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Desafio, Discussão e Respostas: estratégia ativa de ensino para transformar aulas expositivas em colaborativas

A andragogia (área do conhecimento que se dedica ao estudo do aprendizado e formação do adulto, similar à pedagogia, voltada para crianças e adolescentes) tem caminhado cada vez mais próxima da neurociência, no que tange à compreensão do processo de aprendizagem. Muitos trabalhos têm demonstrado de forma robusta que os alunos estimulados, desafiados, com postura participativa, e que têm suas emoções provocadas durante as aulas são os que melhor compreendem e mais retêm o conteúdo.(11. Misch DA. Andragogy and medical education: are medical students internally motivated to learn? Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2002;7(2):153-60. Review.33. Haidet P, Morgan RO, O’Malley K, Moran BJ, Richards BF. A controlled trial of active versus passive learning strategies in a large group setting. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2004;9(1):15-27.) Trata-se de um momento da ciência em que o que se acreditava intuitivamente é, dia após dia, comprovado com dados e medições.(44. Fornari A, Poznanski A, editors. International Association of Medical Science Educators. How-to guide for active learning. Huntington: IAMSE; 2015.,55. Taylor P, Hobbs JN, Burroni J, Siegelmann HT. The global landscape of cognition: hierarchical aggregation as an organizational principle of human cortical networks and functions. Sci Rep. 2015;16;5:18112. doi: 10.1038/srep18112.
https://doi.org/10.1038/srep18112...
) Da mesma forma que um medicamento torna-se obsoleto e contraindicado quando surgem evidências de que este não é mais a melhor opção para os pacientes, podemos considerar uma irresponsabilidade o fato de os professores insistirem em ministrar suas aulas da forma antiga, meramente expositiva, diante de uma vasta literatura demonstrando que os métodos ativos de ensino são mais potentes e eficientes que os passivos.(44. Fornari A, Poznanski A, editors. International Association of Medical Science Educators. How-to guide for active learning. Huntington: IAMSE; 2015.,55. Taylor P, Hobbs JN, Burroni J, Siegelmann HT. The global landscape of cognition: hierarchical aggregation as an organizational principle of human cortical networks and functions. Sci Rep. 2015;16;5:18112. doi: 10.1038/srep18112.
https://doi.org/10.1038/srep18112...
)

Esta onda traz consigo uma demanda: os professores precisam modificar sua forma de ensinar, bem como os alunos precisam assumir novos papéis dentro e fora de sala de aula. Para que isso ocorra, ambas as partes do processo de ensino precisam receber informações e treinamentos, pois mudanças de paradigmas históricos não se fazem subitamente, sendo um processo, no qual alguns excelentes profissionais ainda encontram dificuldades.

Embora o aluno tenha uma participação essencial nas aulas ativas, o professor é o principal responsável e protagonista neste novo cenário. É dele a função de gestor do processo de aprendizagem e cabe a ele preparar-se, preparar a aula e dar todas as condições para que os alunos também se preparem e assumam seus papéis. Aulas bem planejadas e geridas têm mais chances de sucesso, e isto inclui participação dos alunos e aprendizado eficiente.

Diante desta grande e urgente necessidade de mudança, o primeiro passo é incentivar os professores a transformarem suas excelentes aulas e palestras (já preparadas em formato expositivo para cursos ministrados anteriormente) em aulas dialogadas, provocativas, com formato mais inovador, que contemple pausas, desafios, discussões em grupo e exposições precisas do docente (enfim, uma aula ativa e colaborativa). Neste intuito, apresentamos, a seguir, em estrutura de guia de preparação de aula, uma estratégia ativa de ensino que desenvolvemos no curso de Medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde do Hospital Israelita Albert Einstein, as quais denominaram D2R, sigla para Desafio, Discussão e Respostas. Embora tenha como cerne a filosofia do clássico Flipped Classroom,(66. Persky AM, McLaughlin JE. The flipped classroom - from theory to practice in health professional education. Am J Pharm Educ. 2017;81(6): 118. Review.) a D2R propõe alguns detalhes que, quando seguidos pelos professores, permitem produzir aulas dialogadas muito organizadas e eficientes, que satisfazem tanto os objetivos dos docentes quanto os dos alunos.

D2R: passo a passo

Assim como outras estratégias ativas, uma aula dialogada D2R necessita apresentar alguns pilares que viabilizem a preparação dos alunos (é necessário, então, disponibilizar o material previamente para estudo), o trabalho em grupo (é fundamental dividir os alunos em equipes antes da aula) e a aplicação prática do conteúdo (o professor prepara e apresenta casos e questões que simulam a aplicação prática do tema da aula, evitando o lícito questionamento dos alunos “Por que preciso aprender isto?”). A seguir, as etapas de uma aula D2R.

Etapa 1: estudo prévio

Os alunos precisam receber o material de estudo com antecedência para se prepararem para a aula (em torno de 7 dias). Conforme nossa experiência, este material é mais bem aproveitado quando:

  • Acompanhado de objetivos de aprendizado e um roteiro de estudo, detalhando “sobre quais temas o aluno precisa estar seguro após a preparação prévia”.

  • A leitura é objetiva, sem excessos inúteis, que não demandem do aluno tempo não condizente com o que ele tem de hora protegida para se preparar. Complementar os textos com videoaulas e vídeos da Internet é uma estratégia que aumenta adesão ao estudo prévio e auxilia o aprendizado.

Etapa 2: desafios seguidos de discussão e respostas

A aula dialogada depende obrigatoriamente de discussão dirigida entre alunos do mesmo grupo, entre grupos diferentes e entre alunos e professor. Para produzir essa dinâmica, sugerimos o seguinte fluxo:

  • Sessão de perguntas de alinhamento de conceitos básicos:

    • Diferente de começar a aula com slides e explanações, o professor deve iniciar lançando perguntas (uma de cada vez) sobre conceitos básicos do material estudado. Uma espécie de checagem de leitura e compressão, projetando a pergunta e dando alguns minutos para os alunos de cada grupo discutirem entre si e definirem uma resposta. Em seguida, o professor chama um grupo para expor sua resposta, e os outros grupos podem complementar ou discordar.

    • Após colher algumas participações (que geralmente estão corretas, pois as perguntas iniciais são mais simples), o professor mostra alguns slides com tópicos, figuras, gráficos, dados, e esquemas (não é recomendável usar textos) para esclarecimentos sobre a pergunta. Uma vez que o conceito esteja claro, o professor apresenta uma nova questão e repete o fluxo descrito, cumprindo as etapas de discussão dos alunos, o debate entre grupos e a explicação do docente.

    • Nesta etapa, questões discursivas são mais interessantes que as objetivas, pois os conceitos são cartesianos e diretos, e não dão margem para muitas variações.

  • Sessão de desafios mais complexos ou perguntas-caso:

    • Após propor aos alunos uma pequena série de questões básicas e conceituais, a aula deve evoluir com a mesma dinâmica, mas agora com perguntas mais aprofundadas, que associam diferentes conceitos e aspectos da matéria estudada, demonstrando uma aplicação mais prática do conteúdo. Os alunos devem, mais uma vez, discutir o caso no grupo, para, em seguida, o professor colher respostas e propor discussão e debate entre os grupos. Para encerrar o desafio, o professor apresenta alguns slides e define a resposta correta.

    • Os casos de aplicação prática devem ter grau de complexidade moderado a alto, além de demandar dos alunos a associação de conceitos, e a conexão de informações contidas na leitura prévia e nas perguntas iniciais. Assim, os casos permitem sedimentar os conteúdos e demonstrar para o aluno o porquê dele estar aprendendo tal tema.

    • Casos interessantes e desafiadores mantêm a adesão da turma. Se esta etapa mantiver o nível básico das questões iniciais, os alunos se dispersam por perceberem que já esgotaram o tema.

    • Neste momento, as perguntas dos casos podem ser objetivas ou discursivas, destacando que as objetivas mantêm mais o direcionamento da aula e dão menos margem a desvios dos objetivos.

    • Os casos podem ser apresentados na projeção do slide, ou impressos em papel, nas mesas. Quando se disponibilizar um pequeno texto para o caso, avaliar o tamanho do texto, a facilidade que os alunos terão para ler em classe, e o quanto isso não comprometerá a dinâmica da aula.

Etapa 3: encerramento da aula

Finalmente, recomenda-se reapresentar os objetivos da aula (que foram disponibilizados aos alunos juntamente do material de estudo prévio) para que, de forma transparente, professor e alunos analisem se obtiveram sucesso nas atividades. Caso reste ainda dúvida ou insegurança, deve-se realizar um último momento de explicações para finalizar a aula.

Algumas dicas finais

A principal dica para os professores que experimentam pela primeira vez as estratégias ativas de ensino é “Policie-se ao máximo para não transformar a aula dialogada em uma aula expositiva tradicional”. Algumas táticas que se pode adotar são:

  • Quando algum aluno de um grupo perguntar algo, o professor não deve responder de imediato, mas pedir para que ele primeiramente compartilhe a questão com os colegas do grupo, pois talvez eles tenham a resposta. No entanto, é importante garantir que este aluno não fique sem resposta até o final da aula.

  • Durante a discussão entre grupos, quando um grupo perguntar algo, é interessante repassar a pergunta para outro grupo, promovendo a discussão entre eles. Mais uma vez, é fundamental atentar para que, após colher participações, uma resposta final e definitiva seja proposta claramente.

  • Caminhar em volta dos grupos enquanto eles discutem garante um briefing quanto ao nível de debate e o tempo que os alunos levam para resolver as questões. Assim, o professor consegue antecipar o que será necessário discutir com todos, reforçar e enfatizar.

  • O professor deve ter cautela quando as discussões tornam-se muito longas, pois os alunos tendem a perder interesse e motivação quando a aula para de fornecer novidades e dinamismo. Assim, quando as participações dos alunos e grupos estão dispersas ou demandam muito tempo da aula, o docente pode encurtar a discussão caminhando para os slides de explicação.

  • Enquanto um aluno ou grupo está falando e apresentando elementos de uma resposta, é recomendável que o professor escreva-os imediatamente em forma de tópicos no quadro, para facilitar que os demais grupos acompanhem o raciocínio e possam contribuir em seguida. Essa prática também ajuda o próprio aluno que está falando a avaliar melhor o conteúdo de sua participação.

  • Finalmente, uma aula como a D2R exige participação dos alunos, e, segundo nossa experiência, aqueles mais extrovertidos assumem a posição de porta-vozes dos grupos. É importante utilizar sempre os feedbacks positivos, agradecendo a participação dos que falaram, elogiando os acertos, e os raciocínios corretos e plausíveis. Quando há erro, este precisa ser apontado e corrigido, mas deve-se fazê-lo preservando o aluno e valorizando o ato de ter participado. Isto mantém todos encorajados a falar e contribuir para a aula. Em uma aula dialogada, a intimidação, a exposição negativa do aluno ou qualquer comportamento hostil por parte do professor inibem o diálogo e põem o planejamento da aula em risco.

COMENTÁRIOS FINAIS

A simples transformação de uma aula expositiva e tradicional para um formato que estimule a participação dos alunos é um grande avanço para o processo de aprendizagem. A estratégia D2R é um método ativo de ensino, que visa roteirizar a preparação e a condução de uma aula dialogada. Conforme nossa experiência, D2R tem sido a forma mais amigável para que os professores convertam suas aulas em um modelo ativo, lançando perguntas e desafios antes de apresentar seus slides ricos em detalhes.

Sem dúvida, uma aula D2R satisfatória depende do preparo e da disponibilização de um bom material de estudo para os alunos, com objetivos da aula claros (para que o aluno já estude sabendo a importância deste conteúdo para sua formação) e um roteiro que demonstre que sua preparação está de acordo com as expectativas do professor.

Além disso, é muito importante que o professor prepare questões, desafios e casos clínicos com grau de dificuldade crescente, que irão desde uma primeira checagem de leitura e de conceitos, até perguntas mais complexas e, finalmente, atingindo um clímax da aula, com casos clínicos e experimentais por meio dos quais os alunos se sentirão profissionais resolvendo dilemas reais. Essencial ressaltar que, para cada desafio, o professor deverá respeitar o tempo concedido para discussão nos grupos de alunos e, depois, incentivar e conduzir um pequeno debate entre os grupos. Esta etapa é a mais rica da aula, quando alunos ensinam alunos, e professores tornam-se moderadores.

Uma boa aula D2R necessita de um desfecho preciso, no qual alunos e professor reconheçam que os objetivos propostos para a aula foram atingidos. Quando isto ocorre, a certeza de aprendizado é forte, e a adesão dos alunos para as próximas aulas do professor é arrebatadora.

REFERENCES

  • 1
    Misch DA. Andragogy and medical education: are medical students internally motivated to learn? Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2002;7(2):153-60. Review.
  • 2
    Friedlander MJ, Andrews L, Armstrong EG, Aschenbrenner C, Kass JC, Ogden P, et al. What can medical education learn from the neurobiology of learning? Acad Med. 2011;86(4):415-20.
  • 3
    Haidet P, Morgan RO, O’Malley K, Moran BJ, Richards BF. A controlled trial of active versus passive learning strategies in a large group setting. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2004;9(1):15-27.
  • 4
    Fornari A, Poznanski A, editors. International Association of Medical Science Educators. How-to guide for active learning. Huntington: IAMSE; 2015.
  • 5
    Taylor P, Hobbs JN, Burroni J, Siegelmann HT. The global landscape of cognition: hierarchical aggregation as an organizational principle of human cortical networks and functions. Sci Rep. 2015;16;5:18112. doi: 10.1038/srep18112.
    » https://doi.org/10.1038/srep18112
  • 6
    Persky AM, McLaughlin JE. The flipped classroom - from theory to practice in health professional education. Am J Pharm Educ. 2017;81(6): 118. Review.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2017
  • Aceito
    06 Fev 2018
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