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Um estudo de cinemática com câmara digital

A kinematics' study with a digital camera

Resumos

O recurso de múltiplas fotos, disponível na maioria das câmeras digitais populares, é aqui empregado na organização de uma situação de aprendizagem em cinemática. O foco deste trabalho é a transposição didática que pode advir de uma aprendizagem significativa; obtida através do envolvimento dos alunos na coleta, manipulação e interpretação dos dados, além da re-significação dada aos objetos do quotidiano. Para isso, é estudado o movimento de um automóvel, com base em dados retirados diretamente do velocímetro deste. A medida direta da distância percorrida é comparada com aquela obtida a partir da área de um gráfico v vs. t. As incertezas das medições são discutidas com base na lei de trânsito vigente

aprendizagem significativa; cinemática; situação de aprendizagem; transposição didática


The use of multiple photos, available in most popular digital cameras, is used here in the organization of a learning situation in kinematics. This work focuses the didactic transposition that could make a significant learning, achieved through the involvement of students in the collection, manipulation and interpretation of data, besides the re-signification given to objects of everyday life. The motion of a car is studied, on the basis on data taken directly from the speedometer. The direct measurement of distance is compared with that obtained from the area in a graphic v vs. t. Uncertainties of measurements are discussed on the basis of current traffic laws

significant learning; kinematics; learning situation; didactic transposition


PRODUTOS E MATERIAIS DIDÁTICOS

Um estudo de cinemática com câmara digital

A kinematics' study with a digital camera

Francisco Catelli1 1 E-mail: fcatelli@ucs.br. ; José Arthur Martins; Fernando Siqueira da Silva

Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, RS, Brasil

RESUMO

O recurso de múltiplas fotos, disponível na maioria das câmeras digitais populares, é aqui empregado na organização de uma situação de aprendizagem em cinemática. O foco deste trabalho é a transposição didática que pode advir de uma aprendizagem significativa; obtida através do envolvimento dos alunos na coleta, manipulação e interpretação dos dados, além da re-significação dada aos objetos do quotidiano. Para isso, é estudado o movimento de um automóvel, com base em dados retirados diretamente do velocímetro deste. A medida direta da distância percorrida é comparada com aquela obtida a partir da área de um gráfico v vs. t. As incertezas das medições são discutidas com base na lei de trânsito vigente.

Palavras-chave: aprendizagem significativa, cinemática, situação de aprendizagem, transposição didática.

ABSTRACT

The use of multiple photos, available in most popular digital cameras, is used here in the organization of a learning situation in kinematics. This work focuses the didactic transposition that could make a significant learning, achieved through the involvement of students in the collection, manipulation and interpretation of data, besides the re-signification given to objects of everyday life. The motion of a car is studied, on the basis on data taken directly from the speedometer. The direct measurement of distance is compared with that obtained from the area in a graphic v vs. t. Uncertainties of measurements are discussed on the basis of current traffic laws.

Keywords: significant learning, kinematics, learning situation, didactic transposition.

1. Introdução

É inevitável: em algum momento, ao longo de uma consulta a qualquer currículo de ensino médio, surgirá a cinemática. Junto com o estudo de movimentos retilíneos uniformes e acelerados, aparecerá também a invariável coleção de fórmulas e gráficos, e é aí que grande parte dos professores começa a detectar problemas de aprendizagem. Os de menção mais freqüente referem-se à falta de base matemática. "Os alunos não sabem operar com as fórmulas e gráficos" é a queixa recorrente. Outra reclamação comum refere-se à falta de interesse por parte dos alunos pelo conteúdo, ou se este aparece, o faz quase sempre associado a motivações extrínsecas, do tipo "estudar para o vestibular".

A lista de reclamações é extensa. A enumeração das prováveis causas destas mazelas, também. Uma destas causas foi escolhida para o desenvolvimento deste trabalho, pelo seu caráter emblemático: o abuso do ensino repetitivo, envolvendo soluções de grande quantidade de problemas, aos quais o estudante freqüentemente não associa nenhuma relevância. É do interior deste cenário, não muito alvissareiro, que é proposta aqui uma "organização de uma situação de aprendizagem".2 2 Ref. [1], ver especialmente o capítulo 1: "Organizar e dirigir situações de aprendizagem".

Esta organização, central para a prática docente, deve ser fundamentada no planejamento das atividades escolares. Segundo Vasconcellos [2], "planejar é antecipar mentalmente uma ação a ser realizada e agir de acordo com o previsto; é buscar fazer algo incrível, essencialmente humano: o real comandado pelo ideal". Assim, quando é realizado algum planejamento deve-se ter em mente a necessidade de querer mudar a realidade e acreditar na possibilidade dessa mudança, através da construção de competências significativas que possam orientar o aluno no seu exercício de cidadão. Para construir estas competências, ou seja, para desenvolver a "capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles" [1], é necessário que o educador possua subsídios que o orientem durante sua pratica pedagógica. Uma generosa fonte de tais subsídios, no que se refere ao ensino de física, são os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN, que sugerem a abordagem de temas estruturadores para a construção de aprendizagens significativas.

Segundo os PCN, o ensino de física deve deixar de concentrar-se na simples memorização de fórmulas ou repetição automatizada de procedimentos, em situações artificiais ou excessivamente abstratas, ganhando consciência de que é preciso dar-lhe um significado, explicitando seu sentido já no momento do aprendizado, no próprio ensino médio. A física deve apresentar-se, portanto, como um conjunto de competências específicas que permitam perceber e lidar com os fenômenos naturais e tecnológicos, presentes tanto no cotidiano mais imediato quanto na compreensão do universo distante, a partir de princípios, leis e modelos por ela construídos.

Os elementos aqui apresentados, visando esta organização de uma situação de aprendizagem, estão associados a uma atividade experimental de coleta de dados, e sua posterior interpretação e avaliação. Esta coleta (dados da velocidade de um automóvel em função do tempo) tem como ponto de partida o emprego de elementos do quotidiano do estudante, em vez do uso de equipamentos específicos de laboratório didático de física.

Usualmente, a construção de gráficos v vs. t a partir de dados experimentais só é possível com o concurso de equipamentos sofisticados, tais como equipamentos com fotocélula, detectores de movimento de ultra-som, polias informatizadas, e outros.3 3 Ver, por exemplo, os equipamentos informatizados listados em www.pasco.com. Há, entretanto, alguns problemas com este tipo de material. Um deles é evidente, e refere-se ao seu alto custo, bem como à infra-estrutura de informática necessária. Um outro problema, talvez mais sutil, refere-se à forma com a qual o estudante percebe tais equipamentos. É possível que ele os classifique da mesma forma que classifica as fórmulas e gráficos: "objetos" exclusivos do mundo da física. "O mundo real, ah, este é outra coisa!"

2. A técnica das fotos em seqüência

Com tudo isso em mente, passamos então a descrever a idéia central deste trabalho. O "objeto do mundo real" que fornecerá os elementos para este trabalho é um automóvel em movimento. Um estudante, sentado ao lado do motorista e munido de uma câmera fotográfica regulada no modo "burst" (esta regulagem será comentada a seguir), obtém múltiplas fotos do velocímetro de um carro enquanto este se move (Fig. 2). As imagens do velocímetro registram as sucessivas velocidades do automóvel, e o intervalo entre as fotos (constante, e intrínseco da própria câmara) fornece a base de tempo. Desta forma são obtidos os dados necessários para a construção, análise e interpretação de gráficos v vs. t, para movimentos acelerados.



3. Operação da câmera4 4 A operação em detalhes da câmara fotográfica em modo "burst", e seu uso para a determinação da aceleração de uma esfera em movimento num plano inclinado foi apresentada numa oficina do XIX Simpósio Nacional de Ensino de Física, em Vitória, ES, em janeiro de 2009, sob o título "Transforme uma câmara digital num laboratório de cinemática", apresentada pelos autores deste trabalho.

Praticamente toda a câmara digital (câmeras populares, não profissionais) possui uma função que permite a obtenção de fotos em seqüência, a chamada função "burst". Então, para começar, esta função deve ser localizada na câmera, através de seu manual, ou então através de uma busca, ou uma "navegação" pelos controles desta, até encontrá-la. Uma vez encontrada a função "burst", um teste pode ser feito: mantenha o botão disparador pressionado enquanto a câmara é movimentada. Várias fotos serão obtidas desta forma, em seqüência.5 5 O número máximo de fotos que pode ser obtido no modo "burst" varia de câmara para câmara. Nas mais recentes, o número de fotos em seqüência é bastante grande, algumas dezenas delas. Numa mesma câmara, este número pode variar, dependendo do desempenho do cartão de memória empregado. Por exemplo, a câmara com a qual foram feitas as fotos da Fig. 1 (Sony ® P150, um modelo lançado já há vários anos), munida de um cartão do tipo Magic Gate ® , produz um grande número de fotos em seqüência, de resolução igual a 1 M. Já a mesma câmara, munida do cartão original, mais lento, fornecerá apenas algumas fotos em seqüência. Um detalhe importante: o número de fotos vai depender das características da câmara; para esta atividade, uma resolução de imagem moderada, por exemplo, 1 Mega, é suficiente. Em algumas câmaras, esta resolução menor permitirá um maior número de fotos. Uma segunda informação importante: idealmente, a iluminação do objeto não deve variar significativamente ao longo da captura de múltiplas fotos. Além disso, a câmara deve ser mantida dentro do possível à mesma distância do objeto a fotografar. Tudo isto contribuirá para que o intervalo entre as fotos seja sempre o mesmo. Todo o procedimento de estudo e regulagem da câmara fotográfica pode ser feito pelos próprios alunos. Esta é seguramente uma forma de envolvê-los, permitindo (mais uma vez) que objetos do mundo deles (neste caso, a câmera fotográfica) "ingressem" no ambiente de sala de aula. O fato de o professor depender dos alunos para que o sucesso da aula seja atingido também é decisivo. Os alunos sabem disso, e invariavelmente tentam fazer seu trabalho da melhor maneira.

Mas qual o intervalo de tempo entre as fotos? É muito simples e até divertido medi-lo: basta uma seqüência de várias fotos de um cronômetro em funcionamento, ou de um relógio munido de ponteiro de segundos. Uma seqüência de quatro destas fotos aparece na Fig. 1. Cronômetros e relógios mecânicos são mais adequados para esta medição, visto que a leitura da posição do ponteiro na foto digital é mais nítida. Num cronômetro digital, nem sempre a leitura do dígito correspondente aos décimos de segundo é possível, provavelmente devido à velocidade de resposta do mostrador de LCD, que é baixa.

Um alerta: o ponteiro dos segundos do relógio mostrado na Fig. 1 movimenta-se "aos saltos", quer dizer, a cada segundo ele salta para a posição seguinte. Há então um risco: se forem colhidas poucas fotos, um erro sistemático poderá ser cometido. Pense no ponteiro dos segundos na posição 0, depois na posição 1 s, 2 s, 3 s, 4 s. Agora imagine que a câmara bata quatro fotos, em intervalos de 1,2 s, começando no instante de tempo igual a 0,2 s. A segunda foto ocorrerá no instante 1,4 s, a terceira, 2,6 s, e a quarta, em 3,8 s. Mas, ao analisar as fotos, veremos que a primeira, feita no instante 0,2 s, capturará o ponteiro dos segundos na posição 0 s, a segunda (feita no instante 1,4 s) capturará o ponteiro na posição 1 s, a terceira, na posição 2 s e a quarta, na posição 3 s. A simples análise visual das fotos sugerirá que o intervalo de tempo entre as fotos é de 1 s!

Há duas soluções simples para este problema. A primeira: use um cronômetro (ou relógio) no qual o ponteiro dos segundos se move de forma contínua, e não aos saltos. A segunda: se o ponteiro se mover aos saltos, obtenha uma grande coleção de fotos. Quanto maior a coleção de fotos, mais confiável é a medida. No exemplo dado acima, a cada 5 s haverá duas fotos em seqüência em que o ponteiro salta 2 segundos, ao invés de 1. Divida então o tempo total pelo número de intervalos, obtendo assim uma melhor aproximação.

Vamos agora às condições de movimento do carro que resultaram nas fotos do velocímetro, das quais foram retirados os dados numéricos apresentados neste trabalho. Na primeira série de fotos, o automóvel parte do repouso; a velocidade é aumentada (lentamente) até 19 km/h e mantida constante por algum tempo; a seguir a velocidade é reduzida até zero, ao final de um percurso de aproximadamente 70 metros. Um estudante, sentado ao lado do motorista, colhe uma seqüência de fotos do velocímetro, ao longo de todo o movimento. A Fig. 2 mostra quatro destas fotos. Na segunda seqüência de fotos, o percurso é repetido, desta vez com o carro atingindo uma velocidade maior, de 35 km/h. Como o percurso escolhido (o mesmo da passagem anterior) é relativamente curto, esta velocidade poderá ser mantida por pouco tempo. A Fig. 3 apresenta os gráficos v vs. t destas duas passagens, já com a velocidade expressa em metros por segundo.


Um aviso importante: é quase redundante lembrar aqui que a condução do automóvel deverá ser feita por pessoa habilitada, em local seguro. Devem também ser evitadas acelerações e freadas bruscas, visto que o intervalo entre as fotos é relativamente longo, e não capturará de forma precisa estas variações de velocidade.

4. Trabalhando com os dados obtidos

Os resultados obtidos num ensaio realizado pelos autores aparecem sumarizados no gráfico v vs. t da Fig. 3. O intervalo entre as fotos (quatro delas representadas na Fig. 1) é de 0,5 s. A resolução das fotos é de 1 M, e a câmara empregada, uma Sony P200®, regulada para o modo "burst". A velocidade, em km/h, obtida diretamente das fotos, foi convertida para m/s. Cabe aqui um comentário de cunho didático: esta não é uma decisão "burocrática", que obedece apenas ao desejo do professor. O tempo, em segundos, ditado pela taxa de disparos da câmara, tem que ser compatível com o tempo que aparece na unidade de velocidade. Se o professor julgar conveniente, alguma técnica de conversão de unidades pode ser explorada aqui.

Uma estratégia simples de visualização das imagens por todo o grupo de alunos pode ser a de conectar a câmara digital a um aparelho de TV, através de um cabo que acompanha a grande maioria das câmeras digitais. Se for almejada uma resolução de leitura das velocidades maior, a posição do ponteiro da velocidade pode ser determinada medindo com uma régua a distância que este se encontra da posição inicial, diretamente sobre a tela da TV. Sabendo qual a distância (também medida com a mesma régua) entre a posição inicial e a posição (por exemplo) 20 km/h, uma simples proporção fornecerá a leitura desejada. Os dados numéricos que geraram o gráfico da Fig. 3 foram obtidos desta maneira.

Uma vez que os estudantes tenham construído seus gráficos, toda uma "exposição dialogada" pode ser utilizada. Por exemplo: onde há uma evidência maior de movimento retilíneo uniforme? Ele acontece, aproximadamente, no intervalo de 4 s a 12 s no gráfico de menor velocidade. Neste intervalo, o ponteiro do velocímetro praticamente não se move. Esta observação pode parecer trivial, mas convém não esquecer que se trata de um "velocímetro de verdade" (para usar uma expressão dos próprios alunos) numa situação que seguramente é representativa, por pertencer ao quotidiano de todos os participantes.

Quais partes dos gráficos correspondem a movimentos acelerados? Convém ressaltar aos alunos do ensino médio que "acelerado" não significa aqui "pisar no acelerador". Significa "pisar no acelerador de modo que a velocidade aumente". Também vale "pisar no freio": neste caso trata-se de uma aceleração que implica na diminuição da velocidade ao longo do tempo passa. Se a "pressão no acelerador" for tal que a velocidade se mantenha constante, então será dito, de forma "erudita", que o movimento do carro implica em aceleração nula. Mas continuaremos "pisando no acelerador!". O leitor perceberá que esta riqueza de detalhes, este aperfeiçoamento do significado das palavras (neste caso, "aceleração") é muito mais natural e explícito num contexto como o descrito aqui. Pense nesta mesma "aula", usando apenas gráficos retirados do livro e exercícios repetitivos: para o leitor que está familiarizado, poderiam ser lembradas aqui as sutilezas da passagem do "saber sábio" ao "saber ensinado", na terminologia de Chevallard [3].

Onde a aceleração é constante? O intervalo de 0 s a 5 s, na curva de círculos claros (movimento mais rápido), representa-a bem. Parte da frenagem (intervalo de 7 s a 11 s nesta mesma curva) também é feita de forma razoavelmente constante.

Talvez um dos exercícios mais divertidos e curiosos seja o de calcular a distância percorrida pelo automóvel, a partir do gráfico v vs. t. Esta é uma ocasião um tanto especial, já que gráficos v vs. t realistas são - como dito acima - relativamente difíceis de obter experimentalmente. Ou, pelo menos, exigem um equipamento na maior parte das vezes inacessível, e por isso mesmo distante do quotidiano dos estudantes. A vantagem adicional, neste caso, é que é possível saber de antemão qual a distância percorrida, medindo-a diretamente com uma trena.

Uma palavra a respeito dos gráficos: este é um momento em que o professor decidirá como organizar sua situação de aprendizagem. Usualmente, os alunos construirão seus gráficos a mão, em papel quadriculado. A transformação de unidades, a seleção das escalas, a marcação dos pontos, são detalhes cuja exploração promove o desenvolvimento de habilidades diversas nos alunos. Há, modernamente, outras opções, que podem "coabitar" com a construção manual dos gráficos: o uso de programas informáticos. Estes programas permitam também, na maior parte dos casos, o cálculo com grande exatidão da área sob as curvas6 6 Uma possibilidade (entre muitas) é o uso do programa (livre) Br Office. Org Calc para a confecção destes gráficos. . Nossa opinião? Entre o traçado e o cálculo de áreas feito a mão, e o feito através de recursos informáticos a nossa sugestão é (se possível): escolha os dois! Nos resultados a seguir, são apresentadas as áreas calculadas de forma aproximada, bem como os resultados obtidos via programa informático. O leitor notará que os números finais são igualmente bons e convincentes, dentro da incerteza inerente ao método empregado.

5. Resultados obtidos

A distância, medida com trena, foi de (71 ± 1) m. A incerteza (estimada) de 1 m para mais ou para menos justifica-se pelo próprio processo de medida, no qual a trena, de comprimento total igual a 5 m foi usada numa seqüência de medições e marcações.

A mesma distância, obtida através da área do gráfico v vs. t correspondente à passagem mais rápida, obtida por programa informático, levou ao valor de 73 m (todos os valores daqui para a frente foram arredondados para valores inteiros). A mesma área, calculada "manualmente" através de áreas de triângulos e retângulos (Fig. 4), levou ao valor de 72 m.


Finalmente, a área correspondente à passagem de menor velocidade, obtida através da área do gráfico calculada por um programa informático, correspondente à velocidade mais baixa, levou ao valor de 67 m. O cálculo desta mesma área, feito manualmente (de maneira similar ao da Fig. 4), levou ao valor arredondado de 68 m.

Os valores das distâncias, obtidos através do cálculo das áreas, ficam por volta de 5% para mais e para menos, quando comparados com a medida direta, feita com trena. Ou seja, são resultados numéricos bastante convincentes.

Os estudantes, entretanto, criam frequentemente a expectativa de obtenção de resultados "exatos", ou quase isso. Nestas ocasiões é bastante educativo discutir com eles a questão das incertezas nas medidas. Para isso, poderíamos utilizar procedimentos padrão de cálculo de incertezas, mas isso não corresponderia em geral à realidade das escolas de ensino médio: para começar, não há em geral tempo disponível para isso. Mas podemos ser criativos. Para uma estimativa das incertezas das medidas acima, consideremos o que segue. As distâncias foram obtidas através de um produto da velocidade vezes o tempo ou, mais especificamente, de um cálculo de área. Façamos a (boa!) hipótese que a incerteza na determinação do tempo é pequena. Desta forma, a incerteza (relativa) da distância poderia ser tomada como sendo aproximadamente a mesma incerteza da velocidade. Mas, qual seria a incerteza da velocidade? Vamos recorrer às ... leis de trânsito! Nestas,7 7 A legislação em vigor para os redutores eletrônicos de velocidade prevê uma tolerância de no máximo 7 km/h acima da velocidade regulamentada, "com o objetivo de compensar a imprecisão dos velocímetros": ver por exemplo www.der.rj.gov.br/lombadas.asp. O texto integral da legislação pode ser acessado em www.inmetro.gov.br/legislacao/pam/pdf/PAM000618.pdf. é tolerado um excesso de velocidade de 7 km/h relativamente à velocidade regulamentada. Se tomarmos um valor típico de velocidade de 70 km/h, o valor de 7 km/h corresponderá a uma incerteza relativa de 10%. Então podemos tomar esta incerteza relativa de 10%, para mais ou para menos, nas nossas medidas.

Neste ponto, o leitor poderá protestar, julgando a argumentação um tanto arbitrária. Concordamos em parte, mas deve ser lembrado aqui que o problema legal da determinação das incertezas na medição da velocidade por velocímetros não é trivial (nota de rodapé n. 6). Por exemplo: a informação fornecida pelo velocímetro provém do número de voltas por unidade de tempo das rodas do veículo. Mas a distância percorrida pelo automóvel é função também do diâmetro das rodas deste. Obviamente o velocímetro está calibrado para um determinado diâmetro externo das rodas (pneus). Como a diferença de profundidade das ranhuras de um pneu novo e outro, em final de uso, mas ainda seguro para rodar pode chegar a, digamos, 1 cm, certamente a mesma velocidade marcada pelo velocímetro, em ambos os casos - pneu novo e pneu usado - corresponderá a distâncias diferentes. A calibração dos pneus também acaba influindo no diâmetro externo efetivo destes. Estes são apenas dois exemplos das variáveis que podem intervir.

Adotemos então estas incertezas: na Fig. 5 pode-se observar graficamente o que significa cada uma das medidas e suas incertezas. Este é um momento importante, menos pela abordagem quantitativa das incertezas (que não é feita aqui, é apenas estimada com base na lei vigente), e mais pela oportunidade de discutir a "lógica" destas. Esta argumentação permite afirmar que, considerando a incerteza atribuída às medidas, os três valores de distância obtidos podem ser tomados como iguais. Como foi dito acima, esta é uma excelente oportunidade para "educar" os alunos para o uso consciente das incertezas.


6. Comentários finais

Primeiro, um alerta ao leitor: a descrição a seguir não é uma "receita" de organização de uma situação de aprendizagem, apesar de que esta organização incluiria talvez a maior parte das técnicas descritas neste trabalho. Mas não é só isso. Há outros elementos, e somente o professor e os alunos, cientes do contexto em que estão inseridos, poderão decidir o que será ou não incluído.

O primeiro dividendo da forma aqui sugerida para a organização de uma situação de aprendizagem é certamente o das competências e habilidades que podem ser desenvolvidas. A lista é extensa. A competência mais importante é sem dúvida a da predisposição para o trabalho colaborativo, em grupo. Todos podem ser envolvidos: enquanto um grupo se encarrega de decifrar a operação da câmara, outro pode organizar a seleção e medição do local onde serão realizadas as passagens do automóvel, um terceiro poderá dedicar-se a localizar os recursos para a construção de gráficos (sala de informática, programas no computador, papel quadriculado, etc.) Trata-se de uma legítima situação de aprendizagem participativa. Leitura acurada de instrumentos de medida (velocímetro), conversão de unidades de medida de velocidade, construção e interpretação de gráficos, cálculo de áreas, estimativa de incertezas, avaliação da incerteza com base na legislação de trânsito são exemplos de algumas habilidades que podem ser desenvolvidas. Mas, e é decisivo salientar isso, o foco não está mais ajustado para a memorização, e sim para as operações de atribuição de significado, operações estas ancoradas nos objetos que compõem o quotidiano do estudante.

O segundo dividendo a destacar diz respeito aos objetos do quotidiano, aos quais o estudante atribui um sentido irrefletido e trivial, o que é absolutamente normal. Entretanto, a missão da escola (uma delas) é certamente a da ampliação do sentido das coisas que compõem este quotidiano; se o contexto é o de uma aula de física, um viés desta ampliação é seguramente o da releitura destes objetos, atribuindo-lhes nomes, propriedades e comportamentos rigorosamente explicitados. Esta ampliação de sentido pode incluir, como mostrado acima, até mesmo detalhes da legislação vigente, os quais organizam e simplificam a vida em sociedade.

Um terceiro dividendo (que talvez possa ser englobado ao segundo) é o da passagem do saber popular ao saber sábio. "Acelerar", num contexto de saber popular, poderia significar "pisar no acelerador". Não há nada de errado, neste contexto. Entretanto, num contexto de "saber sábio", "pisar no acelerador" inclui também a possibilidade de apenas "manter a velocidade inalterada". Então, sempre neste contexto, não há aceleração. Uma aula de física deve - necessariamente - propiciar ao aluno que faça estas distinções, sem que para isso seu "saber popular" seja desqualificado [4, p. 58 e seguintes]. Trata-se de delimitar os contextos nos quais as diversas maneiras de exprimir o quotidiano são válidas ou não. Até porque não seria lícito esperar que os estudantes mudassem de maneira permanente e definitiva suas formas de expressão, socialmente construídas. Eles não farão isso, de qualquer maneira. Basta, na nossa opinião, que eles compreendam que existem vários contextos, e que em alguns deles descrições precisas de fenômenos naturais devem ser feitas, pela necessidade de manter rigor e coerência de linguagem. Esta coerência habita o mundo da ciência e da técnica. Alguns estudantes quererão ingressar "para valer" neste mundo? Pois façamos com que sejam bem vindos!

Agradecimentos

À UCS - Universidade de Caxias do Sul e à FINEP.

Recebido em 29/6/2009; Aceito em 14/9/2009; Publicado em 26/3/2010

  • [1] Philippe Perrenoud, Dez Novas Competências para Ensinar (Artes Médicas Sul,Porto Alegre, 2000).
  • [2] C.S. Vasconcellos, Planejamento de Ensino-Aprendizagem e Projeto Político Pedagógico (Libertad Editora, São Paulo, 2005).
  • [3] Yves Chevalard, La Transpositión Didactica. Del Saber Sábio al Saber Enseñhado (Aique, Buenos Aires, 2005).
  • [4] Eduardo F. mortimer, Linguagem e Formação de Conceitos no Ensino de Ciências (Ed. UFMG, Belo Horizonte, 2000).
  • 1
    E-mail:
  • 2
    Ref. [1], ver especialmente o capítulo 1: "Organizar e dirigir situações de aprendizagem".
  • 3
    Ver, por exemplo, os equipamentos informatizados listados em
  • 4
    A operação em detalhes da câmara fotográfica em modo "burst", e seu uso para a determinação da aceleração de uma esfera em movimento num plano inclinado foi apresentada numa oficina do XIX Simpósio Nacional de Ensino de Física, em Vitória, ES, em janeiro de 2009, sob o título "Transforme uma câmara digital num laboratório de cinemática", apresentada pelos autores deste trabalho.
  • 5
    O número máximo de fotos que pode ser obtido no modo "burst" varia de câmara para câmara. Nas mais recentes, o número de fotos em seqüência é bastante grande, algumas dezenas delas. Numa mesma câmara, este número pode variar, dependendo do desempenho do cartão de memória empregado. Por exemplo, a câmara com a qual foram feitas as fotos da
    Fig. 1 (Sony
    ® P150, um modelo lançado já há vários anos), munida de um cartão do tipo Magic Gate
    ® , produz um grande número de fotos em seqüência, de resolução igual a 1 M. Já a mesma câmara, munida do cartão original, mais lento, fornecerá apenas algumas fotos em seqüência.
  • 6
    Uma possibilidade (entre muitas) é o uso do programa (livre) Br Office. Org Calc para a confecção destes gráficos.
  • 7
    A legislação em vigor para os redutores eletrônicos de velocidade prevê uma tolerância de no máximo 7 km/h acima da velocidade regulamentada, "com o objetivo de compensar a imprecisão dos velocímetros": ver por exemplo
    www.der.rj.gov.br/lombadas.asp. O texto integral da legislação pode ser acessado em
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Recebido
      29 Jun 2009
    • Aceito
      14 Set 2009
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