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Quantas dimensões tem a escola real?

CARTA AO EDITOR

Quantas Dimensões Tem a Escola Real?

A leitura do Editorial da Revista Brasileira de Ensino de Física (23(4), 2001, pp.367-368) sobre as Diretrizes Curriculares para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica em Nível Superior nos deu ocasião para uma reflexão que queremos levar aos leitores dessa Revista.

Discutir a questão da formação de professores para o Ensino Básico é sem dúvida extremamente importante para nossa comunidade acadêmica e neste sentido o esforço do Editor em promover as várias iniciativas em favor do aprimoramento do Ensino de Física e trazer o tema para um debate público merecem um voto de louvor. Entretanto, não concordamos com o conteúdo do Editorial, conforme as considerações a seguir.

No texto podemos destacar essencialmente dois pontos: uma crítica, certamente não de especialista nessa área, às diretrizes curriculares e uma proposta aparentemente mais 'sensata', assim expressa:

''...Na minha modesta opinião, é fundamental se oferecer um excelente embasamento de conteúdo(teórico/experimental), enriquecê-lo com aspectos históricos e epistemológicos, enfocá-lo em novas tecnologias e a partir daí trabalhar as competências com significados específicos. Devemos lutar por uma melhor formação de conteúdo, iniciando com um processo de avaliação de nossos cursos e alunos (pré-provão), buscando que nossos colegas se sensibilizem com as dificuldades de aprendizagem de nossos alunos e atraindo jovens docentes-pesquisadores para as mudanças que se fazem imprescindíveis no ensino de física.....''.

Essa consideração poderia ser considerada de vanguarda 20 anos atrás, quando começava a ser proposto o modelo de Mudança Conceitual para enfrentar as dificuldades conceituais dos alunos; porém, depois disso muita água passou por baixo das pontes da pesquisa em Ensino de Ciência e em Educação. Apareceram, no contexto das concepções de aprendizagem e das estratégias de ensino várias propostas: os problemas em aberto (Duschl, 1991, Journal of Research in Science Teaching, 28(9) 839-858), o modelo do pesquisador novato (Gil-Perez, 1993 Enseñanza de las Ciencias, 11 (2), 197-212, 1993.), a reflexão de professor e alunos sobre suas expectativas e sua posição frente ao conhecimento (Baird.et al., 1991, Journal of Research in Science Teaching, 28(2): 163-182.) e a comunidade de aprendizagem (Wood et al., 1991, American Educational Research Journal, 28(3), 587-616). Apareceu o papel da subjetividade para o aluno e para o professor.

A partir daí, o mundo real da escola passou a ser representado em várias dimensões. Uma dimensão cognitiva, dominada pela polarização: conhecimento científico ou senso comum. Não temos dúvida de que essa dimensão é fundamental, sobretudo porque sem ela o resto não se sustenta. Entretanto ela não é a única e isso é o que está em jogo na questão das diretrizes. Uma outra dimensão básica, que representa o sentido da escola, para os aprendizes e os professores, também é fundamental. A escola tem que conquistar seu lugar no universo social, com professores capazes de mostrar que possuem algo de valioso a transmitir e que querem ajudar seus alunos na realização de algo semelhante, porque eles fizeram uma experiência diferente desconhecida dos alunos. Uma terceira dimensão é a complexidade da formação de um cidadão. Envolve assumir a responsabilidade para o bem estar de todos: saber escutar as opiniões, trabalhar em grupos, cuidar da atualização, assumir lideranças, ter iniciativas que envolvam a Comunidade, sustentar as lutas, ....etc.

Antigamente o desejo de aprender era adquirido quase automaticamente no dia em que o aluno entrava na escola. Agora isso é uma conquista dos professores e da escola contra o mundo do consumo e, até, da violência. Por isso, agora é necessário que o futuro professor durante sua formação realize a experiência diferente, de encontrar sentido e satisfação em pensar e tomar a sério o conhecimento; também deve aprender a fazer vislumbrar tudo isso para os outros. Do ponto de vista curricular, isso implica oferecer condições e subsídios para o aluno se envolver na procura e na elaboração do conhecimento. Os professores têm que fazer tudo isso na escola, junto com seus alunos, se querem educá-los para a cidadania. A pergunta a se fazer é: quando os futuros professores devem aprender isso? Durante a fase final da formação inicial? Depois de uma boa formação científica?

Numa série de artigos recentes (Science Education, v. 5, 1999) sobre formação inicial de professores, fica claro que os docentes que acompanham as atividades finais dos futuros professores têm o duplo papel, de solapar o conjunto de crenças sobre o ensino e aprendizagem fortalecidas ao longo da aprendizagem do conteúdo científico e promover uma nova visão da realidade escolar. Papel verdadeiramente difícil. As diretrizes curriculares chamam atenção sobre esse ponto: não é possível separar a aprendizagem do conteúdo da promoção de competências profissionais.

Mais do que isso, não é possível para a Universidade ensinar conteúdos e competências se seus profissionais não dominam o primeiro e não praticam as segundas. Não temos dúvidas quanto à capacidade de ensinar o conteúdo, mas temos muitas dúvidas quanto ao pôr em prática as competências profissionais. Não é à toa que vários professores recém formados têm confessado que o ponto de partida de seu ensino é não imitar as atitudes de seus professores universitários.

Essas últimas considerações nos levam para outro comentário: Porque tanta reação dos docentes das disciplinas científicas em relação às diretrizes curriculares? Nossa resposta é que essas diretrizes apontam para uma realidade difícil de enfrentar: a Universidade não tem um corpo docente plenamente competente para formar os professores do ensino básico e deveria então investir mais para descobrir como adquirir essa competência e esforçar-se mais para praticá-la.

Parece necessário um acordo inicial entre Universidade, Escolas e Secretarias de Educação, que estabeleça um planejamento viável para a formação ao longo da vida útil dos professores de ciências. Ou seja, um esforço conjunto para compreender, adequar e implementar as Diretrizes Curriculares Nacionais. A adequação das Diretrizes envolve um trabalho de invenção das efetivas possibilidades de colaboração com as Escolas e com os Professores que nelas atuam, para que os licenciandos possam ser introduzidos e preparados para a realidade escolar. A tutoria de alguns licenciandos ou a participação em projetos interdisciplinares parecem indicar pistas para um caminho possível. O ponto fundamental é passar das iniciativas eventuais para os projetos sistemáticos, envolvendo Reitorias, Escolas e Secretarias. Em nossa opinião, para que isso aconteça, é necessária uma valorização efetiva do professor do ensino básico, reconhecendo e sustentando suas pesquisas, suas colaborações e contribuições para a formação dos futuros professores.

Por outro lado, a implementação das Diretrizes na direção de uma formação inicial coerente com as características exigidas pelas demandas teóricas das várias comunidades de especialistas, sem dúvida exige a elaboração de um currículo com um espaço muito flexível e situações muito diferenciadas, promovendo estudos de casos, análise de práticas, discussões, estágios, participação em pesquisas. Incorporar essas características implica tanto na expansão do tempo dedicado à formação, quanto na visibilidade da competência profissional na ação individual e coletiva dos formadores. Isso implica dispor-se a aprender, para mudar. Nossa impressão é que ainda não saímos das palavras e das manifestações de intenções.

Alberto Villani e Jesuina Lopes de Almeida Pacca

Instituto de Física da USP

e-mails: avillani@if.usp.br; jesuina@if.usp.br

O Editor comenta

A RBEF sente-se lisonjeada pelo fato de que o editorial tenha provocado a pronta resposta de dois renomados pesquisadores da área de ensino de física. Trata-se de opinião abalizada de especialistas que estudam há muito a questão da formação dos formadores. Os autores obviamente sabem que opiniões sobre este assunto estão longe de consensuais mesmo na comunidade de especialistas na área. Não é necessário ser um deles para reconhecer que os autores referiram-se apenas a uma parte da ''água que passou por baixo das pontes da pesquisa em Ensino de Ciência e Educação'' nos últimos vinte anos. Talvez aquela que lhes pareça mais cristalina. Espera-se que outros colegas venham a se pronunciar neste espaço em defesa de pontos de vista alternativos. Não se questiona a importância da pesquisa em Ensino de Ciência. Espera-se, no entanto, que os resultados da pesquisa de ''vanguarda'' sejam testados e avaliados antes de serem impostos em termos de parâmetros curriculares, diretrizes educacionais ou similares. Quanto a ''um acordo inicial entre Universidade, Escolas e Secretarias de Educação que estabeleça um planejamento viável para a formação ao longo da vida útil dos professores de ciências'' não há como discordar. Há grupos já tentando construir esta ponte através dos Pró-Ciências. Até que este objetivo seja alcançado muita água ainda vai rolar...

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2002
  • Data do Fascículo
    Mar 2002
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