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Fístula vesicovaginal continente

Resumos

A fístula vesicovaginal é uma comunicação anormal entre a bexiga e a vagina, sendo o tipo mais comum de fístula do trato urinário. A causa mais frequente no Brasil é a iatrogênica, secundária à histerectomia. Classicamente, as mulheres nessa condição, apresentam perda urinária contínua pela vagina e ausência de micção, com forte impacto negativo na qualidade de vida. Apresentamos um caso de fístula vesicovaginal totalmente continente, com seguimento de 11 anos, sem complicações.

Fístula vesicovaginal; Incontinência urinária; Relatos de casos


Vesicovaginal fistula is an abnormal communication between the bladder and vagina and represents the most frequent type of fistula in the urinary tract. The most common cause in Brazil is iatrogenic fistula, secondary to histerectomia. Classically these women present continuous urinary leakage from the vagina and absence of micturition, with strong negative impact on their quality of life. We present a case of totally continent vesicovaginal fistula, with a follow-up of 11 years with no complications.

Vesicovaginal fistula; Urinary incontinence; Case reports


RELATO DE CASO

Fístula vesicovaginal continente

Luís Gustavo Morato de ToledoI; Victor Espinheira SantosII; Paulo Eduardo Gourlat MaronII; Bruno César VedovatoII; Moacyr FucsII; Marjo Deninson Cardenuto PerezII

IFaculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil; Hospital Ipiranga, São Paulo, SP, Brasil

IISanta Casa de Misericórdia de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Luís Gustavo Morato de Toledo Rua Mato Grosso, 306, conjunto 1211 – Higienópolis CEP: 01239-040 – São Paulo, SP, Brasil Tel.: (11) 2373-5567 E-mail: luisgtoledo@uol.com.br

RESUMO

A fístula vesicovaginal é uma comunicação anormal entre a bexiga e a vagina, sendo o tipo mais comum de fístula do trato urinário. A causa mais frequente no Brasil é a iatrogênica, secundária à histerectomia. Classicamente, as mulheres nessa condição, apresentam perda urinária contínua pela vagina e ausência de micção, com forte impacto negativo na qualidade de vida. Apresentamos um caso de fístula vesicovaginal totalmente continente, com seguimento de 11 anos, sem complicações.

Descritores: Fístula vesicovaginal; Incontinência urinária; Relatos de casos

INTRODUÇÃO

A fístula vesicovaginal (FVV) é o tipo mais comum de fístula no trato urinário, podendo decorrer de trauma obstétrico, cirurgia, infecção, doença maligna ou anomalias congênitas(1). Em países desenvolvidos, resulta geralmente de cirurgias ginecológicas, particularmente histerectomia. Em contraste, nos países em desenvolvimento, a FVV está associada a complicações obstétricas, como trabalho de parto prolongado(1,2). Há pelo menos três milhões de pacientes com FVV em países em desenvolvimento, com aproximadamente 33 mil novos casos relatados por ano, apenas na África Subsaariana(1).

Mulheres com fístula vesicovaginal apresentam perda contínua de urina pela vagina, em geral com ausência de micção uretral, o que leva a consequências devastadoras em termos de sua saúde física e psicológica(1). O tratamento clássico é cirúrgico e a abordagem vaginal é a primeira opção atual(3). Apesar de revisão extensa da literatura, os autores não encontraram relatos de pacientes com FVV que fossem completamente continentes.

Apresentamos o relato de caso de uma paciente de 62 anos que, após ser submetida a diversas cirurgias abdominais e ginecológicas, evoluiu com fístula vesicovaginal sem incontinência urinária.

RELATO DE CASO

Paciente do gênero feminino, 62 anos, oriunda de São Paulo, com história pregressa de histerectomia devido a miomas, seis intervenções cirúrgicas por complicações operatórias, sendo que o último procedimento foi realizado em fevereiro de 2000. Duas semanas após a histerectomia, apresentou perda urinária pela vagina, sem micção pela uretra, por 4 meses; após esse período, percebeu melhora progressiva e espontânea até atingir continência completa.

A cistoscopia mostrou uma única fístula, com 4cm de diâmetro, localizada acima do trígono. O meato ureteral estava inalterado e corretamente posicionado. Não apresentou perda urinária durante manobra de Valsava com a bexiga cheia e, quando solicitada, urinou simultaneamente pela vagina e uretra (Figuras 1 a 4).





A paciente recusou tratamento cirúrgico por ser totalmente continente e não tinha receio de complicações. Ela tinha aversão profunda ao centro cirúrgico pois se submeteu a seis cirurgias abdominais devido a complicações da histerectomia.

Avaliou-se o trato urinário superior da paciente, que estava bem preservado em termos de função e anatomia.

A paciente vinha sendo acompanhada clinicamente e faz avaliações por cistoscopia anualmente, nos últimos 11 anos, não revelando sinais de degeneração maligna do urotélio vesical ou quaisquer outros sintomas do trato urinário inferior. A urocultura foi positiva para Escherichia coli mas não há razão para prescrever antibioticoterapia.

A paciente relatava qualidade de vida satisfatória, e se mantinha totalmente continente, mesmo durante a relação sexual. Além disso, negava incontinência aos esforços, não necessitava de absorventes higiênicos e urinava voluntariamente e ao mesmo tempo, pela vagina e uretra (Figuras 3 e 4).

DISCUSSÃO

O presente caso não é apenas raro e intrigante, mas também, até onde sabemos, sem precedente. As deficiências do sistema público brasileiro de saúde são o motivo subjacente deste caso, pois, se esta paciente tivesse vindo a nosso serviço ainda com incontinência, provavelmente concordaria com o tratamento cirúrgico. Quando foi avaliada pela primeira vez, no Departamento de Urologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, 6 meses após a última cirurgia, já estava completamente continente e se considerava curada.

Há algumas opções terapêuticas para FVV, como cateterização vesical em caso de pequenas fístulas e correção cirúrgica, por via abdominal, vaginal ou combinada(3). A simples observação não foi considerada, inicialmente, uma opção terapêutica válida. Pensávamos que a continência seria transitória e informamos à paciente sobre o risco de infecção urinária, comprometimento da função renal e possível degeneração maligna do urotélio. Entretanto, nenhum argumento foi capaz de persuadi-la; sua fobia de cirurgia a fez rejeitar qualquer tipo de tratamento invasivo. Ela se recusou, até mesmo, a entrar no centro cirúrgico para fazer os exames de rotina, como cistoscopia e cistouretrografia.

Essa paciente tem raro e extraordinário controle voluntário e força nos músculos perineais, especialmente no músculo transverso profundo do períneo e no feixe pubovisceral do levantador do ânus. Essa capacidade foi provavelmente desenvolvida de forma espontânea, pois a qualidade de treinamento muscular é difícil de conseguir em pacientes com incontinência urinária de esforço (IUE), mesmo com auxílio de fisioterapia por profissionais qualificados. No entanto, a reabilitação dos músculos do assoalho pélvico, por meio de diversas técnicas fisioterapias, é considerada primeira linha de tratamento em mulheres com IUE(4,5).

Lesões nos componentes neurológicos e fasciais do assoalho pélvico, além do dano muscular, podem explicar a dificuldade das pacientes com IUE em responderem à fisioterapia(6). Portanto, é racional estimular os exercícios perineais de forma profilática(7), quando as estruturas anatômicas estão intactas e não após a lesão instalada, como ocorre geralmente.

A continência total, mesmo durante as relações sexuais, foi um achado surpreendente nessa paciente, que foi repetidamente questionada. A paciente, junto de seu marido, relatou não ter incontinência durante as relações, com frequência de coito semanal. Esvaziar a bexiga e a vagina pouco antes da relação não justifica sua continência, que se deve à acomodação justa do intróito vaginal ao redor do pênis, secundário à ação dos músculos pélvicos, como mencionado anteriormente.

As consequências da incontinência urinária são conhecidas, assim como suas repercussões decorrentes de uma FVV, o que não ocorreu nessa paciente e, portanto, planejamos acompanhá-la indefinidamente. Embora a colonização vesical crônica possa ser comparada à bacteriúria assintomática, não há precedentes para a potencial malignização urotelial, o que continua a ser preocupante.

CONCLUSÃO

Até onde sabemos este é o primeiro caso de fístula vesicovaginal relatada em uma paciente completamente continente. A comunicação crônica entre a bexiga e a vagina não levou a complicações malignas ou infecciosas em nenhum dos órgãos.

Data de submissão: 21/5/2012

Data de aceite: 14/1/2013

  • 1. Wall LL. Obstetric vesicovaginal fistula as an international public-health problem. Lancet. 2006;368(9542):1201-9
  • 2. Duong TH, Taylor DP, Meeks GR. A multicenter study of vesicovaginal fistula following incidental cystotomy during benign hysterectomies. Int Urogynecol J. 2011;22(8):975-9.
  • 3. Eilber KS, Kavaler E, Rodríguez LV, Rosenblum N,Raz S. Ten-year experience with transvaginal vesicovaginal fistula repair using tissue interposition. J.Urol. 2003;169(3):1033-6.
  • 4. Bø K. Pelvic floor muscle training is effective in treatment of female stress urinary incontinence, but how does it work? Int Urogynecol J. Pelvic Floor Dysfunct. 2004;15(2):76-84.
  • 5. Neumann PB, Grimmer KA, Deenadayalan Y. Pelvic floor training and adjunctive therapies for the treatment of stress urinary incontinence in women: systematic review. BMC Women's Health. 2006;6:11.
  • 6. Beuttenmüller L, Samária AC, Macena RH, Araujo NS, Nunes EFC, Dantas EH. Contração muscular do assoalho pélvico de mulheres com incontinência urinária de esforço submetidas a exercícios e eletroterapia: um estudo randomizado. Fisioter Pesqui. 2011;18(3):210-6.
  • 7. Ferreira M, Santos PC. Impacto dos programas de treino na qualidade de vida da mulher com incontinência urinária de esforço. Rev Port Saúde Pública. 2012;30(1):3-10.
  • Autor correspondente:
    Luís Gustavo Morato de Toledo
    Rua Mato Grosso, 306, conjunto 1211 – Higienópolis
    CEP: 01239-040 – São Paulo, SP, Brasil
    Tel.: (11) 2373-5567
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      21 Maio 2012
    • Aceito
      14 Jan 2013
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