Acessibilidade / Reportar erro

Um modelo de pilha elétrica

Modeling a battery

Resumos

O funcionamento de uma pilha elétrica é modelado através de um poço duplo de potencial entre os quais age força de natureza físico-química em portadores ativos, preferenciando um dos sítios. Com isso, desenvolve-se uma diferença de potencial entre os mesmos, fonte da força eletromotriz. A circulação externa de carga causa diminuição da força eletromotriz através de mecanismo adequado. Calcula-se o seu valor em função da carga circulada e a cinética de recuperação em circuito aberto após ser submetida a breve curto-circuito.


The functioning of a battery is modeled through a potential double well in which a force of physico-chemical origin acts on charges, causing the population on one side side to increase in relation to the other. The electrical potential thus created is the source of an electro motive force. External charge circulation makes this electro motive force to decrease by means of an adequate mechanism. Its value as a function of the amount of circulated charge is calculated, as well as the kinetics of recovering after briefly short-circuiting it.


ARTIGOS GERAIS

Um modelo de pilha elétrica

Modeling a battery

G. F. Leal Ferreira

Instituto de Física de São Carlos, USP, CP 369, 13560-970, São Carlos, SP, guilherm@if.sc.usp.br

RESUMO

O funcionamento de uma pilha elétrica é modelado através de um poço duplo de potencial entre os quais age força de natureza físico-química em portadores ativos, preferenciando um dos sítios. Com isso, desenvolve-se uma diferença de potencial entre os mesmos, fonte da força eletromotriz. A circulação externa de carga causa diminuição da força eletromotriz através de mecanismo adequado. Calcula-se o seu valor em função da carga circulada e a cinética de recuperação em circuito aberto após ser submetida a breve curto-circuito.

ABSTRACT

The functioning of a battery is modeled through a potential double well in which a force of physico-chemical origin acts on charges, causing the population on one side side to increase in relation to the other. The electrical potential thus created is the source of an electro motive force. External charge circulation makes this electro motive force to decrease by means of an adequate mechanism. Its value as a function of the amount of circulated charge is calculated, as well as the kinetics of recovering after briefly short-circuiting it.

I Introdução

Apresentamos neste artigo modelo que procura reproduzir, de forma simplificada, o funcionamento de uma pilha. Invocaremos o modelo do duplo poço de potencial, originalmente introduzido por Fröhlich [1] no estudo de dielétricos sólidos. No caso presente, o duplo poço de potencial representará a interface entre espécies químicas no interior da pilha. A população de uma espécie elétrica ativa flutua termicamente entre os poços. A população, porém, não se reparte igualmente entre eles porque uma força natural - de origem físico-química -, age preferencialmente num sentido, fazendo com que se estabeleça uma diferença de potencial entre os poços - ou polos da pilha -, que dá origem à sua força eletromotriz. Se os polos forem ligados externamente, fluirá carga entre eles, o que interferirá na cinética intra-poços. Porém, para que o modelo não viole a 2a Lei da Termodinâmica - predizendo a realização contínua de trabalho a temperatura constante -, devemos impor que a circulação externa de carga implica em diminuicão correspondente de população ativa nos poços, através de mecanismo adequado. Da circulação externa também resulta então a diminuição da força eletromotriz da pilha, o que explica a máxima na prática com pilhas-padrão, de que a passagem de corrente deve ser evitada para não prejudicar a sua performance como padrão. Na seção II, apresentaremos o modelo do duplo poço de potencial, como usado na teoria da polarização elétrica e na seção III o adaptaremos ao estudo da pilha, deduzindo as equações cinéticas do modelo. Na IV, o estado de equilíbrio, com a máxima força eletromotriz resultante é obtida. Na seção V, mostra-se que a minimização da energia livre, através de raciocínio termodinâmico-mecânico-estatístico, produz o mesmo resultado que o da seção anterior. Na seção VI o comportamento qualitativo de pilhas é brevemente relembrado e as previsões quantitativas do modelo são calculadas. Comentários encerram o artigo na seção VII.

II O modelo do duplo poço de potencial

No modelo de Fröhlich [1], ver também [2], o dipolo elétrico em matriz sólida é representado por uma, vamos dizer, carga negativa, ladeada por dois sítios capazes de alojar uma carga positiva. Esta flutua entre as duas posições, separadas por uma barreira de potencial, que deve ser vencida por ativação térmica. O comportamento médio de uma população de dipolos como estes, é então analisado. No caso dielétrico, estuda-se a perturbação na ocupação dos sítios, ou seja a polarização, causada pela aplicação de um campo elétrico, ver Fig. 1. Em conformidade com o sentido do campo elétrico mostrado, do poço I ao poço II , a população do poço II tende a crescer em detrimento da do poço I, já que o número total de dipolos é tomado como constante. As frequências de passagem de cargas do poco I ao poço II, n1,2, e do poço II ao poço I, n2,1, são


em que, ver Fig. 1, n0 é a chamada freqüência de escape, fé a barreira de potencial, E o campo elétrico aplicado, 2a a distância entre o fundo dos poços, e a carga elementar, k a constante de Boltzmann e T a temperatura absoluta. O fator eEa/2 dá o efeito do campo elétrico, abaixando a barreira de 1 para 2 e aumentando de 2 para 1. As equações de balanço entre as populações dos poços, N1e N2, são

Com N1 + N2 = N0, número total de dipolos, uma das equações, Eq. 3 ou Eq. 4, pode, em princípio, ser integrada. No caso dielétrico, eEa/2 é, em geral, pequeno em comparação com kT, e os expoentes nas Eqs. 1 e 2 podem ser linearizados na parte dependente de eaE/2kT. Além disso, definindo a polarização elétrica total como P = ea(N2 – N1), a Eq. 3 dá origem à famosa equação de Debye [2]

com

Na próxima seção adaptaremos o modelo do duplo poço de potencial para a descrição do funcionamento da pilha elétrica.

III O modelo do duplo poço e a pilha

Usaremos o modelo do duplo poço de potencial com a seguinte interpretação e acessórios. Ao longo da área de separação (interface) entre dois meios (esquema de perfil na Fig. 2) há N0 sítios com duplos poços, alojando cada duplo poço um portador ativo (que 'vê' o duplo poço), tomado como positivo. Há também, de cada lado da interface, N0/2 cargas negativas de compensação. Assim, os poços I e II contêm N1 e N2 portadores positivos ativos, respectivamente e, em média, N0/2 , cada, portadores negativos, que com liberdade de linguagem, admitiremos pertencer aos poços I e II . O excesso de carga em I será, por exemplo, N1 – N0/2. Campo de natureza físico-química, F, age de II para I e assim I acumula portadores ativos positivos e seu potencial elétrico cresce em relação ao do sítio II. Com isso, aparece campo elétrico E entre os dois lados da interface, sendo F – E o campo total, contado no sentido de II para I. Para estudarmos a situação em que a pilha fornece corrente, introduzimos também as cargas Q2, que se acumulam no exterior de II e que são originárias do processo de condução externa e, portanto, devido diretamente à diminuição da população de N1. As cargas Q2, embora criem campo elétrico como as N2,não participam do processo intra-poços. A consideração dessa carga Q2 que se torna inativa ao circular externamente, é importante porque, de outra forma, a pilha viria a violar a 2a Lei da Termodinâmica através do procedimento seguinte. A partir da situação de equilíbrio a uma dada temperatura, deixaríamos a pilha funcionar durante certo tempo, realizando algum trabalho. Neste processo, a população N1diminuiria e N2 aumentaria. Interromperíamos o fluxo e esperaríamos tempo suficiente para que o equilíbrio fosse restaurado no duplo poço, voltando à situação inicial de equilíbrio. Repetindo o processo, estaríamos obtendo trabalho às custas de energia térmica retirada de fonte a uma única temperatura, o que a 2a Lei não permite. O processo de acumulação de cargas Q2 garante que a pilha tenha capacidade finita de circular carga - maior ou menor conforme a área da interface -, o que está de acordo com a nossa intuição. A pilha será reversível se for possível, através de trabalho elétrico, fazer Q2 retornar ao poço I.


Vamos agora escrever a equação de balanço, semelhante às Eqs. 3 e 4 acima, levando em conta a possibilidade de troca de carga através de corrente externa. Antes, porém, re-escrevemos as frequências de passagem de portadores de I para II, e vice-versa

sendo n dado pela Eq. 6.

III.1 As equações de balanço e o campo elétrico

As equações de balanço, supondo que uma corrente externa i circula de I para II, são:

e

Devemos calcular o campo elétrico E, que comparece nos expoentes das Eqs. 7 e 8, e que depende de N1 e de N2. Notemos que as cargas totais nos poços I e II, q1 e q2, incluindo as inativas negativas, são, respectivamente,

Como temos neutralidade no total, q1+ q2 = 0, segue que o campo elétrico E é o campo entre duas distribuições de carga, de densidades +q1/Ae0 e –q1/Ae0,

com e0 a permitividade do vácuo e A a área da interface.

IV A pilha em circuito aberto

Supondo circuito aberto (isto é, i = 0) e as populações dos poços em equilíbrio, vamos calcular a diferença de potencial entre os polos (ou poços). Como

e definindo para o problema presente P como

podemos escrever para N1 e N2

Notemos que o valor máximo de P, o qual ocorre para Q2 = 0, é a carga que a pilha pode fornecer externamente. Em circuito aberto, i = 0 e Q2 tem valor constante. As Eqs. 9 e 10, tendo em vista as Eqs. 16 e 17, fornecem

ou, em vista das Eqs. 9-11

Pelas Eqs. 13 e 16, o campo elétrico é

IV.1 A força eletromotriz da pilha

A força eletromotriz, f.e.m., (Q2), é a diferença de potencial entre os polos (poços) em circuito aberto, depois que uma carga Q2 circulou externamente. Ela, em termos de P, Eq.14, é

Chamamos de f.e.m. da pilha, , o valor máximo de (Q2), ou seja, (0), que pode ser obtido da Eq. 19, de forma implícita,

com

sendo Q a carga e C a capacidade geométrica da interface. Em termos de P e chamando de Peq o correspondente valor de equilíbrio, temos, das Eqs. 19 e 20,

Na seção seguinte, procuraremos obter Peq através de raciocínio termodinâmico.

V Minimizando a energia livre

Obtivemos na Eq. 24 a 'polarização' entre os polos da pilha para Q2 = 0, partindo das Eqs. 7-9, isto é, por raciocínio cinético. Como exercício, procuraremos agora obter a mesma 'polarização' por raciocínio termodinâmico. Em geral, a energia livre H é a diferença entre a energia U e T vezes a entropia S do sistema [3]. Expressando U e S em termos de uma das variáveis, vamos dizer P, e minimizando H em relação a P, devemos encontrar o estado de equilíbrio, obtido de forma independente da anterior.

A energia U pode ser considerada composta de dois termos. Uma, U1, é a energia físico-química dos portadores ativos e a outra, U2, é a energia elétrica criada pela separação de cargas. Quanto à primeira, U1, tomando como ponto de referência o centro da barreira, é

raciocinando para o campo F como fazemos para o campo E, no cálculo da energia potencial. A energia eletrostática U2 será a energia do condensador plano carregado, de área A, espessura a e densidade de energia e0E2/2, que, em termos de P, é

A entropia S é k ln(N0!/(N1!N2!) que na aproximação de Stirling e expressa em termos de N0 e P é

Minimizando H = U1 + U2 – TS, a T constante, em relação a P, encontra-se, com P = Peq,

de onde resulta a Eq. 24.

VI Sobre a performance de uma pilha

VI.I. Qualitativo

Apesar do emprego praticamente universalizado de pilhas elétricas, a sua performance durante uso não é comentada na literatura. Pessoalmente, o autor lembra-se que numa experiência informal monitorada pelos Srs. Salvador B. Sanchez Vera, Carlos Alberto Trombella e Sebastião B. Pereira, na qual se mediu a corrente no circuito de lanterna (duas pilhas comuns de 1,5 V em série, lâmpada e amperímetro) durante dois dias, a corrente caiu lenta mas constantemente ao longo do tempo. Um outro fato conhecido é que se produzimos um breve curto-circuito entre os polos, a f.e.m. da pilha cai mas recupera-se em circuito aberto (provavelmente a um valor inferior ao inicial). Na sub-seção seguinte, procuraremos obter expressões para a f.e.m. em função da carga Q2 circulada externamente e a mencionada recuperação da f.e.m. após breve curto.

VI.II. Quantitativo

Vamos quantificar o modelo e ao fazê-lo teremos de fazer escolhas. Para começar, olhemos as Eqs. 22 e 23. Por elas, a f.e.m. da pilha depende dos parâmetros Q/2C, aF e e/kT, que podem ser reduzidos a dois tomando-se m = Q/2C como unidade de potencial. Mas m = Q/2C, pela Eq. 23, é eaN0/2e0A e N0/A deve ser uma fração da densidade de sítios superficiais na interface ou seja da ordem de 1020/m2, vamos dizer, n.1020/m2. Como a » 1 Å = 10-10m, temos m» 102n. Se tomarmos m como da ordem de 1V, obteremos para n o valor aceitável de 1%. Prosseguindo na busca de valores razoáveis para os parâmetros, vamos escrever a Eq. 22 tendo m como unidade de potencial,

com

Para

m» 1V, K na Eq. 30 será da ordem de 20. Vê-se que com este alto valor de K, será m para aF
m. Neste caso, não dependerá da temperatura e também não dependerá do próprio valor de F, devido à limitação do valor da tangente hiperbólica. Tomaremos este limite como desinteressante ou não físico e escolheremos a outra alternativa que é supor que aF < m. Seja então f = aF/m, com f < 1. Com K grande, e chamando /m de y, isto é, y = /m, a Eq. 29 se escreve como

que, com w = f – y, fica

Com K grande, podemos aproximar a tgh como Kw, para w entre 0 e 1/K e por 1 para w > 1/K. Como estamos no primeiro caso, obtemos

ou

Como 1/K é diretamente proporcional a T, vê-se que decresce com o aumento de T.

Para estudarmos o que ocorre para Q2 > 0, devemos retornar à Eq. 21, usando a Eq. 19:

com

No mesmo espírito da aproximação anterior levando à Eq. 35, obtem-se para (Q2)

que patentemente decresce para crescente.

Para o estudo da recuperação da voltagem após breve curto, mencionado no fim da subseção anterior, temos que voltar às Eqs. 9 e 10 e usar as Eqs. 15-17. Elegendo (Q2, t) como variável independente e com i = 0, circuito aberto, obtemos para a cinética em busca do equilíbrio, após circulação total de Q2,

Na aproximação em que estamos trabalhando, de linearização da tangente hiperpólica, o seno hiperbólico também pode ser linearizado enquanto que o cosseno pode ser substituido por 1. A Eq. 38 dá então, após manipulação,

que mostra que o valor de equilíbrio, (Q2), Eq. 39, é alcançado exponencialmente, com a constante de tempo essencialmente igual a [2v(1 – )K]–1, isto é, tão mais lentamente quanto mais descarregada a pilha estiver.

VII Comentários finais

As previsões quantitativas do modelo, calculadas na seção anterior, são razoáveis. O modelo, de forma muito simplificada, reproduz o número mínimo de três elementos que uma pilha deve conter: dois eletródios diferentes mergulhados num meio ativo (a ligação externa para passagem de corrente poderia ser feita com prolongamento de um dos eletródios até o outro contacto). A forca de natureza físico-química simbolizaria a ação do meio ativo agindo entre os dois eletródios, representado pelos dois poços. Falta ao modelo a resistência interna da pilha, que na prática pode jogar papel importante no estágio de envelhecimento, mas não é fundamental.

Agradecimentos

O autor agradece ao árbitro pela correção de inúmeras fórmulas e outras sugestões.

Recebido em 06 de fevereiro, 2003

Aceito em 28 de maio, 2003

  • 1. H. Fröhlich, Theory of Dielectrics, Oxford at Clarendon Press, 1949, Cap. II.
  • 2. A. J. Dekker, Solid State Physics, Prentice-Hall, 1962, Cap. 6.
  • 3. G. W. Castellan, Físico-Química, trad. Luiz Carlos Guimarăes, Livros Técnicos e Científicos, 1977, Cap. 10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2003
  • Data do Fascículo
    Set 2003

Histórico

  • Aceito
    28 Maio 2003
  • Recebido
    06 Fev 2003
Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: marcio@sbfisica.org.br