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Trajetórias limitadas num sistema com uma força dependente da velocidade

Limited trajectories in a system with a force dependent on the velocity

Resumos

Um sistema mecânico com uma força dependente da velocidade é descrito e um caso em que há conservação da energia é analisado. O potencial resultante desta força é ainda empregado no estudo acerca das trajetórias de sistemas submetidos ao potencial gravitacional newtoniano, ao potencial de Manev e ao potencial harmônico.

mecânica clássica; força dependente da velocidade; conservação da energia


A mechanical system with a force dependent on the velocity is described and a case where there is energy conservation is analyzed. The resulting potential from this force is still employed in the study of trajectories of systems subject to the Newtonian gravitational potential, the Manev potential and the harmonic potential.

classical mechanics; force dependent on the velocity; energy conservation


ARTIGOS GERAIS

Trajetórias limitadas num sistema com uma força dependente da velocidade

Limited trajectories in a system with a force dependent on the velocity

R.V. SampaioI; R. FracalossiII, 1 1 E-mail: rfracalossi@cce.ufes.br. ; A.M. OliveiraII

IGrupo de Física Aplicada, Departamento de Física, Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

IIGrupo de Cosmologia e Gravitação, Departamento de Física, Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

RESUMO

Um sistema mecânico com uma força dependente da velocidade é descrito e um caso em que há conservação da energia é analisado. O potencial resultante desta força é ainda empregado no estudo acerca das trajetórias de sistemas submetidos ao potencial gravitacional newtoniano, ao potencial de Manev e ao potencial harmônico.

Palavras-chave: mecânica clássica, força dependente da velocidade, conservação da energia.

ABSTRACT

A mechanical system with a force dependent on the velocity is described and a case where there is energy conservation is analyzed. The resulting potential from this force is still employed in the study of trajectories of systems subject to the Newtonian gravitational potential, the Manev potential and the harmonic potential.

Keywords: classical mechanics, force dependent on the velocity, energy conservation.

1. Introdução

O grau de acurácia de um modelo teórico - o quão bem ele descreve um fenômeno físico específico - pode ser medido pela consistência e complexidade das forças e potenciais associados. Com efeito, em geral, as diversas teorias físicas são construídas a partir de modelos matemáticos simples. Os resultados das experiências são os agentes que determinam as modificações que devem ser introduzidas. Isso se reflete na reconstrução ou na introdução de novos termos nos potenciais ligados ao sistema ou, de outro modo, na consideração de novas forças eventualmente mais complexas que as originais, que levem em conta efeitos particulares do sistema como dissipações, acoplamentos, dentre diversos outros. Isso permite que certos sistemas essencialmente relativísiticos (ou mesmo quânticos) possam ser razoavelmente bem descritos a partir de um análogo newtoniano. Por exemplo, em astrofísica existem propostas como a teoria MOND [1,2] que consiste numa modificação do potencial gravitacional newtoniano a fim de dar conta da parcela de matéria escura presente no halo das galáxias espirais. Outro exemplo é o conhecido potencial central de Manev [3,4] que visa reproduzir, utilizando ainda a mecânica newtoniana, efeitos inicialmente explicados apenas pela teoria da relatividade geral, através da introdução de um termo adicional ao potencial newtoniano Este último é um exemplo de potencial efetivo pois, grosso modo, pode ser entendido como um potencial conhecido somado a um outro termo visando explicar teoricamente às observações.

A análise de sistemas mecânicos clássicos pode ser bastante delicada. Naturalmente, a complexidade do potencial associado e das forças envolvidas podem criar várias dificuldades matemáticas como por exemplo na busca por soluções explícitas e não-numéricas para determinadas equações diferenciais de movimento, e analíticas (no sentido físico) como entender qual o papel de determinada força para o sistema. Tendo isso em mente, propõe-se neste trabalho o estudo de um sistema submetido a duas forças: uma radial e outra tangencial dependentes da velocidade.

Forças dependentes da velocidade têm, em geral, seu caráter atribuído a sistemas com características dissipativas [5]. De fato, há diversos modelos, desde os problemas de queda-livre a complexos cenários cosmológicos em que termos de atrito e viscosidade têm sua natureza modelada por meio de entidades dependentes da velocidade. Naturalmente, existem exemplos em que esta dependência não se traduz num comportamento dissipativo, como o caso da força magnética. Na ausência de forças dissipativas, o fato de que a força seja perpendicular à direção do movimento implica na conservação da energia. No presente trabalho é apresentado um caso, em que, aparentemente, a semelhança com a força magnética é pequena. O alto grau de acoplamento entre as coordenadas que compõem as forças resultantes dá origem, num caso particular cuja solução é obtida analiticamente, a órbitas limitadas a partir do ajuste adequado das constantes ligadas às condições iniciais do sistema, o que é um resultado no mínimo curioso. Isso se deve ao fato de que é possível que um conjunto de forças, atuando em direções diferentes, que carreguem alguns específicos tipos de acoplamento entre as coordenadas sejam tais que não haja dissipação, mesmo que a análise individual para cada direção sugira o contrário. Na próxima seção é apresentada matematicamente a descrição do problema. Será vista a condição na qual há conservação da energia além do significado físico acerca de algumas das entidades que se tornam presentes nos cálculos. Em seguida, será discutido o caso em que o potencial associado à força proposta é somado ao potencial gravitacional newtoniano, ao potencial de Manev e também ao potencial harmônico através da análise das possíveis órbitas que podem ser obtidas. Finalmente, as considerações finais são apresentadas na conclusão. É importante ressaltar que o trabalho se propõe ainda a ser mais uma ferramenta motivadora no estudo da mecânica clássica por funcionar como um interessante problema, devido a algumas de suas características pouco convencionais, que pode ser explorado pedagogicamente por alunos, professores e demais pesquisadores.

2. Condições para conservação da energia

Por questão de simetria, o problema será tratado a partir de um sistema de coordenadas cilíndricas. Assim, a força resultante, representada como a soma vetorial das forças nas direções é escrita como

cujas componentes são

Aqui, μ é a massa do corpo em estudo ou a massa reduzida, localizada no centro de massa, de um sistema constituído por dois ou mais componentes massivos. A particularidade deste sistema reside em sua força resultante, a qual tem a forma seguinte

Note que analisa-se o caso particular em que Fz = 0. Além disso, toma-se para que o movimento esteja contido apenas em um plano. A constante tem dimensão de massa e é maior que zero (a situação em que k = 0 é o caso convencional) para que o lado direito da Eq. (5) tenha dimensão de força e f é uma função que será particularizada adiante. Comparando a Eq. (5) com a Eq. (1), obtém-se

Agora uma relação para pode ser obtida. Inicialmente, multiplica-se a Eq. (6) por 2ρ3, o que fornece

Escrevendo a derivada de forma explícita, tem-se

onde Φ0 e ρ0 são constantes associadas às condições iniciais de Φ e ρrespectivamente. Integrando e associando a constante de integração γ, é possível escrever finalmente a velocidade angular como

Substituindo a Eq. (8) na Eq. (7), tem-se

Explicitando novamente as derivadas temporais e após algumas manipulações algébricas obtém-se

Acima, L0 = é uma constante com dimensão de momento angular, identificada como o momento angular total, cujo vetor associado aponta na direção

Um interessante caso pode ser analisado sob a seguinte escolha da função

com I0 positivo. Como o argumento da exponencial deve ser adimensional, I0 deve ter dimensão de [massa] × [comprimento2], o que permite identificar esta grandeza como uma espécie de momento de inércia.2 2 Num sistema de dois corpos submetidos a um potencial gravitacional newtoniano, deve ser o momento de inércia do corpo que orbita em torno de seu par, por exemplo. É importante observar ainda que substituindo a Eq. (10) na Eq. (6) obtém-se

ou seja, a força na direção depende da velocidade radial e da velocidade angular, comportamento comumente associado a forças dissipativas.

Substituindo a Eq. (10) na Eq. (9), encontra-se

Desenvolvendo a derivada temporal é possível observar que o termo dependente de desaparece e obtém-se, finalmente, a seguinte expressão

Na hipótese que Fρ(ρ) seja uma força conservativa, o que implica em Fρ(ρ) = -∇ onde é a energia potencial associada ao sistema [5], pode-se escrever

Substituindo a Eq. (14) na Eq. (13), tem-se

Logo, o termo que está entre as chaves é uma constante no tempo, o que permite escrever por fim

É fácil ver que a constante associada, Etot, é a energia total do sistema pois o primeiro termo da soma corresponde à energia cinética. O termo U(ρ) é a energia potencial do sistema e o segundo termo da soma corresponde a uma energia potencial centrífuga que no caso newtoniano convencional, isto é, quando o lado direito da expressão (6) é igual a zero, vale É importante ressaltar que a relação acima foi obtida considerando-se uma força tangencial diferente de zero e dependente do produto das velocidades radial e angular, o que em princípio não era um resultado esperado. É interessante observar ainda que para haver conservação de energia conforme a Eq. (15) a força tangencial deve necessariamente ser igual ao lado direito da Eq. (11), isto é, a única expressão possível que leva a uma conservação da energia e que contém um único termo é Note que esta força, assim como no caso da força gravitacional newtoniana, também é dependente do inverso do quadrado da distância.

Para o caso em que (mesmo quando r → 0) e observando que a Eq. (15) será reescrita como

e portanto,

Este resultado é igual ao encontrado quando o lado direito da Eq. (6) é zero, o que corresponde à uma força tangencial nula, que é o caso convencionalmente tratado na literatura.

3. Acerca da conservação da energia na presença de outros potenciais

O modelo proposto permite que diversos tipos de trajetórias do sistema sejam analisadas a partir da escolha de condições iniciais convenientes e do potencial U(ρ), o qual é, a priori, completamente livre. Isso significa que sistemas conhecidos (gravitacionais por exemplo) podem ser analisados ante a escolha adequada de U(ρ), sendo que o termo restante, derivado da força dependente da velocidade definida na Eq. (11), pode ser utilizado para descrever caracterísiticas adicionais de modo que se tenha associado ao sistema resultante verdadeiramente um potencial efetivo. Nesta seção as atenções são voltadas para o estudo de certos cenários possíveis a partir das trajetórias, utilizando o potencial efetivo. Note inicialmente que, após algumas manipulações algébricas na Eq. (7) e definindo é possível escrever a equação da trajetória u(Φ) como

Esta equação não possui solução analítica simples mas é interessante observar que, quando k = 0 a relação acima recai na equação de trajetória bem conhecida.

Neste ponto, procede-se ao estudo de três situações particulares: para o potencial gravitacional newtoniano, para o potencial de Manev e para o caso da soma de ambos com o potencial harmônico, através da análise do gráfico da energia em função da distância. Esta análise revela que para um grande número de valores possíveis para os parâmetros envolvidos no problema, trajetórias limitadas podem ser obtidas para todos os casos analisados.

1. Potencial gravitacional newtoniano: Cons Neste caso, o potencial efetivo assume a forma

Isto é equivalente a dizer que a força gravitacional newtoniana tem um acréscimo de um termo como o definido na Eq. (11). O comportamento é expresso na Fig. 1.


2. Potencial gravitacional newtoniano somado com o potencial de Manev: Na segunda década do século passado Georgi Manev, um físico búlgaro, propôs um potencial clássico não-relativístico visando reproduzir os resultados da relatividade geral. De fato, para descrever cenários como o sistema solar, a teoria de Manev mostra-se especialmente eficaz. Após 1930, ano da última publicação de Manev a respeito do tema, suas idéias permaneceram esquecidas por um longo período de tempo até receberem um novo impulso através de artigos recentes. O trabalho [4] traz uma breve e clara discussão acerca da teoria de Manev e indica uma série de referências recentes sobre o assunto.

Para este caso, o potencial efetivo fica escrito como

sendo o último termo à direita da igualdade acima o potencial de Manev atrativo. Observe a Fig. 2.


3. Potencial gravitacional newtoniano e de Manev somado ao potencial harmônico: Considerando agora um potencial harmônio do tipo onde η é a constante elástica associada ao potencial harmônico, pode-se escrever o potencial efetivo sob a forma

A órbita circular de raio que representa o mínimo do potencial fica sendo

enquato a seguinte expressão para frequência de pequenas oscilações em torno de é escrita sob a forma

As Figs. 3, 4, 5 e 6 descrevem o valor de Uef para diversos valores de k, B e η.





4. Conclusão

Neste trabalho uma força dependente da velocidade foi proposta e aspectos do modelo resultante foram discutidos. Viu-se que, sob uma escolha específica em que a dependência com a velocidade ocorre nas direções radial e tangencial, é possível obter uma equação que atesta a conservação da energia do sistema, resultado curioso tendo em vista a conexão que, em geral, existe entre sistemas dissipativos e modelos cujas forças são dependentes da velocidade. A equação da energia é formada pela soma de um termo cinético com um potencial, o qual a princípio é livre, e um termo potencial centrífugo, perfazendo assim um potencial efetivo. Estudou-se o comportamento de modelos submetidos aos potenciais gravitacional newtoniano e de Manev na presença do potencial centrífugo e verificou-se a possibilidade da obtenção de órbitas limitadas a partir do adequado ajuste de parâmetros ligados às condições iniciais do sistema e mesmo quando a energia total é maior que zero. Observe ainda que para se obter um estado ligado em qualquer dos casos, exceção feita ao que acrescenta o potencial harmônico, a energia total do corpo deve ser menor que Quando o potencial harmônico é incluído o estado será sempre ligado para qualquer valor de energia total, mesmo que ela seja infinita.

Espera-se que este tipo de contribuição seja um elemento msotivador na busca por novos e intrigantes modelos mecânicos, capazes de dar conta de complexos fenômenos utilizando ferramentas mais conhecidas que outras mais sofisticadas, como as relativísticas, permitindo a existência de um número cada vez maior de modelos análogos newtonianos. Além disso, a busca e análise de curiosos modelos em mecânica clássica deve manter aquecido o interesse pela área e fortalecer seu apelo pedagógico.

5. Agradecimentos

A.M. Oliveira e R. Fracalossi gostariam de agradecer, respectivamente, à FAPES e à CAPES pelo apoio financeiro.

Referências

[1] M. Milgrom, Astrophys. J. 270, 365 (1983); Astrophys. J. 270, 371 (1983); Astrophys. J. 270, 384 (1983).

[2] H.E.S. Velten, Revista Brasileira de Ensino de Física 30, 3314 (2008).

[3] G. Manev, C. R. Acad. Sci. Paris 178, 2159 (1924); G. Manev, Z. Phy. 31, 786 (1925); G. Manev, C. R. Acad. Sci. Paris 190, 963 (1930); G. Manev, C. R. Acad. Sci. Paris 190, 1374 (1930).

[4] H.E.S. Velten e R.V. Sampaio, Revista Brasileira de Ensino de Física 31 (2009);

[5] Stephen T. Thornton and Jerry B. Marion, Classical Dynamics of Particles and Systems (Brooks Cole, Salt Lake City, 2003), 5ª ed.

Recebido em 28/11/2009; Aceito em 29/1/2010; Publicado em 21/3/2011

  • [1] M. Milgrom, Astrophys. J. 270, 365 (1983); Astrophys. J. 270, 371 (1983); Astrophys. J. 270, 384 (1983).
  • [2] H.E.S. Velten, Revista Brasileira de Ensino de Física 30, 3314 (2008).
  • [3] G. Manev, C. R. Acad. Sci. Paris 178, 2159 (1924);
  • G. Manev, Z. Phy. 31, 786 (1925);
  • G. Manev, C. R. Acad. Sci. Paris 190, 963 (1930);
  • G. Manev, C. R. Acad. Sci. Paris 190, 1374 (1930).
  • [4] H.E.S. Velten e R.V. Sampaio, Revista Brasileira de Ensino de Física 31 (2009);
  • [5] Stephen T. Thornton and Jerry B. Marion, Classical Dynamics of Particles and Systems (Brooks Cole, Salt Lake City, 2003), 5Ş ed.
  • 1
    E-mail:
  • 2
    Num sistema de dois corpos submetidos a um potencial gravitacional newtoniano, deve ser o momento de inércia do corpo que orbita em torno de seu par, por exemplo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Aceito
      29 Jan 2010
    • Recebido
      28 Nov 2009
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