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Considerações sobre o conceito de temperatura e de temperatura absoluta

On the concept of temperature and of absolute temperature

Resumos

Discute-se o conceito de temperatura que emerge da ação de contato, e a conveniência de torná-lo menos abstrato levando em conta a quantidade de matéria envolvida. Mostra-se que o conceito de 'energia térmica molar', numericamente igual ao produto da constante dos gases pela temperatura absoluta, preenche aquele fim, expressando o conteúdo cinético da energia molar, além de permitir desonerar a entropia de inadequada dimensionalidade.

temperatura; temperatura absoluta; energia térmica molar; entropia


The concept of temperature acquired by means of our contact interaction and the convenience of turning it less abstract by reference to the quantity of matter is discussed. It is then shown that the concept of 'molar thermal energy', numerically equal to the product of the gas constant by the absolute temperature, fulfills that end, expressing the kinetic content of the molar energy, besides allowing to deprive entropy of inadequate dimensionality.

temperature; absolute temperature; molar thermal energy; entropy


NOTAS E DISCUSSÕES

Considerações sobre o conceito de temperatura e de temperatura absoluta

On the concept of temperature and of absolute temperature

G.F. Leal Ferreira1 1 E-mail: guilherm@if.sc.usp.br.

Instituto de Física de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, SP, Brasil

RESUMO

Discute-se o conceito de temperatura que emerge da ação de contato, e a conveniência de torná-lo menos abstrato levando em conta a quantidade de matéria envolvida. Mostra-se que o conceito de 'energia térmica molar', numericamente igual ao produto da constante dos gases pela temperatura absoluta, preenche aquele fim, expressando o conteúdo cinético da energia molar, além de permitir desonerar a entropia de inadequada dimensionalidade.

Palavras-chave: temperatura, temperatura absoluta, energia térmica molar, entropia.

ABSTRACT

The concept of temperature acquired by means of our contact interaction and the convenience of turning it less abstract by reference to the quantity of matter is discussed. It is then shown that the concept of 'molar thermal energy', numerically equal to the product of the gas constant by the absolute temperature, fulfills that end, expressing the kinetic content of the molar energy, besides allowing to deprive entropy of inadequate dimensionality.

Keywords: temperature, absolute temperature, molar thermal energy, entropy.

1. Desde a infância experimentamos as sensações de quente e frio, descrevendo-as em termos de adjetivos como frio, quente, tépido, morno etc. Quando tocamos um objeto usamos nossa sensação de 'temperatura', que determina se o sentimos quente ou frio (Sears-Zemansky) [1].

2. A temperatura, com que estaremos a todo instante envolvido, é uma variável que se apresenta sob um aspecto muito particular, mesmo na definição de seus valores numéricos. Isto se deve ao fato que é sem sentido juntar em uma única, a temperatura de dois corpos vizinhos. Dizer que a temperatura é a soma de duas outras não tem, a priori, nenhum sentido; não se pode, assim, definir o múltiplo e nem, como se faz com as demais grandezas, tomando sua razão com a unidade... Não é senão com a temperatura absoluta... que chegaremos a uma 'medida' de temperatura pela definição de uma razão. [2] (Charles Fabry, construtor com A. Pérot, do famoso interferômetro [3]). Comentaremos a seguir estas duas citações.

1. Sobre a primeira citação

Vamos especificar melhor o que comanda a sensação de calor e a inferência da temperatura no contato entre dois corpos. Ausente na citação mas intuitiva é a constatação de que o corpo mais 'forte' termicamente, isto é, com maior densidade e calor específico (e o que mais?) prevalece ao ser menos afetado ao se efetuar o contato. Para sermos quantitativos, tomaremos o caso em que os dois corpos são cilindros semi-infinitos de mesma seção, inicialmente a temperaturas uniformes mas distintas, q10 e q20, e desejamos saber o perfil de temperatura subseqüente ao contato. O interessante é que existe uma solução bastante simples desse problema [4]: a temperatura em cada cilindro é igual à soma da temperatura inicial qi0 e a do perfil de temperatura devido à onda de temperatura que se propagaria em cada meio a partir do momento do contato (em t = 0) como se mantivéssemos este à temperatura q0 – qi0, sendo q0 a temperatura no contato, constante, e que se deseja determinar (Fig. 1), i = 1 e 2. Chamaremos estes transientes simplesmente de 'ondas'. Não é necessário obter a solução completa do problema [3], como mostramos a seguir. O fluxo térmico em cada meio i, Ji obedece às equações:

sendo ki, ci e ri respectivamente a condutibilidade, o calor específico e a densidade de cada meio, x a coordenada de posicão contada do contato em x = 0. O produto cr é o calor específico por unidade de volume. Estas duas equações coalescem, é bem sabido, em:


Se chamarmos ci ri x2 de , os parâmetros desaparecem e uma mesma equação descreverá a propagação nos dois meios,

equação em que o índice i poderia ser omitido. Seja então f(y,t) a equação da onda de temperatura que percorre cada amostra após o contato, normalizado a qi(0,t) = 1. No nosso problema, a temperatura dos pulsos qi(x,t) serão:

Para se obter a temperatura real em cada cilindro deve-se somar às temperaturas das Eqs. (5) e (6), as respectivas temperaturas iniciais, qi0. Para determinar q0, vamos impor que a energia térmica se conserva para todo tempo t (e para isto basta considerar aquela contida nas ondas), isto é,

Com dx = (dx/dyi)dyi = ki/,

que tendo em vista as Eqs. (5) e (6) leva a

de onde se tira:

ou, finalmente,

com

2. Comentários

A Eq. (11) mostra que o maior b tende a se fazer prevalecer em geral mas que, se q10 = q20, isto é, se a temperatura de ambos cilindros é a mesma, não há modificação da temperatura, por mais diferentes que os b's sejam. Por outro lado, se iguais, b1 = b2, a temperatura final será a média das temperaturas iniciais. Notemos que o parâmetro b depende, além do valor do calor específico por unidade de volume, cr, também da condutibilidade térmica k. A Eq. (11) mostra que q0 aumenta se b1 aumenta, os demais fatores mantendo-se constantes. De fato,

e sendo q1 > q2, o aumento da condutibilidade térmica do meio 1 aumenta a temperatura de contato, já que mais calor pode ser extraído do meio 1, mais quente (ver Fig. 1).

Para o estudo da nossa sensação de 'temperatura' por contato, tomemos a pele como meio 1 e achemos a variação de temperatura Dq = q0 – q10. Ela é, da Eq. (11):

com Dq0 designando a diferença de temperatura inicial entre o meio 2 e o meio 1, isto é Dq0 = q20 – q10. A aferição de Dq0 por Dq será tanto mais correta quanto b2 for maior que b1. De acordo com C. Fabry, [4], temos os seguintes valores típicos de b (CGS):

Cobre b= 0,9 q0 = 97 ºC Chumbo 0,17 85 ºC Vidro 0,03 60 ºC Madeira 0,01 41 ºC Água (imobilizada) 0,037

Teríamos, pois, dos metais, com altos b's, aferições corretas mas eventualmente perigosas. Os valores assinalados como q0 referem-se à temperatura final entre a pele - para a qual se atribuiu o valor de b referente à água imobilizada e a temperatura de 25 ºC, possivelmente subestimada -, e o material a 100 ºC. Note-se que esta aproximação não permite explicar claramente porque a batata cozida é 'quente'. Fabry [4] realca que o aquecimento por contato exige um alto valor de b e essa é a razão de os soldadores serem feitos de cobre. Os corpos seriam 'frios' ao contato pela mesma razão, b's elevados em relação ao b da nossa pele.

Do que acabamos de expor concluímos que a nossa sensação da 'temperatura' dos corpos em contato está bastante viciada pelas propriedades térmicas dos mesmos, melhor dizendo, pela diferença entre as suas propriedades térmicas e a da nossa pele. Assim, um gás à alta ou à baixa temperatura, deixa em nós uma pífia impressão dela; aliás, o que os nossos alunos podem pensar quando dizemos que a 180 km de altura, a temperatura na atmosfera é 670 ºC em que a pressão é de 6 × 10–9 atm? É interessante notar que, inserido nesse meio muito quente, 670 ºC um corpo a nossa temperatura, 36 ºC, perderia temperatura, irradiando mais do que receberia do meio, quente mas rarefeito (ver Agradecimentos). Tudo isto parece indicar que o conceito de temperatura precisa ser adjetivado pela quantidade de matéria a que se refere. Com isso evitaríamos de poder atribuir ao vácuo, por um processo limite, uma temperatura, mesmo que indeterminada.

3. Sobre a segunda citação

Façamos agora análise da 2ª citação à luz do que aprendemos com a da 1ª. 'A temperatura... é uma variável que se apresenta sob um aspecto muito particular, mesmo na definição de seus valores numéricos'. De fato, uma escala de temperatura é, em princípio, construída, elegendo-se a variação de uma propriedade física - por exemplo a expansão do mercúrio -, entre dois estados bem definidos, vamos dizer, gelo e vapor d'água, à qual se atribui o valor 100 na escala centígrada. Por interpolação linear, as temperaturas intermediárias são definidas. Na relação abaixo [5], as propriedades físicas à esquerda forneceriam as temperaturas à direita quando o termômetro de mercúrio fornece a de 50 ºC, por definição:

Expansão do mercúrio........................ 50 ºC Pressão de vapor do álcool etílico........ 23,3 ºC FEM do termopar platina-ródio............. 46,4 ºC Resistência da platina........................ 50,3 ºC

Comparação posterior com o termômetro de hidrogênio (P. Chappuis) mostrou que o de mercúrio é preciso dentro de 0,002 ºC [6]. Mas as restrições a este conceito de temperatura entígrada vão mais longe em 2): '...Isto se deve ao fato de que é sem sentido juntar em uma única, a temperatura de dois corpos vizinhos'. De fato, sendo a temperatura um conceito intensivo, não tem sentido tentar somá-las, como se fossem 'massas' e a crítica não parece bem direcionada. Também não quando prossegue: '...Dizer que a temperatura é a soma de duas outras não tem, a priori, nenhum sentido'. Vimos que obtivemos na seção 1, o perfil de temperatura final somando dois perfís parciais. O que certamente Fabry está querendo ressaltar é que o conceito de temperatura centígrada não permite fazer uma ligação direta com o de 'energia' ao qual está Física e intuitivamente associada (maior temperatura, maior energia). Este foi o fim perseguido pela 'teoria mecânica do calor' que culminou no estabelecimento da 2ª lei da Termodinâmica: '...Não é senão com a temperatura absoluta... que chegaremos a uma 'medida' de temperatura pela definição de uma razão'. De fato, a máquina de Carnot permite a definição de razão entre 'temperaturas termodinâmicas' (pela razão dos calores, aquele tirado da fonte quente e o liberado à fonte fria) e daí ao conceito de 'temperatura absoluta' com auxílio das propriedades dos gases [2,7].

4. A energia térmica molar, eTM

Com a temperatura absoluta T sabemos atribuir aos gases energias internas molares definidas, expressas em termos do produto RT, sendo R a constante dos gases (8,31 J/K-mol, ou 0,0821 atm-L/K-mol), que denotaremos por eTM e chamaremos de energia térmica molar. Por exemplo, os gases monoatômicos têm energia interna molar puramente cinética, igual a 1,5 eTM, cada grau de liberdade, pelo Princípio da Equipartição da Energia, recebendo meio eTM [2,7]. Nos corpos condensados, a energia potencial atrativa prevalece, localizando os movimentos, térmicos, característicos daquela energia térmica molar.

Retornando agora ao fim da seção 1, em que se argumentava em prol de um conceito de temperatura que levasse em conta a quantidade de matéria àquela temperatura, vemos que o conceito de energia térmica molar, eTM, preenche perfeitamente esta função, mantendo além disso, exposto o conteúdo da teoria mecânica do calor, ao fornecer, em ordem de grandeza, a energia cinética molar. É interessante notar que apesar de 'molar', o conceito permanece intensivo. E exatamente por ser molar, permite compreender que a temperatura de 670 ºC a uma pressão de cerca de 10–8 atm, representa uma insignificante concentração de energia.

5. Desvantagem e vantagens

A desvantagem do conceito de energia térmica molar seria sua tardia aparição e a previsível dificuldade de vir a substituir o de 'temperatura absoluta' como apresentado nos textos, que, aliás, vai pouco além da afirmativa 'T = temperatura centígrada + 273,16'. Em vez disso, aqueles mais sensíveis a uma postulação mais física poderiam se acostumar a reunir numa única, as grandezas R e T, ou seja, RT = eTM daí derivando novo enfoque. Por exemplo, a lei dos gases, PV = RT, com P, pressão e V, volume molar, interpretaríamos como:

ou seja, a pressão é igual ao nível de energia térmica por unidade de volume. Uma outra vantagem, certamente não desprezível do ponto de vista conceitual, seria a de liberar a entropia de uma incômoda dimensionalidade. Numa transformação a volume constante, escrevemos usualmente para 1 mol:

sendo dUV a variação de energia interna e dSV a da entropia, ambos a volume constante. Na nova visão, teríamos:

em que o fator dimensional R da entropia usual, SV, é agora associado à T, criando a entropia adimensional Sa (aqui SVa). A entropia está em geral associada ao conceito de 'desordem' ou 'variedade' e seria, portanto, mais propriamente expressa sem dimensão. Notemos que a Eq. (17) pode ser lida como dizendo que a variação da (nova) entropia é igual à variação da energia interna, medida em termos da energia térmica molar, dSVa = dUV/eTM. Pode-se mesmo argumentar que foi a aceitação do conceito abstrato de 'temperatura absoluta', em detrimento do mais concreto, o de energia térmica molar, que gerou a dimensionalidade até hoje atribuída à entropia. Aliás, a escala de temperatura energética RT explicaria a lacônica afirmativa de J.A. Leggett [8], segundo a qual a constante de Boltzmann, ou a constante dos gases R, não são constantes fundamentais da natureza, já que o R e T desapareceriam fundidos na grandeza eTM e a constante de Boltzmann não ser mais que o quociente de R pelo número de Avogadro.

Agradecimento

Agradeço a colega, Profa. Mariangela T. de Figueiredo, a menção a certa dificuldade no conceito de alta temperatura em gases rarefeitos e ao revisor deste a observação sobre o aparentemente paradoxal esfriamento em um meio mais quente, mencionado ao fim da seção 2.

Recebido em 21/10/2005; Aceito em 6/2/2006

  • [1] F.W. Sears e M. Zemansky, Física (Livros Técnicos e Científicos, Rio de Janeiro, 1976), v. 2.
  • [2] Encyclopaedia Britannica, verbete 'Interferometer' (Encyclopaedia Britannica Inc., Chicago, 1969), v. 12.
  • [3] Charles Fabry, Eléments de Thermodynamique (Librairie Armand Colin, Paris, 1952), cap. I.
  • [4] Charles Fabry, Propagation de la Chaleur (Librairie Armand Colin, Paris, 1942), cap. IV.
  • [5] C.S. Brown, Basic Thermodynamics (McGraw-Hill Book Co., New Iork, 1951).
  • [6] Encyclopaedia Britannica, verbete 'Thermometry' (Encyclopaedia Britannica Inc., Chicago, 1969), v. 21.
  • [7] Enrico Fermi, Termodinamica (Paolo Boringhieri, Torino, 1958), cap. 4.
  • [8] J.A. Leggett, Problems of Physics (Oxford University Press, Oxford, 1987).
  • 1
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      2006

    Histórico

    • Aceito
      06 Fev 2006
    • Recebido
      21 Out 2005
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