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O atraso no diagnóstico do câncer de mama durante a pandemia da COVID-19 em São Paulo, Brasil

RESUMO

Objetivo

Avaliar o impacto da pandemia da COVID-19 no diagnóstico de câncer de mama em um centro de imagem de mama.

Métodos

Estudo de coorte retrospectivo que incluiu mulheres submetidas a exames e procedimentos de mama em um hospital privado em São Paulo, SP, Brasil, no período de medidas mais rigorosas de isolamento social em 2020 (dividido em primeiro período, de 24 de março a 21 de junho de 2020, e em segundo período, de 22 de junho a 31 de dezembro de 2020), comparado com o mesmo período de 2019. Foram analisados o número de exames, as taxas de detecção de câncer, os achados patológicos e os fatores de risco.

Resultados

Foram incluídas 32.144 pacientes. Os exames e os procedimentos de imagem da mama em 2020 tiveram redução de 78,9% no primeiro período e 2,7% no segundo período. Ao final de 2020, foram diagnosticadas com câncer de mama seis pacientes a menos do que em 2019, embora o número de pacientes submetidas à mamografia tenha sido 35% menor.

Conclusão

Houve queda no número de exames de mama e de diagnósticos de câncer nos primeiros 90 dias da pandemia. A redução dos diagnósticos de câncer foi parcialmente compensada no segundo período, mas o número de pacientes submetidas a exames de mamografia até o final do ano foi menor, considerando ainda um grande número de pacientes com exames atrasados.

COVID-19; Infecções por coronavírus; Neoplasias da mama; Detecção precoce de câncer; Mamografia; Espectroscopia de ressonância magnética; Ultrassonografia mamária; Prognóstico; Rastreamento de câncer de mama; Brasil

ABSTRACT

Objective

To evaluate the impact of COVID-19 pandemic on breast cancer diagnosis in a breast imaging center.

Methods

This was a retrospective cohort study that included women submitted to breast exams and procedures in a private hospital in São Paulo, SP, Brazil, as from the period of most strict social isolation measures, in 2020 (separated in first period of social isolation, March 24 to June 21, 2020, and second period, June 22 to December 31, 2020), as compared to the same period in 2019. The number of exams, cancer detection rates, pathologic findings and risk factors were analyzed.

Results

A total of 32,144 patients were included in the study. Breast imaging exams and procedures decreased by 78.9% in the first period, and 2.7% in the second period, in 2020. By the end of 2020, the number of breast cancer lesions detected was just six cases less than in 2019, although the number of patients submitted to mammograms was 35% lower.

Conclusion

There was a drop in number of breast exams and cancer diagnoses in the first 90 days of the pandemic. The decrease in diagnosis of cancer was partially compensated in the second period, but the number of patients submitted to mammograms by the end of 2020 was lower, still considering a large number of patients with delayed exams.

COVID-19; Coronavirus infections; Breast neoplasms; Early detection of cancer; Mammography; Magnetic resonance spectroscopy; Ultrasonography, mammary; Prognosis; Breast cancer screening; Brazil

INTRODUÇÃO

De dezembro de 2019 até março de 2021, o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) causou mais de 115 milhões de casos da doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) e mais de 2,5 milhões de mortes em todo o mundo.( 11. World Health Organization (WHO). WHO Coronavirus Disease (COVID-19) dashboard. Geneva: WHO; 2021 [cited 2021 Apr 2]. Available from: https://covid19.who.int/
https://covid19.who.int/...
)Países com surtos significativos, incluindo o Brasil, introduziram medidas de distanciamento social ou lockdown para atenuar a curva de incidência da pandemia da COVID-19 e reduzir o possível impacto nos sistemas de saúde. Em abril de 2020, cerca de metade da população mundial estava sob lockdown , com mais de 3,9 bilhões de pessoas em mais de 90 países ou territórios tendo que permanecer em casa, conforme solicitado ou ordenado pelos governos locais.( 22. Sandford A. Coronavirus: half of humanity now on lockdown as 90 countries call for confinement. Lyon: Euronews; 2020 [updated 2020 Apr 3] [cited 2020 Oct 14]. Available from: https://www.euronews.com/2020/04/02/coronavirus-in-europe-spain-s-death-toll-hits-10-000-after-record-950-new-deaths-in-24-hou
https://www.euronews.com/2020/04/02/coro...
, 33. Kaiser Family Foundation (KFF). Coronavirus (COVID-19). State COVID-19 data and policy actions. São Francisco: KFF; 2021 [updated 2021 June 14] [cited 2021 Apr 10]. Available from: https://www.kff.org/coronavirus-covid-19/issue-brief/state-covid-19-data-and-policy-actions/
https://www.kff.org/coronavirus-covid-19...
)

Para garantir a saúde dos pacientes e dos profissionais e preservar recursos vitais dentro do sistema de saúde, instituições e profissionais de saúde foram instruídos a parar de realizar procedimentos cirúrgicos eletivos. Além disso, o American College of Radiology (ACR) endossou a orientação dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC) para que consultas ambulatoriais não urgentes fossem reagendadas.( 44. American College of Radiology (ACR). ACR COVID-19 clinical resources for radiologists. Reston: ACR; s.d [cited 2020 Nov 3]. Available from: https://www.acr.org/Clinical-Resources/COVID-19-Radiology-Resources
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)As entidades atuantes no diagnóstico e no tratamento do câncer de mama também publicaram recomendações para agendamento de exames de imagem da mama e tratamento de câncer de mama durante a pandemia da COVID-19. As diretrizes, inicialmente, recomendavam “cancelar procedimentos eletivos e não urgentes, exceto aqueles destinados a avaliar urgências, como abscessos e complicações pós-operatórias”.( 55. Society of Breast Imaging (SBI). Society of Breast Imaging statement on screening in a time of social distancing. Reston (USA): SBI; 2020 [updated 2020 Mar 18] [cited 2020 Nov 14]. Available from: https://www.sbi-online.org/Portals/0/Position Statements/2020/SBI-statement-on-screening-in-a-time-of-social-distancing_March-17-2020.pdf
https://www.sbi-online.org/Portals/0/Pos...
)

Tendo em vista o número crescente de casos da COVID-19 e assim como outras entidades médicas internacionais, o Colégio Brasileiro de Radiologia (CBR), em associação com a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) e a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM), publicou uma nota, em 26 de março de 2020, com recomendações para o agendamento de exames de imagem da mama durante a pandemia da COVID-19, orientando que fossem evitados todos os exames que pudessem ser adiados, principalmente em pacientes acima de 60 anos. A recomendação deixava claro que todos os exames da mama deveriam ser cuidadosamente avaliados, inclusive os de rastreamento.

Nesse contexto específico de medo de um vírus desconhecido e altamente transmissível, muitas pacientes adiaram seus exames de imagem da mama e a atenção médica. Observou-se diminuição em todos os exames, aumentando o risco de atraso no diagnóstico para as pacientes. Em julho de 2020, o ACR publicou recomendações para a recuperação e a retomada cautelosas de todos os tipos de exames de imagem.( 66. Davenport MS, Bruno MA, Iyer RS, Johnson AM, Herrera R, Nicola GN, et al. ACR statement on safe resumption of routine radiology care during the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) pandemic. J Am Coll Radiol. 2020;17(7):839-44. )

Durante 2020, houve muitas oscilações no número de casos da COVID-19 e, consequentemente, nas recomendações de distanciamento social. A população aguarda pelo momento certo para retornar à sua rotina e realizar exames, mas permanece bastante instável o número de casos até o momento, inclusive com novas cepas da COVID-19 circulantes na população.( 77. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). About variants of the virus that causes COVID-19. Atlanta (USA): CDC; 2021 [updated 2021 June 24] [cited 2021 Apr 4]. Available from: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/transmission/variant.html
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)

Histórico do câncer de mama e da COVID-19 em nossa instituição

O câncer de mama é uma doença muito prevalente no mundo e igualmente no Brasil. Segundo dados do Ministério da Saúde e do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), estimava-se que 66.280 novos casos seriam diagnosticados no Brasil, em 2020. O câncer da mama é a principal causa primária de morte por câncer em mulheres em nosso país, sendo responsável por 16,4% dos casos (17.572 mortes ao ano).( 88. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Estatísticas de câncer. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde; INCA; 2021 [citado 2021 Abr 8]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/numeros-de-cancer
https://www.inca.gov.br/numeros-de-cance...
)Um dos maiores desafios de saúde pública é diagnosticar e tratar o câncer o mais cedo possível, aumentando a sobrevida livre da doença e a expectativa de vida das pacientes.

De acordo com a atualização bianual da American Cancer Society (ACS) sobre estatísticas do câncer de mama feminino, a taxa de sobrevida em 5 anos é de 91%. No entanto, a sobrevida diminui muito quando as pacientes desenvolvem metástases à distância. A sobrevida relativa global em 5 anos é de 99% para doença localizada e de 86% para doença regional, caindo para 27% para doença com metástase a distância.( 99. Wang R, Zhu Y, Liu X, Liao X, He J, Niu L. The clinicopathological features and survival outcomes of patients with different metastatic sites in stage IV breast cancer. BMC Cancer. 2019;19(1):1091. )Um câncer de mama diagnosticado em estágio mais avançado pode passar de uma doença curável (com expectativa de vida próxima do normal) para incurável.

O primeiro caso registrado da COVID-19 no Brasil foi diagnosticado em nossa instituição em 26 de fevereiro de 2020 em um paciente que retornara de uma viagem à Itália. Desde então, o número de casos e mortes por COVID-19 aumentou no Brasil, com mais de 16 milhões de pessoas diagnosticadas e mais de 470 mil mortes até o fim de maio de 2021.( 1010. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DATASUS). Painel geral. Painel de casos de doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020 [atualizado 2021 Jun 26] [citado 2021 Jun 7]. Disponível em: https:// covid.saude.gov.br/
https:// covid.saude.gov.br/...
)A cidade de São Paulo, SP, Brasil, com população de 12,2 milhões de habitantes, teve mais de 799 mil casos e 31 mil mortes até essa data.

O Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) é um hospital quaternário, com capacidade de 579 leitos. O Departamento de Imagem atende predominantemente ao hospital, realizando exames em pacientes hospitalizados e de emergência, contando também com um centro ambulatorial responsável pela maioria dos exames de imagem da mama.

Estudos anteriores sobre a redução no volume de exames de imagem já demonstraram números menores de exames de imagem da mama( 1111. Naidich JJ, Boltyenkov A, Wang JJ, Chusid J, Hughes D, Sanelli PC. Impact of the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Pandemic on Imaging Case Volumes. J Am Coll Radiol. 2020;17(7):865-72.

12. Cavallo JJ, Forman HP. The economic impact of the COVID-19 pandemic on radiology practices. Radiology. 2020;296(3):E141-E4.

13. Tan KK, Lau J. Cessation of cancer screening: an unseen cost of the COVID-19 pandemic? Eur J Surg Oncol. 2020;46(11):2154-5.
- 1414. Tsai HY, Chang YL, Shen CT, Chung WS, Tsai HJ, Chen FM. Effects of the COVID-19 pandemic on breast cancer screening in Taiwan. Breast. 2020;54:52-5. )durante a pandemia. No entanto, esses estudos não fizeram uma análise clara dos dados até o fim do ano, quando a população passou a receber avisos sobre a importância de retornar a seus exames de rotina e tentava retomar as atividades, de acordo com os protocolos de segurança para a COVID-19.

OBJETIVO

Avaliar o impacto da pandemia da COVID-19 no diagnóstico de câncer de mama em um centro de imagem de mama.

MÉTODOS

Este estudo de coorte incluiu pacientes do Departamento de Exames de Imagem do HIAE, submetidas a exames de mama (mamografia, ressonância magnética – RM –, ultrassonografia e procedimentos invasivos) no primeiro e segundo períodos de isolamento social em nosso estado, que foram, respectivamente, de 24 de março a 21 junho de 2020 e de 22 de junho a 31 de dezembro de 2020, em comparação aos mesmos períodos (24 de março a 31 de dezembro) de 2019. O projeto de pesquisa foi enviado para análise pelo Comitê de Ética e Pesquisa do HIAE sob o protocolo 4.321.537, CAAE: 37227920.8.0000.0071. Não foram aplicados Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. O pedido de isenção de obrigatoriedade do Termos de Consentimento Livre e Esclarecido foi aceito, por ter sido este um estudo retrospectivo com dados anonimizados.

Foi realizada busca por exames da mama por meio de uma ferramenta de inteligência de negócios, além de nosso sistema de informações de radiologia. A coleta de dados incluiu idade das pacientes, número de câncer de mama recém-diagnosticados, avaliação final do Breast Imaging Reporting and Data System (BI-RADS®),( 1515. Sickles EA, D’Orsi CJ, Bassett LW, Appleton CM, Berg WA, Burnside ES, et al. ACR BI-RADS®Atlas. Breast Imaging Reporting and Data System. 5th ed. Reston (USA): American College of Radiology; 2013. p. 179-83. )número e resultado de biópsias, tipo histológico e molecular dos tumores e fatores de risco das pacientes. Pacientes diagnosticadas com lesões malignas na mama foram classificadas em sintomáticas (que apresentavam lesões palpáveis, derrame papilar, retração de mamilo e sintomas de lesões metastáticas), assintomáticas com risco aumentado de câncer de mama (considerando-se história pregressa ou familiar, incluindo mãe, irmã, filha, tia ou familiares de primeiro grau do sexo masculino) e assintomáticas sem risco aumentado. Informações sobre sintomas foram obtidas dos questionários preenchidos por cada paciente antes do procedimento. Excluímos da análise BI-RADS®as mamografias cujos laudos continham dados incompletos.

Os dados foram expressos em frequências absolutas e relativas e em mediana e intervalo, e as análises estatísticas foram feitas usando teste do χ2, razão de verossimilhança e t de Student. A análise de dados para este estudo foi gerada no programa (SPSS) para Windows, versão 26.0 (IBM Corp., Armonk, Nova Iorque, Estados Unidos).( 1616. Kirkwood BR, Sterne JA. Essential medical statistics:11. 2nd ed. Massachusetts (USA): Blackwell Publisher; 2003. p. 13-468. )

RESULTADOS

Este estudo incluiu 32.114 pacientes de nosso centro de imagem da mama, sendo 15.888 pacientes durante o período da pandemia (24 de março a 31 de dezembro de 2020) e 23.110 pacientes durante o período de comparação (24 de março a 31 de dezembro de 2019), sendo que 6.884 compareceram nos 2 anos. Foram realizados 27.215 exames de imagem da mama (mamografia, RM, ultrassonografia, e procedimentos invasivos) em nossa instituição em 2020 (24 de março a 31 de dezembro), comparados a 37.968 exames no mesmo período de 2019. A tabela 1 compara os exames realizados no período estudado de 2020 e no período correspondente de 2019, categorizados por tipo ( Tabela 1 ).

Tabela 1
Exames realizados durante o período de 2020 e o período correspondente de 2019, categorizados por tipo

No primeiro período, houve queda significativa em todos os exames, sendo esta mais evidente nas mamografias. No segundo período, a queda no número de mamografias e ultrassonografias foi menor do que no primeiro período, observando-se aumento das ressonâncias magnéticas e das biópsias (χ2, p<0,001).

O número de mamografias diminuiu acentuadamente no primeiro período e voltou gradualmente aos parâmetros iniciais, mais significativamente em maio. Em setembro, esse número ultrapassou o do ano anterior ( Figura 1 ).

Figura 1
Aumento gradual no número de exames em 2020, após acentuada redução em março e abril daquele ano. A partir de setembro, o número de mamografias durante a pandemia, no ano de 2020, foi maior que o do período pré-pandemia (2019)

Do total de 34.603 mamografias, excluímos 1.525 exames em 2020 e 2.842 em 2019, devido à falta de dados sobre a avaliação final do BI-RADS®em nosso sistema de informações de radiologia.

A média de idade das pacientes submetidas à mamografia durante a pandemia foi menor (50,44) que no mesmo período de 2019 (52,11), com p<0,001. Durante o segundo período, não houve diferença estatisticamente significativa ( Tabela 2 ).

Tabela 2
Análise global no primeiro e segundo períodos (24 de março a 31 de dezembro de 2019 e 24 de março a 31 de dezembro de 2020)

Considerando-se a avaliação final BI-RADS®para mamografias, encontramos, no primeiro e segundo períodos de 2020, percentagem reduzida de BI-RADS®1 e 2 e aumento de BI-RADS®4 e 5, como mostra a tabela 3 .

Tabela 3
Classificação das mamografias em BI-RADS® 1 e 2 e BI-RADS® 4 e 5, separadas por ano

Dentre as mamografias com avaliação final BI-RADS®4 e 5, observamos uma maior proporção de pacientes na faixa etária de 61 a 70 anos durante a pandemia ( Figura 2 ).

Figura 2
Percentagem de mamografias com avaliação final BI-RADS® 4 e 5, separadas por períodos e faixas etárias. Observa-se aumento na frequência de exames classificados como BI-RADS® 4 em pacientes entre 61 e 70 anos no primeiro período de 2020, em comparação aos demais (p=0,341)

O número de lesões malignas da mama diagnosticadas em 2020 foi 130 (18 e 112 no primeiro e segundo períodos, respectivamente), e, em 2019, foi de 138 (37 e 101 no primeiro e segundo períodos, respectivamente). Entre as lesões malignas, seis casos não foram considerados câncer de mama (três casos de linfoma e três casos de lesões metastáticas).

Em 2020, foi observada maior taxa de câncer de mama/1.000 pacientes submetidas a mamografias, em comparação ao mesmo período de 2019 ( Tabela 4 ).

Tabela 4
Comparação da detecção de câncer de mama/pacientes submetidas à mamografia, separada por ano (2019 e 2020), durante o primeiro período (24 de março a 21 de junho) e segundo período (22 de junho a 31 de dezembro)

Entre as pacientes diagnosticadas com câncer de mama no primeiro período de 2020, 88,9% apresentavam sintomas relacionados à doença (incluindo lesões palpáveis, derrame papilar, retração de mamilo e sintomas de lesões metastáticas) ou risco aumentado de câncer de mama (considerando-se história pregressa ou familiar, incluindo mãe, irmã, filha e tia), comparadas a 55,6% em 2019.

Considerando-se os subtipos moleculares de câncer de mama, verificou-se aumento da frequência dos subtipos mais agressivos na primeira fase de 2020 (27,8 versus 19,4 no ano anterior), embora sem associação estatisticamente significativa.

DISCUSSÃO

A pandemia da COVID-19 certamente tem várias consequências para a saúde mundial, e muitas das quais ainda precisam ser mensuradas.

Este estudo mostra que a pandemia causou redução global de 78,9% nos exames de imagem e procedimentos de mama em nosso departamento nos 90 primeiros dias de isolamento social (24 de março a 21 de junho de 2020) em comparação ao ano anterior. Os achados do nosso estudo são bastante condizentes com literatura, com relatos de redução na demanda por cuidados de saúde durante a pandemia, incluindo serviços de emergência, durante os primeiros meses da pandemia.( 1717. Andersson C, Gerds T, Fosbøl E, Phelps M, Andersen J, Lamberts M, et al. Incidence of new-onset and worsening heart failure before and after the COVID-19 epidemic lockdown in Denmark: a nationwide cohort study. Circ Hear Fail. 2020;13(6):e007274. )Naidich et al., observaram que a maior queda no volume de exames de imagem durante a pandemia foi para exames ambulatoriais (88%), o que afeta todas as modalidades – mas, predominantemente, os exames de mamografia (94% menos que em 2019).( 1111. Naidich JJ, Boltyenkov A, Wang JJ, Chusid J, Hughes D, Sanelli PC. Impact of the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Pandemic on Imaging Case Volumes. J Am Coll Radiol. 2020;17(7):865-72. )

No primeiro período de 2020, as evidências de uma maior frequência de BI-RADS®4 e 5 em comparação a BI-RADS®1 e 2 e a redução da média de idade das pacientes submetidas a mamografias, associadas ao grande aumento do número de câncer de mama/1.000 pacientes, demonstram que, nesta fase, as pacientes submetidas a exames foram aquelas que realmente precisavam dele.

Isso é reforçado quando observamos a análise das lesões malignas, que foram mais associadas a pacientes com sintomas ou risco aumentado e a subtipos mais agressivos, em comparação ao ano anterior, de 2019.

Esse achado está de acordo com o estudo de Al-Thoubaity, que demonstrou que os subtipos mais agressivos de câncer de mama têm grau histológico mais alto e maior tamanho no momento do diagnóstico, tendo, portanto, mais chance de serem sintomáticos.( 1818. Al-Thoubaity FK. Molecular classification of breast cancer: a retrospective cohort study. Ann Med Surg (Lond). 2019;49:44-8. )

A frequência maior de mamografias BI-RADS®4 e 5 entre pacientes de 61 a 70 anos, no primeiro período de 2020, também indica que a maioria das pacientes dessa faixa etária ficou em casa, e as que compareceram apresentaram achados suspeitos. Esperava-se que pacientes mais idosas fossem mais afetadas pelas restrições da pandemia, já que as recomendações de isolamento social descreviam esse grupo como de alto risco para quadros mais graves da COVID-19.

Com base em nossos achados, estimamos que cerca de 18 pacientes de nossa instituição podem ter tido atraso no diagnóstico de câncer de mama nos primeiros 90 dias do isolamento social (redução de 50% em relação a 2019). Semelhante ao nosso departamento, os sistemas de saúde pública de outros países também documentaram redução na detecção do câncer de mama no primeiro período da pandemia. O Netherlands Cancer Registry registrou uma queda na incidência de câncer de até 40% nas últimas semanas durante a pandemia.( 1919. Dinmohamed AG, Visser O, Verhoeven RH, Louwman MW, van Nederveen FH, Willems SM, et al. Fewer cancer diagnoses during the COVID-19 epidemic in the Netherlands. Lancet Oncol. 2020; 21(6):750-51. Erratum in: Lancet Oncol. 2020 May 4. )De acordo com Cancer Research United Kingdom , o número de encaminhamentos urgentes por câncer de mama na Inglaterra diminuiu 75% desde a implementação das restrições.( 2020. Cancer Research UK. Together we will beat cancer. Urgent cancer referrals being turned down during coronavirus pandemic. London: Cancer Research UK; 2020 [updated 2020 July 8] [cited 2021 Jul 16]. Available from: https://news.cancerresearchuk.org/2020/07/08/urgent-cancer-referrals-being-turned-down-during-coronavirus-pandemic/
https://news.cancerresearchuk.org/2020/0...
)

No segundo período, a maior proporção observada de RMs e biópsias em comparação a mamografias e ultrassonografias pode refletir maior complexidade dos casos, associada à maior taxa de câncer/mamografias em comparação a 2019.

O número de diagnósticos de câncer de mama no segundo período da pandemia foi mais alto que no ano anterior (110 versus 98), mas o número de mamografias foi um pouco mais baixo.

Considerando-se o período de 24 de março a 31 de dezembro, o número total de câncer de mama em 2020 foi apenas seis casos a menos que em 2019.

Os achados de nosso estudo sugerem que houve atraso nos diagnósticos de câncer mama durante o primeiro período da pandemia, o que foi parcialmente compensado no segundo período.

No entanto, o que ainda nos preocupa é que o número total de pacientes submetidas à mamografia ficou 35% abaixo do ano anterior. Embora essas possam ser pacientes que teriam exames normais e não seriam diagnosticadas com câncer, se considerarmos a taxa de 8,5 casos/1.000 mamografias de 2019, estimamos 46,7 casos de câncer não diagnosticados em 2020 (35,9% do total diagnosticado desde o início da pandemia).

Ainda não conseguimos medir o impacto da pandemia no diagnóstico de câncer de mama em nossa população. Porém, algumas evidências apontam para um pior prognóstico, devido ao atraso no diagnóstico. O atraso no diagnóstico do câncer de mama provavelmente contribui para uma apresentação em estágios mais avançados, levando a piores desfechos clínicos. Maringe et al., em estudo de modelagem de base populacional, estimaram aumento de 7,9% a 9,6% em mortes por câncer de mama até 5 anos após o diagnóstico, devido ao atraso diagnóstico causado pela pandemia.( 2121. Maringe M, Spicer J, Morris M, Purushotham A, Nolte E, Sullivan R, et al. The impact of the COVID-19 pandemic on cancer deaths due to delays in diagnosis in England, UK: a national, population-based, modelling study. Lancet Oncol. 2020;21(8):1023-34. Erratum in: Lancet Oncol. 2021;22(1):e5. )

Na fase atual da pandemia, os sistemas e estabelecimentos de saúde estão mais preparados para receber pacientes para exames. Os hospitais e estabelecimentos de saúde estão mais bem estruturados, com protocolos de segurança adaptados para a prevenção da transmissão da COVID-19.( 66. Davenport MS, Bruno MA, Iyer RS, Johnson AM, Herrera R, Nicola GN, et al. ACR statement on safe resumption of routine radiology care during the Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) pandemic. J Am Coll Radiol. 2020;17(7):839-44. , 2121. Maringe M, Spicer J, Morris M, Purushotham A, Nolte E, Sullivan R, et al. The impact of the COVID-19 pandemic on cancer deaths due to delays in diagnosis in England, UK: a national, population-based, modelling study. Lancet Oncol. 2020;21(8):1023-34. Erratum in: Lancet Oncol. 2021;22(1):e5., 2222. Yokoo P, Silva MC, Castro AA, Fonseca EK, Martins KM, Queiroz MR, et al. Quality and safety innovations in the Radiology Department during the COVID-19 pandemic: a Latin American experience. einstein (São Paulo). 2020;18:eGS5832. )Os benefícios dos exames de rastreamento do câncer de mama superam o risco de infecção pela COVID-19. Nesse contexto, com as sociedades de mastologia orientando sobre a importância de se retomarem os exames de rastreamento, precisamos de um esforço intensivo e eficaz para que as pacientes se sintam suficientemente seguras para retornarem para seus exames da mama.

São necessárias estratégias para incentivar as mulheres a realizar exames de rastreamento de câncer de mama, além de preparo de nossas equipes para um volume de exames maior que o habitual, evitando atrasos adicionais no diagnóstico do câncer de mama.

Temos que pensar nesse atraso dos exames da mama não somente em termos de como retornar ao número habitual de exames, mas também como mitigar os efeitos do atraso no diagnóstico.

Uma limitação do nosso estudo foi o número limitado de pacientes e exames durante o primeiro período da pandemia. Contudo, analisar esse número limitado de pacientes foi, na verdade, um dos objetivos do nosso trabalho.

Até o momento, este é o primeiro estudo que analisa o impacto da pandemia nos cuidados de saúde de uma população atendida por um centro de diagnóstico de câncer de mama, comparando as diferenças no volume de exames e diagnósticos entre 2020 e 2019, desde os primeiros dias de isolamento social até o fim do ano, separado em dois períodos, além de avaliar as consequências observadas em 2020 devido à pandemia.

CONCLUSÃO

O estudo mostrou acentuada queda no número de exames e diagnósticos de câncer de mama nos primeiros 90 dias da pandemia, além de maior número de pacientes com achados suspeitos e malignos. No segundo período, houve compensação parcial do número de diagnósticos de câncer e, no fim do ano, o número de câncer de mama detectado foi de apenas seis a menos que em 2019, embora o número de pacientes submetidas a mamografias tenha sido mais baixo. Estudos futuros podem medir os danos causados pela pandemia, no que se refere ao tratamento e ao prognóstico, em decorrência do atraso nos exames e diagnósticos.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2021
  • Aceito
    26 Jul 2021
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