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Conhecimento médico sobre as imunodeficiências primárias na cidade de São Paulo, Brasil

Resumos

OBJETIVO: Avaliar o conhecimento médico sobre as imunodeficiências primárias na cidade de São Paulo (SP). MÉTODOS: Um questionário de 14 questões sobre as imunodeficiências primárias foi aplicado a médicos que trabalhavam em hospitais gerais. Uma das questões apresentava 25 situações clínicas que poderiam ou não estar associadas às imunodeficiências primárias, e a porcentagem de respostas apropriadas gerou um indicador de conhecimento. RESULTADOS: Participaram do estudo 746 médicos, dentre os quais 215 pediatras (28,8%), 244 cirurgiões (32,7%) e 287 clínicos (38,5%). Cerca de 70% dos médicos responderam ter aprendido sobre as imunodeficiências primárias na graduação ou na residência médica. O atendimento a pacientes que usam antibióticos com frequência foi relatado por 75% dos médicos, mas apenas 34,1% já haviam investigado algum paciente e 77,8% não conheciam os dez sinais de alerta para as imunodeficiências primárias. O indicador de conhecimento obtido apresentou uma média de 45,72% (±17,87). Apenas 26,6% dos pediatras e 6,6% tanto dos clínicos quanto dos cirurgiões apresentaram indicador de conhecimento de pelo menos 67% (equivalente à resposta apropriada em dois terços das situações clínicas). CONCLUSÃO: Há uma deficiência no conhecimento médico das imunodeficiências primárias na cidade de São Paulo, mesmo entre os pediatras, a despeito do maior contato com o tema nos últimos anos. A melhora da informação sobre as imunodeficiências primárias entre a comunidade médica é um importante passo para o diagnóstico e o tratamento precoces dessas doenças.

Síndromes de imunodeficiência; Questionários; Conhecimentos, atitudes e prática em saúde


OBJECTIVE: To evaluate medical knowledge of primary immunodeficiency in the city of São Paulo (SP). METHODS: A 14-item questionnaire about primary immunodeficiency was applied to physicians who worked at general hospitals. One of the questions presented 25 clinical situations that could be associated or not with primary immunodeficiency, and the percentage of appropriate answers generated a knowledge indicator. RESULTS: Seven hundred and forty-six participated in the study, among them 215 pediatricians (28.8%), 244 surgeons (32.7%), and 287 clinicians (38.5%). About 70% of the physicians responded that they had learned about primary immunodeficiency in graduate school or in residency training. Treatment of patients that use antibiotics frequently was reported by 75% dos physicians, but only 34.1% had already investigated a patient and 77.8% said they did not know the ten warning signs for primary immunodeficiency. The knowledge indicator obtained showed a mean of 45.72% (±17.87). Only 26.6% if the pediatricians and 6.6% of clinicians and surgeons showed a knowledge indicator of at least 67% (equivalent to an appropriate answer in two thirds of the clinical situations). CONCLUSION: There is a deficit in medical knowledge of primary immunodeficiency in the city of São Paulo, even among pediatricians, despite having greater contact with the theme over the last few years. The improvement of information on primary immunodeficiency in the medical community is an important step towards the diagnosis and treatment process of these diseases.

Immunodeficiency syndromes; Questionnaires; Knowledge, attitudes and practice in healthcare


ARTIGO ORIGINAL

Conhecimento médico sobre as imunodeficiências primárias na cidade de São Paulo, Brasil

Ellen de Oliveira DantasI; Carolina Sanchez ArandaI; Fernanda Aimée NobreI; Kristine FahlII; Juliana Themudo Lessa MazzucchelliI; Erika FelixI; Dora Lisa Friedlander-Del NeroIII; Victor NudelmanII; Flavio SanoIV; Antonio Condino-NetoV; Elaine DamascenoI; Beatriz Tavares Costa-CarvalhoI

IUniversidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

IIHospital Israelita Albert Einstein, São Paulo, SP, Brasil

IIIHospital Servidor Público Municipal, São Paulo, SP, Brasil

IVHospital Nipo-Brasileiro, São Paulo, SP, Brasil

VUniversidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ellen de Oliveira Dantas Rua Otonis, 725 - Vila Clementino CEP: 04025-002 - São Paulo, SP, Brasil Tel.: (11) 2359-3389 E-mail: ellendantas@ig.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar o conhecimento médico sobre as imunodeficiências primárias na cidade de São Paulo (SP).

MÉTODOS: Um questionário de 14 questões sobre as imunodeficiências primárias foi aplicado a médicos que trabalhavam em hospitais gerais. Uma das questões apresentava 25 situações clínicas que poderiam ou não estar associadas às imunodeficiências primárias, e a porcentagem de respostas apropriadas gerou um indicador de conhecimento.

RESULTADOS: Participaram do estudo 746 médicos, dentre os quais 215 pediatras (28,8%), 244 cirurgiões (32,7%) e 287 clínicos (38,5%). Cerca de 70% dos médicos responderam ter aprendido sobre as imunodeficiências primárias na graduação ou na residência médica. O atendimento a pacientes que usam antibióticos com frequência foi relatado por 75% dos médicos, mas apenas 34,1% já haviam investigado algum paciente e 77,8% não conheciam os dez sinais de alerta para as imunodeficiências primárias. O indicador de conhecimento obtido apresentou uma média de 45,72% (±17,87). Apenas 26,6% dos pediatras e 6,6% tanto dos clínicos quanto dos cirurgiões apresentaram indicador de conhecimento de pelo menos 67% (equivalente à resposta apropriada em dois terços das situações clínicas).

CONCLUSÃO: Há uma deficiência no conhecimento médico das imunodeficiências primárias na cidade de São Paulo, mesmo entre os pediatras, a despeito do maior contato com o tema nos últimos anos. A melhora da informação sobre as imunodeficiências primárias entre a comunidade médica é um importante passo para o diagnóstico e o tratamento precoces dessas doenças.

Descritores: Síndromes de imunodeficiência; Questionários; Conhecimentos, atitudes e prática em saúde

INTRODUÇÃO

As imunodeficiências primárias (IDPs) representam mais de 200 doenças genéticas, nas quais alterações do sistema imunológico (SI) causam maior predisposição a infecções, fenômenos autoimunes, alergia e neoplasias(1). Embora individualmente sejam consideradas raras, a frequência estimada varia de 1:2.000 a 1:10.000 como um grupo(2,3). Sabe-se, porém, que a maioria dessas doenças ainda não foi descrita(4,5).

Nas últimas décadas, estudos têm permitido maior compreensão da fisiopatologia das IDPs, o que possibilita maior precisão diagnóstica, assim como a indicação de novas estratégias terapêuticas(6,7). Por outro lado, a grande diversidade de defeitos genéticos e manifestações clínicas torna o reconhecimento e o diagnóstico de pacientes com IDP um desafio(8).

Defeitos imunológicos graves são mais facilmente reconhecidos, mas há casos em que uma IDP é diagnosticada apenas quando o paciente é submetido a uma ou mais internações hospitalares e já pode apresentar sequelas permanentes(9,10).

A falta de conhecimento médico é apontada em muitos países como provável causa do diagnóstico tardio e do subdiagnóstico das IDPs(11,12).

OBJETIVO

Avaliar o conhecimento médico a respeito das imunodeficiências primárias na cidade de São Paulo.

MÉTODOS

Trata-se de estudo transversal, conduzido em sete hospitais gerais (três públicos e quatro privados) na cidade de São Paulo (SP), no período entre julho de 2008 e janeiro de 2010.

A escolha dos hospitais levou em consideração a prestação de serviço nas grandes especialidades médicas (clínica, cirúrgica e pediátrica), assim como a possibilidade de acesso pelos pesquisadores, tendo em vista a grande dimensão da cidade.

Considerando-se que, em 2009, existiam, em São Paulo, 62.896 médicos cadastrados(13), para uma amostragem aleatória simples, com intervalo de confiança de 95% (IC95%), seriam necessários 363 questionários, com um erro amostral máximo de 5%. Optou-se por dobrar esse número, visto que a seleção da amostra seria por conveniência, chegando ao número de 726 questionários, envolvendo, dessa forma, aproximadamente 1% dos médicos com CRM ativo da cidade.

Os critérios para a inclusão do médico no estudo foram a assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido e o trabalho assistencial nos hospitais previamente selecionados como diaristas e/ou plantonistas.

Os critérios de exclusão foram a recusa em participar do estudo e a eventual participação anterior em outro hospital. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), sob o número de aprovação CEP 0793/09.

O instrumento utilizado para coleta de dados foi um questionário elaborado por imunologistas.

A primeira parte do questionário se referia à identificação do participante, por meio do nome (opcional), tempo de graduação, especialização e local de trabalho (público ou privado; em ambulatório, enfermaria e/ou emergência). A segunda parte apresentava 14 questões fechadas: "Você aprendeu algo sobre IDP na universidade ou durante a residência médica?"; "Após o término da residência médica você tem ouvido ou aprendido algo sobre as IDPs?"; "Você atende pacientes com infecção de repetição?"; "Você atende pacientes que usam antibiótico com frequência?"; "Você sabia que pacientes que usam antibiótico com frequência podem ter IDP?"; "Alguma vez você já investigou algum dos seus pacientes para IDP?"; "Se você quiser avaliar um paciente com suspeita de IDP e necessitar orientação sobre os exames laboratoriais, você sabe a quem solicitá-la?"; "Você acha que todo paciente com IDP está gravemente enfermo?"; "Você sabia que existe tratamento para IDP?"; "Você sabia que pacientes com IDP não devem receber vacinas com micro-organismos vivos?"; "Qual a maior dificuldade para avaliar o SI de seu paciente?"; "Quais das seguintes situações clínicas fazem você pensar em IDP?" (essa questão continha 25 itens); "Você conhece os dez sinais de alerta para IDP?"; "Após ler os sinais de alerta, você acha que algum dos seus pacientes necessita ser investigado para IDP?".

Cada participante recebeu um cartão que descrevia os dez sinais de alerta para IDP elaborados pela Jeffrey Modell Foundation (JMF) e adaptados pelo Grupo Brasileiro para Imunodeficiências (BRAGID) para ser lido antes de responder à última questão(14,15).

O banco de dados foi elaborado em programa Excel e as análises estatísticas foram realizadas com o auxílio do programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS Inc., Chicago, USA), versão 17.0. Para todos os testes estatísticos, foi utilizado nível de significância de 5%.

Inicialmente, os dados foram analisados descritivamente. Para as variáveis categóricas, foram apresentadas frequências absolutas e relativas. Para as variáveis numéricas, foram apresentadas medidas-resumo (média, mínimo, máximo e desvio padrão). Para verificar associação entre variáveis categóricas, utilizou-se o teste de χ2.

Foi construído um indicador de conhecimento (IC), na forma de porcentagem, por meio da somatória da pontuação das 25 situações clínicas apresentadas em uma das questões. Foi atribuído 1 ponto para cada resposta considerada adequada. A comparação de médias entre dois grupos foi realizada via teste t de Student para amostras independentes. Para a comparação de médias entre mais de dois grupos, foi utilizada a análise de variância (ANOVA). A ANOVA tem como pressuposto a normalidade dos dados, que foi verificada por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov. Havendo indícios de falta de normalidade, foi utilizado o teste não paramétrico de Kruskal-Wallis.

Finalmente, foi ajustado um modelo de regressão linear múltipla para verificar simultaneamente quais das variáveis escolhidas influenciam o IC sobre as IDPs. O modelo teve como variável dependente o IC. Foram consideradas variáveis explicativas: especialidade, ano de formatura, vínculo com instituição de ensino, esfera de atuação (serviço público, privado ou ambos) e a resposta dada (sim ou não) a algumas questões selecionadas ("Você atende pacientes que usam antibióticos com frequência?"; "Você sabia que pacientes que usam antibiótico com frequência podem ter IDP?"; "Alguma vez você já investigou algum dos seus pacientes para IDP?"; "Você conhece os dez sinais de alerta para IDP?"). O modelo de regressão linear tem como pressuposto a normalidade dos dados, a qual foi verificada por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov para a normalidade nos resíduos (diferença entre o valor utilizado e estimado pelo modelo) após ajuste do modelo. Para tanto, foi utilizado o resíduo padronizado e estudentizado. Além disso, a verificação da existência de pontos influentes foi realizada via D de Cook. Inicialmente, foi ajustado um modelo completo, com a inclusão de todas as variáveis independentes. Em seguida, as variáveis não significantes foram eliminadas uma a uma (método de backward).

RESULTADOS

Todos os hospitais convidados aceitaram participar do estudo. Foram abordados 761 médicos, dos quais 746 (98%) responderam ao questionário distribuídos entre pediatras, clínicos e cirurgiões.

Mais de 50% dos participantes apresentavam algum vínculo com instituições de ensino, concluíram a graduação após o ano de 2000 e trabalhavam tanto em serviço público quanto privado (Tabela 1).

Aprendizado sobre as imunodeficiências primárias

O aprendizado sobre as IDPs durante a graduação e a residência médica aumentou progressivamente com o ano de formatura, chegando a 78,4% entre os formados após o ano de 2000 (p<0,0001).

Em relação às especialidades médicas, os pediatras afirmaram ter tido maior contato com informações sobre as IDPs até o término da residência médica (82,2%) comparados aos clínicos (70,3%) e aos cirurgiões (50,3%), com p<0,0001. Após a especialização, os pediatras responderam ter ouvido falar das IDPs em maior porcentagem (70,7%) do que os clínicos (43,8%) e cirurgiões (33,8%), com p<0,0001.

Atendimento de pacientes com infecção de repetição

O atendimento de pacientes com infecção de repetição foi realizado por 69,4% dos profissionais, com maior percentual entre os pediatras (82,1%) do que entre os clínicos (67,4%) e cirurgiões (60,7%), com p<0,0001.

Do total dos médicos, 78,5% responderam que atendem pacientes que usam antibióticos com frequência (questão 4), e 74,4% disseram ter conhecimento de que esses pacientes podem ter IDP (questão 5), com maior percentual entre os pediatras (88,8%) do que entre os clínicos (74,9%) e cirurgiões (61%), com p<0,0001. Porém, quando perguntados se, alguma vez, investigaram um paciente para IDP, apenas 34,1% responderam afirmativamente, porcentagem que aumenta para 49% entre aqueles que responderam sim às questões 4 e 5 (p<0,0001).

Sobre a dificuldade em investigar a imunodepressão

Aproximadamente 55% dos clínicos e cirurgiões assinalaram o desconhecimento do especialista como a maior dificuldade para investigar o SI do paciente, enquanto que 63,3% dos pediatras apontaram o laboratório. O custo foi apontado como maior dificuldade por 36,7% dos médicos e 0,3% responderam "outros".

Conhecimento sobre as imunodeficiências primárias

A porcentagem das respostas dadas a questões relacionadas às IDPs pode ser observada na tabela 2, sendo que sua distribuição não foi homogênea entre as especialidades (p<0,05).

Em uma das questões, foram descritas 25 situações clínicas, das quais 19 poderiam fazer o médico pensar em IDP. A porcentagem de respostas apropriadas àquelas relacionadas às IDPs pode ser vista na tabela 3.

O IC elaborado neste trabalho apresentou uma média de 45,72% (desvio padrão: 17,87%), equivalente ao conhecimento de 11 a 12 itens e mediana de 48%. O valor mínimo observado foi de 0% e o máximo de 88%.

A média do IC dos pediatras (55,26%) foi maior que a dos clínicos (43,96%), seguidos pelos cirurgiões (39,48%), com p<0,0001. Não foram verificadas diferenças das médias do IC entre médicos vinculados ou não a instituições de ensino e nem de acordo com o ano de formatura.

Na regressão linear múltipla, o efeito das variáveis independentes escolhidas sobre o IC pode ser visto na tabela 4.

Foi analisada a porcentagem de médicos que apresentaram IC ≥66,7%, que corresponde a um acerto de aproximadamente dois terços das questões. Apenas 12,3% dos médicos atingiram esse índice de acerto; se avaliadas as especialidades, a porcentagem foi de 26,4% entre os pediatras e 6,6% entre os clínicos e cirurgiões.

Sinais de alerta para as imunodeficiências primárias

Apenas 22,2% do total de médicos conheciam os dez sinais de alerta para IDP, sem diferença significativa entre o tempo de formatura ou vínculo a instituições de ensino (p>0,05), mas, entre os pediatras, o conhecimento foi maior (43,9%) do que em relação aos clínicos (13,03%) e cirurgiões (14,52%), com p<0,0001.

Após lerem os sinais de alerta, 72,6% dos pediatras e 57,6% tanto dos clínicos como dos cirurgiões responderam que pelo menos um de seus pacientes necessitaria ser investigado para IDP.

DISCUSSÃO

O diagnóstico precoce oferece a melhor oportunidade para introdução de tratamento adequado e redução da morbimortalidade das IDPs(11). Especialistas estimam que entre 70 e 90% das IDPs permanecem sem diagnóstico, o que nos leva a acreditar que a presença de pacientes acometidos deve ser mais comum do que se imaginava(5).

Apesar da falta de conhecimento ser apontada como um dos fatores responsáveis pelo atraso diagnóstico e subdiagnóstico das IDPs, há poucos trabalhos que avaliam esse dado objetivamente, os quais foram realizados em outros países - e a maioria deles entre pediatras(16-19).

O número de IDPs reconhecidas tem aumentado de forma significante nos últimos anos(8), o que deve ter contribuído para maior aprendizado na graduação ou residência médica entre os formados após o ano de 2000. Além disso, a maioria dos centros especializados no diagnóstico e no tratamento dessas doenças está localizada em São Paulo(20).

O pouco conhecimento acerca dos sinais de alerta para IDP, como verificado entre os médicos nesta pesquisa, assim como a falta de informação quanto aos tratamentos disponíveis, é fator com consequência direta na falta de reconhecimento e diagnóstico dessas doenças(2). No serviço de imunologia da UNIFESP, observamos que pacientes com imunodeficiência comum variável (ICV) apresentam tempo médio de retardo de diagnóstico de 6,7 anos(21). Mesmo em países desenvolvidos, o diagnóstico ocorre, muitas vezes, após vários anos de sintomas, quando o paciente é hospitalizado ou quando já apresenta sequelas das infecções(22). Protocolos detalhados têm sido publicados com informações clínicas e laboratoriais para facilitar o diagnóstico e o início da investigação pelo médico não imunologista(23,24). Entretanto, não se sabe o quanto dessas informações é realmente colocado em prática.

Neste trabalho, a maioria dos médicos afirmou atender pacientes que usam antibióticos com frequência e saber que esses pacientes poderiam ter IDP. Esperava-se que a porcentagem de participantes que tivessem indicado alguma investigação para IDP também fosse elevada, o que não ocorreu. Talvez a ideia de que as IDPs são extremamente raras, aliada à dificuldade na investigação, contribua para que as IDPs ainda não sejam colocadas pelo médico entre os diagnósticos diferenciais iniciais de um paciente, mesmo que se tenha aprendido, em algum momento de sua formação, sobre o assunto, reforçando o conceito de que a educação médica deve ser continuada, para que haja um maior reconhecimento dessas doenças(25).

As vacinas constituídas de micro-organismos vivos ou atenuados são geralmente contraindicadas em pacientes com IDPs, especialmente nos casos de deficiências graves, pelo maior risco de efeitos adversos(11). Observa-se que os pediatras estão melhor informados sobre esse aspecto do que os clínicos e os cirurgiões, e que aqueles são os profissionais que geralmente prescrevem a vacinação da criança. Apesar disso, quase a totalidade dos pacientes com IDP atendidas na UNIFESP recebeu todas as vacinas recomendadas para sua idade pelo Ministério da Saúde(21). Um médico clínico ou obstetra, no entanto, deve estar apto a orientar uma gestante com história familiar sugestiva de imunodeficiência (ID) para que a criança, ao nascer, tenha a vacinação por bacilo Calmette-Guérin (BCG) adiada, até que se defina sua imunocompetência(26).

O efeito adverso à vacina BCG foi relacionado às IDPs por apenas 41,6% dos médicos, apesar de ser um importante sinal de alerta no Brasil, onde tal vacina é indicada aos recém-nascidos com peso ≥2.000g o mais cedo possível, de preferência ainda na maternidade(27). Em pacientes com imunodeficiência combinada grave (IDCG) ou defeito micobactericida dos leucócitos, a disseminação do bacilo vacinal ocorre com frequência relevante(28).

As características clínicas que menos foram relacionadas às IDPs foram defeito do septo ventricular (8,5%) e tetania neonatal (11,6%), associadas à síndrome de DiGeorge (SDG)(29). Esta apresenta incidência aproximada de 1:3.000 nascidos vivos, mas ainda é pouco diagnosticada no Brasil, que contribuiu apenas com 4 pacientes registrados entre um total de 116 casos de SDG apresentados na última publicação da Sociedade Latino-Americana de Imunodeficiências (LASID)(12).

Na Turquia, 786 questionários com 71 questões foram distribuídos a pediatras. Dados de anamnese e exame físico, como história familiar positiva para IDPs, morte precoce na família, diarreia crônica por giardíase, lesões aftoides orais de repetição, ausência de amígdalas e atraso no desenvolvimento pôndero-estatural foram relacionados a IDPs por mais de 60% dos entrevistados. Por outro lado, tétano neonatal, abscesso de fígado e poliomielite após vacinação com vírus atenuado não foram relacionado com IDPs(16). Em nosso estudo, diarreia crônica por giardíase, ausência de amígdalas, atraso no desenvolvimento pôndero-estatural e poliomielite após vacina Sabin foram considerados sugestivos de IDP por menos de 50% dos médicos, chamando atenção para o pouco contato dos participantes com aspectos clínicos das IDPs, quando os diferem de infecções de repetição.

Em relação ao IC elaborado, a média foi maior entre os pediatras, seguidos pelos clínicos e cirurgiões. Considerando-se que um IC desejável fosse de 66,6% (equivalente à resposta apropriada a dois terços das situações clínicas), os resultados deste estudo foram abaixo do esperado. Entretanto, este resultado foi muito semelhante ao observado no Kuwait, onde 26% dos pediatras responderam corretamente a dois terços das questões de um questionário para avaliar o conhecimento sobre as IDPs(17).

A ano de formatura anterior a 1979 foi associado a uma diminuição do IC. O surgimento da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) desencadeou uma grande busca no entendimento do SI, o que fez com que a atenção dos médicos se voltasse para doenças que cursam com alterações dos mecanismos de defesa e a consequente associação com outras doenças, incluindo as IDPs. No Brasil, o aumento do número de casos de AIDS diagnosticados a partir da década de 1980 pode explicar a menor familiaridade com as IDs entre os que concluíram a graduação antes dessa década(30).

A especialidade em pediatria foi um dos fatores associados ao aumento do IC, provavelmente pelo fato da maior parte das IDPs ser diagnosticada na infância. Talvez haja um menor estímulo no estudo das IDPs por parte dos clínicos e dos cirurgiões, pela ideia de que essas doenças não afetam o indivíduo adulto. Porém, os primeiros sintomas e o diagnóstico podem ocorrer apenas na fase adulta. Além disso, avanços terapêuticos propiciam cada vez mais aos pacientes a possibilidade de maior sobrevida(24). Na ICV, os sintomas caracteristicamente se iniciam entre a segunda e a quarta década de vida, e é uma das IDPs mais comuns(11). Outras doenças mais raras, típicas da infância, também podem ser detectadas no adulto como deficiência parcial de adenosina deaminase e SDG(10). Especialidades médicas que atendem pacientes adultos devem, portanto, também ser alvos de programas que visem à informação sobre as IDPs.

Outros fatores que foram associados a um aumento do IC estão relacionados principalmente à educação e à atualização. Considerando a necessidade de atualização médica referente às IDPs, a JMF estabeleceu um programa de educação médica e conhecimento público em 2003: o PEPAC (do inglês Physician Education and Public Awareness Campaign). O resultado do programa foi avaliado em 39 países e houve aumento significativo no encaminhamento, diagnóstico e tratamento das IDPs. Em São Paulo, a JMF abriu o primeiro centro para diagnóstico e manejo das IDPs em 2009. Um dos objetivos é apoiar a divulgação dos conhecimentos sobre essas doenças entre os médicos, demais profissionais da área de saúde e a população leiga(30).

O Brasil faz parte da LASID, que tem um registro para IDPs desde abril de 2009, com aproximadamente 700 pacientes brasileiros registrados até junho de 2012 (http://imunodeficiencia.unicamp.br:8080). Esse número se encontra abaixo do esperado, se forem levados em consideração o tamanho da população e a estimativa de prevalência das IDPs(12).

CONCLUSÃO

Conclui-se que há deficiências no conhecimento médico sobre as IDPs na cidade de São Paulo, mesmo entre os pediatras, a despeito do maior contato com o tema nos últimos anos.

Na ausência de testes de triagem em qualquer fase da vida para essas doenças em nosso país, um dos primeiros passos para atingir o diagnóstico precoce é o maior reconhecimento pelos médicos acerca dos sinais que alertam para investigação das imunodeficiências primárias.

Data de submissão: 24/4/2013

Data de aceite: 7/11/2013

Conflitos de interesse: não há.

Trabalho realizado na Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      24 Abr 2013
    • Aceito
      07 Nov 2013
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