Acessibilidade / Reportar erro

A evolução do pensamento cosmológico e o nascimento da ciência moderna

Evolution of the cosmological thought and the birth of Modern Science

Resumos

Nesse trabalho fazemos uma exposição do processo de transformação que levou da ciência qualitativa de Aristóteles, fundamentada em princípios filosóficos, à ciência moderna, estruturada sobre uma combinção de empirismo e matematização, processo cuja culminância se deu com a obra de Newton. Apresentamos como o Cosmos aristotélico-ptolomaico, rigidamente ordenado segundo critérios metafísicos, foi substituído por um novo Universo, regido por uma causalidade mecânica, expressa através de leis matemáticas, e completamente destituído de conceitos como finalidade e valor. Mostramos como a revolução introduzida por Copérnico ultrapassou os limites da astronomia, dentro dos quais nasceu, e promoveu uma ampla transformação do pensamento científico que conduziu ao nascimento da física newtoniana.

gravitação; cosmologia; mecânica; revolução científica


In this work we present an exposition on the process of transformation that led from Aristotle's qualitative science, founded on philosophical principles, to modern science, which rests on a combination of empiricism and mathematization, process whose highest expression is given by Newton's work. We present how Aristotelian-Ptolemaic Cosmos, rigidly ordered according to metaphysical criteria, was replaced by a new Universe, completely deprived from concepts of finality and value and governed by a mechanical causality, expressed through mathematical laws. We show how Copernican revolution had gone beyond the limits of astronomy and had promoted a wide transformation on scientific thought that led to the birth of Newtonian physics.

gravitation; cosmology; mechanics; scientific revolution


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

A evolução do pensamento cosmológico e o nascimento da ciência moderna

Evolution of the cosmological thought and the birth of Modern Science

C.M. PortoI,1 1 E-mail: claudio@ufrrj.br ; M.B.D.S.M. PortoII

IDepartamento de Física, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, Brasil

IIInstituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Nesse trabalho fazemos uma exposição do processo de transformação que levou da ciência qualitativa de Aristóteles, fundamentada em princípios filosóficos, à ciência moderna, estruturada sobre uma combinção de empirismo e matematização, processo cuja culminância se deu com a obra de Newton. Apresentamos como o Cosmos aristotélico-ptolomaico, rigidamente ordenado segundo critérios metafísicos, foi substituído por um novo Universo, regido por uma causalidade mecânica, expressa através de leis matemáticas, e completamente destituído de conceitos como finalidade e valor. Mostramos como a revolução introduzida por Copérnico ultrapassou os limites da astronomia, dentro dos quais nasceu, e promoveu uma ampla transformação do pensamento científico que conduziu ao nascimento da física newtoniana.

Palavras-chave: gravitação, cosmologia, mecânica, revolução científica.

ABSTRACT

In this work we present an exposition on the process of transformation that led from Aristotle's qualitative science, founded on philosophical principles, to modern science, which rests on a combination of empiricism and mathematization, process whose highest expression is given by Newton's work. We present how Aristotelian-Ptolemaic Cosmos, rigidly ordered according to metaphysical criteria, was replaced by a new Universe, completely deprived from concepts of finality and value and governed by a mechanical causality, expressed through mathematical laws. We show how Copernican revolution had gone beyond the limits of astronomy and had promoted a wide transformation on scientific thought that led to the birth of Newtonian physics.

Keywords: gravitation, cosmology, mechanics, scientific revolution.

1. Introdução

Muitas correntes hoje defendem uma nova forma de ensino de física, em que se apresentem os diferentes níveis de articulação entre essa ciência e os outros elementos da cultura humana. Novos currículos são propostos com a preocupação de que o ensino atual seja voltado principalmente para a inserção dos alunos no mundo moderno, fazendo com que sejam capazes de articular o conhecimento físico com as demais áreas da ciência e com as outras formas de expressão da cultura humana [1].

O próprio processo de surgimento da física hoje dita clássica, que levou à formulação da mecânica newtoniana, fornece talvez um exemplo paradigmático dessas relações entre o pensamento científico e o desenvolvimento da cultura humana.

A obra de Isaac Newton é hoje um assunto bem conhecido entre aqueles que se dedicam ao estudo da física. Suas leis da mecânica e da gravitação universal constituem um elemento básico desse estudo. No entanto, a visão muitas vezes encontrada é a de que essa obra constituiu-se como marco inicial do desenvolvimento daquela ciência e não como desabrochar de um processo gradual, realizado ao longo de dois séculos, de transformação do pensamento, certamente inseparável das circunstâncias históricas em que ocorreu, tanto em relação às influências que contribuíram para determiná-lo, quanto às repercussões que produziu em toda a cultura humana.

Na verdade, processo de transformação, chamado de Revolução Científica [2], que conduziu da visão de mundo fundada na filosofia e na ciência aristotélicas ao surgimento da ciência moderna é, certamente, um dos capítulos centrais da história do pensamento humano. Os desdobramentos e consequências desse processo romperam absolutamente os limites restritos dos campos de saber específicos em que questões como a explicação do movimento e o problema cosmológico se situavam e implicaram as mais profundas transformações na forma como o homem via a si e o mundo a sua volta. Com a destruição do Cosmos geocêntrico, o homem moderno foi tomado por um sentimento de intensa perplexidade diante de um novo Universo, impessoal e refratário à atribuição de qualquer significado simbólico: "O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora" [3], diria Blaise Pascal, em uma das mais profundas frases emanadas do espírito humano, traduzindo esse sentimento de estranhamento do ser humano em face de um Universo com o qual não mais se comunicava simbolicamente. No entanto, esse mesmo homem moderno, desalojado juntamente com seu planeta de sua centralidade cosmológica, interpretou os resultados advindos da Revolução Científica como uma confirmação de sua situação singular no Universo, pela sua aparentemente ilimitada capacidade de compreensão da realidade a sua volta, cuja máxima expressão se deu com a previsibilidade e o determinismo causal da mecânica newtoniana.

Esse trabalho descreve, de forma resumida, essa história. Apresenta, primeiramente, a ciência de Aristóteles e sua profunda articulação com sua filosofia. Apresenta o Cosmos de Aristóteles e Ptolomeu, que sobreviveu como pensamento prevalecente durante mais de dez séculos, até ser definitivamente abalado pela astronomia copernicana. Mostramos, então, como, a partir daí, o pensamento científico se desenvolveu, de forma quase irresistível, em direção à construção de um novo modelo de Universo, descrito por leis matemáticas, solidamente ancoradas em um processo de inferência a partir da experimentação. Enfatizamos as articulações do pensamento filosófico-científico moderno com correntes da filosofia grega, revigoradas através da obra de resgate patrocinada pela Renascença, bem como as implicações desse pensamento na visão de mundo própria do homem moderno. Abordamos o processo de germinação da idéia da gravitação universal, expressão de um Universo regido agora por mecanismos de causação extrínsecos aos corpos e não mais por conceitos de forma e finalidade, inerentes aos próprios objetos. Finalizamos com uma breve exposição da teoria da gravitação de Newton, mostrando seus grandes êxitos na explicação das diversas questões surgidas com a astronomia copernicana.

2. A cosmologia aristotélica

Durante todo o período que se estendeu desde seu aparecimento, no século IV a.C., até o século XVI d.C., a física e a cosmologia de Aristóteles permaneceram como os únicos pensamentos sistemáticos formulados a respeito dos fenômenos físicos e da estrutura do Universo. No entanto, diferentemente da forma quantitativa, expressa por relações matemáticas, que a física moderna adquiriu a partir da Revolução Científica do século XVI, a ciência de Aristóteles possuía um caráter puramente qualitativo.

A ciência Aristotélica era perfeitamente integrada ao seu sistema filosófico [4]. Assim, por exemplo, como para Aristóteles a idéia de vácuo, isto é, da existência do nada, era contraditória em si, para ele o Universo era completamente preenchido por matéria. Por outro lado, uma vez que a sua filosofia também rejeitava como absurda a existência de uma extensão material infinita, sua cosmologia caracterizava-se por um Universo finito. Nesse Universo finito era possível identificar um centro estático, onde Aristóteles posicionou a Terra.

A concepção aristotélica do Cosmos era profundamente impregnada da noção de ordem. Seu Universo formava um todo, onde cada constituinte possuía seu lugar próprio, estabelecido conforme sua natureza: o elemento terra, mais pesado, posicionava-se no centro desse Universo, enquanto os elementos mais leves, água, ar e fogo, iam formando "camadas" concêntricas em torno. Assim, segundo a física aristotélica, os corpos, deixados por si, ou seja, na ausência de forças aplicadas sobre eles, realizariam espontaneamente movimentos buscando retornar às posições que lhes são apropriadas: os elementos mais pesados, a terra e a água, movendose em direção ao centro do Universo, enquanto os mais leves, o ar e o fogo, movendo-se para cima, afastandose do centro. A queda dos corpos sólidos abandonados no ar encontrava sua explicação na naturalidade deste movimento em direção ao centro do Universo.

Outro aspecto fundamental da filosofia aristotélica era sua distinção radical entre o mundo terrestre e o celeste. À Terra, domínio da matéria sujeita a toda espécie de mudanças e transformações, opunham-se os corpos celestes, imutáveis, esferas perfeitas, formadas, não como a matéria terrestre, dos quatro elementos mencionados, terra, água, fogo e ar, mas de um outro elemento, incorruptível, denominado éter ou quintessência. A esses corpos imutáveis eram concedidos apenas movimentos circulares naturais em torno da Terra.

Essa consideração de que a natureza dos corpos celestes era imutável assentava-se na experiência humana; afinal em todos os tempos os homens haviam visto o céu da mesma forma. Por conseguinte, a experiência parecia induzir a que se concluísse que o céu não era passível de transformações outras que o simples deslocamento físico de seus astros. A ele não se aplicavam as idéias aristotélicas de geração e corrupção; não fora criado, como ocorre com as coisas terrestres, nem tampouco deixaria de existir.

E se existe algo de eternamente movido, nem mesmo isso pode ser movido segundo a potência, senão de um ponto ao outro (como justamente movem-se os céus). E nada impede que exista uma matéria própria deste tipo de movimento. Por isso, o Sol, os astros e todo o céu estão sempre em ato; e não se deve temer que esses, num certo momento, parem, como temem os físicos. [5]

Aristóteles mantinha a crença de que os corpos celestes estavam presos a esferas cristalinas centradas na Terra, que, ao girarem, arrastavam-nos, fazendo com que descrevessem movimentos circulares. Aristóteles atribuía o movimento das esferas celestes a Inteligências, hierarquicamente inferiores a uma Primeira e Suprema Inteligência.

Entretanto, a acumulação de dados relativos aos corpos celestes pelos astrônomos gregos obrigou à construção de modelos astronômicos cada vez mais elaborados, com a inclusão de novas esferas celestes (ao ponto que Aristóteles teve de afirmar a existência de cinquenta e cinco inteligências motoras) [4], cujos movimentos se compunham. O resultado dessa composição era que os movimentos dos corpos celestes se tornavam cada vez mais complexos. Além disso, esses novos dados mostravam variações na intensidade do brilho dos planetas ao longo do ano indicando que, ou suas distâncias à Terra variariam com o tempo, derrubando a tese de que descreveriam trajetórias circulares centradas em nosso planeta, ou então suas luminosidades realmente variariam ao longo do tempo, o que se confrontava com a crença na imutabilidade da substância celeste.

No século II d.C. Cláudio Ptolomeu construiu um modelo astronômico geocêntrico, compatível com os dados experimentais disponíveis então, em que adotava uma série de hipóteses a respeito do movimento dos planetas, admitindo para cada planeta a composição de um movimento de revolução (epiciclo) em torno de um certo ponto, que, por sua vez, descrevia uma trajetória circular (deferente) em torno de um outro centro. Ptolomeu admitiu ainda que a Terra não se situava no centro do círculo deferente dos planetas. Em que pese a crescente complexidade adotada pela descrição do Universo ptolomaico e a flexibilização de algumas teses centrais do pensamento cosmológico aristotélico, como por exemplo, a idéia de que as esferas a que pertenciam os planetas eram todas centradas na Terra, o modelo de Ptolomeu obteve uma enorme aceitação, pelo sucesso na explicação dos dados experimentais disponíveis.

3. A crise do pensamento aristotélico e a revolução copernicana

O modelo cosmológico de Aristóteles e Ptolomeu prevaleceu durante quase quatorze séculos. O pensamento medieval ocidental, de natureza cristã, adotou sua estrutura, porém transformando o Universo de eterno em criado pela Vontade Divina.

Contudo, o próprio processo que levou ao apogeu desse pensamento medieval trouxe dentro de si os elementos de sua própria contestação. A reação à Filosofia Escolástica produziu o nominalismo de Guilherme de Ockham, filosofia de caráter fortemente empirista, transmitida aos estudiosos parisienses, como por exemplo Nicolau d'Autrecourt, Jean Buridan e Nicolau Oresme [6]. A crítica derivada do pensamento ochkamista caminhou da metafísica e da teologia para o domínio da física aristotélica. Enquanto Buridan propunha sua teoria do impetus para explicar, de uma forma fundamentalmente diferente da concepção aristotélica, a persistência dos movimentos que aquele classificava como "não naturais", como por exemplo o de uma pedra lançada para cima, Oresme sustentava em seu livro Tratado do Céu e do Mundo que "não se poderia provar por nenhuma experiência que o Céu seja movido de um movimento diário e a Terra não" [7].

A despeito dos questionamentos e reformulações propostos pelo movimento ochkamista, podemos dizer que o primeiro grande marco no processo de desconstrução da concepção cosmológica de Aristóteles, processo este que iria resultar na Revolução Científica do século seguinte, situa-se no século XV, já sob a influência dos ventos da Renascença. A filosofia do cardeal alemão Nicolau de Cusa produziu um abalo significativo na ciência aristotélica ao afirmar que o Universo não possuía qualquer centro e que, portanto, contrariamente ao que afirmava acerca da Terra o pensamento de Aristóteles, nenhum corpo ocuparia posição privilegiada nesse Universo:

Consequentemente, se considerarmos os diversos movimentos dos orbes celestes, constataremos que é impossível para a máquina do mundo possuir qualquer centro fixo e imóvel, seja esse centro a terra sensível, o ar, o fogo ou qualquer outra coisa. [8]

Segundo Nicolau de Cusa, todos os corpos estariam em movimento e as afirmações sobre estar em repouso ou em movimento dependeriam exclusivamente do observador. Tanto um observador situado na Terra como outro situado no Sol estariam corretos ao afirmar que estão no centro do Universo e que tudo mais gira ao seu redor.

Mas, para nós está claro que esta Terra realmente se move, ainda que ela não nos pareça fazê-lo, pois só apreendemos o movimento em comparação com alguma coisa fixa. Assim, se um homem em um bote, no meio de uma corrente, não soubesse que a água corria e não visse a margem, como apreenderia que a embarcação se movia? Consequentemente, como sempre parecerá ao observador, esteja ele na Terra, no Sol ou em outro astro, que ele se encontra no centro quase imóvel e que todas as outras coisas estão em movimento, ele certamente determinará os pólos deste movimento com relação a si mesmo. [9]

O abalo definitivo do modelo cosmológico aristotélico-ptolomaico veio no século seguinte, com a teoria heliocêntrica proposta por Nicolau Copérnico. Segundo Copérnico, o Sol passava a ocupar o centro do Universo, enquanto a Terra e os demais planetas giravam ao seu redor. Copérnico, no entanto, manteve, ainda sob influência do antigo modelo cosmológico, a idéia de um Universo finito, fechado por esferas, onde os planetas descreviam órbitas circulares perfeitas. Sua teoria heliocêntrica ainda estava fundamentada em critérios de valor. Segundo seu ponto de vista, parecia ser irracional mover um corpo tão grande como o Sol, em vez de outro tão pequeno como a Terra. Além disso, Copérnico atribuía ao Sol, fonte de luz e de vida, uma condição superior em nobreza. Portanto, ele seria mais merecedor do estado de repouso, sinônimo de estabilidade, do que a Terra, que assim permaneceria em constante movimento.

Mas no centro de tudo situa-se o Sol. Quem, com efeito, nesse esplêndido templo colocaria a luz em lugar diferente ou melhor do que aquele de onde ela pudesse iluminar ao mesmo tempo todo o templo? (...) Assim, como que repousando no trono real, o Sol governa a circundante família de astros. [10]

Ao colocá-la como um planeta como os outros, Copérnico rompeu a separação essencial entre a Terra e o céu, presente no pensamento de Aristóteles. Com sua hipótese heliocêntrica, Copérnico construiu um modelo capaz de calcular e explicar com precisão resultados astronômicos, de uma forma mais simples do que aquela empregada pelo modelo ptolomaico. Vários problemas particulares que desafiavam a interpretação baseada no modelo de Ptolomeu, cujas soluções contribuíram para seu grau crescente de artificialidade e obscuridade, foram mais naturalmente explicados por Copérnico. Por exemplo, as irregularidades observadas nos movimentos planetários eram agora atribuídas ao fato de esses movimentos estarem sendo observados do ponto de vista da Terra, ela própria em movimento. Ao contrário, do ponto de vista de alguém que estivesse em repouso em relação ao Sol, a simplicidade circular dos movimentos planetários estaria preservada.

A teoria copernicana não obteve imediatamente uma aceitação total. Pelo contrário, encontrou reservas entre pensadores e estudiosos como o filósofo Francis Bacon e o astrônomo Tycho Brahe. Teve, por outro lado, grandes adeptos como Giordano Bruno, Johannes Kepler e Galileu Galilei, personagens que muito contribuíram para toda a revolução do pensamento científico.

Fervoroso adepto da teoria heliocêntrica, Giordano Bruno deu um passo à frente na revolução iniciada por Copérnico, rompendo com a idéia de um Universo finito. Inspirado no atomismo grego de Demócrito e Leucipo [11], Bruno proclamava a realidade de um Universo infinito e, como tal, homogêneo, por conseguinte, sem centro, limites ou quaisquer posições diferenciadas ou privilegiadas.

A um corpo de dimensão infinita não se pode atribuir nem centro nem limites. Pois quem fala do vazio ou do éter infinito não lhe atribui nem peso, nem leveza, nem movimento, nem distingue ali região superior, inferior ou intermediária; supõe, ademais, que haja nesse espaço inúmeros corpos como nossa Terra e outras terras, nosso Sol e outros sóis, todos os quais executam revoluções nesse espaço infinito, através de espaços finitos e determinados, ou em torno de seus próprios centros. Assim, nós na Terra dizemos que a Terra está no centro; e todos os filósofos, antigos e modernos e de quaisquer credos, proclamam sem prejuízo para seus próprios princípios que aqui se encontra verdadeiramente o centro. [12]

De fato, o Universo de Giordano Bruno se encaixava perfeitamente na descrição atomista do Cosmos. O atomismo postulava a existência de um universo constituído de minúsculas partículas indivisíveis, que se moviam livremente em um infinito vazio e, através de colisões e combinações, originavam todos os fenômenos. Neste vazio, todas as posições eram equivalentes e neutras. Da mesma forma, no Universo de Giordano Bruno tínhamos uma Terra em movimento através de um espaço neutro, sem centro, imensamente povoado e infinito.

4. Galileu e Kepler: o nascimento da ciência moderna

Mesmo entre os adeptos do heliocentrismo, a questão da finitude do Universo permaneceu alvo de controvérsias. Ao contrário de Bruno, Kepler acreditava veementemente em um Universo finito.

Essa idéia traz consigo não sei que horror secreto, oculto; com efeito, uma pessoa se sente errando por essa imensidade, a que são negados centro, limites e, portanto, todo lugar determinado. [13]

Kepler e Galileu acreditavam que o Universo estava matematicamente organizado e que a ciência se fazia comparando-se hipóteses com dados observados experimentalmente. Galileu, segundo Alexander Koyré "o homem a quem a ciência moderna deve mais do que a qualquer outro" [14], argumentava que, para se fazerem julgamentos exatos da Natureza, deveriam se considerar apenas as "qualidades" que fossem mensuráveis. Somente através de uma análise quantitativa poderíamos conhecer o mundo com segurança. Com este pensamento, Galileu advogava o experimento quantitativo como teste final das hipóteses.

Defensor do experimentalismo, Galileu acabou por inventar e aprimorar uma série de instrumentos: lentes, telescópios, microscópios, termômetros e bússolas. Alguns destes instrumentos possibilitaram a observação detalhada do Sol e da Lua. Essas observações permitiram a constatação de que esses astros não possuíam a forma esférica perfeita atribuída por Aristóteles, representando um novo abalo nas fundamentações metafísicas da concepção aristotélica de Universo.

O uso dos instrumentos desenvolvidos por Galileu deu ao empirismo uma nova dimensão e acabou por golpear de forma definitiva a física aristotélica. Através da observação do fenômeno, Galileu concluiu que, contrariamente ao que afirmava Aristóteles, os corpos levariam o mesmo tempo em queda livre a partir de uma mesma altura, independentemente de suas massas, e, através de análises matemáticas, acabou por formular a teoria do movimento uniformemente acelerado para os corpos em queda.

A física aristotélica sustentava também que nenhum corpo se movimentava de modo não natural sem uma força externa aplicada constantemente. Galileu desenvolveu, pelo contrário, a idéia decisiva da inércia: do mesmo modo que um corpo em repouso tende a ficar em repouso, um corpo em movimento tende a ficar em movimento, a menos que seja desviado de seu estado original por um agente externo.

Galileu refutou ainda um dos principais argumentos da física aristotélica contra a idéia da Terra em movimento: um projétil lançado para cima cairia forçosamente em outro ponto, já que a Terra teria andado. Como este fenômeno não era observado, os aristotélicos continuavam acreditando que a Terra era estacionária. Galileu, através do conceito de inércia, mostrou que todos os objetos que se encontram sobre a Terra, bem como os observadores nela situados, estão automaticamente dotados do movimento do próprio planeta e, portanto, este movimento seria imperceptível para qualquer desses observadores.

Apesar de toda a sua brilhante contribuição, Galileu não aplicou corretamente a idéia de inércia, tal como a compreendemos hoje, para os movimentos planetários. Para ele, os movimentos inerciais descritos por esses corpos eram de natureza circular (com velocidade de módulo constante). Assim sendo, continuou sustentando a noção da naturalidade dos movimentos celestiais como orbitas circulares centradas no Sol. A compreensão mais aprofundada desses movimentos, suas formas e suas causas, teve de aguardar a obra de Kepler.

Kepler, profundamente influenciado por concepções místico-filosóficas, sobretudo de natureza cristã e platônica, identificou na teoria copernicana a intuição de verdades mais amplas do que a simples adoção do sistema heliocêntrico. Acreditou que o modelo de Copérnico seria um prenúncio de uma nova teoria, capaz de descrever matematicamente um Universo ordenado e harmonioso. Assim, baseado em inúmeros dados astronômicos coletados por Tycho Brahe, Kepler constatou que os dados referentes às órbitas planetárias se ajustavam a uma forma matemática elíptica.

Diferentemente dos movimentos circulares uniformes, não se podia atribuir às formas elípticas das orbitas idéia da naturalidade. Para explicar essa forma orbital, Kepler propôs que o Sol fosse uma fonte de movimento no Universo. Inspirado no trabalho de William Gilbert [15], que havia descoberto recentemente o magnetismo da Terra, Kepler estendeu essa propriedade a todos os astros e planetas e sugeriu que a força motora do Sol era um resultado da interação entre os magnetismos dos corpos envolvidos. Esta força motora seria a responsável pelas órbitas elípticas. Surgia assim a primeira idéia do Sistema Planetário como sistema autogovernado, sem necessidade de qualquer recurso a causas exteriores ao próprio sistema.

Com Kepler também surgiu pela primeira vez a idéia de uma força atrativa entre os corpos. No prefácio de seu livro Astronomia Nova, Kepler afirma que a teoria da gravidade deve se fundar sobre o axioma da atração mútua entre os corpos: por exemplo, a Terra atrai uma pedra tanto quanto essa pedra a atrai. Também a Terra e a Lua atraem-se mutuamente, de forma que uma outra ação é necessária para explicar o permanente afastamento entre elas. No entanto, para Kepler, a atração se dava apenas entre corpos que de alguma forma possuíssem certo "parentesco" (Kepler empregou o termo em latim "cognata"); essa "afinidade" existiria entre a Terra e a Lua, mas não, por exemplo, entre a Terra e os demais planetas. Podemos dizer que havia ainda no pensamento kepleriano um elemento aristotélico, manifesto, nesse caso, no papel físico, de certo modo determinante, atribuído às essências (naturezas) dos corpos (noção de afinidade ou parentesco). A atração concebida por Kepler não tinha, pois, o caráter universal que lhe atribuiria posteriormente a teoria newtoniana.

Assim, vemos bem: o que impede Kepler de formular a lei da gravitação universal é a persistência nele de uma concepção qualitativa do Universo. Inversamente, a fim de que - e antes que - essa lei pudesse ser formulada, foi preciso que essa concepção fosse substituída por outra, segundo a qual o ser material é, em todos os lugares, perfeitamente e absolutamente homogêneo. É somente a esse preço que a atração pode-se estender a todo o Universo e se identificar com a gravitação. Ora, não é a Kepler, é a Galileu e a Descartes e, ainda, aos atomistas e materialistas do século XVII, Gassendi e Boyle, que nós devemos essa concepção unitária do ser físico [16]

A idéia do Cosmos como um sistema dinâmico autogovernado, já apontada na teoria de Kepler, foi definitivamente reforçada pelo pensamento mecanicista de Descartes. Segundo Descartes, a Natureza era rigorosamente ordenada e impessoal, regida pela Matemática, e composta por um número infinito de partículas que colidiam e podiam se agregar. O movimento destas partículas era governado por leis mecânicas e o desafio do homem era descobrir estas leis. A despeito da negação cartesiana do vazio e da indivisibilidade da matéria, o Universo cartesiano, em sua abordagem mecanicista, tinha importantes semelhanças com o Cosmos atomístico [17].

Questionando-se sobre como seria o movimento de uma única partícula num universo infinito, sem direções absolutas, Descartes concluiu que um corpo em repouso permaneceria em repouso e que um corpo em movimento continuaria a se movimentar em linha reta, com a mesma velocidade, a menos que um agente externo sobre ele agisse, formulando de maneira mais perfeita a Lei da Inércia, ao falar do caráter retilíneo do movimento. Descartes concluiu ainda que, como todo movimento no Universo é de origem mecânica, quaisquer desvios de suas tendências retilíneas naturais deviam ser consequência das colisões com outros corpos.

Aplicando suas concepções ao problema do movimento dos planetas, Descartes eliminou os últimos vestígios da física aristotélica: o caráter natural das órbitas circulares. Segundo ele, a menos que houvesse uma força inibidora, o movimento inercial dos planetas necessariamente tenderia a impeli-los em uma linha tangencial para fora da curva da órbita em torno do Sol. Porém, como o movimento consistia de orbitas fechadas em torno do Sol, era evidente que algo forçava os planetas a uma "queda" em direção ao Sol. A física cartesiana, por outros argumentos, caminhava ao encontro da concepção de Kepler, no que se refere a necessidade de atuação de uma força como causa da forma dos movimentos planetários. Entretanto, a verdadeira natureza dessa força ainda estava por ser descoberta.

Há muito tempo já se especulava a respeito de uma força de atração entre todos os corpos materiais. Esta força já havia sido aventada por alguns gregos e sábios medievais para explicar a queda dos corpos, como alternativa a concepção aristotélica dos movimentos naturais.

Ao final do século XVII Robert Hooke, examinando a trajetória descrita por uma pequena esfera que pendia da extremidade de um pêndulo cônico, constatou que o que forçava a esfera a descrever aquela trajetória era uma força do tipo central, ou seja, dirigida para um centro de força, que permanecia imóvel, enquanto a esfera se movia em um determinado plano. Se esta força não existisse, a tendência natural do movimento seria retilínea. Hooke conduziu uma série de experiências demonstrativas na Sociedade Real de Ciências da Grã Bretanha mostrando que a massa presa ao pêndulo cônico descrevia trajetórias elípticas ou circulares, conforme o impulso inicial que lhe fosse dado. O objetivo de Robert Hooke era buscar uma analogia entre esse problema e os movimentos planetários.

Prosseguindo em sua análise, Hooke concluiu que os movimentos dos corpos celestes revelavam a existência de uma força de atração entre os corpos. Hooke apresentou suas conclusões através de uma conferência proferida na Academia Real de Ciências, em 1670, onde declarou:

Eu explicarei um sistema do mundo que difere em muitos aspectos de todos os outros e que responde em tudo às regras ordinárias da mecânica. Ele se funda sobre três suposições:

1º Que todos os corpos celestes, sem qualquer exceção, possuem uma atração ou uma gravitação dirigida a seus próprios centros, pela qual, não somente eles atraem suas próprias partes e as impedem de se afastar, como nós o vemos na Terra, mas também atraem todos os outros corpos celestes que estão na esfera de sua atividade; que, por consequência, o Sol e a Lua têm influência sobre o corpo e o movimento da Terra, e a Terra uma influência sobre o Sol e a Lua, mas também que Mercúrio, Vênus, Marte e Saturno têm, por sua força atrativa, uma influência considerável sobre o movimento da Terra, como também a atração recíproca da Terra tem uma influência sobre esses planetas.

2º Que todos os corpos que receberam um movimento simples e direto continuam a se mover em linha reta, até que por qualquer outra força efetiva sejam desviados e forçados a descrever um círculo, uma elipse ou qualquer outra curva mais complicada.

3º Que essas forças atrativas são tão mais poderosas em sua ação quanto mais próximos de seus centros estiverem os corpos sobre os quais elas agem. [18]

Ao final dos anos de 1670, Hooke formulou pela primeira vez a idéia de uma lei de atração gravitacional entre os corpos, com intensidade proporcional ao inverso do quadrado da distância entre eles. No entanto, tendo chegado a esse ponto, aparentemente não foi capaz de dar a sua concepção o desenvolvimento matemático apropriado. Este foi obra de Isaac Newton.

5. A mecânica e a teoria da gravitação de Newton

A grande síntese da ciência moderna, estabelecendo as leis físicas do movimento através de equações matemáticas e respondendo todas as questões surgidas com a cosmologia de Copérnico, foi obra de Isaac Newton [19].

Através de suas leis do movimento, Newton formulou da maneira exata o problema fundamental da mecânica: a trajetória descrita por qualquer corpo é determinada a partir do conhecimento das forças que sobre ele agem e de certas condições iniciais, representadas por sua posição e sua velocidade em qualquer instante. Uma vez conhecidos esses elementos, somos capazes de determinar esta trajetória de forma absolutamente unívoca. Dotada deste instrumento, a física adquiria então um caráter de previsibilidade capaz de impressionar profundamente o homem moderno. A evolução do pensamento científico, iniciada por Galileu e Descartes, em direção à concepção de uma Natureza descrita por leis matemáticas chegava assim a seu grande desabrochar.

Com Newton, os problemas do movimento dos planetas e da queda dos corpos nas proximidades da superfície da Terra encontraram uma explicação unificada na idéia de uma força gravitacional, já delineada, mas não completamente formalizada por Hooke. As leis do movimento planetário, enunciadas por Kepler, e do movimento dos projéteis terrestres tornaram-se exemplos de aplicação dos princípios básicos da teoria newtoniana, representados pelas três leis da mecânica e pela existência de uma força de ação a distância, através da qual dois corpos se atraem mutuamente com uma intensidade proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa.

Newton mostrou que corpos sob a ação de uma força inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles e o corpo que os atrai descrevem órbitas que têm a forma de curvas cônicas. Quando as órbitas são fechadas, elas têm a forma elíptica. Estava solucionado então o problema das órbitas elípticas de Kepler.

Os êxitos da teoria newtoniana na explicação de uma grande variedade de fenômenos com base em poucos princípios fundamentais foram extraordinários. A mecânica de Newton forneceu, por exemplo, a resposta para o problema da forma do planeta Terra. Newton explicou que se a Terra não possuísse um movimento de rotação em torno de seu eixo ela teria a forma esférica. No entanto, devido a esse movimento de rotação, existem forças inerciais que fazem com que ela seja achatada nos pólos e alongada no equador.

Newton também explicou a razão da chamada "precessão dos equinócios". Com efeito, Copérnico havia descoberto que o eixo de rotação da Terra faz um ângulo de 23,5ºcom a normal ao plano da órbita em torno do Sol. Embora este ângulo se mantenha constante, o eixo de rotação gira em torno dessa normal, descrevendo um cone completo a cada 26000 anos. Esse fenômeno é chamado de "precessão dos equinócios", pelo fato de alterar, a cada ano, o instante em que a duração dos dias iguala a das noites (equinócios). Newton foi capaz de explicar o motivo deste movimento: pelo fato da Terra ser achatada nos pólos, as atrações gravitacionais produzidas pela Lua e pelo Sol produziriam um torque, responsável pela precessão. Newton, em seus escritos, foi ainda mais longe, calculando a taxa de precessão e encontrando o resultado de 50" por ano, em excelente concordância com a experiência.

Newton mostrou ainda que a explicação para a causa das marés oceânicas e para o fato de ocorrerem duas marés altas a cada dia está na força gravitacional exercida pela Lua e, com menos intensidade, pelo Sol. A porção de oceano situada bem em frente à Lua sofre uma atração mais acentuada do que a parte sólida do planeta que se encontra logo abaixo do oceano, o que provoca maré alta. A porção diametralmente oposta, no entanto, também terá maré alta porque a parte sólida do planeta, agora situada mais próximo da Lua do que a porção de oceano acima dela, sofrerá uma atração gravitacional lunar mais intensa e se deslocará em direção ao satélite mais do que a massa de água adjacente.

Façamos, por fim, uma consideração a respeito da concepção newtoniana da força da gravidade. A idéia de ação a distância presente na força gravitacional foi rejeitada como absurda por muitos dos contemporâneos de Newton, que a associaram, inclusive, a concepções mágicas, características do pensamento pré-científico. Em verdade, em que pese sua formulação da gravitação universal, o próprio Newton possuía sólidas reservas em relação a idéia de um corpo agir sobre outro a uma certa distância. Escreveu-o claramente em uma carta a Richard Bentley:

É inconcebível que a matéria bruta inanimada, sem mediação de alguma outra coisa que não seja material, possa atuar sobre uma outra matéria e afetá-la sem contato mútuo, como deveria acontecer se a gravitação, no sentido de Epicuro, lhe fosse essencial e inerente. E essa é uma razão pela qual desejaria que não me atribuísseis a gravidade inata. Que a gravidade seja inata, inerente e essencial à matéria, de modo que um corpo possa agir sobre o outro a distância através de um vácuo, sem a mediação de qualquer outra coisa pela qual essa ação e essa força seja comunicada de um a outro, é para mim absurdo tão grande que creio que nenhum homem, por menos versado que seja em assunto de filosofia, possa jamais sucumbir a ele. [20]

Poderíamos dizer, portanto, que a concepção da gravidade como uma propriedade primária da matéria se consolidou à sua revelia.

Falais às vezes da gravidade como essencial e inerente à matéria. Rogo-vos não atribuir a mim essa noção, pois a causa da gravidade é coisa que não pretendo conhecer e, portanto, gostaria de considerar mais a fundo. [21]

Em outras palavras, a teoria newtoniana não forneceu uma "explicação" da gravidade como um fenômeno derivado de causas a serem determinadas. Forneceu uma descrição matematicamente formalizada da maneira como sua atuação, considerada como puro fato experimental, se dá na Natureza.

A despeito de qualquer estranhamento inicial, a construção monumental presente na obra de Newton tornou-se logo objeto de imensa admiração por parte dos estudiosos. Sua ciência consistia na dedução matemática de uma grande variedade de resultados a partir de alguns poucos princípios, inferidos da experiência. Essa reunião de uma sólida estrutura lógicodedutiva, cujo modelo paradigmático foi fornecido pela Geometria de Euclides, com um elemento empírico que lhe assentava as bases tornou-se modelo de construção do pensamento científico. Enfim, a obra de Newton representou para a sua época, bem como para as subsequentes, o triunfo da razão humana sobre o desconhecimento.

6. Conclusão

A ciência de Aristóteles era uma ciência eminentemente qualitativa, radicalmente integrada ao seu sistema filosófico. A física aristotélica era antes uma "metafísica do mundo sensível" [4]. Os conceitos de valor e finalidade desempenhavam, no Universo surgido do pensamento de Aristóteles, um papel essencialmente estruturante. Sua finitude e sua organização eram determinações físicas indissociáveis de critérios metafísicos.

A revolução copernicana, ao reduzir a Terra a um planeta móvel como qualquer outro, destruiu a coerência físico-filosófica da cosmologia de Aristóteles e Ptolomeu. Uma nova física e uma nova cosmologia tornaram-se necessárias para a explicação das questões surgidas deste novo Universo heliocêntrico. Com Galileu e Descartes, a matematização instituía-se como instrumento da nova descrição da Natureza.

A obra de Newton representou, então, a culminância desse processo de transformação que deu origem à ciência moderna. Podemos citar como traços essenciais e inseparáveis dessa nova visão de mundo [22]:

- A destruição do Cosmos aristotélico, rigidamente ordenado e metafisicamente hierarquizado, onde cada ser encontrava seu lugar segundo sua natureza;

- A geometrização do espaço, transformado de um espaço concreto, de partes (lugares) qualitativamente distintas, em um espaço abstrato, representável através de conceitos geométricos;

- A transformação do conceito de movimento, abandonando-se a abrangência da idéia aristotélica de mudança pela idéia restrita de deslocamento físico. O movimento deixa de significar qualquer processo de transformação ao qual os corpos estejam submetidos, em razão de suas naturezas ou em vista de uma finalidade a ser cumprida. Abandonam-se as explicações associadas às formas e às finalidades, em favor de uma compreensão dos fenômenos fundada na concepção de causas eficientes. O movimento, agora como mero deslocamento, perde a sua inerência à natureza do objeto, o seu caráter essencial. Torna-se um estado, determinado de fora por agentes físicos, através de mecanismos de causalidade expressos por leis matemáticas e impessoais.

A mecânica newtoniana tornou-se o paradigma de teoria científica. O brilho de sua força explicativa ofuscou as críticas que lhe foram apostas, sobretudo em relação aos conceitos de espaço e de tempo absolutos em que se assentava [23, 24]. Durante dois séculos, a física desenvolveu-se tomando-a como fundamento incontestável, até que, nos fins do século XIX e início do século XX, suas estruturas epistemológicas foram abaladas de forma irreconciliável por uma dupla crise: a verificação de inconsistências lógicas entre os pressupostos básicos da mecânica clássica e a teoria eletromagnética e a investigação do mundo microscópico. A primeira deveu sua solução a Albert Einstein, com sua teoria da relatividade restrita; a segunda desencadeou o rápido e intenso processo de gestação que conduziu à formulação da mecânica quântica.

Referências

[1] Brasil, Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, Parte III (MEC, Brasília, 2000).

[2] H.F. Cohen, The Scientific Revolution (Chicago University Press, Chicago, 1994); I.B. Cohen, The Newtonian Revolution (Cambridge University Press, Cambridge, 1985) e E. J. Dijksterhuis, The Mechanization of the World Picture (Princeton University Press, Princeton, 1986).

[3] B. Pascal, Pensamentos (Martins Fontes, São Paulo, 2005), p. 86.

[4] G. Reale, História da Filosofia Antiga (Loyola, São Paulo, 1994), v. 2.

[5] Aristóteles, Metafísica, Θ8, 1050, b 20-27, na Ref. [4], p. 384.

[6] E. Gilson, A Filosofia na Idade Média (Martins Fontes, São Paulo, 1995).

[7] N. Oresme, Tratado do Céu e do Mundo, citado na Ref. [6], p. 850.

[8] N. Cusa, A Douta Ignorância, livro II, cap. 2, p. 99, citado na Ref. [14], p. 14.

[9] Ref. [8], livro II, cap. 12, p. 103, citado na Ref. [14], p. 19.

[10] N. Copérnico, Das Revoluções dos Orbes Celestes, livro I, cap. X, citado na Ref. [14], p. 30.

[11] C. Bailey, The Greek Atomists and Epicurus (Claredon Press, Oxford, 1928); ver Ref. [4], v. 1.

[12] G. Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos (Madras, São Paulo, 2007).

[13] J. Kepler, De stella nova in pede Serpentarii, cap. XXI, p. 687 (Opera omnia, ed. Frisch, v. II, Frankofurti et Erlangae, 1859), citado por A. Koyré, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2006), 4ª ed., p. 56.

[14] A. Koyré, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2006), 4ª ed.

[15] W. Gilbert, De Magnete, Londres, 1600.

[16] A. Koyré, in Études Newtoniennes (Gallimard, Paris, 1968), p. 13.

[17] T. Kuhn, A Revolução Copernicana (Edições 70, Lisboa, 1989).

[18] R. Hooke, An attempt to prove the motion of the Earth by Observation, Londres, 1674, pp. 27-28, republicado em Gunther, Early Science in Oxford, v. VIII.

[19] I. Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Nova Cultural, São Paulo, 2000).

[20] Four letters from Sir Isaac Newton to the Reverend Dr. Bentley, carta III (25.2.1692/1693), Londres, 1756, p. 211.

[21] Ref. [20], carta II (17.1.1692/1693), p. 210.

[22] Ver Ref. [16] .

[23] G. Berkeley, De motu (1721)

[24] C.M. Porto e M.B.D.S.M. Porto, Revista Brasileira de Ensino de Física 30, 1603 ( 2008 ).

Recebido em 8/4/2008; Aceito em 28/8/2008; Publicado em 27/2/2009

  • [1] Brasil, Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, Parte III (MEC, Brasília, 2000).
  • [2] H.F. Cohen, The Scientific Revolution (Chicago University Press, Chicago, 1994);
  • I.B. Cohen, The Newtonian Revolution (Cambridge University Press, Cambridge, 1985) e E.
  • J. Dijksterhuis, The Mechanization of the World Picture (Princeton University Press, Princeton, 1986).
  • [3] B. Pascal, Pensamentos (Martins Fontes, São Paulo, 2005), p. 86.
  • [4] G. Reale, História da Filosofia Antiga (Loyola, São Paulo, 1994), v. 2.
  • [5] Aristóteles, Metafísica, Θ8, 1050, b 20-27, na Ref. [4], p. 384.
  • [6] E. Gilson, A Filosofia na Idade Média (Martins Fontes, São Paulo, 1995).
  • [7] N. Oresme, Tratado do Céu e do Mundo, citado na Ref. [6], p. 850.
  • [8] N. Cusa, A Douta Ignorância, livro II, cap. 2, p. 99, citado na Ref. [14], p. 14.
  • [9] Ref. [8], livro II, cap. 12, p. 103, citado na Ref. [14], p. 19.
  • [10] N. Copérnico, Das Revoluções dos Orbes Celestes, livro I, cap. X, citado na Ref. [14], p. 30.
  • [11] C. Bailey, The Greek Atomists and Epicurus (Claredon Press, Oxford, 1928); ver Ref. [4], v. 1.
  • [12] G. Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos (Madras, São Paulo, 2007).
  • [13] J. Kepler, De stella nova in pede Serpentarii, cap. XXI, p. 687 (Opera omnia, ed. Frisch, v. II, Frankofurti et Erlangae, 1859), citado por A. Koyré, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2006), 4Ş ed., p. 56.
  • [14] A. Koyré, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2006), 4Ş ed.
  • [15] W. Gilbert, De Magnete, Londres, 1600.
  • [16] A. Koyré, in Études Newtoniennes (Gallimard, Paris, 1968), p. 13.
  • [17] T. Kuhn, A Revolução Copernicana (Edições 70, Lisboa, 1989).
  • [18] R. Hooke, An attempt to prove the motion of the Earth by Observation, Londres, 1674, pp. 27-28, republicado em Gunther, Early Science in Oxford, v. VIII.
  • [19] I. Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Nova Cultural, São Paulo, 2000).
  • [20] Four letters from Sir Isaac Newton to the Reverend Dr. Bentley, carta III (25.2.1692/1693), Londres, 1756, p. 211.
  • [21] Ref. [20], carta II (17.1.1692/1693), p. 210.
  • [22] Ver Ref. [16]
  • [23] G. Berkeley, De motu (1721)
  • [24] C.M. Porto e M.B.D.S.M. Porto, Revista Brasileira de Ensino de Física 30, 1603 ( 2008 ).
  • 1
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Aceito
      28 Ago 2008
    • Recebido
      08 Abr 2008
    Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: marcio@sbfisica.org.br