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Equivalência entre o princípio variacional de Maupertuis, a segunda lei de Newton e a geometria conforme

Equivalence among Maupertuis' variational principle, Newton's second law and conformal geometry

Resumos

As aplicações da geometria diferencial na física não estão restritas somente à teoria da relatividade geral. Esse artigo é dedicado a mostrar uma das diversas aplicações dos métodos geométricos a um conceito físico elementar e ao mesmo tempo profundo: a segunda lei de Newton. Mostramos como obter o princípio variacional de Maupertuis usando a segunda lei de Newton. Investigamos também, de maneira compreensiva e pedagógica, a dualidade entre a mecânica clássica e a geometria conforme, ao mostrar que o princípio variacional de Maupertuis é equivalente ao problema de se minimizar o comprimento de arco de geodésicas na geometria conforme. Finalmente discutimos algumas generalizações e obtemos a dualidade, respectivamente entre o problema de três corpos e o sistema acoplado de n partículas, e as respectivas métricas conformes que munem a geometria associada a cada um desses cenários descritos por sistemas físicos.

segunda lei de Newton; princípio variacional de Maupertuis; geometria conforme; geodésicas; aproximação WKB


Applications of differential geometry in physics are not uniquely restricted to general relativity. This paper is devoted to show one of the many possible applications of geometrical methods to an elementary but deep physical concept: the Newton's second law. We show how to obtain Maupertuis' variational principle by using Newton's second law. We also investigate, in a comprehensive and pedagogical way, the duality principle between classical mechanics and conformal geometry, exhibiting the equivalence between Maupertuis' variational principle and the problem of minimizing the geodesics arc length in conformal geometry. Finally we discuss some possible generalizations and obtain the duality, respectively between the three body problem and a coupled system of n particles, and the respective conformal metrics that endow the geometry associated with each one of the scenarios described by physical systems.

Newton's second law; Maupertuis' variational principle; conformal geometry; geodesics; WKB approximation


ARTIGOS GERAIS

Equivalência entre o princípio variacional de Maupertuis, a segunda lei de Newton e a geometria conforme

Equivalence among Maupertuis' variational principle, Newton's second law and conformal geometry

Roldão da Rocha1 1 E-mail: roldao@ifi.unicamp.br.

Instituto de Física Gleb Wataghin, Unicamp, Campinas, SP, Brasil

RESUMO

As aplicações da geometria diferencial na física não estão restritas somente à teoria da relatividade geral. Esse artigo é dedicado a mostrar uma das diversas aplicações dos métodos geométricos a um conceito físico elementar e ao mesmo tempo profundo: a segunda lei de Newton. Mostramos como obter o princípio variacional de Maupertuis usando a segunda lei de Newton. Investigamos também, de maneira compreensiva e pedagógica, a dualidade entre a mecânica clássica e a geometria conforme, ao mostrar que o princípio variacional de Maupertuis é equivalente ao problema de se minimizar o comprimento de arco de geodésicas na geometria conforme. Finalmente discutimos algumas generalizações e obtemos a dualidade, respectivamente entre o problema de três corpos e o sistema acoplado de n partículas, e as respectivas métricas conformes que munem a geometria associada a cada um desses cenários descritos por sistemas físicos.

Palavras-chave: segunda lei de Newton, princípio variacional de Maupertuis, geometria conforme, geodésicas, aproximação WKB.

ABSTRACT

Applications of differential geometry in physics are not uniquely restricted to general relativity. This paper is devoted to show one of the many possible applications of geometrical methods to an elementary but deep physical concept: the Newton's second law. We show how to obtain Maupertuis' variational principle by using Newton's second law. We also investigate, in a comprehensive and pedagogical way, the duality principle between classical mechanics and conformal geometry, exhibiting the equivalence between Maupertuis' variational principle and the problem of minimizing the geodesics arc length in conformal geometry. Finally we discuss some possible generalizations and obtain the duality, respectively between the three body problem and a coupled system of n particles, and the respective conformal metrics that endow the geometry associated with each one of the scenarios described by physical systems.

Keywords: Newton's second law, Maupertuis' variational principle, conformal geometry, geodesics, WKB approximation.

1. Introdução

A relação entre a mecânica clássica e a geometria das variedades diferenciáveis tem sido muito bem investigada em, e.g., [1, 2, 3] e sua crescente aplicação em sistemas dinâmicos, dentre outras inúmeras áreas, realça e atesta a importância da crescente investigação sobre as aplicações dos métodos geométricos em mecânica. Como exemplo, a fundamentação geométrica do formalismo hamiltoniano faz com que seja possível uma extensão da teoria para sistemas não-locais e não-conservativos, e tal geometrização é introduzida ao se considerar o espaço de fase como uma variedade simplética [1].

Neste artigo descrevemos um dos casos mais simples que ilustram a interrelação entre a mecânica e a geometria: a segunda lei de Newton. É surpreendente o fato de que a segunda lei de Newton possua informações fundamentais e essenciais sobre a geometria do espaço, como mostramos ao longo desse artigo. As informações sobre a geometria do espaço, que a segunda lei de Newton aparentemente oculta, começam a se revelar a partir da suposição de que um observador sabe exatamente nos dizer onde uma partícula se encontra. Suponha também que ele disponha de informações sobre a trajetória espacial da partícula, mas que seja destituído completamente de qualquer informação acerca da coordenada temporal da partícula. Mostramos que a segunda lei de Newton pode ser reformulada de tal maneira que podemos ainda assim ter uma informação precisa sobre a trajetória que a partícula descreve no espaço-tempo, além de obter o princípio variacional de Maupertuis. Associamos esses dois conceitos às geodésicas relativas a uma geometria conforme. Esse artigo é apresentado da seguinte maneira: na Sec. 2 eliminamos a variável temporal da segunda lei de Newton, expressando essa última como uma equação diferencial em termos do comprimento de arco associado à trajetória de uma partícula. Na Sec. 3, exibimos a equivalência entre a segunda lei de Newton e as equações geodésicas associadas a uma geometria conforme no espaço tridimensional, mostrando que as trajetórias de partículas que estão sujeitas à segunda lei de Newton são geodésicas em um espaço com uma geometria conformemente chata. Na Sec. 4 descrevemos a generalização desse método proposto para um sistema acoplado de n partículas, juntamente com o problema de três corpos. Em cada um desses casos encontramos uma equivalência entre as equações de movimento, associadas ao sistema físico em questão, e o movimento geodésico nos respectivos espaços cuja geometria conforme é determinada pelas correspondentes métricas do tipo conforme. Finalmente discutimos na Conclusão os resultados obtidos, e os relacionamos à aproximação WKB.

2. Eliminando o tempo da segunda lei de Newton

Considere uma partícula clássica puntual, de massa m, e um sistema de coordenadas locais x = (x1,x2,x3).

A segunda lei de Newton F = ma pode ser escrita como

A distância infinitesimal ds, também denominada elemento de linha da trajetória percorrida no espaço pela partícula, pode ser escrita como

A fim de obtermos um formalismo independente do tempo t, queremos achar uma equação diferencial para dx/ds ao invés de uma para dx/dt. Pela regra da cadeia podemos obter a expressão

Substituindo a Eq. (3) na segunda lei de Newton, expressa pela Eq. (1), obtemos:

A fim de simplificar os cálculos, ao multiplicarmos ambos os lados da Eq. (1) por dx/dt, segue-se que

o que é equivalente à equação

implicando imediatamente que

Na última equação E denota a energia, que formalmente é uma constante de integração, e denotamos a partir de agora x = (x,t).

A Eq. (7) implica então que

onde a primeira igualdade decorre da Eq. (2).

Portanto a segunda lei de Newton, expressa na forma da Eq. (4), pode ser escrita como

ou, alternativamente, como

Essa última equação pode ser escrita como

o que remove completamente a variável temporal da equação de movimento da partícula em questão. A Eq. (11) tem termos envolvendo a posição e a distância ao longo da trajetória associada ao comprimento de arco s.

Na próxima seção iremos obter a Eq. (11) a partir das geodésicas associadas a um espaço que apresenta geometria conforme.

3. Geometria conforme e o princípio de Maupertuis

Daqui em diante usaremos a regra da somatória de Einstein, ou seja, aibi = aibidenota a soma aibi. Considere o espaço-tempo tridimensional munido de uma métrica conformemente chata2 2 Na falta de um termo mais propício para a tradução da expressão conformally flat. , cujas componentes são dadas por

onde dij denota a função delta de Kronecker e W(x) é chamado de fator conforme [4]. Interpretamos tal métrica, cujas componentes são dadas pela Eq. (12), como sendo uma dilatação (ou contração) da métrica euclidiana3 3 Que tem como componentes os d ij. (pitagórica), em cada ponto do espaço. Essa deformação isotrópica da métrica euclidiana pode ainda variar de ponto a ponto no espaço, já que o fator conforme W(x) é, em geral, dependente da posição. As equações geodésicas, que descrevem (como caso particular) a trajetória de uma partícula de massa m no espaço definido por essa geometria, e que se reduz à segunda lei de Newton em um caso particular, são escritas como [5]

onde

são os símbolos de Christoffel [4].

Agora, novamente pela Eq. (2) temos que (dx/ds) · (dx/ds) = 1, o que pode ser escrito como

e portanto

Substitutindo a Eq. (16) na Eq. (13) obtemos explicitamente a função f(s), a saber,

e consequentemente as equações geodésicas são finalmente expressas por

Essa última equação é exatamente a Eq. (11), ao considerarmos o fator conforme dado por

de onde concluímos que trajetórias de partículas sujeitas à segunda lei de Newton são geodésicas em uma geometria conformemente chata, definida a partir das componentes do tensor métrico

Ao denotarmos por a distância medida através dessa métrica conforme, temos que

4. Discussões e generalizações

A formulação descrita na Sec. 2, de se eliminar a variável temporal da equação de trajetória da partícula, faz com que precisemos nesse caso considerar uma geometria para cada valor da energia. Além disso, minimizar a quantidade = ò d, o que nos leva às equações geodésicas e portanto à segunda lei de Newton, é equivalente ao processo de se minimizar o funcional

sujeito à equação de conservação da energia [6]. Esse é exatamente o princípio variacional de Maupertuis, que vemos agora ser equivalente ao problema de se minimizar o comprimento de arco , da trajetória de uma partícula, em uma geometria conformemente chata.

Já que o princípio variacional de Maupertuis não é o mais comumente usado, podemos reescrevê-lo em termos da hamiltoniana e da lagrangiana. Isso é feito a partir da reintrodução do tempo t, o que nos permite então escrever

onde t(a) e t(b) denotam o tempo nos pontos a e b, respectivamente. Nesse momento, já que estamos assumindo a teoria não-relativística, expressamos a lagrangiana L e a hamiltoniana H respectivamente como

o que resulta em

onde o símbolo indica que a igualdade é válida somente ao considerarmos uma superfície de energia constante. Se esse for o caso, temos:

Segue-se que a questão de se encontrar o extremo de ò d é equivalente ao de se extremizar a ação ò Ldt.

O tratamento de uma partícula clássica, como feito até agora, pode ser imediatamente generalizado para um sistema acoplado de n partículas clássicas de massa mp, p = 1,2,...,n, onde a segunda lei de Newton é escrita como o seguinte sistema de equações:

Podemos analogamente mostrar que as trajetórias do sistema acoplado de partículas são também geodésicas em um espaço de dimensão 3n, com geometria conformemente chata, cuja métrica é dada, através do quadrado do elemento de linha d, por

Já para o caso do problema de três corpos, definido pela atração gravitacional (newtoniana) entre, por exemplo, três corpos celestes, é também imediato mostrar que, ao escrevermos as equações do problema como

onde G é a constante universal da gravitação e ij denota a direção da linha que une os centros de massa dos corpos de massa mi e mj, então para uma energia E fixa, o problema de três corpos é equivalente ao movimento geodésico em um espaço de nove dimensões, com geometria conformemente chata determinada pela métrica implicitamente dada por

Os cálculos que nos levam às Eqs. (28) e (30) são técnica e essencialmente análogos àqueles necessários para obter a Eq. (21), além de enfadonhos e desnecessários, já que a idéia do presente artigo é expôr o caráter geométrico contido na segunda lei de Newton, e não nos ater demasiadamente a detalhes técnicos.

5. Conclusões

Investigamos propriedades da geometria conforme do espaço juntamente com o movimento geodésico das trajetórias de partículas, unicamente utilizando a segunda lei de Newton. Mostramos que trajetórias de partículas sujeitas à segunda lei de Newton são geodésicas em uma geometria conformemente chata, definida a partir das componentes gij = [E – V(x)]dij do tensor métrico. Tal abordagem é equivalente ao princípio variacional de Maupertuis. Além disso estabelecemos um princípio de dualidade entre a mecânica clássica e a geometria conforme, ao mostrar que o princípio variacional de Maupertuis é equivalente ao problema de se minimizar o comprimento de arco da trajetória de uma partícula, na geometria conforme. Isso ilustra a utilização de métodos geométricos na mecânica clássica, e vice-versa. Ao compreendermos o formalismo, torna-se mais simples aprendermos a teoria.

A eliminação da variável temporal da equação de trajetória de uma partícula, feita na Sec. 2, mostra uma riqueza geométrica dessa formulação, pois somos capazes agora de introduzir uma nova geometria em cada ponto do espaço, para cada valor da energia. Isto implica que, além de a geometria conforme do espaço variar de ponto a ponto, em cada ponto ela também é dependente do valor da energia E.

A Eq. (22) descreve a quantidade que aparece na fase da aproximação de WKB [7]. Isso não é uma coincidência, ao vermos que as trajetórias clássicas da mecânica quântica resultam fundamentalmente dos pontos de sela no formalismo da integral de trajetórias de Feymann, que podem ser localizados usando-se o cálculo de variações.

Referências

[1] V.I. Arnold, Mathematical Methods of Classical Mechanics in: Graduate Texts in Mathematics, 60 (Springer-Verlag, Berlin, 1995).

[2] M. Francaviglia, Mechanics, Analysis and Geometry: 200 Years After Lagrange (North-Holland, Amsterdam, 1998).

[3] J.E. Marsden, Symplectic Geometry and Analytical Mechanics (Kluwer Acad. Publishers, Dordrecht 1994); e R. Abraham, Foundations of Mechanics (Westview Press, Cambridge, 1978).

[4] C. Misner, K. Thorne and J.A. Wheeler, Gravitation (Freeman, San Francisco, 1973).

[5] M. do Carmo, Differential Geometry of Curves and Surfaces (Prentice-Hall, New Jersey, 1976).

[6] H. Goldstein, C.P. Poole and J.L. Safko, Classical Mechanics (Addison-Wesley Inc., Reading, MA, 2001).

[7] J.J. Sakurai, Modern Quantum Mechanics (Addison-Wesley, Boston 1985).

Recebido em 28/2/2005; Aceito em 30/5/2005

  • [1] V.I. Arnold, Mathematical Methods of Classical Mechanics in: Graduate Texts in Mathematics, 60 (Springer-Verlag, Berlin, 1995).
  • [2] M. Francaviglia, Mechanics, Analysis and Geometry: 200 Years After Lagrange (North-Holland, Amsterdam, 1998).
  • [3] J.E. Marsden, Symplectic Geometry and Analytical Mechanics (Kluwer Acad. Publishers, Dordrecht 1994);
  • e R. Abraham, Foundations of Mechanics (Westview Press, Cambridge, 1978).
  • [4] C. Misner, K. Thorne and J.A. Wheeler, Gravitation (Freeman, San Francisco, 1973).
  • [5] M. do Carmo, Differential Geometry of Curves and Surfaces (Prentice-Hall, New Jersey, 1976).
  • [6] H. Goldstein, C.P. Poole and J.L. Safko, Classical Mechanics (Addison-Wesley Inc., Reading, MA, 2001).
  • [7] J.J. Sakurai, Modern Quantum Mechanics (Addison-Wesley, Boston 1985).
  • 1
    E-mail:
  • 2
    Na falta de um termo mais propício para a tradução da expressão
    conformally flat.
  • 3
    Que tem como componentes os d
    ij.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Dez 2005
    • Data do Fascículo
      Set 2005

    Histórico

    • Aceito
      30 Maio 2005
    • Recebido
      28 Fev 2005
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