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A utilização equivocada do conceito de partícula no cálculo do trabalho da força de atrito

The misconception of the use of the particle concept in calculation of work of friction force

Resumos

O presente trabalho pretende elucidar, através de uma abordagem didática, erro no cálculo do trabalho realizado pela força de atrito cinético. Esse assunto, frequentemente, apresenta-se de forma equivocada em diversos livros de física no nível universitário.

partícula; atrito; energia interna


This work aims to elucidate, through a didactic approach, miscalculation of work done by frictional force. This issue presents itself so controversial in several books of physics at the university level.

particle; friction; internal energy


ARTIGOS GERAIS

A utilização equivocada do conceito de partícula no cálculo do trabalho da força de atrito

The misconception of the use of the particle concept in calculation of work of friction force

Osman Rosso Nelson1 1 E-mail: osman@dfte.ufrn.br. ; Ranilson Carneiro Filho

Departamento de Física Teórica e Experimental, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil

RESUMO

O presente trabalho pretende elucidar, através de uma abordagem didática, erro no cálculo do trabalho realizado pela força de atrito cinético. Esse assunto, frequentemente, apresenta-se de forma equivocada em diversos livros de física no nível universitário.

Palavras-chave: partícula, atrito, energia interna.

ABSTRACT

This work aims to elucidate, through a didactic approach, miscalculation of work done by frictional force. This issue presents itself so controversial in several books of physics at the university level.

Keywords: particle, friction, internal energy.

1. Introdução

Diversos livros-textos utilizados nos cursos universitários [1-3] realizam o cálculo do trabalho da força de atrito cinético, que age sobre um determinado objeto, como se este pudesse ser tratado como uma partícula. Como veremos, tal procedimento é inadequado e revela um entendimento incompleto sobre o teorema do trabalho e energia e força de atrito.

Quando um objeto escorrega em uma superfície áspera, as superfícies em contato, sujeitas à ação da força de atrito, ficam aquecidas. Esta constatação experimental revela um aumento da energia interna do corpo. Portanto, necessário se faz distinguir o tratamento dinâmico de um objeto da abordagem que envolve a análise de energia no processo. Em outras palavras, mesmo que o conceito de partícula possa ser utilizado para a obtenção de grandezas como aceleração, força resultante, etc., através da utilização da 2ª lei de Newton, reduzir o sistema a uma partícula traz como conseqüência a eliminação da possibilidade do sistema possuir energia interna.

Sendo assim, é inevitável que não se possa tratar um objeto como uma partícula, se nossa intenção for efetuar o cálculo do trabalho do atrito cinético que esteja atuando sobre o objeto.

Esse tipo de proibição não deve causar maiores desconfortos, uma vez que ela também se faz presente nas situações-problemas em que as partes do objeto não se movem exatamente da mesma forma. Tal preocupação nos conduzirá à representação dos corpos, sujeitos à força de atrito, como sendo um sistema de partículas e, com essa abordagem, possibilitar a existência do armazenamento de energia interna no sistema. Para explicitar nosso ponto de discussão, recordemos o resultado usualmente apresentado pelos textos acadêmicos para o cálculo do trabalho do atrito cinético que age sobre um bloco que é arrastado sobre uma superfície horizontal.

Inúmeros textos apresentam como resultado para esse trabalho a expressão Wa = - ƒa d, onde ƒa e d são, respectivamente, a força de atrito e o deslocamento realizado pelo objeto.

Nossa intenção é de demonstrar que o resultado correto deve ser escrito como Wa = - ƒa d + ΔEint, onde ΔEint é a variação de energia interna do sistema.

2. Energia de um sistema de partículas que interagem

Seja um objeto de massa M (nosso sistema) uma coleção de N partículas que interagem entre si e que podem estar sujeitas às interações oriundas de uma vizinhança (as forças externas). Dentro de uma perspectiva didática, consideremos, inicialmente, apenas duas partículas que participam da interação, denotadas por (1) e (2), onde as forças que sobre elas atuam são representadas por:

  • F1, a força resultante (externa) sobre a partícula 1;

  • F2, a força resultante (externa) sobre a partícula 2;

  • F1(2), a força que a partícula (2) faz na partícula (1);

  • F2(1), a força que a partícula (1) faz sobre a partícula (2).

A descrição dinâmica de cada partícula obedece à segunda lei de Newton, sendo expressa por

e

Efetuando-se a multiplicação escalar da Eq. (1) por dr1 e a Eq. (2) por dr2, obtemos

e

onde dr1 e dr2 são deslocamentos infinitesimais a que essas partículas podem estar sujeitas. Da terceira lei de Newton, temos que F1(2) = - F2(1) e, sabendo-se que dr1 = v1dt e dr2 = v2dt, obtemos através da soma das Eqs. (3) e (4) que

onde dr1(2) = d(r1 - r2). Usando-se na Eq. (5), para ambas as partículas, o resultado dv · v = υ dυ, podemos integrar essa equação, obtendo-se

O resultado da integral, desde um instante inicial até um instante final, permite a identificação das duas primeiras integrais do lado direito na Eq. (6) como sendo o trabalho externo (Wext) a que o sistema está sujeito, e a última integral o trabalho interno (Wint). Portanto a expressão (6) fica

Na Eq. (7), os índices zero representam os valores iniciais das velocidades das partículas.

A energia cinética total do sistema num determinado instante é designada por Desta forma, a Eq. (7) pode ser escrita como

onde ΔK = K - K0 é a variação da energia cinética do sistema. Sendo as forças internas conservativas, o trabalho interno, Wint, será representado como menos a variação da energia potencial interna do sistema, ou seja, Wint= - ΔUint. Portanto, a Eq. (8) fica expressa como

Essa energia cinética pode ser escrita como a soma de duas parcelas, uma relativa ao centro de massa do sistema (energia cinética interna) e a outra, a energia cinética do próprio centro de massa, ou seja, K = Kint + Kc m.

Para alcançarmos esse objetivo basta escrever a velocidade das partículas em relação ao centro de massa. Seja v * = v - vc m, onde as velocidades v* , v são, respectivamente, as velocidades relativas ao centro de massa e ao laboratório, e vc m é a velocidade do centro de massa relativa ao laboratório. Portanto

Na Eq. (10), os dois primeiros termos representam a energia cinética interna (Kint), ou seja, medida em relação ao centro de massa; o terceiro termo é a energia cinética do centro de massa em relação ao laboratório (Kcm), e o último termo é nulo, pois é medido em relação ao centro de massa. Portanto, a Eq. (9) pode ser reescrita como

ΔKint + ΔKcm + ΔUint = Wext

Ou ainda

onde

Ressalte-se que a energia interna, sendo medida em relação ao referencial do centro de massa, representa toda energia associada aos constituintes do sistema. Neste cômputo das energias, vemos claramente a existência de uma total independência com relação ao movimento do centro de massa. Assim, a energia interna, como definida na Eq. (12), no contexto da física clássica, é toda a energia do sistema.

Na descrição termodinâmica, a soma das energias cinéticas internas das partículas recebe o nome de energia térmica. Essa energia térmica está, nas condições de aplicabilidade do princípio da equipartição da energia, relacionada com a temperatura absoluta do sistema. Portanto, neste ponto de nossa discussão, convém salientar o quanto de simplificação está embutido no ato de reduzir um bloco em movimento a uma partícula. A título de ilustração, ao realizar-se o cálculo do calor específico deste bloco, o resultado ficará totalmente prejudicado por não se levar em conta todos os modos de absorção de energia do sistema.

A Eq. (12), obtida para duas partículas, vale para um sistema de N partículas, sendo, nesse caso, a energia cinética do sistema dada por K = , e a energia potencial por

Uint = Σ Uint(i;j) = Uint(1;2) +

Uint(1;3) + ... + Uint(2;3) + ...

A Eq. (11), para um sistema de N partículas, pode ser reescrita como

onde Wext foi substituído por

Nesta equação, os termos - Σ Uext, Wa, Wnc são os trabalhos referentes às forças conservativas, de atrito e outras forças não conservativas, respectivamente.

3. Cálculo do trabalho da força de atrito - exemplo elucidativo de um erro frequente na literatura

A situação que descreveremos agora é bastante explorada nos livros básicos de física, voltados para cursos universitários. Trata-se de um bloco sendo arrastado horizontalmente por uma corda ideal sobre uma superfície áspera.

Essa situação permite explicitarmos o erro que frequentemente observamos na literatura. Por simplicidade, admita que a velocidade do bloco seja constante durante seu deslocamento d sobre a superfície.

Qual o trabalho feito pela força de atrito durante esse deslocamento?

Para a análise dinâmica, o bloco pode ser considerado como uma partícula, entretanto, o mesmo não pode ser feito no que diz respeito à análise da energia. Vejamos os resultados para os dois pontos de vista:

• Ponto de vista dinâmico - sendo o movimento com velocidade constante, a força de atrito, Fa, balanceará a tração na corda, T, ou seja,

• Ponto de vista de energia - consideremos o bloco como sendo o sistema. Nessa situação, ΔKc m = 0. A Eq. (11) conduz a

As forças externas, nesse caso, atrito cinético, normal, tração na corda e o peso do bloco produzirão os trabalhos explicitados na expressão da Eq. (17),

onde Wa, WN, WT, Wmg são, respectivamente, os trabalhos das forças de atrito, normal, tração na corda, peso. Nesse contexto, temos WN = Wmg = 0 e WT = T d. Das Eqs. (15) e (17), obtemos

Esse resultado evidencia o erro usualmente encontrado nos livros textos. É tentador querer expressar o trabalho da força de atrito como Wa = - ƒa d, no entanto, tal procedimento é equivocado.

4. Conclusões

Na análise do movimento de translação de corpos rígidos, sempre esteve presente a possibilidade de tratá-los como uma única partícula. Os textos universitários encontram-se repletos de exemplos, nos quais, tal procedimento é pertinente. Entretanto, essa abordagem reducionista conduz a equívocos, quando se faz necessário levar em conta o balanço de energia dos sistemas em análise. O exemplo do cálculo do trabalho da força de atrito deixa claro esse tipo de equívoco.

Nossa abordagem sinaliza para a forma correta de se estimar o trabalho da força de atrito, entretanto, esse cálculo, em muitas situações apresentadas nos livros-textos, torna-se impossível de ser realizado, visto que, em geral, pouco se informa quanto de energia ficou armazenada na forma de energia interna do sistema.

Portanto, muitos dos problemas propostos nos livros não possuem solução. Nos seus enunciados faltam dados suficientes para a resolução. Apesar disso, verificamos que os livros apresentam soluções para esses problemas, uma vez que os autores admitem, em suas conjecturas, tratar como partícula os objetos em análise. Esse procedimento é desprovido de qualquer justificativa, constituindo-se numa espécie de vício oriundo da análise dinâmica à qual ficou amplamente incorporado.

A forma compartimentalizada de análise dos problemas, ocasionando a separação entre os diversos segmentos da física, faz com que ao se estudar mecânica, a abordagem através da termodinâmica seja esquecida.

A utilização dos conceitos termodinâmicos facilmente denunciaria que um aumento de temperatura seria impossível na análise do objeto se ele for tratado como uma única partícula.

Essa dificuldade torna-se ainda mais intrigante quando grupos ligeiramente diferentes de autores [1, 4], ao escreverem diferentes obras, abordam de forma contraditória o cálculo desse trabalho da força de atrito.

Apesar dos textos acadêmicos, em geral, apresentarem essa deficiência, nossas conclusões encontram-se corroboradas em textos mais recentes [4].

5. Agradecimentos

Agradecemos a Giana Gadelha Paiva Rosso Nelson pelas sugestões na elaboração desse texto. Agradecemos também ao árbitro da RBEF pelos comentários.

Recebido em 1/1/2011; Aceito em 3/2/2011; Publicado em 6/7/2011

  • [1] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos de Física (LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., Rio de Janeiro, 2009), v. 1.
  • [2] F.W. Sears, M.W. Zemansky, H.D. Young e R.A. Freedman, Física I - Mecânica (Person/Addison Wesley, São Paulo, 2003).
  • [3] P.A. Tipler e G. Mosca, Física para Cientistas e Engenheiros. Mecânica Oscilações e Ondas, Termodinâmica (LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora, Rio de Janeiro, 2009), v. 1.
  • [4] R. Resnick, D. Halliday e K.S. Krane, Física 1 (LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora, Rio de Janeiro, 2003).
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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Aceito
      03 Fev 2011
    • Recebido
      01 Jan 2011
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