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Formulação geométrica do princípio de d'Alembert

Geometric formulation of d'Alembert's principle

Resumos

Por meio de uma extensão natural da noção de representação paramétrica de superfícies no espaço euclidiano tridimensional, fazemos uma formulação geométrica do princípio de d'Alembert sem o uso de quantidades infinitesimais.

princípio de d'Alembert; formulação geométrica


By means of a natural extension of the notion of parametric representation of surfaces in Euclidean three-dimensional space, we give a geometric formulation of d'Alembert's principle without the use of infinitesimal quantities.

d'Alembert's principle; geometric formulation


NOTAS E DISCUSSÕES

Formulação geométrica do princípio de d'Alembert

Geometric formulation of d'Alembert's principle

Nivaldo A. Lemos1 1 E-mail: nivaldo@if.uff.br.

Departamento de Física, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil.

RESUMO

Por meio de uma extensão natural da noção de representação paramétrica de superfícies no espaço euclidiano tridimensional, fazemos uma formulação geométrica do princípio de d'Alembert sem o uso de quantidades infinitesimais.

Palavras-chave: princípio de d'Alembert; formulação geométrica.

ABSTRACT

By means of a natural extension of the notion of parametric representation of surfaces in Euclidean three-dimensional space, we give a geometric formulation of d'Alembert's principle without the use of infinitesimal quantities.

Keywords: d'Alembert's principle; geometric formulation.

Nas últimas décadas, a linguagem da geometria diferencial tem sido crescentemente empregada na Física em geral e na mecânica analítica em particular. A enorme influência do extraordinário livro de V.I. Arnold [1] tem contribuído para disseminar, entre os físicos, um uso inicialmente restrito quase exclusivamente a matemáticos. Além da precisão, outra importante vantagem do uso da geometria diferencial na mecânica analítica reside em permitir formular os principais resultados em forma intrínseca e independente de qualquer escolha de coordenadas. Livros recentes [2,3] buscam introduzir métodos geométricos gradualmente como forma de facilitar o acesso dos físicos a tratamentos mais avançados, em que a Matemática é usada em sua plenitude [1,4].

A sofisticação e maturidade necessárias para dominar esse formalismo matemático impedem a sua discussão em cursos de graduação. No entanto, é possível dar um gostinho dessas idéias geométricas a estudantes de graduação aproveitando que certos resultados podem ser expressos em linguagem geométrica elementar, com recurso apenas à idéia simples de variedade imersa num espaço euclidiano, sem necessidade da definição exata de variedade diferenciável. Nosso propósito é mostrar como isto é possível no caso do princípio de d'Alembert, que serve de fundamento para a dinâmica lagrangiana [5].

Considere um sistema mecânico com N partículas e seja ri o vetor posição da i-ésima partícula. Na ausência de vínculos, o espaço de configuração é o espaço euclidiano 3N constituído pelos vetores r = (r1,...,rN) com o produto interno (escalar) natural herdado de 3. Mais precisamente, se a = (a1,...,aN) Î 3N e b = (b1,...,bN) Î 3N então a·b = ai·bi, onde ai·bi é o produto escalar usual em 3. Façamos um agrupamento análogo para o momento linear e a força, isto é, p = (p1,...,pN) Î 3N e F = (F1,...,FN) Î 3N, onde Fi é a força sobre a i-ésima partícula, cujo momento linear é pi = mi

i. Em 3N as equações de movimento newtonianas do sistema de N partículas podem ser escritas na forma sintética

Na presença de m vínculos holônomos independentes

o espaço de configuração passa a ser a hipersuperfície (variedade) de dimensão n = 3N-m definida pelos vínculos, que denotaremos por . Os deslocamentos virtuais são tradicionalmente definidos como deslocamentos infinitesimais dri que conectam, no mesmo instante t, duas configurações possíveis (isto é, compatíveis com os vínculos) infinitesimalmente próximas [6]. No caso de vínculos ideais, o trabalho realizado pelas forças de vínculo por ocasião de deslocamentos virtuais é zero e o princípio de d'Alembert escreve-se [6,7]

onde denota a força aplicada sobre a i-ésima partícula.

As grandezas infinitesimais têm um inegável valor heurístico na Física e nas exposições intuitivas do cálculo diferencial e integral, mas podem e devem ser substituídas pelos conceitos matemáticos bem definidos de derivada ou integral. A presença de quantidades infinitamente pequenas compromete a respeitabilidade matemática do princípio de d'Alembert em sua formulação tradicional (3). A interpretação dos deslocamentos virtuais como vetores tangentes ao espaço de configuração [1,3,8] permite remediar essa deficiência da formulação tradicional. Suponhamos que o espaço de configuração seja uma hipersuperfície regular de dimensão n mergulhada em 3N. Os vetores driÎ 3 compõem o vetor dr = (dr1,...,drN) Î 3N. Como os pontos r e r+ dr de 3N têm que pertencer à variedade de configuração no mesmo instante t, o vetor deslocamento dr Î 3N é tangente a . Assim, o deslocamento virtual mais geral possível pode ser definido como um vetor arbitrário tangente à variedade de configuração. Em termos de vetores de 3N, o princípio de d'Alembert pode ser reformulado na forma concisa

onde t Î

3N é qualquer vetor tangente à variedade de configuração. A forma (4) de expressar o princípio de d'Alembert não é intrínseca porque não envolve somente quantidades definidas em termos da variedade , mas é invariante porque independe de qualquer escolha de coordenadas generalizadas para descrever o espaço de configuração.

A aplicação do princípio de d'Alembert a problemas específicos ou para a dedução das equações de Lagrange exige a introdução de coordenadas. Sejam q1, ... ,qn coordenadas generalizadas tais que

e as equações de vínculo são identicamente satisfeitas. Estas últimas equações constituem uma representação paramétrica da variedade de configura cão. Arnold [1] discute o princípio de d'Alembert já no contexto do princípio variacional de Hamilton e de uma forma abstrata, sem apresentar uma expressão explícita para os vetores tangentes à variedade de configuração. Por outro lado, em [3] e [8], além do emprego de um método indireto, é feito um apelo à noção de coordenadas adaptadas para expressar os referidos vetores tangentes, o que, a nosso ver, complica as coisas desnecessariamente.

Os vetores tangentes à variedade de configuração podem ser facilmente obtidos de forma direta por meio de uma extensão natural da teoria da representação paramétrica de superfícies em

3. Se q1, ... ,qn parametrizam a variedade de configuração, os vetores

são tangentes a . Além disso, os vetores tk são linearmente independentes em cada ponto de : esta é a tradução matemática da exigência de que seja uma hipersuperfície regular e que q1, ... ,qn definam um sistema de coordenadas curvilíneas locais ou carta local [3] sobre (ver Fig. 1).


Em vista das considerações anteriores, o vetor tangente mais geral possível à variedade de configuração é

onde os

k são números reais arbitrários. Introduzindo este vetor tangente em (4), resulta

onde o produto interno é realizado em

3N. Como os k são arbitrários, segue-se que

Em termos dos vetores usuais de

3 esta última equação escreve-se

Esta é exatamente a equação que se obtém no formalismo tradicional ao se substituir

em (3) e levar em conta que os deslocamentos virtuais dqk são independentes e arbitrários. Argumentos bem conhecidos [6,7] mostram que as Eqs. (10) são equivalentes às equações de Lagrange.

Em suma, a Eq. (4) constitui uma formula cão geométrica do princípio de d'Alembert que é invariante (independente de coordenadas) e matematicamente rigorosa, já que não utiliza quantidades infinitamente pequenas ou ''ghosts of departed quantities", segundo a célebre definição debochada do bispo e filósofo George Berkeley [10].

Recebido em 11/1/2005; Aceito em 24/2/2005

  • [1] V.I. Arnold, Méthodes Mathématiques de la Mécanique Classique (Éditions Mir, Moscou, 1976).
  • [2] F. Scheck, Mechanics - From Newton's Laws to Deterministic Chaos (Springer, Berlin, 1994).
  • [3] J.V. José e E.J. Saletan, Classical Mechanics: A Contemporary Approach (Cambridge University Press, Cambridge, 1998), p. 54-63.
  • [4] W. Thirring, Classical Mathematical Physics (Springer, Berlin, 1997).
  • [5] C. Lanczos, The Variational Principles of Mechanics (Dover, New York, 1970), cap. IV.
  • [6] N. A. Lemos, Mecânica Analítica (Editora Livraria da Física, Săo Paulo, 2004).
  • [7] H. Goldstein, Classical Mechanics (Addison-Wesley, Reading, MA, 1980), 2ª ediçăo.
  • [8] N.M.J. Woodhouse, Introduction to Analytical Dynamics (Oxford University Press, Oxford, 1987), p. 57-60.
  • [9] P.R. Rodrigues, Introduçăo ŕs Curvas e Superfícies (Editora da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2001), cap. 3.
  • [10] D.J. Struik, A Concise History of Mathematics (Dover, New York, 1967), p. 127.
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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Dez 2005
    • Data do Fascículo
      Set 2005

    Histórico

    • Recebido
      11 Jan 2005
    • Aceito
      24 Fev 2005
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