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Galileu, descartes e a elaboração do princípio da inércia

Galileo, descartes and the elaboration of the principle of inertia

Resumos

Neste trabalho fazemos uma reconstituição histórica do desenvolvimento do princípio da inércia, apresentando as contribuições de diversos nomes da história da ciência e do pensamento, notadamente os de Galileu e de Descartes, ao complexo processo de sua elaboração. Mostramos como o conceito de inércia nasceu intimamente ligado às transformações promovidas pela revolução astronômica e como as questões decorrentes da astronomia copernicana requereram o desenvolvimento de uma nova física. Mostramos como essa nova ciência implicou a substituição da visão de mundo de Aristóteles, bem como de seu sistema filosófico, pela concepção de um universo mecanicista, completamente destituído de idéias de ordem e finalidade.

princípio da inércia; mecânica; história da física; revolução científica


In this work we make a historical reconstitution of the development of the principle of inertia. We present the different contributions of notables from the history of science and thought, particularly Galileo and Descartes, to its complex elaboration process. We show how the concept of inertia emerged in close relation to the transformations brought up by the astronomical revolution, as well as how questions that emerged from copernican astronomy required the development of a new physics. We also show how this new science implied the replacement of Aristotle's world and philosophical systems by a mechanicist Universe, absolutely deprived from the ideas of order and finality.

principle of inertia; mechanics; history of physics; scientific revolution


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

Galileu, descartes e a elaboração do princípio da inércia

Galileo, descartes and the elaboration of the principle of inertia

C.M.PortoI; M.B.D.S.M. PortoII,1 1 E-mail: beatrizrj@mail.com

IDepartamento de Física, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, Brasil

IIInstituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Neste trabalho fazemos uma reconstituição histórica do desenvolvimento do princípio da inércia, apresentando as contribuições de diversos nomes da história da ciência e do pensamento, notadamente os de Galileu e de Descartes, ao complexo processo de sua elaboração. Mostramos como o conceito de inércia nasceu intimamente ligado às transformações promovidas pela revolução astronômica e como as questões decorrentes da astronomia copernicana requereram o desenvolvimento de uma nova física. Mostramos como essa nova ciência implicou a substituição da visão de mundo de Aristóteles, bem como de seu sistema filosófico, pela concepção de um universo mecanicista, completamente destituído de idéias de ordem e finalidade.

Palavras-chave: princípio da inércia, mecânica, história da física, revolução científica.

ABSTRACT

In this work we make a historical reconstitution of the development of the principle of inertia. We present the different contributions of notables from the history of science and thought, particularly Galileo and Descartes, to its complex elaboration process. We show how the concept of inertia emerged in close relation to the transformations brought up by the astronomical revolution, as well as how questions that emerged from copernican astronomy required the development of a new physics. We also show how this new science implied the replacement of Aristotle's world and philosophical systems by a mechanicist Universe, absolutely deprived from the ideas of order and finality.

Keywords: principle of inertia, mechanics, history of physics, scientific revolution.

1. Introdução

O conhecimento da história do desenvolvimento e da evolução de um conceito científico é proveitoso, entre outras razões, porque ajuda a trazer à luz os obstáculos mentais que foi preciso vencer para que esse conceito pudesse ser formulado e compreendido em sua forma acabada. Esses obstáculos revelados pela experiência histórica, em toda a sua concretude, podem fornecer elementos bastante elucidativos sobre as dificuldades aserem enfrentadas no processo de ensino-aprendizagem, sejam elas decorrentes de um contexto cultural específico ou estruturalmente ligadas ao processo de desenvolvimento cognitivo.

Nesse sentido, a história da elaboração das leis do movimento é paradigmática. Para muitos de hoje, jáeducados no novo sistema de pensamento surgido com a moderna, as leis básicas do movimento parecemconceitos triviais. A idéia da persistência indefinida do movimento na ausência de forças resultantes e a explicação do lançamento vertical e do movimento de projéteis com base na ação da força de atração gravitacional exercida pela Terra sobre os corpos já estão incorporadas a uma forma educada de pensamento. Entretanto, na nossa prática docente, frequentemente nos deparamos ainda com um conflito entre essas idéias e concepções espontâneas a elas opostas e análogas àquelas que foram exatamente substituídas pela ciência moderna. A permanência dessas concepções prévias, mesmo em face do conhecimento científico bem estabelecido, revela a complexidade da articulação cognitiva envolvida na substituição do senso comum pelas formas elaboradas do conhecimento científico.

A lei da inércia dos corpos é um exemplo marcadamente verdadeiro desse conflito persistente entre concepções prévias e conhecimento científico estabelecido. Esse trabalho visa, pois, a tornar mais conhecido o processo de seu desenvolvimento, sob o ponto de vista histórico, intimamente relacionado à questão do movimento do planeta Terra e à discussão dos efeitos do possível movimento terrestre sobre o movimento dos corpos no planeta.

A idéia de inércia está indissociavelmente ligada ao nome de Galileu. A correção desta associação é indiscutível. De fato, sua contribuição à formulação deste conceito fundamental no desenvolvimento da física foi decisiva. Entretanto, essa idéia não foi concebida de forma acabada pela mente de um único homem. Pelo contrário, a história de sua elaboração registra a contribuição de diversos nomes da ciência, até que se chegasse à forma definitiva como a entendemos hoje [1]. Em verdade, o seu surgimento exigiu uma total transformação no pensamento humano, envolvendo não apenas aspectos especificamente relacionados a física dos corpos terrestres, mas o abandono de uma completa visão de mundo, ancorada em concepções filosóficas extremamente abrangentes. Uma transformação dessa magnitude não foi, e dificilmente poderia ter sido, o resultado do pensamento de um só autor.

2. A física aristotélica e a crítica nominalista

A primeira coisa a ser dita a respeito da física de Aristóteles é que era um elemento integrante de um sistema de pensamento extremamente abrangente e articulado. Não se pode compreendê-la de forma isolada, desconhecendo as suas relações com a metafísica e a cosmologia aristotélicas, assim como tampouco se pode compreender esta última sem se analisarem fundamentos metafísicos de que está embebida. Ao contrário da física moderna, de natureza eminentemente quantitativa, a física de Aristotéles era uma ciência qualitativa, designando o estudo da realidade que pode ser percebida pelos sentidos. Acompanhando G. Reale, poderíamos dizer que é antes uma "metafísica do sensível"[2].

O Universo aristotélico era um Universo finito, limitado por uma esfera, centrada na Terra e à qual estavam presas as estrelas [3]. Este Universo dividiase em um mundo chamado sublunar, formado por uma matéria sujeita a processos de transformação e, segundo Aristóteles, composta pelos elementos terra, fogo, ar e água, e um mundo chamado supralunar, composto por matéria imutável em sua natureza, denominada éter ou quintessência, e da qual eram formados os corpos celestes. No mundo sublunar, os elementos água, ar e fogo tendiam, nesta ordem, que reflete o seu grau decrescente de peso e aumento do que Aristóteles chamava de leveza, a se organizar em camadas concêntricas em torno da Terra, constituída pelo elemento de mesmo nome. Este Cosmos apresentava, portanto, um caráter de rígido ordenamento, fundado em critérios de natureza metafísica.

Um aspecto extremamente importante da filosofia de Aristóteles é constituído pela idéia de movimento. Para Aristóteles, movimento não era entendido apenas como deslocamento físico, mas, de forma mais ampla, como mudança, de que os deslocamentos físicos eram tão somente um caso específico. Assim, o conceito aristotélico de movimento englobava também os processos de nascimento (geração), de transformação e de morte (corrupção). Entretanto, segundo Aristóteles, toda mudança (movimento) possuía necessariamente uma causa. Tomemos, por exemplo, o processo de crescimento de um ser vivo. A causa desse movimento é a essência desse ser, que faz com que sua evolução se opere de uma forma bem determinada e não de uma outra qualquer. Do mesmo modo, se os corpos terrestres caem em direção à Terra é porque tendem a ocupar o lugar que lhes cabe na estrutura cósmica ordenada; o elemento terra de que são preponderantemente feitos, por ser mais pesado do que os demais, tende a ocupar o centro do Universo. Assim se explicava, de forma imediata, a questão da queda dos corpos nas proximidades do planeta. Já o fogo, pela sua leveza, tende a subir, buscando a camada mais externa do mundo terrestre. Estes movimentos são, portanto, justamente determinados pela natureza dos seres e, assim, são chamados movimentos "naturais". Um elemento que lhes é característico é o de que ocorrem em direção a um fim claramente identificável.

Entretanto, para Aristóteles, paralelamente aos movimentos cuja explicação podia ser encontrada na própria natureza dos seres, existiam movimentos que não eram conformes a essa natureza. Segundo ele, estes movimentos, cujas causas não eram intrínsecas aos móveis, jamais ocorriam espontaneamente; exigiam a atuação de uma força, exercida de fora por algum outro corpo. Eram, portanto, chamados de forçados ou violentos. Tão logo cessava esta força, estes movimentos se extinguiam. A existência desses movimentos fazia com que o ordenamento do Cosmos não fosse completamente estático. No mundo sublunar os fenômenos físicos se sucediam, com o resultado, muitas vezes, de que os elementos eram deslocados de seus lugares naturais, em movimentos violentos. Contudo, uma vez desaparecida a causa destes movimentos, os corpos, deixados por si, espontaneamente realizavam movimentos (agora naturais) em direção ao lugar que lhes era adequado na estrutura hierarquicamente ordenada do Universo. O exemplo mais característico dessa situação era fornecido pelo lançamento para cima de um objeto qualquer. Sendo feito de matéria pesada (terra), o movimento natural desse objeto seria o de buscar a aproximação com o centro do Universo, e, deste modo, com a superfície da Terra. Portanto, o movimento de subida, ou seja, de afastamento da Terra, era um movimento anti-natural; sua causa não poderia ser buscada na forma do próprio ser, mas lhe era exterior. Para Aristóteles, essa causa era fornecida pela força exercida pelo lançador, no ato de lançamento. Entretanto, Restava explicar a continuidade desse movimento, sem que o objeto lançado caia imediatamente em direção ao centro da Terra, em um movimento conforme a sua natureza, tal como seria de se esperar, pela aplicação imediata do próprio pensamento aristotélico. Aristóteles respondeu a essa questão atribuindo a continuidade do movimento à força exercida pelo ar através do qual o objeto se lançava, empurrando este objeto.

Na verdade, o problema do lançamento de um corpo se tornou, muito tempo mais tarde, já no fim da Idade Média, um dos mais fortes pontos de ataque à física aristotélica. Para o franciscano inglês Guilherme de Ockham, no século XIV, a explicação dada por Aristóteles era insustentável. Segundo Ockham, de fato, a partir do momento em que o lançador perde o contato com o objeto, deixa de ser causa de seu movimento. Para prová-lo bastaria que lembrássemos que, mesmo que o lançador desaparecesse, o movimento não cessaria. Portanto, o movimento do objeto lançado não poderia mais ser atribuído ao lançador. Porém, segundo Ockham, tampouco o ar pode ser o responsável pelo movimento do objeto, com base no seguinte argumento: suponhamos que dois arqueiros disparem cada um deles uma flecha e que essas se cruzem em um dado ponto da atmosfera. Chegaríamos a uma contradição lógica sendo obrigados a concluir que aquela mesma porção de ar, situada naquele ponto, se desloca de duas formas diferentes, impulsionando cada uma das duas flechas de modo distinto. Diante disso, a solução proposta por Ockham consistiu em afirmar que o corpo em movimento se move por simples continuidade de seu movimento, ou seja, uma vez que está em movimento, continua a se mover.

Por conseguinte, digo que, nesse movimento que ocorre apesar da separação do objeto móvel em relação ao primeiro projetante, o princípio de tal movimento local é a própria coisa movida, por si mesma, e não por força absoluta nela existente ou força relativa, de modo que o movente e a coisa movida são absolutamente indistintos. [4]

A filosofia de Ockham se transmitiu aos estudiosos da Universidade de Paris [5]. Entretanto, seus adeptos recuaram diante da radicalidade da solução para a continuidade do movimento por ele proposta. Em seu lugar, Jean Buridan formulou a idéia de que, no ato de lançamento, o lançador "imprime" no objeto lançado algo que ele chamou de uma "virtude", e que seria uma tendência a continuar o movimento inicial. Essa tendência adquirida pelo objeto, denominada "impetus", seria responsável pela continuidade de seu movimento. No entanto, a gravidade e a resistência do meio em que o objeto se move vão destruindo esse "impetus", fazendo com que o movimento diminua até cessar por completo, em sua forma original, assumindo, a partir daí, a forma natural de queda, em razão de seu peso.

3. A hipótese heliocêntrica de Copérnico e o conflito com a física de Aristóteles

A crítica nominalista à concepção aristotélica dos movimentos forçados, exemplificada de maneira paradigmática no problema dos lançamentos verticais e oblíquos dos corpos, atingiu perifericamente a física do filósofo. Mantinha-se o princípio básico da existência, necessária ao movimento, de uma causa, transferindo-a, porém, através da noção de uma tendência comunicada ao objeto, do exterior para o "interior" dos corpos em movimento.

Não foi, no entanto, apenas um questionamento periférico aquele introduzido pela obra de Nicolau Copérnico [6]. A hipótese heliocêntrica copernicana feriu o coração do pensamento físico-cosmológico de Aristóteles. Embora Copérnico tenha preservado muito da concepção cosmológica de Aristóteles, por exemplo, a finitude do Universo, o abandono do caráter geocêntrico do modelo cosmológico comprometia bastante a unidade tão característica do pensamento aristotélico, pelas implicações que apresentava.

A física aristotélica perdia boa parte da força de sua coerência em face da idéia de uma Terra excêntrica e em movimento. Por exemplo, a explicação da queda dos corpos na superfície terrestre baseava-se, como dissemos, no princípio de que todos os corpos buscavam o lugar que lhes era natural na estrutura cósmica; sendo formados do elemento pesado terra, o lugar adequado a sua natureza era o centro do Universo, onde se posicionava a Terra. Assim, ao realizarem essa tendência que lhes era inerente, convergiam para a posição terrestre. Se a Terra já não estivesse mais localizada no centro do Universo, este argumento estaria evidentemente comprometido.

As principais objeções apresentadas pelos defensores do aristotelismo contra a hipótese heliocêntrica de Copérnico foram as mesmas já levantadas contra as idéias da Terra em movimento propostas durante a antiguidade grega por Pitágoras, Aristarco de Samos e Heráclides [7]. Relacionavam-se à questão de como o movimento da Terra afetaria os fenômenos físicos que presenciamos em nosso planeta, como, por exemplo, o da queda de um corpo abandonado de uma altura suficientemente grande. De acordo com a doutrina aristotélica, se a Terra se movesse, um corpo abandonado do alto de uma torre não cairia na base dessa torre e sim em um ponto um pouco afastado dela, uma vez que, durante o tempo de queda, a própria torre, solidária à Terra, teria se movimentado. Os seguidores do aristotelismo também argumentavam que, caso a Terra se movesse, tudo o que não fosse unido a ela, como por exemplo a atmosfera e as nuvens, seria deixado para trás, o que absolutamente não era um fato. Também apresentavam o questionamento de que, tal como uma "funda" em rotação com velocidade suficientemente grande arremessa uma pedra, a distância também a Terra em movimento circular "arremessaria" os corpos situados sobre sua superfície e talvez provocasse a sua própria desintegração. Vemos, assim, como a astronomia e a física se entrelaçavam em suas implicações recíprocas.

Posto diante dessas objeções, a elas respondeu Copérnico com argumentos parcialmente físicos e metafísicos. Em primeiro lugar, rebateu a idéia de que a Terra em movimento provocaria o lançamento e a instabilidade dos corpos em sua superfície utilizando-se de um argumento bastante familiar à filosofia aristotélica: o movimento circular descrito pela Terra é um movimento natural, como o dos demais planetas. Pensar que um movimento natural, isto é, conforme à natureza do corpo móvel, poderia produzir a sua desintegração seria uma contradição em si. Por outro lado, os corpos situados sobre a Terra ou de algum modo a ela afiliados compartilham de sua tendência natural ao movimento circular. Assim, o "sistema" terrestre se move em conjunto; as nuvens, a atmosfera, objetos apoiados na superfície da Terra acompanham o seu movimento, em razão de uma "afinidade" de essências que possuem com o planeta. Por este motivo, não são deixados para trás. Pelo mesmo motivo, mesmo que a Terra se mova, uma pedra abandonada do alto de uma torre tende a acompanhar o movimento terrestre e não cai em um ponto afastado da base. Copérnico introduz nesse argumento o princípio de que, compartilhando o objeto do movimento natural da Terra, esse movimento não será perceptível para ele. Em outras palavras, para ele é como se a Terra estivesse parada e a queda em direção ao centro ocorre da mesma maneira que ocorreria em um Universo geocêntrico.

4. A introdução do conceito de sistema mecânico com Giordano Bruno

Um passo importante neste desenvolvimento em direção a uma nova física foi dado por Giordano Bruno [8]. Adepto entusiasmado da hipótese copernicana, Giordano Bruno defrontou-se com as mesmas objeções apresentadas èia da Terra em movimento jéna idá frentadas por Copérnico. A elas respondeu na linha de Copérnico, porém introduzindo modificações importantíssimas para o desenvolvimento posterior da mecânica. Mantinha-se a base do argumento de Copérnico de que os corpos ligados à Terra compartilhavam seu movimento e, assim, para eles, esse movimento era imperceptível. Entretanto, Giordano Bruno substituiu a razão metafísica desse compartilhamento, devido a uma "afinidade" de naturezas, por uma razão puramente mecânica, baseada na teoria do impetus.

Para tanto, Giordano Bruno propôs uma analogia entre o problema da queda de um corpo nas proximidades da Terra e o da queda de um corpo em um navio em movimento. Se um objeto for lançado para cima por alguém posicionado em um navio em movimento, desde que o navio não se movimente de maneira irregular, a pessoa que lançou o objeto o receberá de volta. A experiência comprova a afirmação, da mesma forma que atestamos que isso também ocorre em terra firme. Portanto, para Bruno, a ocorrência do fato não desmente a possibilidade de movimento da estrutura onde se realiza a experiência. Neste ponto concorda com Copérnico: a experiência transcorre como se a estrutura onde se realiza estivesse em repouso, porque os objetos lançados ou abandonados compartilham do movimento dessa estrutura, a partir da qual foram lançados ou abandonados. Porém, divergindo de Copérnico, não explica essa movimento compartilhado em termos de uma "afinidade", mas simplesmente por um pertencimento mecânico a um sistema em movimento. Para Giordano Bruno, o sistema a partir do qual o objeto foi lançado ou abandonado comunica a esse objeto um "impetus", que faz com que ele tenda a continuar se movimentando com o sistema. Existe, portanto, uma "solidariedade" mecânica e não metafísica entre os corpos e as estruturas de onde partem.

A partir dessa linha de pensamento, Bruno investe contra a concepção aristotélica do movimento, aplicada ao deslocamento físico. Conforme salientamos, segundo Aristóteles, os corpos possuem um lugar no Cosmos adequado a suas naturezas. O movimento natural se dá quando, tendo sido deslocados dessas posições, tendem a retornar a elas. Logo, esse deslocamento é algo que diz respeito à natureza do corpo e às posições de onde parte e para onde vai. Em franco confronto com essa concepção, Giordano Bruno propôs a seguinte questão: suponhamos dois homens, um dentro de um barco em movimento, próximo a um cais, e outro situado sobre esse cais. suponhamos que, segurando cada qual uma pedra, ambos estiquem os braços e consigam, com esse gesto, tocar as suas mãos. Assim sendo, imaginemos que ambos deixem cair simultaneamente as pedras que seguram. Qual o movimento que cada pedra descreverá? A resposta de Bruno é que cada uma descreverá um movimento diferente: embora ambas tenham sido largadas do mesmo ponto, não terminarão na mesma posição. De fato, a pedra abandonada pelo homem situado no barco em movimento recebe desse barco um impetus, que fará com que se mova para frente, como o barco o fazia no momento em que foi abandonada, e como continua a fazer. Assim sendo, realizará simultaneamente dois movimentos: para a frente e para baixo (de queda). Já a pedra abandonada pelo homem no cais não recebe o impetus de se mover à frente e, deste modo, cai normalmente, em linha vertical. Identifica-se, portanto, nesse problema dois sistemas mecânicos, do navio e do cais, e os movimentos dos objetos apresentarão diferenças entre eles, conforme os objetos pertençam inicialmente a um ou a outro sistema. Esta conclusão seria completamente absurda do ponto de vista aristotélico, pois, como vimos, o movimento de queda é um movimento natural, dependendo apenas da natureza do objeto e de sua adequação ao lugar. E algo absoluto; jamais poderia depender das circunstâncias em que ocorre (no nosso exemplo, a partir do navio ou de terra firme). A mecânica começava a adquirir com esse desenvolvimento uma feição absolutamente nova.

5. Galileu

Como dissemos, a idéia da inércia nasceu intimamente ligada ao problema, inicialmente astronômico e em seguida cosmológico, do conflito entre o heliocentrismo e o geocentrismo. Embora não se possa dizer de forma incontestável que Galileu tenha elaborado o conceito de inércia unicamente em vista de sua adesão fervorosa à tese copernicana, certamente a solução dos problemas suscitados pela hipótese do movimento da Terra representou uma forte motivação para esta elaboração.

Vimos que as principais objeções contra a hipótese da Terra em movimento se concentravam nos efeitos desse movimento sobre os corpos terrestres. A resposta dada por Galileu a esses questionamentos constituiu um avanço extraordinário no desenvolvimento da física nascente.

Em primeiro lugar, Galileu adotou a idéia, já expressa por Giordano Bruno e subentendida por Copérnico, de que os movimentos de um corpo não são perceptíveis por qualquer outro corpo que o compartilhe. Em outras palavras, Galileu incorporou o conceito de relatividade do movimento, formulando-o, em forma de princípio, na sua famosa obra intitulada Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo: Ptolomaico e Copernicano, através de seu personagem Salviati. Em primeiro lugar, Galileu o fez especificamente em relação ao movimento terrestre

Salviati

- Seja, portanto, o princípio de nossa contemplação o considerar que, qualquer que seja o movimento atribuído à Terra, e necessário para nós como, habitantes daquela e consequentemente partícipes do mesmo, que ele fique totalmente imperceptível e como se não fosse, enquanto considerarmos unicamente as coisas terrestres. [12]

e, em seguida, de modo muito mais geral, dando-lhe uma forma definitiva

Salviati

- O movimento é movimento e como movimento opera, enquanto tem relação com coisas que carecem dele; mas entre as coisas que participam todas igualmente dele, nada opera e é como se ele não fosse. [13],

ou ainda

Salviati -

Sendo, portanto, evidente que o movimento, que seja comum a muitos móveis, é ocioso e como que nulo no que se refere à relação desses móveis entre si, pois que entre eles nada muda, e somente é operativo na relação que esses móveis têm com outros que não possuem aquele movimento, entre os quais se muda a disposição. [14]

Este princípio, em realidade, exigia um outro, qual seja, o de que, se é verdade que alguns movimentos são resultado da combinação de dois outros movimentos, executados simultaneamente, cada um desses dois movimentos será completamente indiferente à ocorrência do outro. De fato, se qualquer um deles fosse influenciado pelo outro, jamais poderíamos dizer, segundo o princípio da relatividade enunciado acima, que, sob certas circunstâncias, algum deles seria imperceptível (não operativo). No mínimo, ele seria perceptível pela interferência que exerceria sobre o outro que ocorre simultaneamente a ele. Fica, portanto, estabelecido como complemento necessário o princípio da independência dos movimentos.

Assim, a solução para o problema da trajetória de um corpo em queda nas proximidades da superfície terrestre proposta por Galileu segue na linha já traçada por Giordano Bruno e Copérnico. Esse corpo, inicialmente solidário à Terra, mesmo depois de abandonado, compartilha do movimento do planeta. Desta forma, do "ponto de vista" do objeto, é como se a Terra não se movesse. Em relação ao sistema terrestre, sua queda ocorre ao longo da vertical, exatamente da maneira como ocorreria se o planeta estivesse parado. Entretanto, a explicação proposta por Galileu difere da de Giordano Bruno por um elemento decisivo: os corpos em queda mantinham paralelamente ao movimento vertical de queda um movimento igual ao do sistema de onde partiram, não porque recebessem daquele um impetus para tanto, mas apenas porque esse movimento simplesmente persistia inercialmente. Galileu desenvolvia assim o conceito fundamental da inércia.

Em sua já citada obra Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo: Ptolomaico e Copernicano, construída na forma de um diálogo quase pedagógico, de inspiração socrática, Galileu apresentou um argumento poderoso em favor da idéia da persistência inercial do movimento. Através de seus personagens, Salviati e Simplício, Galileu expõe o debate entre o novo pensamento científico, representado pelo primeiro, e o pensamento aristotélico, na voz do segundo. Salviati propõe a Simplício a questão de como se dará o movimento, livre de resistências, de um corpo, como por exemplo uma esfera, sobre um plano inclinado. Conforme a experiência nos indica, o movimento de subida do corpo pelo plano se dará de forma desacelerada, até que o corpo pare por completo. Já no caso de um movimento de descida sobre o plano, a velocidade do corpo aumentará indefinidamente. A conclusão de Salviati emerge da pergunta seguinte: se o corpo ao subir sobre o plano tem sua velocidade diminuída até zero e ao descer sobre o mesmo plano tem sua velocidade aumentada indefinidamente, tão mais lentamente quanto menor for a inclinação do plano, o que ocorreria se não houvesse inclinação alguma? A resposta imposta a Simplício é a de que o movimento continuaria indefinidamente, sem qualquer alteração na velocidade, seja de diminuição ou de aumento.

Salviati : - Não desejo que digais ou respondais nada saber a não ser aquelas coisas que seguramente sabeis. Por isso, dizei-me: quando tivésseis uma superfície plana, polidíssima como um espelho e de matéria dura como o aço, e que não fosse paralela ao horizonte, mas um pouco inclinada, e sobre o qual se colocasse uma bola perfeitamente esférica e de matéria pesada e duríssima, como, por exemplo, de bronze, deixada em liberdade, o que acreditais que ela faria? Não acreditais (assim como eu) que ela ficasse parada?

Simplício: - Se aquela superfície fosse inclinada?

Salviati: - Sim, porque assim o supus.

Simplício: - Não acredito de modo algum que ela ficasse parada; ao contrário, estou perfeitamente seguro de que ela se moveria espontaneamente na direção do declive. (...)

Salviati - E qual seria a duração do movimento daquela bola, e com que velocidade? Notai que me referi a uma bola perfeitissimamente redonda e a um plano perfeitamente polido, para remover todos os impedimentos externos e acidentais. E assim também quero que seja abstraído o impedimento do ar mediante a sua resistência a ser aberto, e todos os outos obstáculos acidentais, se outros pudessem existir.

Simplício: - Compreendi tudo perfeitamente: quanto a vossa pergunta, respondo que ela continuaria a mover-se ao infinito, se tanto durasse a inclinação do plano, e com um movimento continuamente acelerado; (...)

Salviati: - Mas se outros quisessem que aquela bola se movesse para cima sobre aquela mesma superfície, acreditais que ela subiria?

Simplício: - Espontaneamente não, mas só arrastada ou lançada com violência.

Salviati: - E quando ela fosse impelida por algum ímpeto que lhe fosse violentamente impresso, qual e quanto seria o seu movimento?

Simplício: O movimento iria sempre enfraquecendo e retardando-se, por ser contra a natureza, e seria mais demorado ou mais breve, segundo o maior ou menor impulso e segundo o maior ou menor aclive.

Salviati: - Parece-me, portanto, até aqui, que vós me haveis explicado os acidentes de um móvel sobre os dois planos diferentes; e que no plano inclinado o móvel pesado espontaneamente desce e vai continuamente acelerando-se, e, que, para retê-lo em repouso, é necessário usar força; mas sobre o plano ascendente é necessário força e também para pará-lo, e que o movimento que lhe foi impresso vai continuamente enfraquecendo, até que finalmente se anula. Dizeis ainda mais que em um e em outro caso nasce uma diferença dependendo de se a declividade ou aclividade do plano for maior ou menor; de modo que a uma inclinação maior corresponde uma maior velocidade e, ao contrário, sobre o plano em aclive o mesmo móvel lançado pela mesma força move-se uma distância maior quanto menor seja a elevação. Dizei-me aora o que aconteceria com o mesmo móvel sobre uma superfície que não estivesse nem em aclive nem em declive.

Simplício: - (...) Como não existe declividade, não pode existir uma inclinação natural ao movimento e, não existindo aclividade, não pode existir resistência a ser movido, de modo que seria indiferente à propensão e à resistência ao movimento: parece-me, portanto, que le deveria ficar naturalmente em repouso.

Salviati: - Assim acredito, quando alguém o colocasse parado; mas se lhe fosse dado um ímpeto em direção a alguma parte, o que aconteceria?

Simplício: - Continuaria a mover-se na direção daquela parte.

Salviati: - Mas com que espécie de movimento? Por um movimento continuamente acelerado, como nos planos em declive, ou por um movimento sucessivamente retardado, como nos aclives?

Simplício: - Eu não consigo perceber causa de aceleração nem de retardamento, não existindo nem declividade nem aclividade.

Salviati: - Sim. Mas se não existisse causa de retardamento, muito menos deveria existir de repouso: quanto acreditais, portanto, que duraria o movimento do móvel?

Simplício: -Tanto quanto durasse o comprimento daquela superfície que não é nem subida nem descida.

Salviati: - Portanto, se esse espaço fosse ilimitado, o movimento nele seria igualmente sem fim, ou seja perpétuo?

Simplício: - Parece-me que sim, sempre quando o móvel fosse de matéria duradoura. [15]

Está, pois, apresentada a idéia de inércia, entendida como a persistência do movimento, sem dimunuição nem aumento de sua velocidade. Entretanto, o argumento apresentado por Galileu se fundamenta na gravidade, que para ele constituía uma tendência natural dos corpos de cair em direção ao centro da Terra. O movimento de subida de um corpo por um plano inclinado é, segundo Galileu, desacelerado porque o corpo, ao executá-lo, se afasta do centro da Terra, realizando um movimento contrário a sua tendência natural de queda. Pelo contrário, o movimento de descida é acelerado porque coincide com a tendência de queda natural do corpo "grave". Quando tomamos um plano horizontal, essa tendência não é nem contrariada nem favorecida, de modo que Galileu concluiu que a velocidade do movimento não deveria aumentar nem diminuir. Contudo, se refletirmos com cuidado, veremos que este plano horizontal será tangente à superfície da Terra. Na verdade, ao percorrê-lo, um corpo se afastaria fatalmente do centro da esfera (Terra) à qual o plano é tangente e assim realizaria um movimento contrário a sua tendência natural de aproximação do centro. Por conseguinte, um tal movimento não poderia se executar com velocidade constante. Em realidade, o movimento que poderia se realizar com velocidade constante, pois não se configura nem como uma violência à tendência natural de aproximação do centro, nem tampouco em uma consumação desta tendência, seria um movimento que mantivesse uma distância fixa do centro do planeta, ou seja, um arco de circunferência concêntrico com a Terra. O verdadeiro movimento uniforme, dotado de uma tendência inercial à continuidade, e, para Galileu, o movimento circular uniforme. Ele o diz expressamente ao longo do Diálogo:

Salviati:

- Estabelecido, portanto, este princípio, pode-se imediatamente concluir que, se os corpos integrais do mundo devem ser por sua natureza móveis, é impossível que seus movimentos sejam retos ou diferentes dos circulares; (...) Além disso, sendo o movimento reto por natureza infinito, porque infinita e indeterminada é a linha reta, é impossível que móvel algum tenha por natureza o princípio de mover-se pela linha reta, ou seja, para aonde é impossível chegar, inexistindo um término prederminado. E a natureza, como afirma com propriedade o próprio Aristóteles, não se propõe fazer o que não pode ser feito, nem empreende o movimento para onde é impossível chegar. E se, ainda assim, alguém disser que, embora a linha reta, e consequentemente o movimento sobre ela, seja produtível ao infinito ou seja indeterminada, todavia a natureza atribui-lhe, por assim dizer, arbitrariamente alguns términos e dá instintos naturais a seus corpos naturais para que se movam em direção a eles, responderei que isso talvez se pudesse imaginar ter ocorrido no primeiro caos, onde confusa e desordenadamente vagavam matérias indistintas, para cuja ordenação a natureza se tivesse muito adequadamente servido dos movimentos retos, os quais , assim como movendo os corpos bem constituídos, os desordenam, assim também são apropriados a bem ordenar os confusamente dispostos; contudo, depois da ótima distribuição e disposição é impossível que fique neles uma inclinação natural de ainda moverem-se com movimento reto, do qual agora somente se seguiria o afastarem-se os corpos do lugar próprio e natural, ou seja desordenarem-se. [16]

e também

Salviati:

Este (o movimento circular), sendo um movimento que faz com que o móvel sempre parta do término e sempre chegue no término, pode, em primeiro lugar, somente ele ser uniforme. [17]

ou ainda

Salviati:

- (...) Mas o movimento pela linha horizontal, que não é aclive nem declive, é movimento circular em torno do centro: o movimento circular, portanto, nunca será adquirido naturalmente, sem o precedente movimento reto, mas uma vez adquirido, ele continuará perpetuamente com velocidade uniforme. [18]

Portanto, para Galileu, a persistência de um movimento retilíneo, sem alteração de velocidade, é inconciliável com a gravidade. A uniformidade é ainda atributo da perfeição circular.

Vemos aqui a formulação da idéia da persistência inercial do movimento. No entanto, esta idéia ainda não adquire a forma acabada pela qual a compreendemos, como a persistência uniforme do movimento retilíneo, em razão da gravidade. Galileu não deu o ultimo passo de abstração em direção à formulação definitiva do princípio: como seria o movimento de um corpo livre da influência da gravidade? Pela lógica de sua argumentação, só caberia uma única resposta: uniformemente retilíneo. No entanto, esta resposta, na impossibilidade da colocação inequívoca da questão, ele não a deu. Galileu aparentemente não foi capaz de conceber abstratamente a eliminação da gravidade, porque para ele esta ainda constituía uma tendência do corpo e não algo que atuasse sobre ele a partir de fora. Não havia ainda se concluído o processo de exteriorização das causas determinantes do movimento. [1]. Esta etapa só é plenamente cumprida com o pensamento de Descartes.

6. Descartes

O pensamento de René Descartes é de caráter racionalista. Para ele, o conhecimento se obtém de uma forma dedutiva, a partir de certas idéias, por si evidentes, já presentes no intelecto humano e não adquiridas através da experiência. A dúvida metódica cartesiana faz tábula rasa de todo conhecimento anterior transmitido, em favor de uma reconstrução desse conhecimento, agora assentado sobre a certeza das verdades simples. Assim, portanto, é a ciência cartesiana, construída sobre princípios básicos, cuja validade é garantida independentemente de qualquer dado experimental. Entre os princípios básicos de sua física, Descartes situou o princípio da inércia, tal como o concebemos hoje.

Para Descartes, a matéria possuía apenas um atributo, a extensão. Toda determinação de caráter qualitativo, como por exemplo cor, sabor, som, ficava reduzida a mera impressão subjetiva, fornecida pelos nossos sentidos, dizendo respeito, pois, à forma como percebemos os objetos, em suas dimensões e seus movimentos, e não aos objetos em si mesmos. Neste universo material completamente desprovido de elementos qualitativos ficava, portanto, definitivamente eliminada a noção de tendências inerentes aos corpos, capazes de determinar o curso dos fenômenos. No universo cartesiano, os fenômenos materiais eram ditados exclusivamente por causas mecânicas: as colisões entre os corpos. Nas palavras de Koyré, a física cartesiana é a física das colisões, enquanto a física de Galileu é a física da gravidade e a de Newton será a da força [1].

Em sua obra intitulada Princípios de Filosofia, Descartes estabelece os princípios básicos de sua física, entre os quais:

Como Deus não está sujeito a mudanças, agindo sempre da mesma maneira, podemos chegar ao conhecimento de certas regras a que chamo as leis da natureza, e que são as causas segundas, particulares, dos diversos movimentos que observamos em todos os corpos, e daí a importância dessas leis. A primeira é que cada coisa particular, enquanto simples e indivisa, se conserva o mais possível e nunca muda a não ser por causas externas. Por conseguinte, se uma parte da matéria é quadrada, ela permanecerá assim se nada vier a alterar a sua figura; e se estiver em repouso, nunca se moverá por si mesma. Mas, uma vez posta em andamento, também não podemos pensar que ela possa deixar de se mover com a mesma força enquanto não encontrar nada que atrase ou detenha o seu movimento. De modo que, se um corpo começou a mover-se, devemos concluir que continuará sempre em movimento, e que nunca parará por si próprio. [19]

e, continuando,

A segunda lei que observo na natureza é que cada parte da matéria, considerada em si mesma, nunca tende a continuar o seu movimento em linha curva mas sim em linha reta, embora muitas dessas partes sejam muitas vezes obrigadas a desviar-se porque encontram outras no caminho, (...) Embora seja verdade que o movimento não acontece num instante, todavia é evidente que todo o corpo que se move está determinado a mover-se em linha reta e não circularmente. [20]

Neste ponto o princípio da inércia está definitivamente elaborado e enunciado.

Descartes fornece também os alicerces filosóficos para este novo princípio físico, reformulando o conceito de movimento. Para Aristóteles, como vimos, o movimento, quando natural, é um processo, levando de uma certa situação a um fim previamente determinado, e que se extingue tão logo este fim seja atingido. Já o movimento violento, ou seja, não natural, só se prolongará enquanto houver algum agente atuando para que ele ocorra. Com Descartes, o quadro se modifica completamente. Ele utiliza a palavra latina status, significando estado, para caracterizar o movimento. O termo estado, por si só, já traduz a idéia de permanência.

Cada coisa permanece no seu estado, se nada o alterar; assim, aquilo que uma vez foi posto em movimento continuará sempre a mover-se. [21]

Segundo Koyré:

Descartes tem perfeitamente razão: seu movimento-estado, o movimento da física clássica, não possui nada em comum com o movimento-processo de Aristóteles e da Escolástica. E eis a razão pela qual eles obedecem, no seu ser, a leis perfeitamente diferentes: enquanto no Cosmos bem ordenado de Aristóteles o movimento-processo tem, de maneira evidente, necessidade de uma causa que o mantenha, no mundo-extensão de Descartes, o movimento se mantém, evidentemente, por ele mesmo, e prossegue indefinidamente no infinito do espaço plenamente geometrizado que a filosofia cartesiana abriu diante dele. [22]

Aquilo que para o sistema aristotélico era absurdo, a continuidade indefinida do movimento, desprovida de qualquer fim pré-determinado, se torna uma realidade no pensamento cartesiano. O desenvolvimento da física nascente exigiu como seu correlato a completa superação da filosofia aristotélica.

7. Conclusão

A formação da idéia de inércia exigiu uma completa reformulação do pensamento humano, com o abandono da visão de mundo aristotélica, caracterizada exatamente por sua integração a um sistema de pensamento extremamente abrangente e articulado. A revolução astronômica, desencadeada por Copérnico, se propagou de maneira irresistível para os demais ramos do conhecimento científico, promovendo o desmonte da ciência aristotélica. A partir de sua nova astronomia, Copérnico se viu confrontado com questões decorrentes da adoção de sua hipótese heliocêntrica, que requeriam uma transformação correlata na física, ainda mais profunda do que a simples substituição da centralidade terrestre pela idéia de um planeta móvel como os demais. Na busca de respostas para esses problemas, Copérnico empregou a idéia de que os objetos terrestres acompanham o movimento do planeta, por uma afinidade metafísica de essências, e que, deste modo, este movimento, não sendo um movimento relativo, não é percebido pelas partes envolvidas.

Com Giordano Bruno o problema abandona a esfera metafísica e se torna um problema puramente físico: os objetos passam a pertencer a um sistema mecânico e quando dele se desligam herdam o movimento desse sistema ao qual estavam ligados, na forma de um impetus. Novamente a explicação da queda dos corpos em trajetórias verticais, mesmo em relação a uma Terra em movimento, se baseava no fato de que este movimento não seria perceptível, na medida em que era compartilhado pelos corpos em queda.

Finalmente Galileu estabeleceu de forma clara a idéia da persistência do movimento, baseando-se na tendência dos corpos de, em razão da gravidade, se aproximarem do centro da Terra. Um movimento que provoque o afastamento do centro tenderia a se extinguir, pela ação contrária da gravidade. Já um movimento em que se produzisse uma aproximação do centro da Terra tenderia a se acentuar, pela ação favorável da gravidade. Através dessa análise, Galileu concluiu que o movimento cuja velocidade é inercialmente constante seria, para ele, o movimento circular.

Galileu não deu o ultimo passo de abstração, formulando a questão: como se moveriam os corpos na ausência de gravidade? Para ele, a gravidade se constituía em uma tendência inerente à matéria, de tal modo que sua eliminação exigiria a eliminação dos próprios corpos. Seria necessário que a idéia de gravidade evoluísse de uma tendência, agindo a partir de dentro, para uma atração, exercida a partir de fora.

Com a obra de Descartes, o processo de mecanização do movimento e de suas causas foi concluído. A matéria cartesiana reduzia-se a pura extensão geométrica, desprovida de qualquer tipo de qualidade ou tendência. Seus movimentos eram determinados por ações externas, eminentemente locais, na forma de colisões com outros corpos. Neste Universo já completamente geometrizado e mecanizado, poderia surgir com naturalidade a questão de como se moveriam os objetos caso não sofressem qualquer ação externa. Descartes sentenciou a resposta, na forma de um princípios fundamentais de sua física: o corpo persiste indefinidamente em seu movimento retilíneo, a menos que outros corpos o retirem do estado em que se encontra. Estava assim explicitamente formulado o princípio da inércia.

Referências

[1] A. Koyré, em Etudes Galiléennes (Hermann, Paris, 1966).

[2] G. Reale, História da Filosofia Antiga, v. 2 (Loyola, São Paulo, 1994).

[3] C.M.Porto e M.B.D.S.M. Porto, Revista Brasileira de Ensino de Física 30, 4601 (2008).

[4] G. Ockham, Reportatio, II, q. 26, apud S. Tomás de Aquino, Dante Alighieri, John Duns Scot e William of Ockham. Coleção os Pensadores, (Abril Cultural, São Paulo, 1973), 1a ed., p. 402.

[5] E. Gilson, A Filosofia na Idade Média (Martins Fontes, São Paulo, 1995); P. Duhem, Le Systéme du Monde (Hermann, Paris, 1958), t. VIII.

[6] N. Copérnico, Das Revoluções dos Orbes Celestes (Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984).

[7] T. Kuhn, A Revolução Copernicana (Edições 70, Lisboa, 2002).

[8] G. Bruno, La Cena de le Cenneri: Opere Italiane (Wagner, Lipsiae, 1830); G. Bruno, Acrotismus Camoerracensis: Opere Latina, Napoli, 1879.

[9] G. Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos (Madras, São Paulo, 2007).

[10] C. Bailey, The Greek Atomists and Epicurus (Claredon Press, Oxford, 1928); G. Reale, História da Filosofia Antiga (Loyola, São Paulo, 1994), v. 1.

[11] A. Koyré, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2006), 4a ed.

[12] Galileu Galilei, Diálogo sobre os dois Máximos Sistemas do Mundo Ptolomaico e Copernicano (Discurso Editorial-Imprensa Oficial, São Paulo, 2004), p. 194.

[13] Ibid., p. 196.

[14] Ibid., p. 197.

[15] Ibid., p. 226.

[16] Ibid., p. 99.

[17] Ibid., p. 112.

[18] Ibid., p. 109.

[19] R.Descartes, Princípios de Filosofia (Rideel, São Paulo, 2007), p. 78.

[20] Ibid., p. 78 e 79.

[21] Ibid., p. 77.

[22] A. Koyré, em Études Galiléennes (Hermann, Paris, 1966), p. 324.

Recebido em 4/11/08;

Revisado em 9/4/2009;

Aceito em 17/4/2009;

Publicado em 18/2/2010

  • [1] A. Koyré, em Etudes Galiléennes (Hermann, Paris, 1966).
  • [2] G. Reale, História da Filosofia Antiga, v. 2 (Loyola, São Paulo, 1994).
  • [3] C.M.Porto e M.B.D.S.M. Porto, Revista Brasileira de Ensino de Física 30, 4601 (2008).
  • [4] G. Ockham, Reportatio, II, q. 26, apud S. Tomás de Aquino, Dante Alighieri, John Duns Scot e William of Ockham. Coleção os Pensadores, (Abril Cultural, São Paulo, 1973), 1a ed., p. 402.
  • [5] E. Gilson, A Filosofia na Idade Média (Martins Fontes, São Paulo, 1995);
  • P. Duhem, Le Systéme du Monde (Hermann, Paris, 1958), t. VIII.
  • [6] N. Copérnico, Das Revoluções dos Orbes Celestes (Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984).
  • [7] T. Kuhn, A Revolução Copernicana (Edições 70, Lisboa, 2002).
  • [8] G. Bruno, La Cena de le Cenneri: Opere Italiane (Wagner, Lipsiae, 1830);
  • G. Bruno, Acrotismus Camoerracensis: Opere Latina, Napoli, 1879.
  • [9] G. Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos (Madras, São Paulo, 2007).
  • [10] C. Bailey, The Greek Atomists and Epicurus (Claredon Press, Oxford, 1928);
  • G. Reale, História da Filosofia Antiga (Loyola, São Paulo, 1994), v. 1.
  • [11] A. Koyré, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito (Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2006), 4a ed.
  • [12] Galileu Galilei, Diálogo sobre os dois Máximos Sistemas do Mundo Ptolomaico e Copernicano (Discurso Editorial-Imprensa Oficial, São Paulo, 2004), p. 194.
  • [19] R.Descartes, Princípios de Filosofia (Rideel, São Paulo, 2007), p. 78.
  • [22] A. Koyré, em Études Galiléennes (Hermann, Paris, 1966), p. 324.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      17 Abr 2009
    • Revisado
      09 Abr 2009
    • Recebido
      04 Nov 2008
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