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Comparação entre duas técnicas cirúrgicas de correção intrauterina da mielomeningocele em fetos de ovelha

Resumos

OBJETIVO: Comparar a técnica neurocirúrgica clássica a uma nova técnica simplificada, para correção de mielomeningocele, em fetos de ovelhas. MÉTODOS: Em 9 fetos, foi criado um defeito semelhante à mielomeningocele (laminectomia e excisão de dura-máter) no 90º dia de gestação. O tipo de correção foi randomizado. No Grupo 1, o defeito foi corrigido usando a técnica neurocirúrgica clássica, com a sutura de três camadas (dura-máter, músculo e pele), realizada por um neurocirurgião. No Grupo 2, um especialista em Medicina Fetal utilizou a técnica simplificada, colocando um fragmento de celulose biossintética sobre a medula e suturando apenas da pele sobre a celulose. Próximo ao termo da gestação (132 dias), os fetos foram sacrificados para análise anatomopatológica. RESULTADOS: Ocorreram dois casos de aborto e uma morte materna, restando seis casos para avaliação - três em cada grupo. No Grupo 1, todos os casos mostraram aderência da medula à cicatriz (meningoadesão) e perda da arquitetura medular, com destruição do funículo posterior e perda da visualização da substância cinzenta. No Grupo 2, observou-se, em todos os casos, a formação de uma neodura-máter, separando o tecido nervoso do músculo adjacente, sendo que o funículo posterior e a substância cinzenta estavam preservados. CONCLUSÃO: A técnica simplificada foi superior à neurocirúrgica, com maior preservação da medula e evitando as aderências do tecido nervoso. Os presentes achados sugerem que a técnica utilizada atualmente na correção de mielomeningocele em fetos humanos deva ser reavaliada.

Meningomielocele; Disrafismo espinal; Terapias fetais; Fetoscopia; Ovinos


OBJECTIVE: To compare the classical neurosurgical technique with a new simplified technique for prenatal repair of a myelomeningocelelike defect in sheep. METHODS: A myelomeningocele-like defect (laminectomy and dural excision) was created in the lumbar region on day 90 of gestation in 9 pregnant sheep. Correction technique was randomized. In Group 1 the defect was corrected using the classic neurosurgical technique of three-layer suture (dura mater, muscle and skin closure) performed by a neurosurgeon. In Group 2, a fetal medicine specialist used a biosynthetic cellulose patch to protect the spinal cord and only the skin was sutured above it. Near term (day 132 of gestation) fetuses were sacrificed for pathological analysis. RESULTS: There were two miscarriages and one maternal death. In total, six cases were available for pathological analysis, three in each group. In Group 1, there were adherence of the spinal cord to the scar (meningo-neural adhesion) and spinal cord architecture loss with posterior funiculus destruction and no visualization of grey matter. In Group 2, we observed in all cases formation of a neo-dura mater, separating the nervous tissue from adjacent muscles, and preserving the posterior funiculus and grey matter. CONCLUSION: The new simplified technique was better than the classic neurosurgical technique. It preserved the nervous tissue and prevented the adherence of the spinal cord to the scar. This suggests the current technique used for the correction of spina bifida in humans may need to be reassessed.

Myelomeningocele; Spinal dysraphism; Fetal therapies; Fetoscopy; Sheep


ORIGINAL ARTICLE

IUniversidade de São Paulo - USP, São Paulo (SP), Brasil

IIInstituo Dante Pazzanese de Cardiologia - São Paulo (SP), Brasil

Autor correspondente

RESUMO

OBJETIVO: Comparar a técnica neurocirúrgica clássica a uma nova técnica simplificada, para correção de mielomeningocele, em fetos de ovelhas.

MÉTODOS: Em 9 fetos, foi criado um defeito semelhante à mielomeningocele (laminectomia e excisão de dura-máter) no 90º dia de gestação. O tipo de correção foi randomizado. No Grupo 1, o defeito foi corrigido usando a técnica neurocirúrgica clássica, com a sutura de três camadas (dura-máter, músculo e pele), realizada por um neurocirurgião. No Grupo 2, um especialista em Medicina Fetal utilizou a técnica simplificada, colocando um fragmento de celulose biossintética sobre a medula e suturando apenas da pele sobre a celulose. Próximo ao termo da gestação (132 dias), os fetos foram sacrificados para análise anatomopatológica.

RESULTADOS: Ocorreram dois casos de aborto e uma morte materna, restando seis casos para avaliação - três em cada grupo. No Grupo 1, todos os casos mostraram aderência da medula à cicatriz (meningoadesão) e perda da arquitetura medular, com destruição do funículo posterior e perda da visualização da substância cinzenta. No Grupo 2, observou-se, em todos os casos, a formação de uma neodura-máter, separando o tecido nervoso do músculo adjacente, sendo que o funículo posterior e a substância cinzenta estavam preservados.

CONCLUSÃO: A técnica simplificada foi superior à neurocirúrgica, com maior preservação da medula e evitando as aderências do tecido nervoso. Os presentes achados sugerem que a técnica utilizada atualmente na correção de mielomeningocele em fetos humanos deva ser reavaliada.

Descritores: Meningomielocele; Disrafismo espinal; Terapias fetais; Fetoscopia; Ovinos

ABSTRACT

OBJECTIVE: To compare the classical neurosurgical technique with a new simplified technique for prenatal repair of a myelomeningocele like defect in sheep.

METHODS: A myelomeningocele-like defect (laminectomy and dural excision) was created in the lumbar region on day 90 of gestation in 9 pregnant sheep. Correction technique was randomized. In Group 1 the defect was corrected using the classic neurosurgical technique of three-layer suture (dura mater, muscle and skin closure) performed by a neurosurgeon. In Group 2, a fetal medicine specialist used a biosynthetic cellulose patch to protect the spinal cord and only the skin was sutured above it. Near term (day 132 of gestation) fetuses were sacrificed for pathological analysis.

RESULTS: There were two miscarriages and one maternal death. In total, six cases were available for pathological analysis, three in each group. In Group 1, there were adherence of the spinal cord to the scar (meningo-neural adhesion) and spinal cord architecture loss with posterior funiculus destruction and no visualization of grey matter. In Group 2, we observed in all cases formation of a neo-dura mater, separating the nervous tissue from adjacent muscles, and preserving the posterior funiculus and grey matter.

CONCLUSION: The new simplified technique was better than the classic neurosurgical technique. It preserved the nervous tissue and prevented the adherence of the spinal cord to the scar. This suggests the current technique used for the correction of spina bifida in humans may need to be reassessed.

Keywords: Myelomeningocele; Spinal dysraphism; Fetal therapies; Fetoscopy; Sheep

INTRODUÇÃO

A mielomeningocele é um defeito da neurulação primária, que resulta na falência da fusão da porção caudal do tubo neural(1). É uma das malformações mais comuns em fetos humanos e pode ter consequências devastadoras, como paraplegia, disfunções no sistema urinário e intestinal, e anormalidades ortopédicas(1), além das repercussões no Sistema Nervoso Central, em razão da malformação de Arnold Chiari tipo II, que está presente em mais de 75% dos indivíduos afetados(2).

A prevalência dos defeitos de tubo neural no Brasil pode variar de 1,3 casos por 1.000 nascidos vivos em São José dos Campos (SP)(3), até 5 casos por 1.000 nascidos vivos em Recife (PE)(4).

Estudos experimentais sugerem que a lesão da medula é progressiva na vida intrauterina, pela exposição do tecido nervoso normal às agressões mecânicas (movimentação fetal) e químicas (líquido amniótico), decorrentes do não fechamento das estruturas posteriores(5). A publicação recente dos resultados do ensaio clínico randomizado americano denominado Management of Myelomeningocele Study (MOMS) mostrou que a correção intrauterina melhora o prognóstico neurológico na evolução dos recémnascidos afetados, quando se compara a correção prénatal à pósnatal(6).

Embora o estudo tenha mostrado vantagem, do ponto de vista neurológico, foram observadas complicações maternas e fetais. Do ponto de vista materno, em 35% dos casos foram observados desde adelgaçamento até deiscência completa da cicatriz da incisão cirúrgica no útero, 6% de descolamento de placenta, 6% de edema agudo de pulmão, entre outras complicações(6).

Acredita-se que o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas menos invasivas seria um grande avanço para o tratamento antenatal dessa doença. Com este objetivo, nosso grupo desenvolveu, com sucesso, uma técnica sonoendoscópica, utilizando a fetoscopia sem injeção de gás (gasless fetoscopy)(7) para o tratamento fetal. No entanto, para permitir a abordagem endoscópica, foi necessário simplificar a técnica cirúrgica para a correção do defeito propriamente dito. O sucesso dessa nova técnica simplificada foi demonstrado em feto de coelho(8) e também de ovelha(9).

A técnica neurocirúrgica clássica, que foi utilizada para a correção do defeito no estudo MOMS, consiste no fechamento do defeito em planos distintos. Inicialmente, a placa neural e o saco dural são descolados da pele adjacente. Em seguida, a duramáter é fechada, seguindose da sutura da fáscia, com reaproximação da musculatura. Por fim, a pele é fechada na linha média do defeito.

Até onde se sabe, a técnica de correção pósnatal foi simplesmente transposta para utilização prénatal, sem ter sido testada em um modelo fetal.

OBJETIVO

Avaliar as repercussões anatomopatológicas da técnica neurocirúrgica clássica, comparando seus efeitos ao de uma técnica simplificada para a correção prénatal da mielomeningocele em feto de ovino.

MÉTODOS

Foram utilizadas 9 ovelhas prenhas do cruzamento das raças Hampshire e Down, que passaram por, no mínimo, 5 dias de período de aclimatação no Laboratório de Cirurgia Experimental do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia.

As ovelhas permaneceram em jejum 48 horas antes da cirurgia para alimentos sólidos e 24 horas para líquidos. A medicação pré-anestésica se constituiu de acepromazine 1% (0,2 a 0,4mg/kg) e midazolan (0,3 a 0,5mg/kg) administrados por via endovenosa (EV). Para indução anestésica, foi utilizado o Tiopental 2,5% (7,5 a 10mg/kg). A manutenção anestésica foi realizada com sevoflorano. A cefazolina 1g EV em dose única foi administrada no início do procedimento cirúrgico para antibioticoprofilaxia.

Criação do defeito

O procedimento cirúrgico foi realizado entre o 90º e o 93º dias de gestação, sendo que o mesmo cirurgião criou todos os defeitos, desconhecendo que técnica seria empregada em sua correção.

Uma laparotomia materna paramamária esquerda foi realizada, seguida de histerotomia e retirada de 120mL líquido amniótico (reservado).

Após a exposição do dorso fetal, 3,0x2,0cm de pele foram retirados cranialmente a partir da altura da crista ilíaca. A musculatura paravertebral foi retirada bilateralmente para realização de uma laminectomia, compreendendo três vertebras lombares. Após a exposição do canal medular, foi realizada a excisão de 1,0cm da duramáter, expondo a medula. Foi observada a saída de liquor (Figura 1) e nenhuma lesão medular adicional foi realizada.


Correção do defeito

Imediatamente após a realização do defeito, dois tipos de correção cirúrgica foram empregados. A seleção da técnica empregada foi realizada por randomização simples, com tamanhos iguais entre os dois grupos, utilizando o programa estatístico R 2.11.0, para Windows.

No Grupo 1, a técnica clássica neurocirúrgica foi executada sempre pelo mesmo neurocirurgião, que realizou o fechamento da duramáter com sutura contínua, usando fio Prolene® 6.0. A seguir, foi realizada a aproximação do músculo com fio Ethibond® 5.0, com pontos separados, seguindose do fechamento da pele por meio de sutura contínua. Foi utilizado fio Quill®, de polipropileno 2.0 com ranhuras, permitindo seu "travamento" e dispensando a necessidade de nós nas extremidades da sutura (Figura 2).


No Grupo 2, foi utilizada a técnica simplificada, que consistiu na colocação da celulose biossintética (Bionext, Bionext®, Brasil), película de 2,0x1,0cm, sobre a medula, sem qualquer ponto para sua fixação aos tecidos adjacentes. A seguir, foi realizada a sutura da pele, utilizando-se o mesmo fio e a mesma técnica de fechamento descrita para o Grupo 1 (Figura 2).

Após a correção, o feto foi reconduzido ao útero e o líquido amniótico armazenado foi recolocado na cavidade amniótica, ao final da histerorrafia. O abdome materno era fechado por planos e o animal consciente reconduzido ao alojamento.

Sacrifício

O sacrifício maternofetal foi realizado no 132º de gestação. Os animais receberam as mesmas mediações pré-anestésicas e anestésicas, seguidas de injeção de KCL em bólus. Após cessarem os batimentos cardíacos materno e fetal, os fetos foram retirados por laparotomia, pesados, fotografados e enviados para avaliação anatomopatológica da região operada.

Avaliação anatomopatológica

Foi retirado um fragmento da região operada com margem de dois processos espinhosos acima e abaixo da lesão. As peças ficaram em formaldeído por 7 dias e foram descalcificadas com EDTA por 40 dias. Após, elas foram cortadas em blocos a cada 0,5cm, seguido da confecção de lâminas coradas em hematoxilina eosina (HE).

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto Dante Pazzanese e pela Comissão de Ética o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

RESULTADOS

No total, foram operadas 9 ovelhas; houve 1 morte materna numa gestação gemelar, ocorrida no 2º dia de pós-operatório, por provável contaminação bacteriana no momento da cirurgia. Restaram 8 animais, sendo que 2 tiveram parto prematuro espontâneo precoce, 8 e 9 dias após a cirurgia. Esses três casos foram excluídos da avaliação anatomopatológica.

Dentre os 6 animais restantes, 3 foram sacrificados perto do termo, variando entre 130 e 133 dias de gestação, e o tempo médio de permanência intrauterina foi de 36 dias (Tabela 1).

Dentre os seis animais disponíveis para análise patológica, três pertenciam ao Grupo 1 e três ao Grupo 2. Todos os casos do Grupo 1 tiveram parto prematuro espontâneo e todos os casos do Grupo 2 atingiram a idade gestacional proposta para o sacrifício.

A prematuridade observada, cinco do total de nove casos, levou a investigar uma possível causa infecciosa para o parto prematuro espontâneo. Foram realizadas sorologias para toxoplasmose, brucelose e leptospirose em todos os animais; os dois fetos que nasceram logo após a cirurgia foram submetidos a necrópsia, que resultou inconclusiva. Nos tecidos fetais também foi realizada pesquisa dos mesmos agentes infecciosos por meio de reação em cadeia da polimerase (PCR), cujos resultados foram negativos.

Macroscopia

Na avaliação macroscópica, a pele estava completamente fechada em todos os casos, nos dois grupos, não sendo observados pontos de extravasamento de liquor.

Microscopia

Grupo 1 (técnica neurocirurgia)

Em todos os casos de correção neurocirúrgica, observouse uma acentuada aderência da medula às meninges e ao tecido cicatricial, que envolvia músculo e pele. Observou-se uma verdadeira "herniação" do tecido nervoso em direção ao ponto de sutura da duramáter (Figura 3). Em todos esses casos, também se observou uma perda da arquitetura da medula, com destruição do funículo posterior e perda da visualização da substância cinzenta.


Grupo 2 (técnica simplificada)

Em todos os casos de correção simplificada, foi observada a formação de uma camada de fibroblastos envolvendo a celulose, que mantinha uma continuidade anatômica com a duramáter original, constituindo uma neoduramáter. Esse tecido e a própria celulose separaram o tecido nervoso da cicatriz que envolvia o músculo e a pele. Nesse grupo, observouse a preservação do funículo posterior e da substância cinzenta (Figuras 3 e 4).


DISCUSSÃO

Utilizando como modelo animal o feto de ovelha, para o estudo da correção prénatal da mielomeningocele, observouse que a técnica neurocirúrgica clássica levou a um desarranjo importante da citoarquitetura medular, notandose aderência entre a medula, as meninges e à cicatriz da pele propriamente dita. Por outro lado, a técnica simplificada de correção, utilizando a celulose como interface, induziu à formação de uma neodura-máter que "isolou" a medula, evitado sua aderência às meninges e aos tecidos adjacentes. A técnica simplificada ainda levou a uma maior preservação da citoarquitetura medular.

Vários estudos anteriores para correção intrauterina de mielomeningocele já sugeriam que a correção prénatal levava a uma maior preservação medular e a melhores resultados clínicos(10-13). O estudo do MOMS demonstrou que a correção intrauterina reduziu a necessidade de colocação de shunt ventrículoperitoneal de 82 para 40%, quando se comparou a correção pósnatal à prénatal, respectivamente. Esse estudo ainda demonstrou uma superioridade cognitiva e motora na avaliação até os 30 meses de idade no grupo submetido à correção prénatal(6).

Quanto à abordagem uterina, alguns estudos já haviam demonstrado que a cirurgia realizada a céu aberto aumentava muito o risco de trabalho de parto prematuro e de complicações maternas(6,10,12). No estudo MOMS, a idade gestacional média ao nascimento foi de 34,1 semanas, nos casos operados antes, e de 37,3 semanas, quando após o nascimento. Observouse também diferença significativa no número de casos de ruptura espontânea de membranas de 46% nos casos de cirurgia aberta, contra 8% dos casos que realizaram cirurgia pósnatal(6).

A morbidade materna associada à correção a céu aberto sugere que métodos minimamente invasivos devam ser o futuro da correção antenatal de mielomeningocele. Alguns autores têm estudado a correção endoscópica do defeito, tanto em modelo animal(14-16), quanto em humanos(17) - nesse último caso ainda com resultados incipientes, porém promissores. Ao nosso ver, para o sucesso da correção por via endoscópica, seria necessário desenvolver uma técnica simplificada de fechamento do defeito propriamente dito, já que a técnica neurocirúrgica clássica prevê a sutura da duramáter, a reaproximação da musculatura e o fechamento da pele, em planos distintos. O fechamento clássico não apenas seria de difícil execução técnica, por via endoscópica, mas aumentaria significativamente o tempo cirúrgico, que se considera um ponto importante para o sucesso da técnica endoscópica. Com o objetivo de simplificar o fechamento do defeito, vários materiais foram testados para substituir a duramáter em modelo animal. Assim como o modo de fixação desses materiais foi diferente entre os autores, alguns utilizaram colas, selantes ou sutura para fixálos sobre o defeito(14,18,19).

A celulose biossintética foi testada como substituta de duramáter em cães submetidos à craniotomia por Mello et al.(18), tendo sido induzida a formação de uma neodura-máter. Nosso grupo testou a celulose para correção de um defeito na coluna em feto de coelho(8) e, posteriormente, em ovinos(9,20), demonstrando que o material não causou reação de corpo estranho e também levou à formação de uma neoduramáter, evitando a aderência entre a cicatriz e a medula. No presente estudo, usouse a celulose sobreposta à medula, sem utilizar sutura ou substância adesiva para fixála à medula, apenas a pele foi fechada sobre a celulose, para mantêla sobre a medula.

Uma das limitações do presente estudo é que a lesão que foi criada é diferente da lesão da mielomenigocele em fetos humanos. A lesão aqui produzida foi imediatamente corrigida, não havendo exposição crônica da medula ao líquido amniótico. Neste estudo, apenas a duramáter foi retirada, não tendo sido realizada qualquer lesão intencional da medula. Como o presente objetivo era o de comparar o efeito de técnicas distintas de correção sobre a medula, foi importante garantir que o mesmo tipo de defeito fosse corrigido, garantindo-se a reprodutibilidade da lesão. Assumiuse que a lesão medular seria difícil de reproduzir e, então, optouse por realizar apenas a lesão da duramáter - ao nosso ver, mais reprodutível. Avaliando os resultados encontrados, julgouse que esse aspecto pode ter favorecido a comparação, pois, levandose em conta que a correção foi realizada sobre uma medula "normal", já que apenas a duramáter foi retirada, os achados do presente estudo sugerem que a técnica neurocirúrgica, per se, pode "induzir" a um desarranjo citoarquitetural da medula. Outros estudos são necessários para avaliar as causas desse desarranjo, bem como, se ele, isoladamente, pode piorar uma lesão préestabelecida, de certa forma agravando as repercussões neurológicas.

No presente estudo, demonstrou-se a superioridade anatomopatológica da técnica simplificada, porém seria interessante avaliar se essa preservação citoarquitetural se traduz em menor repercussão no desenvolvimento neuropsicomotor. Seria importante também avaliar seu efeito sobre a fossa posterior, para avaliar se a técnica simplificada também é capaz de fazer com que o cerebelo volte à sua posição original, revertendo a herniação cerebelar. Em teoria, a preservação neuronal, a nível medular, deve levar a menor repercussão no desenvolvimento neuropsicomotor, com menos sequelas neurológica, a longo prazo.

Outra limitação deste estudo foi o pequeno número de casos que resultaram disponíveis para comparação. No entanto, as diferenças foram tão significativas entre todos os aspectos estudados que questionase sobre a necessidade de aumentar a casuística, já que todos os casos do Grupo 1 apresentaram aderência meningoneural, enquanto ela estava ausente em todos os casos do Grupo 2, no qual ainda se observou a presença da neodura-máter.

Um dos pontos fortes deste estudo diz respeito ao que se conhece como "medula presa". Na correção pósnatal em humanos, quando se utilizam métodos de imagem, observa-se aderência da medula ao tecido cicatricial em todos os casos operados com a técnica neurocirúrgica clássica(21). Parte desses recémnascidos apresenta manifestações clínicas durante sua evolução, definida como síndrome da medula presa (SMP). Os sintomas associados à SMP são deterioração neuronal progressiva, convulsões, bexiga neurogênica, incontinência fecal e escoliose severa(22,23). Frente a essa situação, é necessário reoperar o defeito para "soltar" a medula, o que acaba levando a uma piora do prognóstico neurológico. Utilizando-se a técnica simplificada, não observamos aderência entre a medula à cicatriz da pele, o que tem o potencial de evitar o desenvolvimento da SMP na evolução desses recém-nascidos.

Avaliando tal aspecto da medula presa, poucos estudos foram publicados(6,21,24) comparando a evolução de fetos humanos operados antes e após o nascimento. Danzer et al. já relatavam uma diferença significativa entre a evolução pósnatal dos fetos submetidos à correção intrauterina, quando comparados aos corrigidos após o nascimento. No grupo de correção prénatal, que evoluiu com SMP e foi operado, a medula presa estava associada a cistos dermoides em 63% dos casos, enquanto que, nos casos de correção pósnatal, essa associação ocorreu em apenas 25% dos casos(21). O estudo não foi randomizado e nenhuma das hipóteses levantadas para explicar essa diferença foi satisfatória, na opinião dos autores. Ambos os estudos publicados mais recentemente(6,24) mostraram maior incidência de SMP nos fetos operados intraútero. No estudo do MOMS, ocorreram 6 casos de medula presa, no total de 77 operados intraútero, contra 1 caso entre 80 operados após o nascimento. Verbeek et al. mostram 5 casos de SMP do total 13 operados intraútero, contra 2 casos entre 13 operados após o nascimento(24).

Acredita-se que uma boa hipótese para explicar esses achados seria haver uma diferença significativa entre a cicatrização fetal e a neonatal. No entanto, se essa for a diferença, esses achados apontariam para uma "pior cicatrização" no período fetal. Isso seria difícil de justificar, já que a cicatrização fetal é reconhecidamente excelente, pois o feto "cicatriza sem formar cicatriz"(25).

Pensando em outra hipótese para explicar essa diferença, parece razoável pensar na sutura da duramáter como "causadora" de aderência entre as meninges e o tecido nervoso. Haines et al. já haviam demonstrado que a penetração de uma agulha para sutura da duramáter desencadeia uma intensa resposta inflamatória, que culmina na aderência meningodural(26). Palm et al., em estudo com cães, demonstram que a utilização de clipes não penetrantes, para fechamento da dura, evita a aderência entre a medula e as meninges, enquanto que a penetração da dura, assim como a utilização de diferentes fios de sutura, induz à adesão(27).

Nesta casuística, todos os casos operados pela técnica neurocirúrgica apresentaram aderência da medula à cicatriz; se isso foi causado pela reação inflamatória produzida pelo fio de sutura da duramáter, esta mesma reação inflamatória também pode ter contribuído para o desarranjo estrutural da medula no nível da lesão. Isso porque estudos em modelo de lesão medular aguda mostram que a supressão da resposta inflamatória pode reduzir a lesão neuronal(28).

Os resultados do presente estudo mostraram que todos os casos submetidos à correção neurocirúrgica tiveram trabalho de parto prematuro e que todos os casos de correção simplificada atingiram o termo da gestação. A relação entre trabalho de parto prematuro e inflamação crônica é bem conhecida, sendo interessante avaliar se a atividade inflamatória crônica, causada pela presença do fio de sutura não absorvível, pode ter contribuído para tal diferença.

Um estudo anterior do nosso grupo(25), utilizando um substituto de pele para fechamento de um defeito de pele tão grande que não permite sua sutura, mostrou que o feto "achou seu caminho" entre as duas lâminas da pele artificial e produziu, na topografia correta, ou seja, acima da derme, uma nova epiderme. Como esse tipo de regeneração, nunca havia sido demonstrado em adultos, nossa hipótese foi de que a cicatrização fetal excelente poderia ser responsável por essa diferença. No presente estudo, no grupo da correção simplificada, o feto "achou seu caminho" e produziu, na topografia correta, uma neoduramáter, porém, no outro grupo, isso não foi observado. Acredita-se que tal diferença pode ser explicada pela presença do material de sutura que, causando uma inflamação crônica local, "confunde" a cicatrização fetal não permitindo o restabelecimento dos planos teciduais originais, que parece ser uma tendência natural do feto. Esse aspecto, em última instância, levaria à adesão meningo dural.

Até onde se sabe, nenhum outro estudo avaliou os efeitos da técnica neurocirúrgica clássica sobre a medula na vida fetal. Nos casos do presente estudo, não só foi possível estabelecer esses aspectos, como também comparar essas repercussões com uma técnica cirúrgica simplificada. Quando se decidiu corrigir a meningomielocele a céu aberto, houve apenas a transposição da mesma técnica realizada após o nascimento, para a correção intrauterina(6). Estes achados sugerem que a técnica clássica possa exercer efeitos indesejados no feto, quando comparados ao recémnascido, e maior incidência ou incidência mais precoce de medula presa, que poderia ser evitada com a técnica simplificada.

Isso leva a sugerir que, se esses achados forem confirmados em outros estudos, a técnica cirúrgica para a correção antenatal do defeito deva ser modificada, mesmo quando se utiliza a via a céu aberto para cirurgia fetal.

CONCLUSÃO

A técnica simplificada foi superior à técnica neurocirúrgica, permitindo a preservação da citoarquitetura normal da medula e evitando sua aderência à cicatriz. A técnica neurocirúrgica, per se, causa dano medular e meningoadesão. Os achados deste estudo sugerem que a técnica clássica utilizada atualmente na correção pré-natal da mielomeningocele em fetos humanos deva ser reavaliada.

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    Silvia Rejane Fontoura HerreraI; Ricardo José de Almeida LemeI; Paulo Roberto ValenteII; Élia Garcia CaldiniI; Paulo Hilário Nascimento SaldivaI; Denise Araujo Lapa PedreiraI
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      30 Jun 2012
    • Aceito
      27 Set 2012
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