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A física da terapia de captura de nêutrons pelo boro

The physics of the boron neutron capture therapy

Resumos

Neste artigo fazemos uma breve exposicão de como um dos conceitos fundamentais da física nuclear fissão nuclear e seus produtos tem aplicação na medicina, na chamada terapia de captura do nêutron pelo boro (BNCT na sigla em inglês). Essa terapia foi concebida como um tratamento alternativo para o câncer podendo, em determinados casos, substituir a cirurgia, quimioterapia e radioterapia. Na BNCT, o fármaco atuante é o boro 10 que, após ser injetado no paciente, é submetido à radiação de um feixe de nêutrons de baixa energia proveniente de um reator nuclear. Ainda que hoje a BNCT não substitui totalmente outras terapias, é um bom exemplo da aplicação dos conceitos da física moderna na medicina.

partículas elementares; terapia captura do nêutron pelo boro; física nuclear


In this paper, we make a short exposition of how one of the fundamental concepts in Nuclear Physics, nuclear fission, and its resultant components have applications in medicine, in the so-called boron neutron capture therapy (BNCT). This therapy represents an alternative treatment for cancer and is able to replace, in some cases, surgery, chemotherapy and radiotherapy. The pharmaceutical that actuates in BNCT is boron-10: after being injected in the patient, it undergoes an exposition a low-energy neutron-beam radiation coming from a nuclear reactor. Although nowadays the BNCT does not entirelly replace other therapies, it is a good axample for the application of concepts of modern Physics in medicine.

elementary particles; boron neutron capture therapy (BNCT); nuclear physics


ARTIGOS GERAIS

A física da terapia de captura de nêutrons pelo boro

The physics of the boron neutron capture therapy

A.C. Bruno-MachadoI, 1 1 E-mail: ana@ift.unesp.br. ; E.C.F.S. FortesI; M.C. TijeroII

IInstituto de Física Teórica, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP, Brasil

IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Neste artigo fazemos uma breve exposicão de como um dos conceitos fundamentais da física nuclear fissão nuclear e seus produtos tem aplicação na medicina, na chamada terapia de captura do nêutron pelo boro (BNCT na sigla em inglês). Essa terapia foi concebida como um tratamento alternativo para o câncer podendo, em determinados casos, substituir a cirurgia, quimioterapia e radioterapia. Na BNCT, o fármaco atuante é o boro 10 que, após ser injetado no paciente, é submetido à radiação de um feixe de nêutrons de baixa energia proveniente de um reator nuclear. Ainda que hoje a BNCT não substitui totalmente outras terapias, é um bom exemplo da aplicação dos conceitos da física moderna na medicina.

Palavras-chave: partículas elementares, terapia captura do nêutron pelo boro, física nuclear.

ABSTRACT

In this paper, we make a short exposition of how one of the fundamental concepts in Nuclear Physics, nuclear fission, and its resultant components have applications in medicine, in the so-called boron neutron capture therapy (BNCT). This therapy represents an alternative treatment for cancer and is able to replace, in some cases, surgery, chemotherapy and radiotherapy. The pharmaceutical that actuates in BNCT is boron-10: after being injected in the patient, it undergoes an exposition a low-energy neutron-beam radiation coming from a nuclear reactor. Although nowadays the BNCT does not entirelly replace other therapies, it is a good axample for the application of concepts of modern Physics in medicine.

Keywords: elementary particles, boron neutron capture therapy (BNCT), nuclear physics.

1. Introdução

Situações onde uma descoberta aparentemente voltada para o domínio de uma determinada área, muitas vezes um tanto obscura e restrita ao entendimento, ocorrem constantemente no campo da física. A evolução desta área acaba por beneficiar diversas outras áreas em função do uso e aprimoramento de técnicas que envolvem por exemplo a radiação. E como consequência, surgem diversos benefícios não somente à pesquisa científica como também para possíveis usuários de tratamentos oriundos da pesquisa intrínseca com a radiação.

Quem poderia por exemplo imaginar que a descoberta de Wilhelm Conrad Röntgen (1845-1923), os raios X, tornar-se-iam uma das ferramentas mais poderosas no uso da medicina e também na área industrial? Quem poderia também imaginar que a experiência de Stern-Gerlach realizada na década de 1920, traria a tona o conceito de spin, base da técnica diagnóstica conhecida como ressonância magnética? Ou ainda, quem diria que estudos de física teórica teriam aplicações em medicina diagnóstica? No entanto, um dos mais sofisticados aparelhos de diagnóstico por imagem, denominado de Tomografia por Emissão de Pósitron (PET) tem suas bases físicas fundamentadas em conceitos de origem puramente teórica, uma vez que em 1928 Paul Audrien Maurice Dirac (1902 - 1984) propôs a equação de onda relativística para o elétron que previa corretamente o momento magnético dessa partícula explicando também o efeito Zeeman . A base da previsão de Dirac era a união das duas grandes revoluções da história da física: a mecânica quântica e a teoria da relatividade especial. Dirac ganhou o Nobel de Física em 1933 pela descoberta da teoria quântica relativística do elétron. Esta teoria previa a existência da anti-matéria do elétron, o pósitron, uma particula elementar com os números quânticos aditivos opostos ao elétron, isto é o que faz com que a matéria se aniquile com a antimatéria, por exemplo no processo de aniquilação de pares, do tipo e+e-→ γγ ou seja, um elétron e um pósitron se aniquilam produzindo dois fótons com comprimento de onda na faixa dos raios gama. E por fim, esta reação é a atriz principal da PET. O desenvolvimento da PET teve início 22 anos depois dos estudos iniciais sobre antimatéria por Dirac. No entanto, é fato que, sem o conhecimento prévio sobre as interações entre matéria e antimatéria, não seria possível idealizar um scanner para observar a radiação produzida na aniquilação de partículas elementares que por sua vez, gera uma imagem funcional dos órgãos [9].

Outros fatos ainda nos levam a situações semelhantes. Em 1953, Charles Hard Townes, James P. Gordon e Herbert J. Zeiger devenvolveram o primeiro maser, um dispositivo similar ao laser, porém fazendo o uso de microondas. O laser veio a ser desenvolvido posteriormente, utilizando a frequência visível da luz. A base do funcionamento do laser é a emissão estimulada da luz (Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation), efeito já previsto por Einstein anteriormente. O laser pode ser utilizado com finalidades médicas, industriais ou em pesquisas científicas. Reportando-nos ao cenário da década de 50, quem poderia prever que ele seria a base de uma das terapias em constante crescimento, a terapia fotodinâmica? Esse tipo de terapia usa a luz e compostos fotossensíveis em combinação com o oxigênio contido no tecido a ser tratado. Estamos em um estágio muito semelhante ao ocorrido há décadas atrás, com uma incessante e sempre crescente atividade de pesquisa. A grande atração do momento é o acelerador de partículas LHC (Acelerador próton-próton) inaugurado em 2008 e que entrou em linha recentemente, depois que alguns problemas técnicos foram solucionados [1, 2]. Um leigo em física poderia pensar que ele é algo muito complexo, que dificilmente trará algo para sua própria realidade. Porém, tal afirmação deve ser analisada com cautela. Exemplificando, sabe-se que prótons energéticos já foram e são estudados como método de tratamento de câncer (próton-terapia). Os primeiros tratamentos utilizaram aceleradores de partículas, como o Berkeley Radiation Laboratory. Esse tipo de terapia é uma das técnicas capazes de tratar o tumor, sem mutilação da área a ser tratada, com grandes promessas futuras. Dentre as muitas técnicas de tratamento existentes, neste artigo, daremos ênfase a um tipo de terapia que utiliza o nêutron e o elemento químico boro (BNCT). E mais uma vez, quem poderia imaginar que a descoberta de Chadwick em 1932, o nêutron, poderia já tão cedo, em 1936 ser proposto pelo biofísico Gordon L. Locker como o princípio da Terapia de Captura de Nêutrons pelo Boro (BNCT)?

2. A física do nêutron

Na BNCT é o nêutron desempenha um papel fundamental. Descreveremos assim, de modo sucinto, a história de sua descoberta e posteriormente suas principais características físicas para chegar, por fim, em suas formas de interação com a matéria, uma vez que a interação de captura neutrônica é a base da BNCT.

Em 1920, passou-se a duvidar da existência de elétrons no interior do núcleon devido a algumas experiências realizadas por Rutherford. Essas experiências consistiam em analisar o ângulo de espalhamento de um feixe de partículas alfa, emitidas no decaimento do polônio. A observação experimental de Rutherford o fez concluir que o átomo é formado por um núcleo pequeno, com carga positiva, no qual concentra-se praticamente toda a massa do átomo, e que os elétrons encontram-se na eletrosfera, seguindo o modelo planetário. No entanto para que o balanço de massa e carga do núcleo fosse mantido exigia-se a existência de (A - Z) partículas neutras. Por consideração à conservação de energia, momento angular e impulso postulou-se a existência do nêutron no interior do núcleo. Em 1932, Sir James Chadwick (1891-1974), premio Nobel de física em 1935, detectou experimentalmente o nêutron por meio de colisões deste com prótons, os quais, por transferência de energia cinética do nêutron adquirem energia em forma de energia cinética, tornando-os capazes de ionizar o meio. Assim surgiu a visão moderna do núcleo atômico, constituído, de prótons e nêutrons.

O nêutron é uma partícula neutra (carga elétrica nula) de spin semi-inteiro (férmions), com massa igual a 939,56563(28) MeV/c2 e momento de dipolo magético μn = 1,913μN2N sendo o magneton de Bohr). Sabe-se ainda que o mesmo é estável quando ligado a um núcleo, caso contrário sua meia vida é 10,235 minutos. Seu parceiro no interior do núcleo é o próton com massa igual a $938.27203(8) MeV/c2 e momento de dipolo magético μ = 2.792847351μN, o próton tem carga elétrica positiva e spin 1/2 sendo uma partícula estável quando fora do núcleo atômico. Estas duas partícula são consideradas estados diferentes de uma mesma entidade, o núcleon.3 3 Costuma-se agrupá-los em dubletos de isospin, a diferenciação entre ambos, neste caso, ocorre pelo valor da terceira componente do isospin ( t 3 = +1/2 para o próton e t 3 = -1/2 para o nêutron). Os núcleons são formados pelos quarks, estes também férmions. Além de possuir carga elétrica fracionária os quarks possuem também a carga cor, a qual foi postulada, em princípio, para explicar, por exemplo, que o princípio de Pauli não era violado na partícula que é constituída efetivamente por três quarks u com o mesmo spin Δ++. Portanto esses quarks deveriam possuir uma característica distinta até então desconhecida, a carga cor. Todos os quarks possuem a carga cor.

Embora próton e nêutron sejam, em certos aspectos, semelhantes, quando estamos tratando de terapias, cada um dá origem a diferentes tipos das mesmas. O próton, sendo carregado eletricamente, pode ser acelerado com auxílio de campos elétricos e direcionados a um alvo: o tumor. Faremos uma breve abordagem desse tipo de terapia, comparando-a com a terapia de raios X convencional. Ambas, próton-terapia e terapia de raios X convencional trabalham com um princípio de seleção da célula a ser destruída. A próton terapia apresenta vantagens em relação aos raios X, principalmente, no que diz respeito à energia. Esta diz quão profundamente o feixe de prótons ira penetrar nas células, o que se conhece como alcançe[7]. Esse tipo de terapia é um tratamento promissor para o tratamento de certos tipos de tumores (por exemplo melanoma coroidal maligno4 4 É um caso de câncer ocular, envolvendo a íris, cílios ou coróide. ), onde os raios X podem prejudicar os tecidos que circundam o tumor em níveis, muitas vezes, inaceitáveis. Ou seja, o que se obtém é um controle maior e uma otimização do tratamento. A física das interações dos prótons explica isso. Ao se mover através das células, os prótons diminuem sua velocidade, fato que causa o aumento de interações com os elétrons orbitais. A interação máxima com elétrons ocorre quando o próton aproxima-se do tumor, o alvo. Sendo uma radiação ionizante, esta destrói o material genético (DNA) da célula cancerígena. E com isso vem também a destruição da capacidade de proliferação celular. Essa mudança é o aspecto base das terapias de radiação, ou seja, destruição seletiva de células indesejáveis.

Mudando completamente o foco de terapias para o nêutron, sabemos desde o início que por não possuir carga elétrica, tal partícula não interage com a matéria eletromagnéticamente, e a interação se dá na forma de espalhamento ou também por meio de reações nucleares. Neste tipo de interação podem ocorrer dois processos distintos, a saber:

1. Fissão Nuclear.

2. Captura Neutrônica.

A primeira interação é a responsável pelo funcionamento de reatores nucleares e bombas atômicas. Em linhas gerais esta reação consiste na colisão do nêutron com o núcleo de elementos pesados como por exemplo {235}U e {239}Pr. O núcleo fissiona-se, emitindo uma grande quantidade de radiação e mais dois ou três nêutrons. Caso isso ocorra no coração de um reator, os nêutrons emitidos interagem com mais átomos de elementos pesados gerando o que chamamos de reação em cadeia.

Mas a reação que realmente nos interessa neste trabalho é o segundo tipo de reação, a captura neutrônica, que consiste na interação em que um nêutron de baixa energia forma um estado ligado com um átomo, (este estado ligado é instável). Neste processo, energia em forma de radiação gama, na maioria das vezes, é liberada para o meio. Existe ainda a possibilidade de que neste tipo de interação seja produzida uma partícula pesada.

Neste tipo de reação, em geral, a secção de choque até uma dada energia segue a lei 1/v, isto é, ela é inversamente proporcional à velocidade do nêutron incidente. Esta lei vale até energias que estão em torno de 1 eV - 10 keV.

3. BNCT: generalidades

Esta seção está baseada em parte na referência [8]. O câncer continua a ser visto como um mal dos mais difíceis de ser erradicado por completo. A taxa de mortalidade devida ao câncer é de 20 % para países industrializados. No Brasil, doenças infecciosas e as chamadas doenças sociais reduzem a expectativa de vida dos pacientes cancerosos ainda mais do que nos países desenvolvidos [8], portanto uma sobrevida, e por sobrevida entende-se a preservação da qualidade de vida do paciente em estado terminal, bem como a melhoria da qualidade de vida de pacientes em tratamento, são questões importantes e levadas em conta quando se opta por uma terapia.

O sucesso da cirurgia ou esterilização por meio de radioterapia e/ou quimioterapia não é muitas vezes alcançado para certos tipos de tumores malignos por vários motivos, dentre eles: o tumor não responde à radiação convencional (raios X), está localizado em regiões anatomicas complicadas e/ou inacessíveis, ou não responde adequadamente a um tratamento químico por se reproduzir rapidamente. Embora cirurgia, quimioterapia e radioterapia sejam eficazes no tratamento de muitos tumores, uma nova alternativa vem sendo desenvolvida, a chamada Terapia por Captura de Nêutrons pelo Boro (BNCT), a qual foi proposta em 1936 pelo biofísico Gordon L. Locker, do Instituto de Pesquisa Bartol em Swarthmore, Pensilvania, USA. Essa terapia apresenta um princípio físico simples e elegante, o qual será abordado no presente trabalho, que também visa apresentar um breve histórico sobre o desenvolvimento da técnica, bem como a física de partículas elementares que a embasa.

3.1 Breve histórico

Em 1951, teve início o tratamento de 45 pacientes por BNCT, que se distribuíram entre o Hospital Geral de Massachusetts (MGH), o Laboratório Nacional de Brookhaven (BNL) e no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Infelizmente, a radiobiologia voltada para a produção do fármaco que contém Boro-10 era desconhecida na época, e a obtenção de um bom resultado dependia do fármaco a ser selecionado pelas células cancerígenas. Até então, a razão da concentração do fármaco utilizado entre o tecido sadio e o sangue, em relação ao tecido tumoral era de 1:1, ou seja, o tumor não possuia seletividade pela substância. Assim uma alta concentração de Boro 10 no sangue resultou em uma dose de 100 Gy causando uma falha do sistema vascular do cérebro de alguns dos pacientes. Concluiu-se então que os estudos clínicos falharam, já que não houve vantagens terapêuticas, ao invés disso houve uma redução da sobrevida dos pacientes.

Em 1961, foi feita a última irradiação clínica utilizando a BNCT nos Estados Unidos, usando o fármaco mencionado acima, já que não houve melhoria da qualidade de vida dos pacientes, e houve até redução do tempo de sobrevida.

Em 1960, no Japão, o Dr. Hiroshi Hatanaka iniciou uma série de estudos clínicos com a BNCT, no Instituto de pesquisa de Shionogi, utilizando um novo composto químico para o fármaco, o Na2B12H11SH, conhecido como BSH. Com o novo fármaco foram tratados mais de 140 pacientes com variedade de tumores cerebrais em diversos estágios. Os resultados aparentaram ser promissores. Para tumores superficiais, nos quais os nêutrons térmicos são mais eficazes, os pacientes com glioblastoma multiforme (GBM) (ver Fig. 1) obtiveram, após cinco anos de tratamento, uma taxa de sobrevida de 60%, e após dez anos uma taxa de sobrevida de 10%, em contraste com a taxa de sobrevida de 2% para os GBM tratados com terapia de fótons (radiação ionizante, raios X ou feixe de elétrons). Estes resultados entretanto, devem ser avaliados com cautela.


Em 1988, o Centro Médico de New England/Harvard juntamente com o MIT criou um novo programa de estudos para o BNCT com a meta de apoiar uma nova série de pesquisas clínicas, divididas em três fases: Fase I: escalonamento de dose no tecido sadio, toxicidade da radiação e composto químico. Fase II: escalonamento de dose no Tumor, dose controle. Fase III: estudo randômico aplicando dose controle do tumor e dose máxima tolerada pelo tecido sadio. De modo geral, na Fase I foi realizado um estudo da toxicidade máxima tolerada pelo organismo tratado, para isso a distribuição e a cinética do fármaco foram estudadas. Na Fase II foram pesquisadas novas maneiras de combater o tumor com o uso do fármaco já testado, ou seja, buscou-se a dose de controle para o tumor definindo, assim, qual a dose máxima necessária para a necrose das células cancerosas. A Fase III visa o estudo aprofundado da dose máxima tolerável pelo tecido sadio e da dose de controle do tumor, ou seja, são analisados os resultados obtidos nas fases I e II.

Duas instituições nos Estados Unidos estão, na atualidade, fazendo o uso de um feixe de nêutrons epitérmicos para tratar pacientes. O Laboratório Nacional de Brookhaven (BNL) iniciou as tentativas clínicas em 1994, usando um reator nuclear de pesquisa, modificado para aplicações médicas. O MIT também começou as tentativas clínicas em BNCT para melanoma cutâneo e em 1996 para glioblastoma ou melanoma intracranial.

Em 1997, na Holanda, em Petten, foram iniciados os estudos clínicos para tratamento de GBM.

A Tabela 1 obtida da Ref. [8] reproduz alguns dados, resumidos, sobre o andamento dos estudos clínicos sobre a BNCT pelo mundo. Outras informações podem ser obtidas em [10-12].

No Brasil, está sendo projetada uma instalação junto ao Reator Nuclear de Pesquisa IEA-R1 do IPEN-CNEN/SP (ver Fig. 2) para a realização de pesquisas neste campo. A construção dessa instalação visa efetuar pesquisa na área de física das radiações e radiobiologia. Permitirá caracterizar campos de radiação de (nêutrons e gamas) adequados para a aplicação da técnica de BNCT e desenvolver estudos de filtros para o feixe de nêutrons, deixando este o mais próximo possível de um feixe monoenergético, aumentando assim a eficiência da técnica. Estudos de níveis de dose utilizando "phantons" e estudos biológicos in vitro e in vivo também serão realizados. As experiências irão permitir uma realimentação dos dados usados para cálculos e previsões teóricas, possibilitando assim a otimização na definição dos materiais bem como das respectivas espessuras para a utilização como filtros para o feixe de nêutrons, de modo a se obter o feixe de nêutrons, adequado ao experimento ou tratamento por BNCT.


Sumário de estudos clínicos atuais com BNCT. Resultados: tempo médio livre de tumor (TLT) e sobrevida média do grupo (SM) em meses. GBM = glioblastoma multiforme; MP = melanoma periférico; MI = melanoma intracranial; M = melanoma (localização não definida); AA= astrocitoma anaplástico; AB = astrocitoma de grau I/II. Fase I = escalonamento de dose no tecido sadio, toxidade da radiação e composto químico; Fase II = escalonamento de dose no tumor, dose controle; Fase III = estudo randômico aplicando dose controle do tumor e dose máxima tolerável no tecido sadio.

3.2 Conceitos básicos

A terapia por captura de nêutrons pelo boro designa um procedimento, ainda em fase experimental, para o tratamento do câncer, baseando-se numa técnica onde os dois componentes utilizados podem ser controlados separadamente. O primeiro componente corresponde a um composto intravenoso de 10B. Este composto, por sua vez, possui maior propensão a se acumular em células cancerígenas. Após a ingestão do composto pelo paciente, este é submetido à irradiação por um feixe de nêutrons. Ao ser irradiado por nêutrons, o átomo de boro captura o nêutron, tornando-se um isótopo instável do boro, portanto radioativo. Este isótopo decai, por fissão nuclear , em duas partículas, uma carregada e com maior poder de ionização e outra neutra, mas com energia cinética de recuo suficiente para ionizar as moléculas (ver Fig. 3), as quais possuem um alcance de aproximadamente o diâmetro de uma célula, com energia suficiente para matar o tumor, por interações atômicas (tais como ionização). Como as células normais possuem uma pequena ou nenhuma quantidade desse composto, e como o alcance das partículas produzidas pela interação é curto, as células sadias não são destruídas.


O composto químico (fármaco) é a base do 10B. A escolha do 10B deve-se ao fato de podermos formar compostos não radioativos e quimicamente inofensivos ao organismo. O 10B possui uma alta secção de choque para absorção de nêutrons lentos, e em relação aos elementos que compõem o tecido corporal, hidrogênio 1H, carbono 12C e oxigênio 16O, o Boro tem uma secção de choque cerca de mil vezes maior. Este composto é preparado em um laboratório farmacêutico seguindo os procedimentos já padronizados pela indústria farmacêutica; a produção é controlada e inspecionada pelo órgão fiscalizador.

A posterior irradiação do paciente é feita com um feixe de nêutrons de baixa energia, provenientes de um reator devidamente colimado e filtrado. Para um bom desempenho da técnica, o diferencial de concentração no tecido sadio em relação ao tecido canceroso deve ser alto, como supracitado, dessa forma serão danificados somente os tecidos cancerosos. Para que isso ocorra, o fármaco contendo o 10B deve ser tal que a célula cancerígena o absorva em maior quantidade do que as células sadias, ou que as células absorvam este em igual quantidade, mas as células sadias devem eliminar esta substância de maneira mais eficiente que a célula cancerígena, assim no decorrer de um certo tempo, a concentração da substância será maior nas células cancerígenas do que nas sadias (ver Fig. 4).


Sabe-se que reações nucleares do tipo 10B(n,α)7Li ocorrem após a irradiação com feixes externos de nêutrons térmicos (ver Fig. 3). E como resultados dessas reações surgem partículas pesadas e altamente energéticas: uma partícula alfa com 1,47 MeV e o átomo do 7Li com 0,84 MeV de recuo. Tais partículas possuem um alcance máximo no tecido de 8.8 mm e 4,8 mm respectivamente. No que diz respeito a energia cinética das partículas, pode-se dizer que ela é quase totalmente transferida, 94 por cento por colisões inelásticas, gerando assim excitações no interior da célula cancerosa a ser tratada. Os percentual de 6 por cento restante das reações transformam diretamente toda a energia (2.79 MeV) em energia cinética, não havendo portanto, emissão de raios gama. E estas partículas pesadas na colisão com o núcleo, inativam e levam à apoptoses5 5 Destruição celular devido à ativação de um estímulo, morte celular programada. igualmente as células [8].

Porém, mesmo o composto injetado no paciente não sendo radioativo e o feixe de nêutrons ser colimado e direcionado com precisão para o local de aplicação, os pacientes ainda recebem uma dose de radiação fora do tecido canceroso que corresponde a uma combinação complexa de vários efeitos no tecido devido aos nêutrons térmicos e aos raios gama produzidos nas reações. Assim, para tentarmos estimar a dose recebida pelo paciente, podemos dividi-la em quatro componentes:

  1. A dose devida aos raios gama: corresponde à dose que os raios gama que acompanham os feixes de nêutrons, produzem no tecido devido a interações do tipo efeito fotoelétrico ou efeito Compton.

  2. A dose devida ao nêutron: alguns nêutrons podem reagir com o hidrogênio, a reação é dada por 1H(n.n)p, o próton deposita localmente a sua energia de recuo no tecido.

  3. A dose do próton gerado na captura do nêutron pelo nitrogênio 14 (14N): O 14N do tecido captura um nêutron e emite um próton, a reação é dada por 14N(n,p) 14C, a dose resulta da deposição da energia do próton energético e da energia de recuo do núcleo de 14C.

  4. A dose principal é devida à reação de fissão do 11B citada acima. A dose do 10B é avaliada assumindo uma distribuição homogênea dos átomos de 10B nas diferentes partes do tecido de interesse (tumor) e nas diferentes estruturas sub-celulares. A concentração de 10B no sangue é medida durante o tratamento, e a concentração de boro no tecido é calculada a partir destes dados.

O conhecimento da farmacêutica do composto do 10B e sua concentração nas células cancerosas em função do tempo também são informações essenciais para o tratamento e para a avaliação da dose, porém a concentração é um valor medido experimentalmente. Um valor teórico de concentração no tumor é assumido baseando-se em experiências obtidas em biópsias e pelo uso de modelos [5] [6].

4. Conclusão

Estamos em uma época muito interessante para a física moderna, novas fronteiras de conhecimento ficam cada vez mais acessíveis através de novas descobertas científicas. No entanto, parece haver uma lacuna entre o conhecimento passado para a sociedade e o aprimoramento da física. Assim, a sociedade pode-se perguntar sobre a utilidade de novas ferramentas, sobre o retorno de todos os milhões investidos em uma nova pesquisa envolvendo a física, onde podemos citar por exemplo, o LHC. Respostas a esse tipo de perguntas são difíceis de serem concebidas, uma vez que não é possível imaginar ou até mesmo tentar prever qual será a aplicação mais benéfica a ser obtida. No entanto, no decorrer do presente trabalho, vimos a existência de uma linha tênue entre a pesquisa básica e a inovação tecnológica. Em particular, a física de partículas elementares tem uma série de aplicações das quais colocamos aqui uma delas: a aplicação da física nuclear em medicina moderna.

Uma das grandes dificuldades no ensino e aprendizagem da física é a ausência de possíveis aplicações de seus conceitos teóricos. O exemplo descrito neste artigo pode ser um incentivo ao aprendizado desses conceitos para o público em geral e, especicamente, para que alunos de ensino médio e graduação compreendam as possíveis aplicações da pesquisa básica em física.

É interessante, portanto, que o professor tenha conhecimento desses dados e que eles sejam levados para a sala de aula para serem discutidos com os alunos, mostrando a importância da pesquisa básica para o desenvolvimento de novas tecnologias.

5. Agradecimentos

Os autores agradecem ao CNPQ e à FAPESP pelo apoio financeiro.

Recebido em 13/8/2010; Aceito em 23/2/2011; Publicado em 25/2/2011

  • [1] http://lhc.web.cern.ch/lhc/
    » link
  • [2] http://public.web.cern.ch/Public/Content/Chapters/AboutCERN/CERNFuture/WhatLHC/WhatLHC-en.html
    » link
  • [3] http://en.wikipedia.org/wiki/LHC
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  • [4] S. Kullander, Accelerators and Nobel Laureates, http://nobelprize.org/nobel_prizes/physics/articles/kullander/index.html
  • [5] C.B. Zamboni (org.), Fundamentos da Fí sica de Nêutrons (Editora Livraria da Fí sica, São Paulo, 2007).
  • [6] J. Byrne, Neutrons, Nuclei and Matter (Institute of Physics Publishing, Bristol, 1995).
  • [7] www.proton-therapy.org/
    » link
  • [8] Tarcisio Passos Ribeiro de Campos, Revista Brasileira de Cancerologia 46, 283 (2000).
  • [9] A.C.B. Machado, V. Pleitez e M.C. Tijero, Revista Brasileira de Ensino de Física 28, 407 (2006).
  • [10] B.H. Stenstam et al., Acta Neurologica Scandinavica 115, 243 (2006).
  • [11] Japanese Journal of Chemical Oncology 37, 376 (2007). http://jjco.oxfordjournals.org/cgi/content/full/37/5/376
  • [12] http://wwwtest.iri.tudelft.nl/~klooster/bnct.php Atualizado em 1/2009.
    » link
  • 1
    E-mail:
  • 2
    O fato de mesmo com carga elétrica nula o nêutron ter um momento de dipolo magnético não nulo é indício inequívoco da existência de estrutura interna.
  • 3
    Costuma-se agrupá-los em dubletos de isospin, a diferenciação entre ambos, neste caso, ocorre pelo valor da terceira componente do isospin (
    t
    3 = +1/2 para o próton e
    t
    3 = -1/2 para o nêutron).
  • 4
    É um caso de câncer ocular, envolvendo a íris, cílios ou coróide.
  • 5
    Destruição celular devido à ativação de um estímulo, morte celular programada.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      23 Fev 2011
    • Recebido
      13 Ago 2010
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