indivíduos de se enxergarem como negros e reivindicarem seus direitos como parte dessa negritude. E. J. F. Silva (2019Silva, E. J. F. (2019). Racismo nas empresas: até quando? Farol-Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 6(15), 399-415. Recuperado dehttps://doi.org/10.25113/farol.v6i15.5430
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, p. 9) reverbera essa afirmação de que a “[...] crença de nação mestiça e harmônica, por muito tempo, selou o debate racial sob a égide da democracia racial, silenciando a reflexão em torno do racismo”. No caso da prática racista nas organizações do país, vai-se além do silêncio cúmplice mencionado anteriormente, na medida em que ocorrem práticas administrativas consistentes de silenciamento coercitivo, ou seja, aplicação explícita do silêncio transitivizado, uma forma de silenciar as pessoas que tentam denunciar a prática do crime de racismo dentro das organizações (Lage & Souza, 2016Lage, M. L. C., & Souza, E. M. (2016, outubro). Da cabeça aos pés: racismo e sexismo no ambiente organizacional. In Anais do 4º Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais, Porto Alegre, RS.). Assim, o poder de acefalização que o mito da democracia racial opera no debate sobre raça no Brasil, denunciado por Florestan Fernandes e mencionado no trabalho de M. A. F. Silva e Saraiva (2020Silva, M. A. F., & Saraiva, L. A. S. (2020). Relações raciais e histórias de vida: trabalhadores industriais negros em foco. Organizações & Sociedade, 27(94), 532-555. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/1984-9270947
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), é retomado no ambiente organizacional, devido ao processo de silenciamento do debate, conforme sintetizam Alves e Galeão-Silva (2004Alves, M. A., & Galeão-Silva, L. G. (2004). A crítica da gestão da diversidade nas organizações. Revista de Administração de Empresas, 44(3), 20-29. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/S0034-75902004000300003
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, p. 28):

As ações afirmativas poderiam vir a ser um movimento de ruptura da dominação, pois quebrariam a padronização da força de trabalho realizada pela organização da produção. Ocorre que esse potencial emancipatório desmancha-se no ar pela força da lógica da gestão da diversidade diluída na ideologia tecnocrática.

Gouvêa (2017Gouvêa, J. B. (2017). O que há por trás do discurso da harmonia racial no país da miscigenação? Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 4(10), 915-955. Recuperado de https://revistas.face.ufmg.br/index.php/farol/article/view/3230
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) mencionou esse ponto, salientando que, no âmbito das organizações, o processo de segregação racial foi amplamente silenciado por ser quase inconcebível, dada a condição de meritocracia e democracia racial, pensar que tal tipo de segregação possa existir nas organizações. Esta autora observa, ainda, que o “silêncio institucional” acaba sendo um vetor para a existência do que discutimos antes: o silêncio cúmplice, em que as práticas não são questionadas. Além disso, Gouvêa (2017Gouvêa, J. B. (2017). O que há por trás do discurso da harmonia racial no país da miscigenação? Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 4(10), 915-955. Recuperado de https://revistas.face.ufmg.br/index.php/farol/article/view/3230
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, p. 924) aponta que “[...] o silêncio, em muitos momentos, é mais poderoso do que qualquer palavra”. As condições de silêncio e silenciamento naturalizam as práticas de segregação racial, levando à propagação de discursos de igualdade diante dos contextos desiguais, não para constatar as condições de desigualdade em si, mas para reforçar condições “meritocráticas” que estruturam as desigualdades. Silveira, Nascimento, e Zalembessa (2021Silveira, J. I., Nascimento, S. L., & Zalembessa, S. (2021). Colonialidade e decolonialidade na crítica ao racismo e às violações: para refletir sobre os desafios educação em direitos humanos. Educar em Revista, 37, e71306. Recuperado dehttps://doi.org/10.1590/ 0104-4060.71306
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), no entanto, indicam que, desde a modernidade, o conceito de meritocracia nada mais é do que um eco do darwinismo social de outrora, utilizado para culpar o indivíduo por não ser capaz de gerar riqueza que lhe possa garantir a própria ascensão social ‒ quando, na realidade, questões estruturais impedem a população de baixa renda de ter esse trânsito social, afetando especialmente a população negra.

Dito isso, os conceitos apresentados neste trabalho destacam quatro formas de silêncio analisadas por meio do discurso: o silêncio comum, substantivo; o “silenciar” intransitivo; o silenciamento ‒ ou “silenciar transitivizado” ‒; e o silêncio cúmplice. Todas essas formas de expressão do silêncio são dotadas de capacidade discursiva e, portanto, são constituídas e constitutivas do mundo que nos cerca. Percebemos também que o ciclo histórico de silêncio, silenciamento e cumplicidade nas organizações pode até não ser responsável pela formação histórica e/ou dialética que compõe o racismo estrutural, mas sua omissão e cumplicidade têm perpetuado essa condição inaceitável. A seguir, traremos nossas considerações finais e algumas propostas de estudos futuros e ações corretivas que possam tirar as organizações brasileiras da inércia cúmplice propiciada pelas formas de silêncio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto que abre a introdução deste ensaio é um trecho da canção “A Carne”, de autoria de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti (1998Yuka, M., Seu Jorge, & Cappelletti, U. (1998). A carne. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=cjYsrcoMoAk
https://www.youtube.com/watch?v=cjYsrcoM...
), e foi gravada por ícones que representam negritude na cultura brasileira como Elza Soares, Seu Jorge e Farofa Carioca. Ao afirmar que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, a letra versa sobre a triste ironia de termos uma população negra responsável majoritariamente pelo serviço braçal realizado no país, por erguer, literalmente, as casas onde moramos e pavimentar as vias por onde transitamos - e que constitui a maioria daqueles que são submetidos aos trabalhos precarizados, recolhidos aos presídios e aos hospitais psiquiátricos. Esse canto profético de denúncia pode nos servir como inspiração e reverberar nos discursos dos estudos organizacionais.

Nosso objetivo principal foi o de apresentar a discussão sobre silêncio e silenciamento por meio da análise de discurso e das linguagens como um possível ponto de partida para estudos sobre preconceito, racismo e exclusão nas organizações. À luz dessa discussão, foi possível compreender como as políticas de silenciamento são uma peça fundamental para a manutenção de um status quo racial que naturaliza a desigualdade e a exclusão no ambiente organizacional. De forma semelhante, entendemos que a linguagem também pode ser o meio de perpetuação de uma cultura de opressão nas organizações e o mecanismo utilizado para maquiar esse processo por meio de uma representatividade ou diversidade meramente cosmética, a qual não tem como objetivo último a verdadeira inclusão das pessoas pertencentes a grupos sociais diversos ‒ neste caso, pessoas pretas e pardas ‒ nos processos de tomada de decisão e em posições de liderança.

Com base em nossa pesquisa sobre formas de silêncio - que foram aqui apresentadas - e no processo histórico de apagamento e exclusão da população negra, podemos afirmar que a Academia e as organizações precisam trabalhar ativamente em políticas antirracistas. Elas devem tornar evidente, denunciar, colocar em xeque a estrutura social, como forma de fazer falar, expor, imperar uma política do antissilenciamento ou mesmo de combate ao silêncio cúmplice em relação à situação opressiva sofrida por esse grupo silenciado. Nessa linha, os estudos sobre o racismo nas organizações não devem objetivar enaltecer os discursos reverberados nas situações de consenso organizacional, no qual imperam a democracia racial e o “pacto do silêncio”. Na busca por um equilíbrio das condições de acesso aos bens e posições, contornadas pelo mito da meritocracia, surgem manifestações de que, nas organizações, imperam a diversidade e a inclusão. Para além dos discursos da diversidade e inclusão nas organizações, as pesquisas sobre racismo devem buscar a estrutura subjacente do pacto do silêncio, deixando evidente para a sociedade que há uma perpetuação de pessoas brancas em posições de liderança, de que o trabalho precarizado é realizado, predominantemente, por pessoas negras. Os diversos dados inseridos na introdução deste ensaio visavam justamente revelar a condição estrutural do racismo nas organizações. Dito isso, só é possível denunciar o racismo quando são revelados os silêncios, os pactos de cordialidade, as ações de silenciamento e a cumplicidade e o silêncio das pessoas diante de manifestações racistas, injúria racial, piadas ou trocadilhos ou qualquer outra condição que revele a segregação racial.

Diante desse contexto de denúncia sobre o racismo, para além de pesquisas na área de estudos organizacionais que visem à instauração de um discurso sobre a diversidade e inclusão, seria importante compreender o não dito, as formas e os pactos de silêncio, os processos de silenciamento e o silêncio cúmplice nas organizações. Pode parecer contraditório, mas o elemento central é tornar eloquente o silêncio ou mesmo o não dito do racismo nas organizações. Só assim haverá uma luta real e militante para que o racismo seja abolido de vez, não apenas das organizações, mas da sociedade. Não é possível esperar que ocorram injúrias raciais, piadas, trocadilhos, provérbios, etc., que são formas ditas e manifestas de racismo, para que a luta antirracista se inicie. Se o que sustenta a sociedade brasileira é o mito da democracia racial, uma aparente cordialidade nas relações sociais, um pacto de silêncio sobre a segregação racial, então, os estudos, pesquisas e denúncias devem iniciar pelos silêncios, pelos não ditos, pelos silenciamentos e pela cumplicidade nas práticas de segregação racial.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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  • 1
    Os termos “negros”, “negras”, “pessoas negras” foram empregados no texto para tratar de pessoas pretas e pardas, sem distinção, de acordo com a definição adotada oficialmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os termos “pretos” e “pretas” são empregados na citação de autores que utilizam esta terminologia e/ou em casos específicos para tratar de pessoas com perfil definido como pretos (e não pardos). O objetivo da utilização de mais de um termo é a naturalização das terminologias empregadas por diferentes correntes de pensamento na luta antirracista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2022
  • Aceito
    24 Fev 2023
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