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Uma proposta para graduar a gravidade de disfunção precoce do enxerto após o transplante de fígado

Resumos

OBJETIVO: Propor um sistema de graduação para a disfunção precoce do enxerto hepático. MÉTODOS: Estudo retrospectivo de um único centro transplantador. Foram incluídos receptores de transplante hepático por doador falecido transplantados pelo sistema MELD. A disfunção precoce do enxerto foi definida segundo os critérios de Olthoff. Diversos pontos de corte para testes de laboratório pós-transplante foram utilizados para criar um sistema de graduação da disfunção precoce do enxerto. O principal desfecho foi a perda do enxerto aos 6 meses. RESULTADOS: O pico de aminotransferases durante a primeira semana pós-operatória se correlacionou com a perda do enxerto. Os receptores foram divididos em disfunção precoce do enxerto leve (pico de aminotransferases >2.000UI/mL, mas <3.000UI/mL); moderada (pico de aminotransferases>3.000 UI/mL); e grave (pico de aminotransferases >3.000UI/mL + International Normalized Ratio >1,6 e/ou bilirrubina >10mg/dL no 7º dia pós-operatório). Disfunções precoces moderada e grave, foram fatores de risco independentes para a perda do enxerto. Pacientes com disfunção precoce leve apresentaram sobrevida do enxerto e do paciente comparável àqueles sem disfunção do enxerto. Contudo, aqueles com disfunção precoce moderada tiveram pior sobrevida do enxerto comparada aos que não tiveram disfunção do enxerto. Pacientes com disfunção precoce grave tiveram sobrevida do enxerto e do paciente pior do que os outros grupos. CONCLUSÃO: Disfunção precoce do enxerto pode ser graduada por meio de um critério simples e confiável, baseado no pico de aminotransferases durante a primeira semana de pós-operatório. A gravidade da disfunção precoce do enxerto é um fator de risco independente para a perda do enxerto. Pacientes com disfunção precoce moderada tiveram pior sobrevida do enxerto. Receptores com disfunção precoce grave tiveram um prognóstico significativamente pior de sobrevida do enxerto e do paciente.

Transplante de fígado; Complicações pós-operatórias; Reoperação; Sobrevivência do enxerto


OBJECTIVE: To propose a grading system for early hepatic graft dysfunction. METHODS: A retrospective study from a single transplant center. Recipients of liver transplants from deceased donors, transplanted under the MELD system were included. Early graft dysfunction was defined by Olthoff criteria. Multiple cut-off points of post-transplant laboratory tests were used to create a grading system for early graft dysfunction. The primary outcome was 6-months grafts survival. RESULTS: The peak of aminotransferases during the first postoperative week correlated with graft loss. The recipients were divided into mild (aminotransferase peak >2,000IU/mL, but <3,000IU/mL); moderate (aminotransferase peak >3,000IU/mL); and severe (aminotransferase peak >3,000IU/mL + International Normalized Ratio >1.6 and/or bilirubin > 10mg/dL in the 7th postoperative day) early allograft dysfunction. Moderate and severe early dysfunctions were independent risk factors for graft loss. Patients with mild early dysfunction presented with graft and patient survival comparable to those without graft dysfunction. However, those with moderate early graft dysfunction showed worse graft survival than those who had no graft dysfunction. Patients with severe early dysfunction had graft and patient survival rates worse than those of any other groups. CONCLUSION: Early graft dysfunction can be graded by a simple and reliable criteria based on the peak of aminotransferases during the first postoperative week. The severity of the early graft dysfunction is an independent risk factor for allograft loss. Patients with moderate early dysfunction showed worsening of graft survival. Recipients with severe dysfunction had a significantly worse prognosis for graft and patient survival.

Liver transplantation; Postoperative complications; Reoperation; Graft survival


ARTIGO ORIGINAL

Uma proposta para graduar a gravidade de disfunção precoce do enxerto após o transplante de fígado

Paolo Salvalaggio; Rogerio Carballo Afonso; Guilherme Felga; Ben-Hur Ferraz-Neto

Unidade de Transplante de Fígado, Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Paolo Salvalaggio Unidade de Transplante de Fígado do Hospital Israelita Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701, bloco A – Morumbi CEP: 05652-900 – São Paulo, SP, Brasil Tel.: (11) 2151-1381 E-mail: salvalaggio@einstein.br

RESUMO

OBJETIVO: Propor um sistema de graduação para a disfunção precoce do enxerto hepático.

MÉTODOS: Estudo retrospectivo de um único centro transplantador. Foram incluídos receptores de transplante hepático por doador falecido transplantados pelo sistema MELD. A disfunção precoce do enxerto foi definida segundo os critérios de Olthoff. Diversos pontos de corte para testes de laboratório pós-transplante foram utilizados para criar um sistema de graduação da disfunção precoce do enxerto. O principal desfecho foi a perda do enxerto aos 6 meses.

RESULTADOS: O pico de aminotransferases durante a primeira semana pós-operatória se correlacionou com a perda do enxerto. Os receptores foram divididos em disfunção precoce do enxerto leve (pico de aminotransferases >2.000UI/mL, mas <3.000UI/mL); moderada (pico de aminotransferases>3.000 UI/mL); e grave (pico de aminotransferases >3.000UI/mL + International Normalized Ratio >1,6 e/ou bilirrubina >10mg/dL no 7º dia pós-operatório). Disfunções precoces moderada e grave, foram fatores de risco independentes para a perda do enxerto. Pacientes com disfunção precoce leve apresentaram sobrevida do enxerto e do paciente comparável àqueles sem disfunção do enxerto. Contudo, aqueles com disfunção precoce moderada tiveram pior sobrevida do enxerto comparada aos que não tiveram disfunção do enxerto. Pacientes com disfunção precoce grave tiveram sobrevida do enxerto e do paciente pior do que os outros grupos.

CONCLUSÃO: Disfunção precoce do enxerto pode ser graduada por meio de um critério simples e confiável, baseado no pico de aminotransferases durante a primeira semana de pós-operatório. A gravidade da disfunção precoce do enxerto é um fator de risco independente para a perda do enxerto. Pacientes com disfunção precoce moderada tiveram pior sobrevida do enxerto. Receptores com disfunção precoce grave tiveram um prognóstico significativamente pior de sobrevida do enxerto e do paciente.

Descritores: Transplante de fígado; Complicações pós-operatórias; Reoperação; Sobrevivência do enxerto

INTRODUÇÃO

Avanços em cirurgia, anestesia, imunossupressão e assistência médica contribuíram para o sucesso atual de transplante hepático em todo o mundo(1). O moderno médico de transplante lida não apenas com candidatos extremamente doentes e doadores não ideais, mas também com pequenas margens financeiras e pressões crescentes por parte de agências reguladoras, que mensuram os desfechos de transplantes(2-8). Recentemente, há interesse crescente no desenvolvimento de modelos que correlacionem função inicial do enxerto e desfechos pós-transplante(9-13).

A disfunção precoce do aloenxerto (EAD, do inglês early allograft dysfunction) é uma entidade clínica, que pode refletir características do doador, do receptor e do transplante, que modificam a função inicial do enxerto e que poderiam ser usadas como modelos de transplante. Estudos anteriores, tentaram definir EAD na era pré-MELD (do inglês Model for End-Stage Liver Disease, Modelo para Doença Hepática Terminal)(14-17). Outros termos, como "função inicial deficiente" ou "disfunção do enxerto com ou sem inclusão de não funcionamento primário e complicações vasculares", também têm sido propostos(12,13). Recentemente, na era MELD, EAD tem sido definida naqueles pacientes com elevação substancial de aminotransferases durante a primeira semana pós-operatória, ou naqueles que estão significantemente ictéricos ou que apresentam transtorno de coagulação no 7º dia pós-operatório. Este critério baseou-se em estudos anteriores e nos pareceres de especialistas de grandes centros de transplantes nos Estados Unidos. É fato importante que tal critério mostrou forte correlação com a sobrevida de paciente e de enxerto aos 6 meses(10).

No Brasil, EAD impacta a nossa prática clínica diária. Há a impressão clínica de que alguns pacientes com EAD se recuperam de forma extremamente rápida e são bem-sucedidos. No outro extremo, EAD pode se correlacionar com fatores similares de doador, receptor e cirúrgicos, que foram descritos em receptores com não funcionamento primário ao enxerto (NFP)(18-21). É possível postular que a NFP seja o grau mais severo de EAD.

Uma lacuna potencial nos estudos anteriores de EAD é a incapacidade de diferenciar a gravidade dessa entidade. A hipótese do presente estudo é de que pacientes com EAD poderiam ser mais bem caracterizados em um espectro amplo em vez de em um único grupo com comportamento uniforme. Acredita-se firmemente que um sistema de graduação para EAD poderia auxiliar o clínico a tomar rápidas decisões a respeito da viabilidade de enxertos, potencial retransplante e, eventualmente, intervenções inovadoras que permitam o resgate precoce do enxerto. Este estudo pretende criar um sistema de graduação de EAD.

OBJETIVO

Propor um sistema de graduação para a EAD.

MÉTODOS

Este é um estudo retrospectivo inicialmente conduzido incluindo dados de todos os receptores de transplantes hepáticos realizados no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) de 1º de julho de 2005 até 30 de junho de 2010. Os dados foram coletados do banco de dados de transplantes de fígado e registros médicos eletrônicos desse hospital. Para o presente estudo, a inclusão esteve restrita a pacientes adultos (>18 anos de idade) candidatos ao primeiro transplante de fígado de doador falecido. Pacientes com transplantes de fígado-rim e enxertos parciais foram incluídos. Aqueles com complicações vasculares e NFP, dentro da primeira semana pós-operatória, foram excluídos. NFP foi descrita segundo a definição da United Network for Organ Sharing (UNOS), ou seja, dentro de 7 dias após o implante, conforme definição por aspartato aminotransferase (AST) >3.000 e por um ou ambos dos seguintes itens: International Normalized Ratio (INR) >2,5 ou acidose, definida como por pH arterial <7,30 ou pH venoso de 7,25 e/ou lactato >4mMol/L(22).

Definição e classificação de EAD

Definiu-se EAD em pacientes que apresentavam: (1) bilirrubina >10mg/dL no dia 7 pós-operatório; e/ou (2) INR >1,6 no dia 7 pós-operatório; e/ou (3) pico de aminotransferase (alanina aminotransferase – ALT – ou AST) >2.000UI/mL dentro dos primeiros 7 dias pós-operatórios(11).

Na busca de uma classificação válida, primeiramente usam-se diferentes pontos de corte desses três exames de laboratório com e/ou sem adicionar outras variáveis, como NFP, encefalopatia, acidose e a capacidade de depurar ácido láctico. Para cada quartil de distribuição dos resultados de bilirrubina e INR no 7º dia ou o pico de aminotransferases na primeira semana, realizou-se concordância estatística (estatística-c) com o risco de perda do aloenxerto aos 6 meses.

A estatística-c entre 0,8 e 0,9 foi interpretada como tendo excelente capacidade discriminativa. Um teste com estatística-c de 0,65 e maior foi interpretado como uma ferramenta potencialmente útil. Um teste com estatística-c <0,6 foi considerado não útil(10,12,23). Os riscos relativos (RR) com intervalos de confiança de 95% (IC95%) foram calculados como a incidência cumulativa de mortalidade dentro de 6 meses, dentre aqueles com EAD, dividido pela incidência de mortalidade de 6 meses, dentre aqueles sem EAD.

Confeccionaram-se as curvas ROC com diferentes combinações do nível de aminotransferases, grau de colestase, significância do transtorno de coagulação e as variáveis descritas aqui anteriormente. Depois, escolheu-se o sistema de graduação que apresentasse a melhor estatística-c, ao mesmo tempo em que seria fácil de usar e prático para o clínico à beira do leito, que procura calcular o risco de perda de enxerto com base na gravidade da EAD.

Grupos

Para validar a correlação de gravidade de EAD e os desfechos pós-transplantes, a seguir, dividiu-se a população do estudo em quatro grupos: sem EAD, EAD leve, EAD moderada e EAD grave. Os pacientes que não tinham EAD foram incluídos no grupo sem EAD (grupo de referência). EAD leve foi definida naqueles que apresentaram pico de aminotransferases durante a semana pós-operatória inicial >2.000UI/mL, mas <3.000UI/mL. Aqueles com EAD moderada apresentavam pico de aminotransferases durante a semana pós-operatória inicial >3.000UI/mL, sem qualquer alteração grave de bilirrubina (>10mg/dL no 7º dia pós-operatório) ou INR >1,6 no 7º dia pós-operatório. No grupo de EAD grave foram incluídos aqueles que apresentavam pico de aminotransferase >3.000UI/mL na primeira semana pós-operatória em associação com bilirrubina >10mg/dL e/ou INR >1,6 até o 7º dia pós-operatório.

Gravidade da EAD como fator de risco para perda do enxerto

Para poder testar a correta correlação de EAD como perda do aloenxerto, realizou-se uma análise univariada, usando a perda do enxerto aos 6 meses como desfecho (endpoint). Aqueles fatores que tinham p<0,2 foram incluídos em uma análise multivariada. Para testar se diferentes graus de EAD poderiam independentemente contribuir para a perda do enxerto, usou-se um modelo Cox.

Covariáveis e outras definições

As covariáveis incluíram gênero, idade, raça, etnia, tipo sanguíneo, altura, peso, índice de massa corporal (IMC), causa de falência hepática (hepatite viral, carcinoma hepatocelular – HCC – e outras causas), enxerto local versus regional versus nacional, enxerto tipo dividido (split) versus enxerto inteiro, cotransplante de rins, idade, gênero, altura e peso do doador, IMC, índice de risco do doador (DRI), transfusão sanguínea e tempo de isquemia fria (TIF)(24). Utilizou-se a definição de perda de enxerto e morte do paciente igual à encontrada nos registros da Organ Procurement and Transplant Network (OPTN). O índice MELD biológico na ocasião do transplante (ou a última pontuação disponível) foi calculado conforme publicado anteriormente(25). A doação após morte cardíaca (DCD) não está presente nesta série. Em função da variedade de raças no país, as raças dos doadores não são relatadas no banco de dados(26). Para calcular o índice DRI, fixaram-se os escores DCD em zero e imputaram-se escores de raça como 0,15 (média entre escores mínimos e máximos permitidos).

Análise estatística

As comparações entre as taxas para as estratificações demográficas, clínicas, e geográficas para as duas eras foram realizadas por meio do teste do χ2, a fim de examinar variáveis qualitativas e a Análise de Variância (ANOVA) para estudar variáveis quantitativas. Foram construídas curvas de Kaplan-Meier para ilustrar as diferenças entre sobrevida do paciente pós-transplante e do enxerto por grupo. O teste log-rank foi usado para determinar se havia uma diferença significativa nas curvas. Dados omitidos nas características examinadas foram classificados como "outros" ou "desconhecidos", ou excluídos de análise (na maioria das circunstâncias), dependendo da frequência de dados omitidos para aquela característica. Nenhuma técnica de imputação foi usada. Um nível alfa de 0,05 foi usado para todos os testes de significância. As análises foram realizadas usando SAS v.9.2 (SAS Institute, Cary, NC).

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição, número CAAE 079721129. 0000.0071.

RESULTADOS

Durante o período do estudo, 458 transplantes de fígado foram realizados na unidade. Depois de terem sido aplicados os critérios de inclusão e exclusão, 325 pacientes formaram a população deste estudo.

Classificação da EAD

A figura 1 mostra a correlação das variáveis incluídas no sistema de graduação. Quando considerados individualmente, INR e bilirrubina não apresentaram forte correlação com a perda do enxerto. Entretanto, quando se observam aqueles com níveis de aminotransferases >2.000UI/mL dentro da primeira semana, encontra-se forte correlação entre o pico de aminotransferases e a perda do enxerto. A seguir, testou-se uma variedade de combinações de diferentes pontos de corte para discriminar a perda do aloenxerto. O sistema atual de graduação tinha uma estatística-c de 0,68. Encefalopatia, acidose (usando pH como substituto) ou depuração de ácido láctico não aumentaram a estatística-c (c<0,6). Limitamos a análise a apenas três grupos, com base primariamente nos picos de aminotransferase e na combinação com um valor anormal de INR>1,6 ou nível de bilirrubina (>10mg/dL) no 7º dia pós-operatório.


Características clínicas do estudo de coortes e dados demográficos de doadores

Os dados demográficos dos receptores de transplantes estão mostrados na tabela 1. Quando se comparam os receptores com EAD leve, moderada e grave àqueles sem EAD, não se encontram diferenças entre os grupos. Porém, múltiplas características de doadores se mostraram diferentes dentre os grupos, incluindo gênero, altura, peso, IMC e tipo de enxerto (Tabela 2).

Fatores de risco para perda de aloenxertos

A tabela 3 mostra características do doador, do receptor e do transplante, que poderiam ser relacionadas à perda do enxerto aos 6 meses. A análise univariada apontou para EAD, raça do receptor, altura do receptor, TIF e múltiplas transfusões, como potenciais fatores de risco para perda de aloenxerto. Entretanto, uma análise Cox isolou apenas raça, altura e gênero do receptor, TIF, múltiplas transfusões sanguíneas e gravidade da EAD como fatores de risco para a perda do enxerto.

Desfechos pós-transplante

Pacientes com EAD grave foram retransplantados mais frequentemente que todos os outros grupos. A maioria dos retransplantes foi realizada precocemente, devido à má função. Os pacientes com EAD apresentaram pior sobrevida de enxerto (Figura 2A) e de pacientes (Figura 2B) do que aqueles sem EAD. Aqueles com EAD leve tiveram sobrevida de 1 ano para paciente (94%) e enxerto (91,8%) comparável aos indivíduos sem EAD (90 e 88,9%, respectivamente). Aqueles com EAD moderada apresentavam pior sobrevida de enxerto em 1 ano (77,2%) do que aqueles sem EAD (p=0,03) e aqueles com EAD leve (p=0,006). Pacientes com EAD moderada tiveram sobrevida de paciente de 1 ano (83,5%) comparável aos sem EAD, e sobrevida de 1 ano pior que aqueles com EAD leve (p=0,03). Os indivíduos com EAD grave tiveram piora significante na sobrevida de 1 ano nos enxertos (54,6%) e pacientes (71,7%) relativo a todos os outros grupos (p<0,001).



DISCUSSÃO

A despeito da relação entre EAD e sobrevida de 6 meses, ainda há a necessidade de rapidamente separar os pacientes com EAD que terão recuperação rápida daqueles que não terão uma progressão muito boa. Assim, projetou-se este estudo para criar o sistema de graduação para EAD.

Inicialmente, diferentes pontos de corte dos testes hepáticos pós-operatórios foram focados. O principal achado deste estudo foi a demonstração de que o pico de aminotransferase correlaciona significantemente com a sobrevida de 6 meses de paciente e enxerto e pode, então, ser utilizado para graduar a EAD. Houve distribuição aleatória de INR e uma falta de correlação de níveis de bilirrubina com desfechos pós-transplante. A inclusão de outras variáveis não pareceu aumentar a capacidade discriminatória para predizer desfechos pós-transplante. Ao mesmo tempo, com a adição de mais variáveis, aumentou-se a subjetividade (como encefalopatia) ou se tornou o sistema de graduação mais complicado para uso clínico diário (como depuração de ácido láctico).

Um achado interessante deste estudo é uma taxa maior de EAD na população estudada em comparação a relatórios anteriores(10,12). De fato, a significância do problema nesta prática clínica foi a principal razão pela qual designou-se um grupo de pesquisa para enfocar a EAD. Ainda não se identificaram os detalhes por trás dessa discrepância. O mais provável é que haja uma correlação com qualidade e manejo de doadores. No Brasil, a maioria dos hospitais e unidades de cuidados intensivos ainda carecem de recursos para sustentarem e administrarem adequadamente o doador com morte cerebral. Ademais, encontram-se índices DRIs significantemente maiores nesta casuística do que na maioria dos relatórios de transplantes hepáticos, o que pode sinalizar que a qualidade desta população de doadores poderia, de fato, ser diferente daquela dos centros de transplante da Europa e da América do Norte(24). Outras potenciais explicações incluem variabilidade nos critérios de aceitação de doadores, preservação de órgãos, técnicas cirúrgicas e anestésicas, que são atuais áreas de iniciativas de pesquisa e melhoria de qualidade deste grupo.

É importante salientar que se começou com uma pergunta diferente e uma hipótese conduzida por achados clínicos no tratamento diário de paciente com EAD. Não se estava tentando criar uma nova definição de EAD ou validar estudos anteriores. Deste ponto de vista, a definição de EAD é confiável e apropriada(10). Assim, os presentes achados refinam a mais atual definição de EAD. Inovou-se, aqui, pela proposta de como medir EAD. Assim, a futura pesquisa clínica e translacional de EAD terá duas opções na medição de EAD. Os pesquisadores poderão optar por usar EAD como variável nominal (sim versus não) ou como variável qualitativa (leve, moderada e severa). Será crítico para outros grupos validar estes achados ou aperfeiçoar os métodos de mensuração de EAD com melhores escalas e outros sistemas.

O presente sistema de graduação, baseado principalmente no pico de aminotransferases, é intuitivo, facilmente reproduzível e tem boa relação com sobrevida pós-transplante. Entretanto, intrigaram os resultados encontrados no grupo de pacientes com EAD leve. As curvas de sobrevida de Kaplan Meier estavam discretamente superiores (mas não eram estatisticamente diferentes) das de pacientes sem EAD. Assim, o sistema de graduação permitiu identificar duas subpopulações que correm risco maior de apresentar desfechos ruins. Os pacientes com EAD moderada apresentavam um risco maior de perda do enxerto. Aqueles com EAD grave tinham odds ratio significantemente maior de perda de enxerto e de mortalidade. Estes dois grupos necessitam não apenas de melhor suporte clínico, mas também de potenciais mudanças de políticas de alocação e tomadas de decisão mais rápidas a respeito do retransplante. De fato, aqueles pacientes com EAD grave são os principais fatores que contribuíram para um desfecho pós-transplante ruim no centro estudado. Essa subpopulação tem uma maior taxa de retransplante. Os presentes chados corroboram a hipótese de que pacientes com EAD têm um comportamento diferente, o que é provavelmente uma combinação da gravidade da lesão por isquemia-reperfusão do novo enxerto hepático, associada às comorbidades e ao estado geral de saúde do receptor e o manejo perioperatório. Esforços devem ser concentrados agora na melhoria de desfechos futuros, e na seleção e no manejo desses pacientes. Novas tecnologias que possibilitem diagnósticos mais precoces, proteção a enxertos e reversibilidade de EAD são primordiais no ambiente atual de transplante de fígado de parcos doadores (nunca em número suficiente), receptores doentes e rígidas regulamentações(5,8,9,11). Deve ser mais bem investigado o impacto da isquemia-reperfusão, da imunossupressão, da regeneração hepática, e das vias moleculares sobre EAD, além de novas tecnologias, como o ensaio LiMax, devem ser exploradas com mais afinco(11).

Buscam-se fatores de risco para a perda de aloenxerto e, caso se desejem conhecer diferentes graus de EAD, poderia ser aumentado o risco de perda do aloenxerto. Os fatores que eram relevantes já foram previamente descritos, tais como TIF prolongado e a utilização de transfusões sanguíneas(27-29). Para aqueles fatores nos quais o cirurgião pode intervir reduzindo a TIF ou a perda sanguínea, a concomitante diminuição da gravidade de EAD pode ser possível. Entretanto, outras características importantes, como o índice MELD do receptor, diálise pré-transplante e idade do doador, foram previamente indicados como fatores de risco para EAD e perda do enxerto, mas não foram considerados relevantes nesta análise.

Um dos principais enfoques da comunidade de transplantes hepáticos tem girado em torno da utilização de doadores de critérios expandidos (ECDs, do inglês expanded criteria donors)(27-33). A maioria das características anteriormente incluídas na definição de ECD não se mostrou fator de risco para perda de aloenxerto nesta análise. Assim, sugere-se uma abordagem diferente para analisar as repercussões dos ECDs nos desfechos pós-transplante. Um passo inicial poderia ser o de separar aqueles receptores que são bem-sucedidos daqueles que apresentam um desfecho ruim. Para esse fim, classificações, escalas e sistemas de graduação (em semelhança com o sistema EAD de graduação) podem ser importantes contribuições. Modelos prognósticos, estudos econômicos e descrições de complicações relacionadas a EADs e ECDs certamente são necessários. A presente hipótese é de que EAD no transplante hepático pode espelhar o que tem sido descrito em aloenxertos de rins que funcionam deficientemente, mas que não sobrevivem também no longo prazo tanto quanto aqueles com boa função inicial(34). O seguimento de longo prazo desta população deve contribuir para a resposta dessa questão.

Este estudo tem várias limitações. Primeiro, aquelas inerentes a estudos retrospectivos de centro único. Também houve a limitação do tamanho da presente população de estudo, que foi certamente menor que o ideal para uma análise estatística limpa, mas que, ao mesmo tempo, foi comparável a de estudos recentes de EAD(10,12). Segundo, iniciou-se aqui com uma definição certa de EAD; criou-se uma classificação e investigaram-se os desfechos da coorte. Reconhece-se que isso não é o ideal, mas, com base no tamanho da amostra, é um enfoque inicial. Finalmente, o sistema de graduação tem uma estatística-c aceitável, mas não ideal. Isso se compara a várias ferramentas clínicas atualmente em uso em transplantes e cirurgias hepáticas(23,35-37). Certamente, é fundamental que sejam feitos futuros estudos para testar e validar essa classificação.

CONCLUSÃO

Em suma, foi criado um sistema de graduação para EAD. Pacientes com EAD grave apresentaram sobrevida de paciente e de enxerto significativamente pior que qualquer outro grupo deste estudo. Os pacientes com EAD moderada tiveram pior sobrevida de enxerto quando comparados a pacientes sem EAD. EAD é um importante fator de risco independente para a perda do aloenxerto. Futuros estudos devem buscar marcadores precoces de EAD e intervenções que possam minimizar ou reverter o dano e a perda de enxertos.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a Gustavo Pereira, por seu apoio com a análise estatística, e a David Foley (University of Wisconsin, Madison, USA) por sua gentileza em revisar o manuscrito.

Contribuição dos autores

Dr. Salvalaggio: desenhou, coletou dados, analisou e escreveu o manuscrito.

Dr. Felga: analisou e revisou.

Dr. Carballo: analisou e revisou.

Dr. Ferraz-Neto fez analise crítica do texto e da versão em final do manuscrito.

Data de submissão: 4/4/2012

Data de aceite: 25/8/2012

Conflito de interesse: não há.

Trabalho realizado no Hospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil.

Fontes financiadoras e divulgação: parte deste trabalho foi apresentado no American Transplant Congress, em 2011, na Filadélfia, Estados Unidos, e em 2011, no International Liver Transplant Society Meeting, em Valência, Espanha. Não houve nenhuma fonte financiadora externa para este trabalho.

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  • Autor correspondente:
    Paolo Salvalaggio
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      04 Abr 2012
    • Aceito
      25 Ago 2012
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