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Prevalência de dor osteomuscular em trabalhadores de indústria de artefatos de couro: estudo transversal em um município do estado de Minas Gerais

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

As lesões musculoesqueléticas decorrentes do processo e da organização do trabalho são relevantes na relação saúde e trabalho. O objetivo deste estudo foi investigar a prevalência de queixas osteomusculares e os fatores associados entre trabalhadores de confecção de artefatos de couro.

MÉTODOS:

Estudo transversal, pelo qual os dados foram obtidos por meio de questionários autoaplicados a 320 trabalhadores distribuídos em 13 fábricas do município de Cristina, MG, entre os meses de fevereiro e março de 2011. O questionário nórdico de sintomas osteomusculares foi empregado para mensurar a prevalência de queixas nas diferentes regiões do corpo. Foi realizada uma análise descritiva sobre o perfil sócio-demográfico da população do estudo. Utilizou-se de regressão logística multivariada para descrever a associação entre a variável dependente, queixa osteomuscular, e o conjunto de variáveis explanatórias, com o cálculo das razões de chances ajustadas. Utilizou-se regressão logística, com cálculo das razões de chances ajustadas.

RESULTADOS:

O estudo compreendeu 138 trabalhadores. O modelo multivariado mais bem ajustado, após o controle das variáveis de confusão, foi para dor nos joelhos, com prevalência de 40,0% entre os homens e de 24,1% entre as mulheres. Os setores de costura e acabamento se comportaram como "proteção", ou seja, de menor chance de dor, quando comparado ao setor de corte. A idade apresentou uma associação negativa, ou seja, à medida que ela se eleva, menor a chance de dor. Em outro modelo ajustado, para dor nos ombros, as trabalhadoras e a extensão do tempo no cargo apresentaram maior chance de dor.

CONCLUSÃO:

Foram reveladas prevalências de queixas superiores às encontradas na literatura. Variáveis significativas foram identificadas, que podem subsidiar a prevenção de sofrimento no trabalho, como por exemplo, dor nos joelhos. São necessários estudos posteriores, com a inclusão de outras variáveis e outros desenhos para a redução de vieses.

Descritores:
Dor; Epidemiologia; Trabalho

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Musculoskeletal injuries induced by labor process and organization are relevant for health/labor relationship. This study aimed at investigating the prevalence of musculoskeletal complaints and associated factors among leather products manufacturers.

METHODS:

Cross-sectional study where data were obtained by means of self-applied questionnaires to 320 workers distributed among 13 plants of the city of Cristina, MG, between February and March 2011. Nordic questionnaire of musculoskeletal symptoms was applied to measure the prevalence of complaints in different body regions. A descriptive analysis was carried out on the socio-demographic profile of the studied population. Multivariate logistic regression was used to describe the association between dependent variable, musculoskeletal complaint and the set of explanatory variables, with adjusted odds ratio calculation. Logistic regression was used with adjusted odds ratio calculation.

RESULTS:

The study involved 138 workers. Better adjusted multivariate model after confusion variables control was for knee pain, with prevalence of 40.0% among males and 24.1% among females. Sewing and finishing sectors behaved as "protection", that is, less chance for pain as compared to the cutting sector. Age had negative association, that is, the higher the age the lower the chance of pain. In a different adjusted model for shoulder pain, workers and time working on the job showed higher chance of pain.

CONCLUSION:

The prevalence of complaints was higher than that found in the literature. Significant variables were identified which may subsidize the prevention of job distress, such as knee pain. Further studies are needed with the inclusion of other variables and other designs to minimize biases.

Keywords:
Epidemiology; Pain; Work

INTRODUÇÃO

As lesões por esforços repetitivos ou distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (LER-DORT) envolvem uma ampla faixa de condições degenerativas e inflamatórias, que atingem normalmente músculos, tendões, ligamentos, articulações e nervos periféricos. Essas situações se manifestam como síndromes clínicas, inflamações de tendão e condições associadas (tenossinovite, epicondilite, bursite), distúrbios de compressão de nervo (síndrome do túnel do Carpo, ciática) e osteoartrose. Há também outras condições, consideradas menos padronizadas neste cenário, como mialgia, lombalgia e outras síndromes dolorosas localizadas11 Punnet L, Wegman DH. Work-related musculoskeletal disorders: the epidemiologic evidence and the debate. J Eletromyogr Kinesiol. 2004;14(1):13-23..

As LER-DORT são classificadas como a categoria de maior expressividade no quadro de agravos à saúde em processos de trabalho. Nos Estados Unidos, países nórdicos e Japão representam um terço ou mais de todas as doenças ocupacionais11 Punnet L, Wegman DH. Work-related musculoskeletal disorders: the epidemiologic evidence and the debate. J Eletromyogr Kinesiol. 2004;14(1):13-23.. No Brasil a realidade não é diferente, uma vez que elas são o agravo à saúde do trabalhador de maior prevalência, conforme dados da Previdência Social22 Ministério da Saúde. Lesões por esforços repetitivos (LER) e Distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT). Brasília: Ministério da Saúde, Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. 2001..

De acordo com levantamento realizado pelo Ministério da Saúde22 Ministério da Saúde. Lesões por esforços repetitivos (LER) e Distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT). Brasília: Ministério da Saúde, Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. 2001., a atividade têxtil e de confecção é um dos ramos mais frequentes de trabalhadores atendidos com diagnóstico de LER-DORT no Brasil, juntamente com bancários, digitadores e operadores de linha de montagem.

Os fatores determinantes do seu surgimento estão vinculados ao ritmo rápido de trabalho e a movimentos repetitivos; tempo insuficiente de recuperação, levantamento de pesos e movimentos forçados com as mãos, posturas corporais que não são neutras, concentração de pressão mecânica, vibração localizada ou de corpo inteiro. Naturalmente pode haver interação entre essas variáveis além de pesarem os fatores associados ao ambiente psicossocial do trabalho, caracterizados por elevadas demandas e baixo nível de controle sobre o próprio trabalho33 Fernandes RC, Assunção AA, Silvany Neto AM, Carvalho FM. Musculoskeletal disorders among workers in plastic manufacturing plants. Rev Bras Epidemiol. 2010;13(1):11-20..

Tem sido demonstrado que a atividade muscular é substancialmente mais elevada, relativa à capacidade, entre as mulheres do que a exercida pelos homens, realizando atividades consideradas idênticas. Além disso, as LER-DORT na região do pescoço e extremidades superiores são também mais prevalentes no sexo feminino44 Nordander C, Ohlsson K, Balogh I, Hansson GA, Axmon A, Persson R, et al. Gender differences in workers with identical repetitive industrial tasks: exposure and musculoskeletal disorders. Int Arch Occup Environ Health. 2008;81(8):939-47..

No tocante à região dos membros inferiores, em destaque os joelhos, estudos sobre as cargas ocupacionais têm demonstrado que postura em pé, caminhar com intensidade, levantar pesos e trabalho pesado na posição em pé são fatores de risco importantes para a manifestação de dor. Tais resultados têm sido ajustados por sexo, idade, índice de massa corporal (IMC), tabagismo, atividades domésticas e prática de esporte55 D'Souza JC, Werner RA, Keyserling WM, Gillespie B, Rabourn R, Ulin S, et al. Analysis of the third national health and Nutrition Examination Survey (NHANES III) using expert ratings of job categories. Am J Ind Med. 2008;51(1):37-46..

Tempo na função, execução de movimentos repetitivos e exposição à vibração são circunstâncias classificadas na literatura como significativas para a ocorrência de dor nos ombros66 van der Windt DA, Thomas E, Pope DP, de Winter AF, Macfarlane GJ, Bouter LM, et al. Occupational risk factors for shoulder pain: a systematic review. Occup Environ Med. 2000;57(7):433-42..

Diversas pesquisas no Brasil, em ramos variados de atividade, têm se dedicado a investigar as associações existentes entre os fatores de risco no processo de trabalho e a ocorrência de sintomas indicativos de LER-DORT, incluindo setores de confecção77 Brandão A G, Horta BL, Tomasi E. Sintomas de distúrbios osteomusculares em bancários de Pelotas e região: prevalência e fatores associados. Rev Bras Epidemiol. 2005;8(3):295-305.

8 Silva JB, Vale RG, Silva F, Chagas A, Moraes G, Lima VP. Low back pain among bodybuilding professors of the West zone of the city of Rio de Janeiro Rev Dor. 2016;17(1):15-8.

9 Isosaki M, Cardoso E, Glina DM, Alves AC, Rocha LE. Prevalência de sintomas osteomusculares entre trabalhadores de um Serviço de Nutrição Hospitalar em São Paulo, SP. Rev Bras Saúde Ocup. 2011;36(124):238-46.

10 Maciel AC, Fernandes MB, Medeiros LS. Prevalência de fatores associados à sintomatologia dolorosa entre profissionais da indústria têxtil. Rev Bras Epidemiol. 2006;18(1):94-102.

11 Sena RB, Fernandes MG, Farias AP. Análise dos riscos ergonômicos em costureiras utilizando o software ERA (Ergonomicriskanalysis) em uma empresa do polo de confecções do agreste de Pernambuco. XXVIII Encontro Nacional de Engenharia de Produção. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <http://www.abepro.org.br/biblioteca/enegep2008_TN_STO_072_514_11382.pdf> Acesso em: 20 Out. 2016.
http://www.abepro.org.br/biblioteca/eneg...
-1212 Ribeiro NF, Fernandes RC, Solla, DJ, Santos Júnior AC, Sena Júnior AS. Prevalência de distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho em profissionais de enfermagem. Rev Bras Epidemiol. 2012;15(2):429-38.. No entanto, não têm sido publicados estudos específicos sobre confecção de artefatos de couro. Além disso, é importante explorar a realidade saúde e trabalho para contribuir para as medidas de promoção e de prevenção no município, onde este setor industrial apresenta uma grande expressividade econômica.

O objetivo deste estudo foi investigar a prevalência de dores osteomusculares e identificar as variáveis associadas em uma amostra de trabalhadores do setor de confecção de artefatos de couro.

MÉTODOS

Estudo transversal, que investigou a associação entre queixas osteomusculares, expressas pela dor, e as atividades desenvolvidas nos postos de trabalho no setor de confecção de luvas de couro no município de Cristina, sul de Minas Gerais. O número de fábricas e trabalhadores do município foi obtido por meio de dados secundários da Prefeitura Municipal1313 Prefeitura Municipal de Cristina, MG. Levantamento das fábricas de luvas de Cristina, MG. Relatório da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Cristina, 2008.. Foram identificados os principais postos de trabalho nas fábricas, descrição das atividades e riscos ocupacionais de cada um.

A população alvo foi composta por 550 trabalhadores de 42 fábricas situadas no município. Aos trabalhadores, dos setores de corte, costura e acabamento, fluxo central do processo, foram aplicados os questionários com perguntas claras e de fácil entendimento. Considerando um nível de confiança de 95%, uma prevalência esperada de queixa osteomuscular de 20%1414 Stubbs DA. Ergonomics and occupational medicine: future challenges. J Occup Med. 2000;50(4):277-82.,1515 Buckle P. Ergonomics and musculoskeletal disorders: overview. Occup Med. 2005;55(3):164-7. e uma precisão absoluta requerida de cinco pontos percentuais, a amostra foi definida em 246 trabalhadores1616 Lwanga SK, Lemeshow S. Sample size determination in health studies: a practical manual. Geneva: World Health Organization, 1991.. Os critérios de exclusão foram trabalhadores com idade menor que 18 anos, com tempo de trabalho na empresa inferior a um ano, bem como os trabalhadores que se recusaram a responder ao questionário. Em cada empresa, aos trabalhadores foram distribuídos os questionários, para que respondessem em casa e retornassem no dia seguinte. Desse modo, o procedimento, utilizado por outros estudos de prevalência sobre o tema77 Brandão A G, Horta BL, Tomasi E. Sintomas de distúrbios osteomusculares em bancários de Pelotas e região: prevalência e fatores associados. Rev Bras Epidemiol. 2005;8(3):295-305.,1010 Maciel AC, Fernandes MB, Medeiros LS. Prevalência de fatores associados à sintomatologia dolorosa entre profissionais da indústria têxtil. Rev Bras Epidemiol. 2006;18(1):94-102., se caracterizou como uma amostragem não probabilística ou denominada por conveniência, procurando atender à toda a população de trabalhadores do município. É sabido que a representatividade de um processo amostral está assentada na aleatoriedade, pois autorizaria que os resultados fossem estendidos para a população de trabalhadores em confecções de artigos de couro. A despeito dessa observação, um processo baseado na aleatoriedade também pode conter fatores que influenciem a consistência dos resultados1919 Medronho R, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL. Epidemiologia. 2a ed. São Paulo: Atheneu; 2009..

Os dados foram coletados por meio da aplicação de dois questionários, sendo o primeiro com as variáveis demográficas (idade, sexo) e ocupacionais (tempo de trabalho no cargo, setor de trabalho). As relacionadas ao estilo de vida (atividade doméstica regular nos últimos 12 meses, prática regular de atividade física no mesmo período anterior, tabagismo atual) foram categorizadas em dois níveis: sim ou não.

O questionário nórdico de sintomas osteomusculares (QNSO), foi aplicado com a finalidade de mensurar a prevalência de queixas (dor/formigamento/dormência nos últimos 12 meses) nas diferentes regiões do corpo1717 Kuorinka I, Jonsson B, Kilbom A, Vinterberg H, Biering-Sørensen F, Andersson G, et al. Standardised Nordic questionnaires for the analysis of musculoskeletal symptoms. Appl Ergon. 1987;18(3):233-7.. Consiste em escolhas múltiplas ou binárias quanto à ocorrência de sintomas nas diversas regiões anatômicas nas quais são mais comuns. Por esse instrumento, o respondente relatou a ocorrência dos sintomas considerando os 12 meses e os sete dias precedentes à entrevista, bem como relatou a ocorrência de afastamento das atividades rotineiras no último ano. Um estudo piloto, para ajuste do instrumento, foi realizado, arbitrariamente, com 5% da população calculada para a amostra, selecionados de forma aleatória e mantidos no estudo.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Itajubá, sob protocolo de número 060/10. Os dados obtidos foram considerados válidos somente com a assinatura do trabalhador no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde foi seguida em todas as etapas do estudo.

Análise estatística

Uma análise descritiva foi conduzida com o fim de delinear o perfil sócio-demográfico da população do estudo. As prevalências de queixas para toda a população e nos diferentes setores separadamente foram descritas. Utilizou-se o teste de Qui-quadrado não corrigido para a análise entre diferentes variáveis categóricas.

A variável dependente no estudo foi do tipo dicotômica e representada por queixa (dor/formigamento/dormência nos últimos 12 meses) ou ausência dessa manifestação.

Com o propósito de analisar a associação entre variável dependente, queixa osteomuscular, e o conjunto de variáveis independentes a técnica de regressão logística multivariada não condicional foi usada. A fim de se encontrar o modelo mais ajustado, foi aplicado o método progressivo passo a passo (stepwise forward). Na construção do modelo multivariado, análises univariadas foram realizadas, empregando como critério para entrada no processo de modelagem, um valor de p<0,20 pelo teste da razão da máxima verossimilhança. A significância das variáveis no modelo final também foi verificada pelo mesmo teste, permitindo a permanência das variáveis (p≤0,05)1818 Hosmer DW, Lemeshow S. Applied logistic regression., New York, Wiley Interscience; 1989. p. 31-186..

RESULTADOS

Do universo estudado, compreendendo 42 empresas do ramo, somente 13 (31%) delas manifestaram concordância em participar da pesquisa. Houve a distribuição e retorno de 320 questionários, dos quais 220 (69,0%) foram considerados adequados para utilização no estudo. A aplicação dos critérios de exclusão restringiu a amostra a 138 trabalhadores.

Dentre os participantes 42,0% eram do sexo masculino. No setor de costura, entretanto, 68,1% da força de trabalho eram constituídos por mulheres. Os demais setores abordados possuem predominância do sexo masculino, sendo que no setor corte todos os trabalhadores eram homens. A idade dos trabalhadores variou de 18 a 49 anos, com média de 27,0±7,6 anos. A população masculina também é mais prevalecente no setor de acabamento, em especial, na faixa de 18 a 29 anos. O tempo no cargo dos trabalhadores se localizou na faixa compreendida entre 12 e 180 meses, com média de 36,9±25,9 meses.

A tabela 1 apresenta a distribuição das características dos trabalhadores.

Tabela 1
Distribuição das características de trabalhadores de indústrias de artefatos de couro (n=138)

As prevalências de queixas, de acordo com os diversos locais referidos no questionário podem ser verificadas na tabela 2.

Tabela 2
Distribuição da prevalência de queixas (%), segundo local da dor, setor de trabalho e sexo em trabalhadores de indústrias de artefatos de couro (n=138)

A prevalência geral de queixas osteomusculares foi de 89,1%. Entre as mulheres, a prevalência de queixas foi de 94,8%, enquanto que entre os homens foi de 85,0% não apresentando diferença significativa (p=0,07). O setor de costura compreendeu o maior número de queixas entre as trabalhadoras, com valor de 80,4%. Para os trabalhadores, a prevalência maior de queixas (38,6%) ocorreu no setor de acabamento.

Foram verificadas diferenças significativas entre as prevalências de dor entre os sexos nas seguintes regiões: dorsal superior, ombros, pescoço, punhos/mãos, joelhos e antebraços. Em todas as áreas referidas, exceto a dos joelhos, a prevalência de dor foi superior para as trabalhadoras, destacando a dor na região dorsal superior com o maior valor (Tabela 2).

Verificou-se que no setor de corte a queixa de maior prevalência (54,2%) é a da dor nos joelhos. Por outro lado, nos setores de costura e de acabamento, as prevalências de maior expressão se referem à dor na região dorsal superior entre as trabalhadoras, com valores de 59,2 e 77,8%, respectivamente.

O modelo mais bem ajustado entre todas as queixas, segundo o procedimento adotado de regressão logística, foi para dor nos joelhos. As análises uni e multivariada estão expostas na tabela 3. Na análise da razão de chances por setor da produção, foi usado o setor de corte como referência, na comparação com os demais, ou seja, com razão de chances igual a um. Foram testadas as possíveis interações. Entretanto, nenhum resultado estatisticamente significativo foi observado.

Tabela 3
Análises uni e multivariada para as variáveis explanatórias na ocorrência de dor nos joelhos, nos últimos 12 meses, em trabalhadores de indústrias de artefatos de couro (n=138)

O modelo construído para a ocorrência de dor nos joelhos apresenta um ajuste muito adequado, com nível significativo de 0,02, pelo teste da razão da verossimilhança. A variável idade apresentou uma RC ajustada para dor de 0,94, se configurando como um fator de proteção. Trabalhar no setor de corte representa um risco de dor nos joelhos, pois a RC ajustada foi de 3,34 e 3,46, comparando-se com os setores de costura e acabamento, respectivamente, que no modelo se revelam como setores de "proteção" para a dor nos joelhos. Embora a variável sexo tenha sido significativa na análise multivariada, não foi possível elaborar um modelo ajustado que a contemplasse.

No tocante ao desfecho referente à dor nos ombros em modelo multivariado confeccionado considerado significativo, ser do sexo masculino representa uma chance menor (RC = 0,26) de dor, comparada ao feminino. A antiguidade ou o tempo no cargo se configura como risco para o desfecho (RC=1,02), como revelado na literatura66 van der Windt DA, Thomas E, Pope DP, de Winter AF, Macfarlane GJ, Bouter LM, et al. Occupational risk factors for shoulder pain: a systematic review. Occup Environ Med. 2000;57(7):433-42.. A tabela 4 expõe os resultados correspondentes às análises univariada e multivariada.

Tabela 4
Análises uni e multivariada para as variáveis explanatórias na ocorrência de dor nos ombros, nos últimos 12 meses, em trabalhadores de indústrias de artefatos de couro (n=138)

As figuras 1 e 2 apresentam as estimativas de probabilidades de dor conforme os dois modelos elaborados.

Figura 1
Estimativas para as probabilidades de dor nos ombros, por tempo no cargo (anos) e sexo

Figura 2
Estimativas para as probabilidades de dor nos joelhos por idade (anos) e setor de trabalho

DISCUSSÃO

Este estudo buscou determinar a prevalência de dores ou queixas osteomusculares em diversas regiões e investigar associações entre variáveis relacionadas ao trabalho e sócio-demográficas. A prevalência de queixas registrada no estudo foi similar à literatura99 Isosaki M, Cardoso E, Glina DM, Alves AC, Rocha LE. Prevalência de sintomas osteomusculares entre trabalhadores de um Serviço de Nutrição Hospitalar em São Paulo, SP. Rev Bras Saúde Ocup. 2011;36(124):238-46.,1313 Prefeitura Municipal de Cristina, MG. Levantamento das fábricas de luvas de Cristina, MG. Relatório da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Cristina, 2008. e substancialmente superior à referida em outros estudos77 Brandão A G, Horta BL, Tomasi E. Sintomas de distúrbios osteomusculares em bancários de Pelotas e região: prevalência e fatores associados. Rev Bras Epidemiol. 2005;8(3):295-305.,88 Silva JB, Vale RG, Silva F, Chagas A, Moraes G, Lima VP. Low back pain among bodybuilding professors of the West zone of the city of Rio de Janeiro Rev Dor. 2016;17(1):15-8.,1414 Stubbs DA. Ergonomics and occupational medicine: future challenges. J Occup Med. 2000;50(4):277-82.,1515 Buckle P. Ergonomics and musculoskeletal disorders: overview. Occup Med. 2005;55(3):164-7..

No tocante ao processo amostral adotado, é sabido que a sua representatividade está assentada na aleatoriedade, pois autorizaria que os resultados fossem estendidos para a população de trabalhadores em confecções de artigos de couro. A despeito dessa observação, um processo baseado na aleatoriedade também pode conter fatores que influenciem a consistência dos resultados. O mais notório se refere à limitação da observância, ou seja, a manifestação de desinteresse, indiferença ao responder às questões1919 Medronho R, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL. Epidemiologia. 2a ed. São Paulo: Atheneu; 2009..

A análise multivariada gerou um modelo ajustado para dor nos joelhos nos últimos 12 meses, controlando por idade e setor de trabalho. No setor de corte, no qual foi encontrado o maior risco de ocorrência de dor, a postura prolongada em pé e outras cargas, como levantamento de peso, se comportam como fatores de risco relevantes para a ocorrência de dor, como assinala a literatura55 D'Souza JC, Werner RA, Keyserling WM, Gillespie B, Rabourn R, Ulin S, et al. Analysis of the third national health and Nutrition Examination Survey (NHANES III) using expert ratings of job categories. Am J Ind Med. 2008;51(1):37-46.,1010 Maciel AC, Fernandes MB, Medeiros LS. Prevalência de fatores associados à sintomatologia dolorosa entre profissionais da indústria têxtil. Rev Bras Epidemiol. 2006;18(1):94-102.. Na análise univariada, a ocorrência de dor nos joelhos esteve associada ao sexo masculino. No entanto, na construção do modelo final, que oferecia o ajuste mais apropriado, foi excluída por perder significância.

Para dor nos ombros, em outro modelo multivariado elaborado, o ajuste foi para tempo no cargo e sexo, no qual o feminino se destaca com maior probabilidade de agravo ratificando os resultados em outros estudos para prevalência de dor em geral44 Nordander C, Ohlsson K, Balogh I, Hansson GA, Axmon A, Persson R, et al. Gender differences in workers with identical repetitive industrial tasks: exposure and musculoskeletal disorders. Int Arch Occup Environ Health. 2008;81(8):939-47.,77 Brandão A G, Horta BL, Tomasi E. Sintomas de distúrbios osteomusculares em bancários de Pelotas e região: prevalência e fatores associados. Rev Bras Epidemiol. 2005;8(3):295-305.,1010 Maciel AC, Fernandes MB, Medeiros LS. Prevalência de fatores associados à sintomatologia dolorosa entre profissionais da indústria têxtil. Rev Bras Epidemiol. 2006;18(1):94-102.. Evidenciou-se uma associação positiva entre dor com tempo no cargo, em consonância com o constatado na literatura88 Silva JB, Vale RG, Silva F, Chagas A, Moraes G, Lima VP. Low back pain among bodybuilding professors of the West zone of the city of Rio de Janeiro Rev Dor. 2016;17(1):15-8.,1010 Maciel AC, Fernandes MB, Medeiros LS. Prevalência de fatores associados à sintomatologia dolorosa entre profissionais da indústria têxtil. Rev Bras Epidemiol. 2006;18(1):94-102..

Foram encontradas prevalências de sintomas osteomusculares, acima de 60%, para a região dorsal superior, pescoço, punhos e mãos, tornozelos e pés e ombros. As prevalências de dor, corroborando a literatura, foram mais destacadas no sexo feminino44 Nordander C, Ohlsson K, Balogh I, Hansson GA, Axmon A, Persson R, et al. Gender differences in workers with identical repetitive industrial tasks: exposure and musculoskeletal disorders. Int Arch Occup Environ Health. 2008;81(8):939-47.,77 Brandão A G, Horta BL, Tomasi E. Sintomas de distúrbios osteomusculares em bancários de Pelotas e região: prevalência e fatores associados. Rev Bras Epidemiol. 2005;8(3):295-305.,1010 Maciel AC, Fernandes MB, Medeiros LS. Prevalência de fatores associados à sintomatologia dolorosa entre profissionais da indústria têxtil. Rev Bras Epidemiol. 2006;18(1):94-102.. Somente para a região dos joelhos, foi observada prevalência maior e significativa entre os homens. Embora a atividade doméstica, representando uma jornada dupla, não tenha sido uma variável explanatória significativa nos modelos apresentados, trata-se de um fator que não deve ser omitido, como é discutido em outros estudos77 Brandão A G, Horta BL, Tomasi E. Sintomas de distúrbios osteomusculares em bancários de Pelotas e região: prevalência e fatores associados. Rev Bras Epidemiol. 2005;8(3):295-305.,99 Isosaki M, Cardoso E, Glina DM, Alves AC, Rocha LE. Prevalência de sintomas osteomusculares entre trabalhadores de um Serviço de Nutrição Hospitalar em São Paulo, SP. Rev Bras Saúde Ocup. 2011;36(124):238-46..

São diversos os riscos de natureza ergonômica, consolidados na literatura, aos quais os trabalhadores estão expostos, seja devido à organização do trabalho ou relacionados à postura inadequada. Ao verificar a alta percepção dos trabalhadores às condições adversas de suas atividades o estudo aponta para direções de prevenção importante, como por exemplo, a ergonomia participativa. É necessário envolver todos os indivíduos da empresa e dar subsídio para que sejam melhoradas as condições laborais, com o critério da produtividade e conforto. No caso dos setores de corte e costura, cujas atividades envolvem manutenção de posições estáticas por longo período e movimentos repetitivos, são necessárias medidas específicas de prevenção, a fim de reduzir o risco de agravos. Tais medidas particulares estão além do escopo deste trabalho, que buscou descrever e apontar os principais riscos e queixas por meio de um estudo transversal.

Este estudo apresenta limitações típicas de um estudo transversal, sujeito a distorção dos resultados em decorrência de erros sistemáticos, ou vieses1919 Medronho R, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL. Epidemiologia. 2a ed. São Paulo: Atheneu; 2009.. Destaca-se o viés do trabalhador saudável ou sobrevivente, uma vez que foram somente abordados trabalhadores exercendo a atividade, excluindo, portanto os afastados ou que não se adaptaram ao ritmo. O presente estudo também está sujeito a viés de informação, em especial por se tratar de um estudo que se baseia na aplicação de questionários1919 Medronho R, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL. Epidemiologia. 2a ed. São Paulo: Atheneu; 2009..

CONCLUSÃO

A pesquisa identificou prevalências importantes de queixas osteomusculares entre trabalhadores no processo de confecção de artefatos de couro, identificando as variáveis associadas. Revela um universo pouco investigado, em um setor regional relevante, apontando que o processo deve ser reformulado para que haja condições menos propícias para a dor e o sofrimento entre trabalhadores do setor. Tais resultados também servem como expressivo subsídio para a vigilância em saúde no município, no âmbito da integração com as ações de saúde do trabalhador. As transformações necessárias, priorizando vigorosamente a adaptação do trabalho ao homem, devem trazer dignidade aos trabalhadores e benefícios inegáveis ao processo produtivo.

  • Fontes de fomento: não há.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2016
  • Aceito
    04 Abr 2017
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