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Geometria diferencial de curvas e dinâmica da partícula

Differential geometry of curves and single particle dynamics

Resumos

A geometria diferencial de curvas é aplicada à dinâmica de uma partícula em movimento no espaço tridimensional. As propriedades geométricas da trajetória são expressas em termos de grandezas dinâmicas associadas ao movimento. Estudamos, em particular, a conexão entre a curvatura, a torção e a força a que a partícula está sujeita. São encontradas as condições gerais que uma força deve satisfazer para que a trajetória seja plana independentemente das condições iniciais.

geometria diferencial de curvas; dinâmica da partícula


The differential geometry of curves is applied to the dynamics of a particle moving in tridimensional space. The geometric properties of the trajectory are expressed in terms of dynamical quantities associated with the motion. In particular, we study how curvature and torsion are connected with the force on the particle. General conditions are found that a force has to satisfy in order that the trajectory lies on a plane irrespective of the initial conditions.

differential geometry of curves; single particle dynamics


ARTIGOS GERAIS

Geometria diferencial de curvas e dinâmica da partícula

Differential geometry of curves and single particle dynamics

Antônio Duarte Pereira Jr.; Nivaldo A. Lemos1 1 E-mail: nivaldo@if.uff.br.

Departamento de Física, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil

RESUMO

A geometria diferencial de curvas é aplicada à dinâmica de uma partícula em movimento no espaço tridimensional. As propriedades geométricas da trajetória são expressas em termos de grandezas dinâmicas associadas ao movimento. Estudamos, em particular, a conexão entre a curvatura, a torção e a força a que a partícula está sujeita. São encontradas as condições gerais que uma força deve satisfazer para que a trajetória seja plana independentemente das condições iniciais.

Palavras-chave: geometria diferencial de curvas, dinâmica da partícula.

ABSTRACT

The differential geometry of curves is applied to the dynamics of a particle moving in tridimensional space. The geometric properties of the trajectory are expressed in terms of dynamical quantities associated with the motion. In particular, we study how curvature and torsion are connected with the force on the particle. General conditions are found that a force has to satisfy in order that the trajectory lies on a plane irrespective of the initial conditions.

Keywords: differential geometry of curves, single particle dynamics.

1. Introdução

Conceitos geométricos e topológicos [1] desempenham um papel cada vez mais destacado na construção de teorias físicas [2]. Em particular, a geometria diferencial é uma disciplina matemática de extrema importância para a física teórica contemporânea: suas aplicações estendem-se da mecânica clássica [3] à física das partículas elementares [4], sem falar no seu papel vital na teoria da relatividade geral de Einstein [5].

Com seu belo aparato analítico e forte apelo visual, a geometria diferencial de curvas e superfícies no espaço tridimensional, além de importante e fascinante por si mesma, abre as portas para o estudo de geometria diferencial avançada, de suma importância para a física teórica atual. O vínculo entre mecânica e geometria é muito estreito, o que tem estimulado a exposição das técnicas básicas da geometria diferencial de curvas e superfícies em livros avançados de mecânica clássica [6].

Neste trabalho fazemos uma breve exposição das ideias e dos resultados fundamentais da geometria diferencial de curvas visando aplicações à dinâmica de uma partícula. As propriedades geométricas fundamentais da trajetória são expressas em termos da força sobre a partícula e de outras grandezas dinâmicas associadas ao movimento. Essa abordagem torna possível enunciar de forma clara certos problemas cuja formulação matemática seria obscura no tratamento convencional. Em particular, são encontradas as condições gerais que uma força deve satisfazer para que a trajetória seja plana quaisquer que sejam as condições iniciais.

2. Elementos da geometria diferencial de curvas

Embora nossa concepção mais imediata de curva seja estática — um conjunto de pontos no espaço formando uma linha —, uma curva também pode ser entendida intuitivamente como a trajetória descrita por um ponto em movimento. Esta ideia é tornada matematicamente precisa pela noção de curva parametrizada. Há uma teoria geral de curvas em

n e — de particular interesse para a teoria da relatividade especial — no espaço-tempo de Minkowski [7, 8]. Vamos, no entanto, limitar nossas considerações a curvas em 3.

2.1. Curvas parametrizadas

Para as motivações geométricas das definições a seguir e as demonstrações dos resultados relevantes, o leitor é remetido aos excelentes textos de Pressley [9] e do Carmo [10] .

Definição 1. Uma curva parametrizada em 3 é uma aplicação infinitamente diferenciável α: (a, b) → 3 onde - ∞ < a < b < ∞. A variável t ∈ (a, b) é o parâmetro da curva e a imagem da aplicação α é o traço da curva.

Em virtude desta definição, não se deve confundir uma curva parametrizada, que é uma aplicação, com o seu traço, que é um subconjunto de

3 (o tal conjunto de pontos formando uma linha). Note que α(t) = (α1(t), α2(t), α3(t)) é o vetor posição do ponto da curva para o qual o parâmetro tem valor t, que os físicos costumam denotar por r(t). Passaremos a utilizar esta última notação quando nos voltarmos para as aplicações à mecânica.

Definição 2. Dada uma curva parametrizada α(t), sua derivada (t) = dα(t)/dt é o vetor tangente ou vetor velocidade de α no ponto α(t).

Suporemos que a curva é regular, isto é, o vetor tangente nunca se anula: ║(t)║ > 0 para todo t, onde ║(t)║ =

Definição 3. O comprimento de arco a partir de t0 de uma curva parametrizada α(t) é a função s: n definida por

Pelo teorema fundamental do cálculo, temos que ds/dt = ║(t)║. Como ds/dt > 0, podemos inverter a equação s = s(t) e exprimir o parâmetro t como uma função infinitamente diferenciável de s, de modo que qualquer curva regular pode ser parametrizada pelo comprimento de arco. Para uma curva α(s) parametrizada pelo comprimento de arco tem-se

isto é, o vetor tangente é unitário.

2.2. Curvatura e torção

Passemos, agora, a definir as principais características geométricas das curvas parametrizadas, começando pela curvatura. No restante desta seção, sempre que for conveniente e não causar ambiguidade, usaremos o ponto para indicar derivada em relação ao comprimento de arco s. Quando houver risco de dúvida, escreveremos, por exemplo, (s) em vez de simplesmente .

Definição 4. Seja α(s) uma curva parametrizada pelo comprimento de arco. A função escalar k(s) = ║(s)║ é chamada de curvatura de α em s.

De acordo com a definição acima, a curvatura não pode ser negativa. Como o vetor tangente a uma curva parametrizada pelo comprimento de arco tem norma constante e igual a 1, a curvatura mede a variação da direção do vetor tangente. Segue-se que a curvatura de uma linha reta é nula. No caso de curvas planas, a curvatura pode ser interpretada como a taxa de variação por unidade de comprimento de arco do ângulo formado pelo vetor tangente com uma direção fixa [9].

A definição de curvatura pressupõe que a curva esteja parametrizada pelo comprimento de arco. No caso de uma parametrização qualquer, não é difícil provar [9] que a curvatura de uma curva regular α(t) é dada por

onde = dα/dt e σ × γ denota o produto vetorial dos vetores σ e γ em 3.

Seja α(s) uma curva parametrizada pelo comprimento de arco. Nos pontos em que k(s) ≠ 0 pode-se definir o vetor unitário n(s) por meio da equação

Diferenciando a identidade (s) · (s) = 1 em relação a s, resulta imediatamente que · = 0, ou seja, n(s) é normal à curva. Fica, portanto, determinado um plano gerado por (s) e n(s), denominado plano osculador em s.

Em todos os pontos da curva em que k(s) ≠ 0 define-se o vetor binormal como o vetor unitário b(s) = t(s) × n(s), onde t(s) = dα/ds = (s) denota o vetor unitário tangente à curva. Desta forma, fica definido um triedro positivamente orientado {t(s), n(s), b(s)} em cada ponto da curva com curvatura diferente de zero, conhecido como triedro de Frenet ou triedro de Serret-Frenet.

A derivada de b(s) é dada por

porque (s) é paralelo a n(s). Portanto, (s) é ortogonal a t(s) e também a b(s) por ser este último um vetor unitário. Assim, inferimos que (s) é paralelo a n(s) e podemos escrever

equação que serve para definir a torção.

Definição 5. Seja α(s) uma curva parametrizada pelo comprimento de arco. O número τ(s) definido pela Eq.(6) é chamado de torção2 2 Adotamos a convencão de Manfredo do Carmo [10], mas cumpre alertar que há autores que definem a torcão com o sinal oposto, isto é, via ( s) = –τ( s) n( s). de α em s.

Diferentemente da curvatura, a torção pode ser negativa. Se a curva é plana, os vetores t(s) e n(s) pertencem ao plano que contém o traço da curva e b(s) é um vetor unitário constante perpendicular a esse plano. Segue-se que (s) = 0 e, portanto, a torção é nula. A torção mede a rapidez com que muda a direção do vetor unitário b(s), isto é, a rapidez com que a curva se afasta do plano osculador.

A torção de uma curva α(t) com uma parametrização qualquer é dada por [9, 10]

que, com o emprego da Eq.(3), pode ser posta na forma equivalente

Nas Eqs.(7) e (8) o ponto denota derivada em relação ao parâmetro arbitrário t.

2.3. Fórmulas de Frenet

As derivadas dos vetores unitários t(s), n(s), b(s) nos dão informações sobre o comportamento da curva em uma vizinhança de s e podem ser expressas como combinações lineares desses próprios vetores, já que eles formam uma base ortonormal. De n(s) = b(s) × t(s) resulta

Reunindo as três equações que fornecem as derivadas dos vetores t, n e b, temos

As equações acima são conhecidas como fórmulas de Frenet ou fórmulas de Serret-Frenet. Com base nessas equações prova-se o teorema fundamental da teoria local das curvas [10], que referenda nossa intuição físico-geométrica: salvo por uma isometria do espaço tridimensional (rotação seguida de translação), a curvatura e a torção determinam univocamente a curva.

3. Aplicações à dinâmica da partícula

Nesta seção utilizaremos a formulação newtoniana da mecânica e os resultados da seção anterior para estabelecer uma conexão entre grandezas dinâmicas e entidades geométricas. Os principais resultados desta seção podem ser encontrados em [11], embora algumas de nossas deduções sejam mais gerais e mais concisas.

Segundo a mecânica newtoniana, num referencial inercial o movimento de uma partícula é regido pela equação

onde m é a massa da partícula, é sua aceleração e F é a força resultante que sobre ela atua. Dado o estado — posição e velocidade — inicial da partícula, é possível determinar a posição como função do tempo, ou seja, a curva descrita pela partícula. De acordo com o teorema de existência e unicidade para equações diferenciais ordinárias, para qualquer força razoável a curva descrita pela partícula existe e as condições iniciais a determinam univocamente.

Para estabelecer a conexão mencionada, é conveniente fazer uma mudança de notação: os vetores que formam o triedro de Serret-Frenet, t, n, b, passarão a ser denotados respectivamente por e(1), e(2), e(3). Com esta nova notação, as fórmulas de Frenet (10)-(12) assumem a forma

3.1. Conexão entre grandezas dinâmicas e curvatura

Doravante, o ponto denotará exclusivamente a derivada em relação ao tempo.

Seja r(t) = (x(t), y(t), z(t)) o vetor posição da partícula no instante t. Da definição (1) de comprimento de arco, temos que ds/dt = υ e, portanto, dt/ds = 1/υ, onde υ = ║║ é o módulo da velocidade ou velocidade escalar.

Por definição, e(1) = dr/ds. Utilizando a regra da cadeia obtemos

onde v é o vetor velocidade da partícula. Usando a primeira equação de Frenet [Eq.(14)] e o resultado acima, encontramos

onde a = = é o vetor aceleração. Desta equação decorre que

expressão que relaciona a curvatura com grandezas cinemáticas.

Da Eq.(18) infere-se imediatamente que a aceleração é dada por

Esta equação apresenta a aceleração decomposta em suas componentes tangencial (paralela a e(1)) e normal (paralela a e(2)). A componente tangencial tem magnitude e a componente normal, conhecida como aceleração centrípeta, tem módulo υ2/r, onde r = 1/k é o raio de curvatura. Como v é ortogonal a e(2) e e(1) = v/υ, segue-se que a · v = υ. Utilizando este resultado na Eq.(19) e o fato de a curvatura ser uma função não-negativa, obtemos

A fim de expressar a curvatura em termos de grandezas dinâmicas, comecemos por usar a segunda lei de Newton para escrever a = F/m, onde F é o módulo da força resultante que age sobre a partícula. Além disso, em termos da energia cinética T = mυ2/2, temos υ = /m ou, ainda, 2 = 2/2mΤ. Mas, pelo teorema do trabalho-energia, = F · v. Com esses resultados, a curvatura pode ser expressa como

que concretiza nosso objetivo de associar a curvatura a grandezas dinâmicas. Como um teste elementar, note que se a força e a velocidade forem sempre colineares o movimento será retilíneo e a curvatura será nula: neste caso F · v = ±Fυ e a Eq. (22) fornece k = 0, como deveria. Por outro lado, se a força for sempre perpendicular à velocidade teremos k = F/2Τ, onde Τ é constante. A curvatura será constante se o módulo da força também o for, e tipicamente a trajetória será uma circunferência ou uma hélice, embora valha a pena notar que há exemplos bastante exóticos de curvas fechadas não-planas de curvatura constante [12].

3.2. Conexão entre grandezas dinâmicas e torção

De acordo com a Eq. (8), a torção é dada por

Lançando mão da Eq.(22) e recorrendo mais uma vez à segunda lei de Newton, obtemos

onde P = mv é o momento linear da partícula.

Completamos, assim, a tarefa de exprimir as principais características geométricas da curva descrita pela partícula em termos de grandezas dinâmicas.

4. Forças que produzem somente trajetórias planas

O estreitamento dos laços entre geometria e dinâmica permite equacionar com grande simplicidade uma pergunta cuja formulação matemática não seria clara no tratamento convencional: que condições uma força deve satisfazer para que todas as órbitas por ela engendradas sejam curvas planas?

Ora, para que uma curva parametrizada seja plana é necessário e suficiente3 3 Sob a hipótese de que a curvatura nunca se anula. que sua torção seja zero [9]. Em virtude da Eq.(24), a trajetória será plana se e somente se

onde usamos a invariância do produto triplo sob permutações cíclicas. Esta condição envolve a velocidade da partícula. Desejamos encontrar condições que sejam expressas exclusivamente em termos da força. Para tanto, devemos levar em conta que estamos à procura das condições tais que as órbitas sejam planas para condições iniciais arbitrárias.

4.1. Força independente da velocidade

A fim de facilitar a discussão a seguir será útil adotar a seguinte notação indicial

Adotaremos, também, a convenção de soma sobre índices repetidos: qualquer repetição de índices implica uma soma de 1 a 3 no referido índice.

Se a força depende somente da posição e do tempo, isto é, F = F(r, t), temos

Como é bem conhecido, as componentes do produto vetorial de dois vetores em

3 podem ser expressas em termos do símbolo totalmente antissimétrico de Levi-Civita eijk na forma [13]

Substituindo as Eqs. (27) e (28) na Eq. (25) resulta

Estamos à procura de condições sobre a força que assegurem órbitas planas independentemente das condições iniciais. Portanto, a Eq. (29) deve ser satisfeita quaisquer que sejam os valores das componentes das velocidades, pois estas podem ser escolhidas arbitrariamente em qualquer instante inicial. Assim, os coeficientes dos termos linear e quadrático nas velocidades na Eq. (29), mostrados entre parênteses, devem ser nulos separadamente. Os coeficientes do termo linear são as componentes do produto vetorial de F por ∂F/∂t, donde

Como o produto υiυlé simétrico nos índices i e l, a parte simétrica em i e l dos coeficientes4 4 A parte antissimétrica dá uma contribuicão identicamente nula à condicão (29). do produto υiυl na Eq. (29) deve ser nula, isto é,

Para que a força produza somente trajetórias planas, suas componentes cartesianas têm que satisfazer um sistema de nove equações diferenciais parciais não lineares acopladas de primeira ordem, as Eqs. (30) e (31). Explicitamente, estas últimas equações escrevem-se

Como há nove equações que devem ser satisfeitas pelas três componentes cartesianas da força, são raras as forças que produzem exclusivamente órbitas planas. O ideal seria encontrar a solução geral das Eqs.(30) e (31), que daria explicitamente a força independente da velocidade mais geral possível que só produz órbitas planas. Infelizmente isto está fora de nosso alcance devido à enorme complexidade dessas equações. De qualquer modo, as equações (30) e (31) caracterizam e, portanto, servem para identificar tais forças.

Como é sobejamente conhecido, forças centrais geram sempre órbitas planas e, assim, fornecem um teste simples dos resultados acima. Uma força central é da forma

onde r = ║ r ║. Segue-se que

onde ƒ' = ∂ƒ /∂r e = ∂ƒ/∂t. Como F e ∂F/∂t são colineares, a Eq.(30) é satisfeita. Por outro lado, usando a Eq. (37),

O termo cúbico nas componentes do vetor posição nesta última equação é nulo porque

ijk é antissimétrico nos índices j e k, ao passo que xjxk é simétrico nesses mesmos índices. Consequentemente

de modo que a Eq.(31) também é satisfeita.

4.2. Força eletromagnética

Os resultados anteriores não se aplicam se a força depende da velocidade. A mais importante de todas as forças dependentes da velocidade é a força eletromagnética

onde e denota a carga elétrica da partícula.

Em face do desanimador cipoal algébrico do caso geral, vamos restringir nossa análise à situação em que os campos elétrico e magnético não dependem da posição: E = E(t) e B = B(t). Este caso particular ilustra todas as peculiaridades do problema eletromagnético e já envolve uma álgebra consideravelmente trabalhosa.

Com as hipóteses feitas, temos

onde usamos = F/m. O termo proporcional a e/m na equação acima dá uma contribuição à condição (25) que tem que ser separadamente nula porque a trajetória deve ser plana quaisquer que sejam a massa e a carga da partícula. Consequentemente

Segue-se que os termos independentes da carga e da massa conduzem a

Comecemos por investigar as consequências da Eq.(42). Trata-se de um polinômio do terceiro grau nas componentes da velocidade cujos coeficientes devem ser todos nulos. Os termos de primeiro, segundo e terceiro graus de (42) são, respectivamente

Tentemos simplificar a Eq. (45). Com o uso da conhecida identidade vetorial

podemos escrever

e, analogamente,

Portanto, a equação (45) equivale a

que, em notação indicial, escreve-se

com a devida simetrização dos coeficientes nos índices i e j.

Por sua vez, a Eq. (46) equivale a

que em notação indicial escreve-se

onde foi feita uma simetrização completa do termo Biδjk porque o produto υiυjυk é totalmente simétrico.

Repitamos o procedimento acima para a equação (43), cujos termos linear, quadrático e cúbico são, respectivamente

onde usamos novamente a identidade (47). Quanto à Eq. (55), em notação indicial pode-se escrevê-la, com a simetrização habitual, na forma

Em síntese, considerando as Eqs.(44), (51), (53), (54), (56), (57) e a arbitrariedade das componentes da velocidade, todas as trajetórias serão planas se e somente se as seguintes condições forem satisfeitas:

À guisa de teste, consideremos uma partícula num campo magnético uniforme. Como E = 0 e = 0, as equações (58), (59), (61), (62) e (63) são trivialmente satisfeitas. Quanto à Eq. (60), contraindo os índices i e j resulta

Em suma, um campo magnético uniforme diferente de zero não preenche os requisitos necessários para que todas as trajetórias sejam planas. Este resultado está de acordo com o fato bem conhecido de que, em geral, a trajetória de uma partícula carregada num campo magnético uniforme é uma hélice, que não é uma curva plana. A propósito, em [11] lê-se que "se o módulo do momento linear e da força são constantes o movimento da partícula se dá num plano". Esta afirmação não é verdadeira, e o movimento de uma partícula carregada num campo magnético uniforme é um contraexemplo: o módulo da velocidade permanece constante, assim como sua componente paralela a B, de modo que o módulo da força F = ev × B também é constante porque a magnitude da parte da velocidade transversal a B é separadamente constante. No entanto, a trajetória em geral é uma hélice.

5. Extensão a curvas seccionalmente regulares

As condições (30) e (31) ou (58)-(63) para que as trajetórias sejam sempre planas foram obtidas sob a hipótese de que a curva r(t) é regular. A imposição de que a velocidade da partícula nunca se anule não é muito natural do ponto de vista físico, de modo que vale a pena examinar se nossos resultados permanecem válidos caso essa restrição seja relaxada.

Suponhamos que a curva seja apenas seccionalmente regular, isto é, r(t) é contínua em toda parte e regular em cada intervalo entre instantes isolados em que a velocidade se anula. Seja v(t1) = 0 e sejam (t0, t1) e (t1, t2) intervalos de tempo durante os quais a curva é regular. Nossos resultados valem nos intervalos (t0, t1) e (t1, t2), isto é, se as Eqs. (30) e (31) ou (58)-(63) se verificam, conforme o tipo de força, a trajetória é plana. Sejam Π1 e Π2 os planos das trajetórias nos intervalos (t0, t1) e (t1, t2), respectivamente. Se Π1≠ Π2, a componente da velocidade perpendicular ao plano Π1 tem que variar descontinuamente de zero para um valor finito diferente de zero quando t passa pelo valor t1. Para que isto ocorra, a componente da força na direção perpendicular a Π1 tem que ser infinita no instante t1. Um argumento equivalente é o seguinte: por ser perpendicular aos planos do movimento, o momento angular5 5 Em relacão a uma origem na intersecão dos planos Π 1 e Π 2. dá um salto finito em t = t1, o que requer torque infinito e, consequentemente, força infinita. Se a força é sempre finita — uma exigência física inescapável —, os planos Π1 e Π2 têm que coincidir. Portanto, as condições encontradas sobre a força asseguram uma órbita num plano fixo mesmo que a velocidade da partícula se anule em instantes isolados.

6. Conclusão

Galileu parece ter sido o primeiro a reconhecer que a matemática é a linguagem das leis da natureza. Hoje em dia, o status da matemática para a física teórica transcende o de mera linguagem. Segundo Freeman Dyson [14], a matemática é "a principal fonte de conceitos e princípios por meio dos quais novas teorias podem ser criadas". Em contrapartida, a demonstração de teoremas matemáticos por argumentos físicos [15] é uma das manifestações mais envolventes da relação simbiótica entre física e matemática.

A geometria diferencial de curvas e superfícies no espaço tridimensional é matematicamente acessível a estudantes de graduação e tem aplicações imediatas à mecânica. Excelente porta de entrada para a geometria diferencial avançada, constitui-se numa fonte de estímulo para estudantes interessados em alçar voos mais altos, como, por exemplo, um estudo sério da teoria da relatividade geral.

O estudante de bacharelado em física com pendor para a carreira teórica precisa ser dotado de uma formação matemática mais ampla e profunda do que a tradicional, visando torná-lo apto a dominar métodos matemáticos avançados, pois sem esse domínio ficarão prejudicadas suas chances de dar contribuições significativas à física teórica na sua vida futura de pesquisador. Isto requer convencê-lo de que a expressão das leis físicas em linguagem matemática sofisticada não é fútil nem uma simples exibição de pedantismo, pois, como vimos, o próprio formalismo matemático frequentemente é capaz de sugerir problemas que não seriam visíveis numa linguagem matemática menos refinada.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao árbitro anônimo, cujas indagações suscitaram a seção 5, que não fazia parte do texto originalmente submetido. Antônio Duarte Pereira Jr. agradece ao CNPq pela concessão de bolsa de iniciação científica do PIBIC.

Recebido em 2/6/2010; Aceito em 2/5/2011; Publicado em 6/7/2011

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  • [13] Ver, por exemplo, N.A. Lemos, Mecânica Analítica (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2007), 2 ed., Apêndice A.
  • [14] F.J. Dyson em http://math.furman.edu/~mwoodard/ mqs/mquot.shtml
    » link
  • [15] M. Levi, The Mathematical Mechanic (Princeton University Press, Princeton, 2009).
  • 1
    E-mail:
  • 2
    Adotamos a convencão de Manfredo do Carmo [10], mas cumpre alertar que há autores que definem a torcão com o sinal oposto, isto é, via
    (
    s) = –τ(
    s)
    n(
    s).
  • 3
    Sob a hipótese de que a curvatura nunca se anula.
  • 4
    A parte antissimétrica dá uma contribuicão identicamente nula à condicão (29).
  • 5
    Em relacão a uma origem na intersecão dos planos Π
    1 e Π
    2.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      02 Jun 2010
    • Aceito
      02 Maio 2011
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