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Três mitos sobre a "função" delta de Dirac

Three myths on Dirac's delta "function"

Resumos

São desfeitas três concepções matemáticas errôneas, porém recorrentes entre os físicos, relacionadas à "função" delta de Dirac.

função delta de Dirac; teoria das distribuições


Three mathematical misconceptions concerning Dirac's delta "function", recurring among physicists, are dispelled.

Dirac delta function; theory of distributions


NOTAS E DISCUSSÕES

Três mitos sobre a "função" delta de Dirac

Three myths on Dirac's delta "function"

Nivaldo A. Lemos1 1 E-mail: nivaldo@if.uff.br.

Departamento de Física, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil

RESUMO

São desfeitas três concepções matemáticas errôneas, porém recorrentes entre os físicos, relacionadas à "função" delta de Dirac.

Palavras-chave: função delta de Dirac, teoria das distribuições.

ABSTRACT

Three mathematical misconceptions concerning Dirac's delta "function", recurring among physicists, are dispelled.

Keywords: Dirac delta function, theory of distributions.

Quase todos os livros-texto de eletromagnetismo voltados para cursos de graduação introduzem a "função" delta de Dirac para descrever a densidade de carga elétrica de uma carga pontual. A "função" δ(x) é definida como igual a zero em toda parte exceto em x=0, onde ela é infinita de tal modo que sua integral em qualquer intervalo aberto que contenha a origem é igual a um. Reitz e cols. [1] comentam que "the Riemann integral of such a function is zero if it exists at all, but the integration can be handled by the more general Lebesgue integral". Marion e Heald [2] asseguram que "it is possible to define the delta-function as the limit of an ordinary function." Outra afirmação frequentemente encontrada em livros-texto de eletromagnetismo [3] é que δ não é uma função porque o seu valor não é finito em x=0.

O propósito desta nota é assinalar que todas as afirmações acima são infundadas. É impossível interpretar δ(x) como uma função por causa de suas propriedades contraditórias, não por causa de seu valor infinito em x=0. Além disso, nenhuma definição razoável de integral, por mais geral que seja, pode contornar tal impossibilidade. Por fim, não é possível definir a "função" delta como o limite pontual de uma sequência de funções ordinárias.

Antes de mais nada, uma função honesta pode ser infinita em certos pontos isolados ou mesmo num conjunto de medida nula. Por exemplo, a função real |x|-1/2 é infinita em x=0 mas é uma função perfeitamente legítima. Em particular, ela é integrável em qualquer intervalo finito, mesmo incluindo a origem. A teoria geral da integração lida com o conjunto R dos números reais estendidos [4, 5], que consiste no conjunto dos números reais juntamente com os símbolos ∞ e -∞, ou seja, R*=R ∪ {∞} ∪ {-∞}. Para nossos objetivos basta considerar o conjunto [0, ∞] dos números reais estendidos não-negativos. A convenção mais útil é

Com a regra adicional a × ∞ = ∞ · a = ∞ para todo a ∈ (0, ∞], as leis comutativa, associativa e distributiva são válidas em [0,∞] sem qualquer restrição [5].

Segue-se que, como usualmente definida, a saber, δ(x)=0 para x ≠ 0 e δ(0) = ∞, δ é uma função genuína com valores em R. Na teoria da integral de Lebesgue aprende-se que o conjunto cujo único elemento é o ponto na origem tem medida nula, e que a integral de qualquer função nula em toda parte exceto num conjunto de medida nula é igual a zero. Este resultado pode ser estendido para qualquer definição razoável de integral. Considere a função Δ(x) = 2δ(x) e seja ∫R δxdx=I. De acordo com a aritmética em [0,∞], Δ e δ são iguais ponto a ponto, de modo que a integral de Δ também tem que ser igual a I. Além disso, qualquer integral razoável deve depender linearmente do integrando, de modo que ∫R Δ(x)dx= 2 ∫R δ(x)dx = 2I. Portanto, I=2I e o único valor finito possível para I é I=0. Em suma, a inexistência de uma função delta deve-se a suas propriedades contraditórias, não a seu valor infinito na origem.

Ressalte-se que a regra (1) não é estranha aos físicos, pois quando a "função" delta tridimensional é definida por δ3(r) = δ(x)δ(y)δ(z) e se diz [6] que "the three-dimensional delta function is zero everywhere except at (0,0,0)", a regra aritmética (1) está implicitamente sendo usada. De fato, para dizer, por exemplo, que δ(1)δ(1)δ(0)=0 é preciso usar 0 × ∞ = 0.

Levando em consideração que δ(x) não aparece no resultado final do cálculo de nenhuma grandeza física mensurável, não é o valor em cada ponto que caracteriza a "função" delta, mas sua propriedade fundamental

para qualquer função φ suficientemente regular. Embora não exista como função, é esta propriedade que permite definir δ como uma distribuição [7].

Quanto à crença de que é possível definir a função delta como o limite de uma função ordinária, pode-se refutá-la construindo uma sequência de funções que converge para a função zero embora convirja para δ como uma distribuição. Considere a sequência

que converge (vide Apêndice) para δ(x) no seguinte sentido

se φ é suficientemente regular - na teoria das distribuições exige-se que φ seja um elemento do conjunto D das funções infinitamente diferenciáveis e de suporte compacto, isto é, nulas fora de um subconjunto fechado e limitado da reta real [7]. Da Eq. (3) decorre que δn (0) = 0 para todo nN e limn → ∞ δnx = 0 para x ≠ 0. Assim, o limite pontual da sequência de funções (3) é a função identicamente nula, o que nos levaria a concluir que δ(x) ≡ 0. Se fosse possível passar ao limite sob o sinal de integral na Eq. (4), o valor da integral seria zero para qualquer função φ, o que é falso. Em síntese, a sequência δn converge para a distribuição δ, não para uma inexistente "função" delta.

De um ponto de vista matematicamente rigoroso, δ é uma distribuição, ao passo que do ponto de vista dos físicos δ(x) costuma ser intuitivamente pensada como se fosse uma função. Na verdade, δ(x) é uma notação abreviada muito conveniente para a operação de passagem ao limite indicada na Eq. (4). Tomar o limite sob o sinal de integral na Eq. (4) não é permitido em termos de funções ordinárias, mas pode ser feito formalmente com a ajuda do símbolo δ(x). Da mesma forma, a equação simbólica permite uma extensão do teorema da divergência a circunstâncias de interesse físico em que ele não é rigorosamente válido, uma vez que o campo vetorial não é diferenciável em r=0.

Apêndice: Demonstração da Eq. (4)

É fácil comprovar que para todo n. Portanto, escrevendo

basta provar que In → 0 para toda função φ ∈ D, onde

Fazendo a mudança de variável nx=y, esta integral torna-se

porque φ é contínua, segue-se que

isto é, fn converge pontualmente para zero em toda a reta real. Além disso, fn é dominada por uma função integrável, pois

onde M=max|φ(x)| e o máximo é tomado sobre o suporte de φ (uma função contínua num subconjunto fechado e limitado de R assume um valor máximo). Portanto, pelo teorema da convergência dominada de Lebesgue [4, 5]

o que completa a demonstração.

Referências

[1] J.R. Reitz, F.J. Milford and R.W. Christy, Foundations of Electromagnetic Theory (Addison-Wesley, Reading, 1979), 3ª edição, p. 44, nota de rodapé .

[2] J.B. Marion e M.A. Heald, Classical Electromagnetic Radiation (Academic Press, New York, 1980), 2ª ed., p. 26 e especialmente o Problema 1-30.

[3] D.J. Griffiths, Introduction to Electrodynamics (Prentice Hall, New Jersey, 1999), 3ª ed., p. 46.

[4] E.J. McShane, Integration (Princeton, New Jersey, 1944), pp. 20-21; H.L. Royden, Real Analysis (Macmillan, New York, 1968), 2ª ed., p. 34.

[5] W. Rudin, Real and Complex Analysis (McGraw-Hill, New York, 1974), 2ª ed., pp. 19-20.

[6] Ref. [3], p. 50.

[7] L. Schwartz, Mathematics for the Physical Sciences (Dover, New York, 2008); J.I. Richards and H. Youn, Theory of Distributions: A Nontechnical Introduction (Cambridge University Press, Cambridge, 1990).

Recebido em 4/12/2009; Aceito em 12/3/2010; Publicado em 25/2/2011

  • [1] J.R. Reitz, F.J. Milford and R.W. Christy, Foundations of Electromagnetic Theory (Addison-Wesley, Reading, 1979), 3Ş edição, p. 44, nota de rodapé
  • [2] J.B. Marion e M.A. Heald, Classical Electromagnetic Radiation (Academic Press, New York, 1980), 2Ş ed., p. 26 e especialmente o Problema 1-30.
  • [3] D.J. Griffiths, Introduction to Electrodynamics (Prentice Hall, New Jersey, 1999), 3Ş ed., p. 46.
  • [4] E.J. McShane, Integration (Princeton, New Jersey, 1944), pp. 20-21;
  • H.L. Royden, Real Analysis (Macmillan, New York, 1968), 2Ş ed., p. 34.
  • [5] W. Rudin, Real and Complex Analysis (McGraw-Hill, New York, 1974), 2Ş ed., pp. 19-20.
  • [7] L. Schwartz, Mathematics for the Physical Sciences (Dover, New York, 2008);
  • J.I. Richards and H. Youn, Theory of Distributions: A Nontechnical Introduction (Cambridge University Press, Cambridge, 1990).
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      12 Mar 2010
    • Recebido
      04 Dez 2009
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