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Intuição física e generalização das leis de Coulomb e de Biot-Savart para o caso dependente do tempo

Physical intuition and generalization of the Coulomb and Biot-Savart laws to the time-dependent case

Resumos

Discutimos o papel da intuição física na expressão do campo eletromagnético em termos de suas fontes no caso geral dependente do tempo. Entre as lições aprendidas, sobressai a de que é perigoso dissociar a intuição física da descrição matemática dos fenômenos.

campo eletromagnético dependente do tempo; equações de Jefimenko


We discuss the role played by physical intuition in expressing the electromagnetic field in terms of its sources in the general time-dependent case. Among the lessons learned, the one that stands out is that it is dangerous to dissociate physical intuition from the mathematical description of the phenomena.

time-dependent electromagnetic field; Jefimenko's equations


ARTIGOS GERAIS

Intuição física e generalização das leis de Coulomb e de Biot-Savart para o caso dependente do tempo

Physical intuition and generalization of the Coulomb and Biot-Savart laws to the time-dependent case

Nivaldo A. Lemos1 1 E-mail: nivaldo@if.uff.br.

Departamento de Física, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil

RESUMO

Discutimos o papel da intuição física na expressão do campo eletromagnético em termos de suas fontes no caso geral dependente do tempo. Entre as lições aprendidas, sobressai a de que é perigoso dissociar a intuição física da descrição matemática dos fenômenos.

Palavras-chave: campo eletromagnético dependente do tempo, equações de Jefimenko.

ABSTRACT

We discuss the role played by physical intuition in expressing the electromagnetic field in terms of its sources in the general time-dependent case. Among the lessons learned, the one that stands out is that it is dangerous to dissociate physical intuition from the mathematical description of the phenomena.

Keywords: time-dependent electromagnetic field, Jefimenko's equations.

1. Introdução

Segundo Einstein, a ciência não é mais do que um refinamento do pensamento cotidiano [1]. A intuição física é um elemento de suma importância para a construção de teorias e a resolução de problemas. Embora se diga que bom senso e canja de galinha não fazem mal a ninguém, não é recomendável confiar demais na intuição porque ela às vezes nos engana escandalosamente: não é óbvio que a Terra permanece imóvel no centro do Universo?

No caso de uma teoria complexa como a eletrodinâmica, a finitude da velocidade de propagação das influências eletromagnéticas desempenha um papel crucial na teoria e constitui um dos princípios básicos em que assenta a intuição física referente a fenômenos eletromagnéticos. Essa intuição é um guia seguro no eletromagnetismo ou pode nos induzir ao erro?

2. Sucesso da intuição: Potenciais retardados

No calibre de Lorentz, os potenciais satisfazem a equação de onda não-homogênea:

Considere a contribuição para os potenciais no ponto r proveniente das cargas e correntes contidas num elemento de volume dt' em torno do ponto r'. Como as influências eletromagnéticas se propagam com velocidade c, os potenciais no ponto r no instante t devem ter tido origem nas cargas e correntes presentes em dt' num instante tr anterior ao instante t. Só assim a influência eletromagnética disporá do intervalo de tempo t – tr para se propagar de r' até r . A distância entre r e r' é o módulo do vetor R = r – r', isto é, R = |r – r'|. Conseqüentemente, o tempo retardado tr é determinado por c(t – tr) = R, ou

A intuição física sugere que os potenciais sejam expressos em termos de suas fontes pelas mesmas expressões válidas na eletrostática e na magnetostática, exceto pela substituição das densidades de carga e corrente por seus valores no instante retardado. Somos levados, assim, a introduzir os potenciais retardados

Cálculos diretos [2] permitem comprovar que os potenciais retardados obedecem às respectivas equações de onda não-homogêneas (1) e satisfazem a condição de Lorentz. A propósito, esta é uma das raras ocasiões em que a intuição física torna possível adivinhar a solução de uma equação diferencial parcial que está longe de ser trivial.

3. Fracasso da intuição: Equações de Jefimenko

Costuma-se enfatizar [2, 3] que a mesma lógica que presidiu a introdução dos potenciais retardados não fornece a resposta correta para os campos. Aparentemente, bastaria introduzir o tempo retardado nas expressões para E e B dadas no caso estático pelas leis de Coulomb e de Biot-Savart, mas isto conduz às seguintes expressões incorretas para os campos:

Os campos corretos são obtidos a partir dos potenciais retardados por meio de

Um cálculo direto [2] dá como resultado as chamadas equações de Jefimenko:

Estas equações, em que = R/R e o ponto denota derivada parcial em relação a t, são generaliza cões das leis de Coulomb e de Biot-Savart para o caso em que as densidades de carga e de corrente variam com o tempo, e parecem ter sido publicadas pela primeira vez por Jefimenko em 1966, na primeira edição do seu livro de eletromagnetismo [4]. Estas equações são equivalentes [5] a outras equações só aparentemente distintas obtidas por Panofsky e Phillips [6].

Como comenta Griffiths [2], para obter os potenciais retardados basta substituir t por tr nas fórmulas da eletrostática e da magnetostática, mas no caso dos campos não apenas o tempo é substituído pelo tempo retardado, mas aparecem termos completamente novos, envolvendo derivadas temporais de r e J. Há quem se refira [5] a esse estado de coisas como um enigma ("conundrum").

4. Em busca da intuição perdida

Parece que a intuição nos conduz pelo caminho certo no caso dos potenciais mas nos trai impiedosamente no caso dos campos. Ou será que estamos sendo injustos, exigindo da intuição física algo que ela não pode nos dar?

Analisemos com mais cuidado a origem de nossos pressentimentos a respeito dos potenciais para ver se, no caso dos campos, a intuição está sendo convocada a prestar os mesmos servi cos. Os potenciais obedecem à equação de onda não-homogênea

Fora das fontes, isto é, nas regiões em que f(r,t) = 0, o potencial f obedece à equação de onda homogênea, ou seja, f viaja à velocidade c. Mas o potencial que se propaga no vácuo emana das fontes. Isto nos leva a intuir que a propagação da causa (fonte) para produzir o efeito (potencial) deve se dar com velocidade c. Assim, o estado do potencial no tempo presente deve depender do estado das fontes no instante passado em que a "informação" eletromagnética delas partiu. Esta expectativa deriva do fato de, fora das fontes, o potencial obedecer à equação de onda homogênea, cujas soluções sabidamente viajam à velocidade c. Assim, para aplicar de forma coerente a mesma intuição física aos campos, devemos buscar equações da forma (8) para E e B.

As equações de Maxwell são

Com a ajuda da identidade Ñ × (Ñ × E) = Ñ(Ñ · E) – Ñ2E, a aplicação do rotacional a (iii) acompanhada do uso de (i) e (iv) conduz imediatamente a

De modo inteiramente análogo deduz-se

Agora sim, o mesmo argumento heurístico invocado para justificar os potenciais retardados sugere que

e

É preciso cuidado com a notação: por (Ñr) (r',tr) denotamos o resultado do cálculo do gradiente de r(r,t), mantendo t fixo, seguido da substituição de r por r' e de t por tr ; o mesmo se aplica a (Ñ × J) (r',tr).

As expressões acima para E e B parecem muito diferentes das equações de Jefimenko. Será que fomos mesmo ludibriados pela intuição?

5. A vingança da intuição

Consideremos o gradiente de r(r',tr) em relação a r' tomando em considera cão tanto a dependência explícita quanto a dependência implícita:

onde usamos Ñ'R = – e ¶trt = 1. Usando (14) e lembrando que m0Î0 = 1/c2, podemos reescrever (12) na forma

mas

para fontes localizadas ou que se anulam com suficiente rapidez no infinito – é tipicamente para fontes deste tipo que as Eqs. (3) se aplicam (lançamos mão do conhecido teorema integral

ÑTdt = T da e denotamos por S¥ a superfície de uma esfera de raio infinito). Juntando os pedaços, resulta

que é a equação de Jefimenko para E.

Analogamente,

e (13) assume a forma

Fazendo uma integração por partes com a ajuda de

e descartando a integral de superfície decorrente do emprego do teorema integral

Ñ × A dt = –A × da , obtemos, finalmente,

que é a equação de Jefimenko para B.

Isto prova que as expressões (12) e (13) para os campos elétrico e magnético são equivalentes às equações de Jefimenko. A intuição física nos conduziu ao resultado correto, afinal.

6. Conclusão

Apesar de sujeita a falhas, a intuição física é um elemento extremamente valioso que, sempre que possível, deve ser utilizado na investigação de qualquer problema ou processo físico. A situação aqui discutida revela, no entanto, que o emprego de argumentos heurísticos requer cautela. Tendo obtido bons resultados com a ajuda da intuição física num certo contexto, podemos, precipitadamente, passar a exigir bons resultados num contexto semelhante mas diferente em algum aspecto sutil, porém essencial, que passou despercebido. Nesses casos o fracasso não deve ser atribuído à intuição, mas à nossa própria incapacidade de perceber que as circunstâncias haviam mudado. O problema aqui tratado torna evidente, também, que não é possível ou, pelo menos, é muito perigoso dissociar a intuição física das equações que descrevem matematicamente os fenômenos.

Recebido em 21/5/2005; Aceito em 1/7/2005

  • [1] A. Einstein, J. Franklin Inst. 221, 349 (1936).
  • [2] D.J. Griffiths, Introduction to Electrodynamics (Prentice Hall, NJ, 1999), 3ş ediçăo, seçăo 10.2.
  • [3] D.J. Griffiths e M.A. Heald, Am. J. Phys. 59, 111 (1991).
  • [4] O.D. Jefimenko, Electricity and Magnetism (Appleton-Century-Crofts, New York, 1966), seçăo 15-7; ou a mesma seçăo na segunda ediçăo (Electret Scientific, Star City, WV, 1989).
  • [5] K.T. McDonald, Am. J. Phys. 65, 1074 (1997).
  • [6] W.K.H. Panofsky e M.Phillips, Classical Electricity and Magnetism (Addison-Wesley, Reading, MA, 1962), 2ş ediçăo, seçăo 14-3.
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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Dez 2005
    • Data do Fascículo
      Set 2005

    Histórico

    • Aceito
      01 Jul 2005
    • Recebido
      21 Maio 2005
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