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Aspectos da natureza da ciência e do trabalho científico no período inicial de desenvolvimento da radioatividade

Some features of the nature of science and of the scientific enterprise in the early period of radioactivity's development

Resumos

Neste trabalho apresenta-se um estudo histórico do período de desenvolvimento da radioatividade, de 1899 a 1913, como referencial capaz de subsidiar discussões relativas à natureza da ciência e a aspectos do trabalho científico compartilhados por correntes epistemológicas pós-positivistas. No âmbito da física moderna, a radioatividade e sua história têm sido bastante negligenciadas pela literatura especializada. Nessa perspectiva, espera-se contribuir para uma formação mais crítica e atual de futuros docentes e cientistas.

radioatividade; história e filosofia da ciência; características do trabalho científico


A historical study of the early period of radioactivity's development, from 1899 to 1913, is presented as an aid to bring up discussions on the nature of science and on some features of the scientific enterprise shared by the post-positivist epistemologies. In terms of modern physics, radioactivity has been over neglected by the specialized literature. From this standpoint, it is hoped to make a contribution to a more critical and current upbringing of future scientists and science teachers.

radioactivity; history and philosophy of science; features of the scientific enterprise


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

Aspectos da natureza da ciência e do trabalho científico no período inicial de desenvolvimento da radioatividade

Some features of the nature of science and of the scientific enterprise in the early period of radioactivity's development

Marinês Domingues Cordeiro1 1 E-mail: marinesdc@hotmail.com. ; Luiz O.Q. Peduzzi

IPrograma de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

IIDepartamento de Física, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

RESUMO

Neste trabalho apresenta-se um estudo histórico do período de desenvolvimento da radioatividade, de 1899 a 1913, como referencial capaz de subsidiar discussões relativas à natureza da ciência e a aspectos do trabalho científico compartilhados por correntes epistemológicas pós-positivistas. No âmbito da física moderna, a radioatividade e sua história têm sido bastante negligenciadas pela literatura especializada. Nessa perspectiva, espera-se contribuir para uma formação mais crítica e atual de futuros docentes e cientistas.

Palavras-chave: radioatividade, história e filosofia da ciência, características do trabalho científico.

ABSTRACT

A historical study of the early period of radioactivity's development, from 1899 to 1913, is presented as an aid to bring up discussions on the nature of science and on some features of the scientific enterprise shared by the post-positivist epistemologies. In terms of modern physics, radioactivity has been over neglected by the specialized literature. From this standpoint, it is hoped to make a contribution to a more critical and current upbringing of future scientists and science teachers.

Keywords: radioactivity, history and philosophy of science, features of the scientific enterprise.

1. Introdução

Ao fim do século 19, surgiram fenômenos que estremeceram as bases da ciência até então conhecida. Com o advento do elétron, da radiação X e da radioatividade, os cientistas imediatamente devotaram imensos esforços para compreendê-los. Como a física clássica não conseguia responder as questões que esses eventos suscitavam, uma nova ciência passou a ser construída.

O resultado, como se sabe, culminou em novas concepções científicas. Notou-se que a estrutura mais fundamental da matéria, o átomo, era composta de estruturas ainda menores, e guardava consigo enorme energia, conceito que recentemente passara a ser compreendido como uma grandeza não mais contínua, mas, sim, discreta.

As pesquisas em radioatividade estiveram intrinsecamente ligadas ao desenvolvimento de modelos atômicos [1]. Entretanto, são poucos os trabalhos no âmbito educacional que primam pela exploração desta área da física. Ostermann e Moreira [2], em um mapeamento da produção nacional e internacional sobre inserções de física moderna e contemporânea no Ensino Médio desde a década de 1980, apontam para apenas seis trabalhos sobre radioatividade. Em uma revisão bibliográfica similar mais recente, Pereira e Ostermann [3] notaram um aumento considerável na produção sobre radioatividade, mas ainda irrisório na comparação com outros temas de física moderna e contemporânea, como a relatividade e a mecânica quântica.

Dos trabalhos mapeados por eles, todos acabam tratando dos aspectos práticos da radioatividade, seja para a geração de energia, seja pelas catástrofes que ela pode causar. São poucos os artigos que demonstram uma preocupação com as possibilidades educacionais da abordagem histórica e filosófica da radioatividade. Contudo, há algumas pesquisas específicas de historiadores da ciência sobre o assunto. Na literatura brasileira, Martins [4-8] se dedicou ao tema; entretanto, seus trabalhos se restringem à descoberta do fenômeno por Henri Becquerel e aos trabalhos de Marie e Pierre Curie, ou seja, sobre o período da gênese da radioatividade.

Mas a radioatividade, em seus primeiros anos, não se esgota em sua gênese. Ela tem todo um desenvolvimento no qual, além dos Curie, há muitos outros cientistas que apresentam contribuições importantes para o seu contínuo entendimento. Ernest Rutherford, na física, é o personagem central do que se poderia denominar de segundo períododa radioatividade. O que se chama neste artigo de período de desenvolvimento da radioatividadeé o período em que foram dedicados esforços para a compreensão de sua natureza, como propõe Kragh [9]. As descobertas dos três tipos de radiação e suas explicações, da isotopia e do núcleo fazem parte deste período.

Assim, em uma tentativa de fornecer subsídios para uma formação em nível superior mais contextualizada filosófica e historicamente, este artigo alia uma breve biogra à científica de Rutherford à história desse segundo período das pesquisas em radioatividade. Em um segundo momento, confronta-se a radioatividade com certas interpretações filosóficas compartilhadas por correntes epistemológicas pós-positivistas, discutidas por Gil-Pérez e cols. [10].

2. McGill, Manchester e Cambridge

Nascido na Nova Zelândia em 31 de agosto de 1871, Ernest Rutherford obteve uma bolsa de estudos na Universidade de Cambridge, para trabalhar sob a orientação de J.J. Thomson em pesquisas, que já conduzia anteriormente em sua terra natal, sobre a ionização de gases. Com a constatação de Becquerel, de que os raios de urânio também tinham a capacidade de ionizar o ar da vizinhança, a radioatividade entrou na pauta de pesquisas do físico neozelandês.

Em 1898, Rutherford foi convidado a ocupar uma posição de professor na Universidade de McGill, em Montreal. Segundo Oliphant [11], ele aceitou o cargo por duas razões principais. O interesse da Universidade de McGill em se consagrar científicamente possibilitava a Rutherford liberdade e autonomia para gerir suas pesquisas, além de uma remuneração atraente - que, dentre outras coisas, lhe permitiria casar com sua noiva, que continuava na Nova Zelândia.

Trabalhando no fenômeno da radioatividade, Rutherford soube criar uma boa equipe, que teve como membros químicos que futuramente se tornariam renomados como Frederick Soddy, Otto Hahn e Bertram Boltwood. Foi em parceria com Soddy que, entre 1902 e 1903, desenvolveu a teoria da desintegração atômica dos elementos. Suas outras contribuições, feitas nos laboratórios daquela universidade, foram a classificação das radiações em alfa e beta, a enunciação do conceito de meia-vida e a constatação da carga positiva das partículas alfa.

Apesar de todos os fomentos oferecidos pela universidade canadense, Rutherford aceitou o convite da Universidade de Manchester para ocupar o lugar de Sir Arthur Schuster, em 1907. Lá, por doze anos, continuou suas pesquisas em radioatividade, cercado de outros renomados cientistas. Trabalhou com Hans Geiger e Ernest Marsden na interpretação de experimentos sobre o espalhamento de partículas alfa, culminando com o modelo atômico nuclear, outra grande contribuição na ciência da radioatividade. Badash [12] ressalta mais uma conquista de Rutherford nos laboratórios de Manchester: as descobertas de outros grandes cientistas. Trabalharam com ele, ou foram seus alunos durante os tempos de Manchester, Niels Bohr, Henry Moseley, James Chadwick, Kasimir Fajans e George von Hevesy.

Com a Primeira Guerra Mundial, Rutherford viu seus esforços parcialmente desviados. Ele se tornou membro da Comissão de Invenções e Pesquisas do Reino Unido, trabalhando em métodos de detecção de submarinos. Mas suas pesquisas sobre a estrutura da matéria prosseguiram e, em 1919, publicou seus experimentos de bombardeamento de nitrogênio por partículas alfa, cuja explicação culminou em sua terceira grande descoberta, a desintegração artificial.

Nesse mesmo ano, Rutherford foi convidado a lecionar na Universidade de Cambridge, dirigindo o Laboratório Cavendish, onde trabalhou até sua morte. Lá, muitos de seus estudantes tornaram-se também conceituados cientistas, como Patrick Blackett, John Cockroft, Ernest Walton e Pyotr Kapitsa, que foram laureados com o Prêmio Nobel (1948, 1951, 1951 e 1978).

É interessante frisar que Rutherford, nobelista em 1908, foi laureado na área de Química. Segundo Eisberg e Resnick [13], em seu discurso ao receber o prêmio, disse ter "observado muitas transformações em seu trabalho com radioatividade, mas nunca uma tão rápida quanto a sua, de físico para químico". O fato ganha novas facetas quando se percebe que Rutherford, ironicamente, afirmava ser a Química apenas uma ramificação da física [14].

Esse tipo de comentário, apesar de parecer grosseiro por parte do físico, é algo que caracteriza sua enorme personalidade. E não apenas os químicos eram alvo de suas ácidas observações, mas também os físicos teóricos. Oliphant [11] menciona ter ouvido Rutherford falar a Heisenberg, após suas conferências em Cambridge: "Estamos muito agradecidos por sua exposição sobre muitas coisas interessantes sem sentido, o que é bastante sugestivo". Seus pupilos e colaboradores, dentre eles, o próprio Oliphant, entretanto, enfatizam que, apesar de parecerem enormemente sarcásticos, seus comentários eram reexos de sua afeição por esses cientistas. O mesmo pode ser estendido aos químicos, dada sua ótima relação com muitos deles e, em especial, com Boltwood [12].

3. Um histórico da radioatividade: da desintegração atômica à isotopia

A descoberta da radioatividade é atribuída ao físico francês Henri Becquerel, que, em 1896, ao investigar a conjectura de Henri Poincaré acerca da relação entre a emissão de raios X e a luminescência, observou que o urânio metálico, reconhecidamente não luminescente, emitia um tipo de radiação mais fraca, capaz de impressionar chapas fotográficas e de ionizar o ar à sua volta [15]. Sua interpretação errônea do fenômeno - de que se tratava de um tipo de luminescência invisível - pode ter sido o motivo do esgotamento do interesse do físico no assunto [16-18].

Aquele tipo de radiação ficou conhecido como radiação de urânio, ou radiação de Becquerel, até 1898, quando, como resultado de suas pesquisas de doutorado, Madame Curie apresenta à Academia Francesa de Ciências suas primeiras constatações acerca do fenômeno. Utilizando a propriedade da radiação do urânio de ionizar o ar em sua vizinhança, ela relata que, além do urânio e de seus compostos, também o tório emitia o mesmo tipo de radiação. Além disso, neste trabalho, Marie Curie [19] conclui que

Todos os compostos do urânio estudados são ativos e o são, em geral, na proporção em que contêm o urânio. Os compostos do tório são muito ativos. O óxido de tório é até mais ativo que o urânio metálico. [...] Dois minerais de urânio: a pechblenda (óxido de urânio) e a calcolita (fosfato de cobre e uranila) são muito mais ativos que o próprio urânio. Este fato é muito interessante e leva a crer que esses minerais possam conter um elemento mais ativo que o urânio. Eu reproduzi a calcolita pelo procedimento de Debray com produtos puros; essa calcolita artificial não é mais ativa que qualquer outro sal de urânio.

Já nessa primeira comunicação, Marie expõe quase todos os dados que a levaram, juntamente com Pierre Curie, a procurar exaustivamente por esse elemento hipotético, que mais à frente descobriu-se serem dois: o polônio e o rádio. A descoberta desses novos elementos, especialmente do rádio, consolidou a radioatividade. Ainda mais importante foi seu reconhecimento - que já encontra vestígios nessa comunicação - de que a atividade desses materiais era uma propriedade atômica da matéria.

Com a descoberta dos novos elementos nos minerais de urânio, o fenômeno da radioatividade teve finalmente as atenções dos cientistas voltadas para si. Na Universidade de McGill, no Canadá, Rutherford conduz diversos experimentos de natureza elétrica com o urânio e publica, em janeiro de 1899, um trabalho na Philosophical Magazinecom os resultados obtidos [20-21]. Dentre eles, pela primeira vez, surgem as denominações alfa e beta para dois tipos de radiações.

O experimento consistia na medição da radiação que ultrapassava diversas camadas finas de metal. Rutherford conclui:

Esses experimentos mostram que a radiação do urânio é complexa e que estão presentes ao menos dois tipos distintos de radiação - uma que é muito rapidamente absorvida, que será denominada, por conveniência, de radiação alfa, e a outra, de caráter mais penetrante, que será chamada radiação beta.

Ao proferir sua Conferência Nobel, em 1908, Rutherford aponta para a inclinação dos cientistas em estudar primeiramente as radiações beta, pela sua capacidade de penetração muito maior. Vários experimentos de natureza magnética passaram a ser feitos e, dessa maneira, Friedrich Oskar Giesel, químico alemão, em 1899, identificou que a deexão dos raios beta num campo magnético ocorria na mesma direção que a deflexão dos raios catódicos, o que o levou a inferir que a radiação beta teria carga negativa [22].

Com a disponibilidade dos sais de rádio para pesquisa, muitos cientistas puseram-se a experimentar também com esses compostos, que emitiam raios muito mais intensamente. No contexto francês, por exemplo, no primeiro semestre do ano de 1900, oito comunicações são feitas à Academia Francesa de Ciências quanto aos efeitos de campos elétricos e magnéticos sobre as radiações do rádio [23-30]. Numa dessas comunicações, Becquerel mostra a identidade entre partícula beta e os elétrons, com o resultado de suas medições de massa e velocidade para essa partícula [22]. Entretanto, Becquerel ainda não utiliza o termo "elétron", nem tampouco chama essas radiações de partículas beta, tratando-as como "raios desviáveis".2

Apesar de alguns anos depois se saber que os raios alfa também são desviáveis por um campo magnético, os recursos da época mantiveram esse fenômeno às escuras. O que realmente atraiu a atenção dos cientistas naquele momento foi a constatação de que aquelas radiações pouco penetrantes que Rutherford classificou como alfa eram responsáveis pela "maior parte da ionização observada na vizinhança de uma substância radioativa e que a maior parte da energia irradiada era na forma de raios alfa" [22]. Conforme se conseguia enriquecer cada vez mais o rádio, mais os cientistas aceitavam a hipótese de que, além de ter natureza atômica, a partícula alfa seria um átomo de algum elemento leve. A inclinação ao átomo de hélio encontrou apoio nos experimentos químicos de William Ramsay e Frederick Soddy, que fizeram análises espectrais conforme observavam a atividade da emanação3 do rádio. Decorridos alguns instantes, o espectro do hélio aparecia, com linhas muito bem definidas [31].

Aquela radiação, que primeiramente fora relegada, passava a mostrar sua verdadeira importância para os fenômenos radioativos. Foi somada às evidências de que a partícula alfa teria natureza atômica a questão da energia envolvida nos processos radioativos, que muito chamara a atenção dos cientistas na época. Em sua Conferência Nobel, Pierre Curie assinalou as duas hipóteses levantadas por ele e Marie Curie, e por ela comunicadas, em 1899 e 1900, quanto à energia gerada nos processos radioativos. A primeira hipótese supunha que as substâncias radioativas, por serem compostas por átomos pesados, retirassem radiações do meio e as reemitissem - uma hipótese de cunho gravitacional. Já a segunda hipótese seria de que as substâncias radioativas estivessem emitindo as radiações - que levava a crer que os aqueles átomos estavam se transformando constantemente [32].

Rutherford e Soddy passaram a trabalhar sobre a segunda hipótese, e pesquisaram compostos de rádio, urânio e, especialmente, de tório. A constatação de que a radioatividade do tório se mantinha em equilíbrio levantou a hipótese de que esse fato se devia a dois processos opostos e simultâneos [33]:

1. A produção de novo material radioativo a uma taxa constante pelo composto de tório;

2. O decaimento do poder de radiação do material ativo com o tempo.

A radioatividade normal ou constante possuída pelo tório está em um valor de equilíbrio, onde a taxa de aumento da radioatividade devida à produção de material ativo novo é balanceada pela taxa de decaimento de radioatividade daqueles já formados.

O lançamento da hipótese da desintegração, já na introdução do artigo, é sucedido pela descrição dos trabalhos desenvolvidos por eles para corroborá-la. Foi feita uma série de experimentos nas emanações do tório, especialmente no tório X (hoje reconhecidamente um isótopo do rádio), descrevendo suas características químicas e taxa de produção. Rutherford e Soddy observaram que era possível precipitar o tório com a ajuda da amônia, separando-o do tório X. Apesar disto, o tório X se formava novamente, a uma taxa bem definida. Nas considerações teóricas gerais [33], eles concluem:

Como, portanto, a radioatividade é um fenômeno atômico e acompanhado por mudanças químicas, nas quais novos tipos de matéria são produzidos, essas mudanças devem estar ocorrendo dentro do átomo e os elementos radioativos devem estar passando por transformações espontâneas. Os resultados até agora obtidos [...] deixam claro que as mudanças em questão são de caráter diferente de qualquer outra anteriormente lidada na química. [...] A radioatividade deve, portanto, ser considerada uma manifestação das mudanças químicas subatômicas.

Eles enfatizam a importância da hipótese lançada pelo casal Curie, de que a radioatividade seria uma propriedade atômica da matéria. Ela serviu como guia nos estudos do casal e levou ao descobrimento do rádio; a mesma relevância ela assumiu nas pesquisas de Rutherford e Soddy, que concluem veementemente "Está bem estabelecido que essa propriedade é em função do átomo, e não da molécula".

A teoria de desintegração dos elementos nascia naquele momento, mas não sem muita cautela por parte daqueles que a defendiam. Para Mendeleev, o pai do sistema periódico, por exemplo, o átomo era definitivamente imutável, e resistiu fortemente à nova teoria, acreditando que as novas descobertas, como o elétron e a radioatividade, não passavam de alquimia [1]. Ele, como outros, encontrava na existência do éter uma explicação para os fenômenos radioativos. Outros preferiam a primeira das hipóteses lançada pelo casal Curie, baseados nos trabalhos de Georges Sagnac, sobre a natureza gravitacional das radiações [9].

A compreensão definitiva da natureza da partícula alfa só viria no ano de 1909, quando Rutherford e Royds publicam os resultados de suas pesquisas em um artigo denominado A natureza da partícula alfa das substâncias radioativas [34]. O artigo começa falando exatamente sobre a dificuldade que se encontrava para comprovar a identidade, apesar das muitas evidências experimentais. Para eles, ela residia no fato de que se atacava o problema através de métodos indiretos, envolvendo considerações sobre a relação carga/massa da partícula alfa ou sobre a carga carregada pelo átomo de hélio.

Assim, eles desenvolvem um experimento que testava o aparecimento de hélio em um tubo em que foram projetadas partículas alfa. A substância radioativa que as gerava ficava presa em outro tubo fino o suficiente para que as partículas alfa conseguissem atravessá-lo. O hélio e outros produtos radioativos, entretanto, não conseguiam passar de volta.

Esses experimentos ainda mostram conclusivamente que o hélio não poderia ter passado pelas paredes de vidro, sendo derivado das partículas alfa que foram projetadas através delas. Em outras palavras, os experimentos dão a prova decisiva de que a partícula alfa, após perder sua carga, é o átomo de hélio [34].

Apesar de esse ser o trabalho considerado definitivo na corroboração da natureza dos raios alfa, Rutherford, em sua Conferência Nobel em 1908, fala da identidade com autoridade e segurança, e descreve o mesmo experimento publicado no ano seguinte. É certo que esses experimentos foram conduzidos no ano de 1908, permitindo que o físico os apresentasse em primeira mão à Academia Sueca de Ciências em dezembro daquele ano.

O tório e suas emanações foram frutíferos não apenas para a teoria da desintegração dos elementos, mas também para a série de pesquisas na química que culminou com a descoberta da isotopia. Na Conferência Nobel de Química de 1922, Frederick Soddy faz uma apresentação detalhada do histórico de estudos que levaram a tal conhecimento [35].

Desde 1905, cada vez mais produtos intermediários eram detectados nas séries de desintegração. Ramsay e Hahn, por exemplo, encontraram, entre o tório e o tório X, o radiotório e o mesotório. Cada descoberta acompanhava tentativas de isolamento de cada um desses novos produtos. As tentativas bem-sucedidas foram posteriormente identificadas com o tempo pertinente de espera entre separações, e não com a técnica química utilizada (assim, havia tempo o suficiente para que um elemento decaísse em outro). Ou seja, o triunfo das separações não estava no método químico, o que dava a esses elementos o statusde inseparáveis.

Conforme se conhecia cada vez mais pares de produtos radioativos inseparáveis, mais esse problema interessava aos químicos. Inúmeras tentativas de separar, por exemplo, o iônio do tório, ou o rádio D (rádiochumbo) do chumbo, fracassaram. Daniel Strömholm e The Svedberg conseguiram cristalizar o tório X e caracterizá-lo como um metal alcalino-terroso. Notaram que suas características químicas eram idênticas às do rádio (e também às do actínio X). Eles foram os primeiros a tentar ajustar as séries de desintegração no sistema periódico, questionando a possibilidade de que outros elementos, não radioativos, também tivessem essas características e avaliando que todos os elementos na natureza podiam ser misturas de várias entidades idênticas quimicamente, mas cujas massas fossem apenas similares.

Depois da tentativa inicial dos cientistas suecos Strömholm e Svedberg de ajustar as séries de decaimento na Tabela Periódica, vários outros também passaram a tentar o mesmo. Com a identificação da partícula alfa com um átomo de hélio duplamente ionizado e da partícula beta com um elétron, valências e massas foram utilizadas para a compreensão dos lugares dos produtos radioativos no sistema.

Von Hevesy entendeu, a partir da valência, que a expulsão de uma partícula beta alterava a valência da substância em uma unidade, no sentido oposto que a expulsão da partícula alfa o fazia, com duas unidades. Seu trabalho teórico falhava, no entanto, em compreender o comportamento de substâncias pré e pós-emanação. Foi o trabalho teórico de Kasimir Fajans - que antecipou em poucos dias o trabalho de Frederick Soddy - que obteve sucesso em posicionar, em termos de valências e massas, as substâncias primárias, seus produtos intermediários e finais na Tabela.

Fajans [36] parte exatamente da premissa que Soddy descreve em sua Conferência, inferindo que as relações das partículas alfa e beta com o hélio duplamente ionizado e o elétron, respectivamente, levam a entender os posicionamentos no sistema. Portanto, com a expulsão de um raio alfa, o produto resultante é mais leve e eletroquimicamente positivo. Para o caso da expulsão do raio beta, ele é mais eletroquimicamente negativo. Como, em uma fila horizontal da tabela, o caráter eletronegativo aumenta da esquerda para a direita, o decaimento alfa resulta numa posição mais baixa na fila horizontal, o oposto ocorrendo para a emissão beta. Segundo Fajans, o que faltava ser explicado era em quantas posições essas transformações implicavam. Ele menciona a regra proposta por Soddy de que, em um decaimento alfa, duas posições seriam alteradas e propõe que, para um decaimento beta, apenas uma posição o seja.

Um grande resultado dessas propostas veio para a interpretação da existência de chumbo nos minerais de urânio, observada por Boltwood e considerada por Rutherford em sua Conferência Nobel [22].

Há algum tempo, Boltwood sugeriu, a partir de exames das análises de antigos minerais de urânio, que o chumbo seria provavelmente um produto da série de urânio-rádio. A coincidência de números é certamente intrigante, mas uma prova direta da produção de chumbo a partir do rádio será necessária antes que essa conclusão possa ser considerada definitivamente estabelecida.

A prova a que Rutherford se referiu veio como resultados dos trabalhos de Soddy e Fajans, assumindo novas nuances: o chumbo seria o produto final das séries de decaimento e suas complexas ramificações. O chumbo produzido por cada uma delas tem massas atômicas diferentes - 208 para a ramificação principal da série de tório, 206 para aquela de urânio - o que sugeriu que o chumbo encontrado na natureza, de massa atômica 207.1, fosse uma mistura dos chumbos finais das séries, uma constatação da complexidade dos elementos já levantada por Strömholm e Svedberg

Em 1909, surge uma nova variante para as pesquisas sobre aqueles elementos inseparáveis. Ao propor um novo olhar sobre experimentos que pesquisavam a radiação emitida pelo lançamento de partículas beta em chapas metálicas, Geiger e Marsden tocam no ponto fundamental de onde nasceria a interpretação atômica nuclear [37]. Até aquele momento, entendia-se que a radiação emitida por uma chapa metálica bombardeada por partículas beta pudesse ser de origem secundária. Entretanto, os cientistas defendiam, apoiados em recentes experimentos, que aquela radiação seriam as próprias partículas beta originalmente lançadas, sofrendo espalhamento. A extensão da conclusão às partículas alfa, segundo os autores, "não foi previamente observada, e talvez não deva ser esperada pelo espalhamento relativamente pequeno que partículas alfa sofrem ao penetrar a matéria".

Contudo, contrariando esse ponto de vista exposto anteriormente por Rutherford, os cientistas empreendem experimentos de espalhamento também com partículas alfa. Como resultado, notam que uma pequena parcela das partículas sofrem espalhamento tal que "emergem novamente no lado da incidência". Investigam, então, se o fenômeno ocorre em diversas condições, variando, por exemplo, os metais utilizados para o espalhamento e suas espessuras, utilizando o método de cintilação.

A interpretação dos resultados desse experimento foi feita por Rutherford e publicada em 1911. O físico neozelandês considerou razoável supor que os espalhamentos eram devidos a um único encontro entre as partículas e os átomos do metal, pois a chance de serem causados por um segundo encontro seria muito pequena. Além disso, um átomo deveria produzir um campo elétrico muitíssimo intenso para produzir um espalhamento de tamanha amplidão [38].

O átomo de Thomson, cuja característica principal era a distribuição de cargas positivas e negativas uniformemente pelo átomo não dava conta de explicar aquele tipo de espalhamento. Assim, Rutherford examina teoricamente os encontros simples, a probabilidade de uma única deexão em qualquer ângulo, a alteração da velocidade em uma colisão atômica e compara espalhamentos únicos e compostos. Depois, compara toda a teoria desenvolvida com os resultados de experimentos já feitos, como os de Geiger e Marsden.

Após expor essa quantidade de dados e cálculos, Rutherford conclui [38]:

Considerando as evidências por inteiro, parece mais simples supor que o átomo contenha uma carga central distribuída em um volume muito pequeno, e que as grandes deflexões se devam à carga central como um todo, e não a seus constituintes. [...] Os dados gerais disponíveis indicam que o valor dessa carga central para átomos diferentes é aproximadamente proporcional às suas massas atômicas, a qualquer taxa, para átomos mais pesados que o alumínio.

Ainda nas conclusões, Rutherford traz à tona o modelo atômico saturniano proposto em 1904 por Hantaro Nagaoka, e considera que as evidências obtidas até então não descartam tal modelo.

Nesse trabalho, Rutherford não deduz o sinal das cargas, mas lança possibilidades de experimentos determinantes para o assunto. Em 1913, com o modelo atômico de Bohr-Rutherford, os sinais das cargas do núcleo e da eletrosfera são determinados.

Van den Broek, em 1911, concebeu a ideia de que cada carga intra-atômica correspondia a um átomo, e essa idéia foi utilizada por Bohr na construção de seu modelo atômico baseado na hipótese de Rutherford, pois exigia que o átomo fosse estável [35]. Essa sugestão, aliada à interpretação de Soddy das emissões alfa e beta, para Rutherford, é evidência fundamental desse modelo do átomo [39]. Para Soddy, esse modelo elucida fortemente suas concepções e, especialmente, evidencia a diferença entre mudanças transmutacionais ou radioativas - que ocorrem nos núcleos dos átomos - e mudanças químicas, que ocorrem nas esferas exteriores [35].

Independentemente de Rutherford e Soddy, Moseley desenvolvia estudos sobre o espectro de raios X de diversos elementos, e observou que o quadrado dos comprimentos de onda dessas emissões era inversamente proporcional a uma característica de cada elemento, o número atômico [22].

Examinando o comprimento de onda dos raios X característicos emitidos por doze elementos variando em massa atômica entre o cálcio (40) e o zinco (65,4), ele mostrou que a variação do comprimento de onda pode ser simplesmente explicado supondo que a carga do núcleo aumenta, de elemento a elemento, em exatamente uma unidade. [...] Parece não haver razões para que esse novo e poderoso método de análise [...] não seja estendido a um grande número de elementos, de maneira que se deve esperar por novos dados sobre o assunto em um futuro próximo.

Esse número, análogo à carga intra-atômica de van den Broek, representa a carga nuclear, o número de elétrons externos e a posição de cada elemento na Tabela Periódica. Com essa descoberta, finalmente se pode organizar o sistema, como há muito se tentava, e caracterizar aqueles elementos de aspectos químicos e físicos idênticos.

Conforme os conhecimentos sobre os isótopos aumentavam, a teoria mostrava maturidade para fazer predições, como a da existência do protoactícnio. O elemento, postulado teoricamente para explicar a origem do actínio, logo foi isolado por Otto Hahn e Lise Meitner - sucesso antes conseguido apenas para o rádio, dentre os elementos radioativos.

Experimentos foram feitos com diversos minerais, e com preparações de urânio livres de tório e vice-versa, provando que os valores experimentais concordavam fortemente com os valores teóricos. Assim, levandose em conta que os isótopos têm a mesma estrutura eletrônica externa, era possível deduzir que teriam o mesmo volume, o que implicaria a massa dos isótopos serem proporcionais às suas densidades. Novos experimentos foram feitos fazendo-se uso dessa propriedade e, novamente, proporcionaram resultados de grande concordância com os esperados teoricamente.

Todo o corpo de evidências colecionado nos últimos dez anos em favor da complexidade dos elementos culminava com uma teoria bem estruturada, de forte coerência com os dados empíricos, capaz de fazer predições e bem alinhada com outras teorias que se desenvolviam naquele momento.

4. Características do trabalho científico atribuíveis ao desenvolvimento da radioatividade

O desenvolvimento histórico da seção anterior, articulado a outras referências, como artigos de historiadores sobre o assunto, biograás e correspondências trocadas entre cientistas envolvidos com a radioatividade nas duas primeiras décadas do século 20, compõem o quadro teórico que fundamenta as discussões realizadas nesta seção sobre certas concepções da natureza da ciência segundo filosoás da ciência mais atuais [10].

4.1. A recusa de um método científico

Porquanto na moderna filosoá da ciência a existência de ummétodo científico seja letra morta [40], no ensino de ciências, tanto em nível médio como universitário, é comum a crença de que há um conjunto de passos ou etapas - observação, levantamento de hipóteses, preparação e execução de experimentos, tomada de dados e, por fim, teorização - que leva à estruturação e à legitimação do conhecimento [41-43].

Se não há a existência de ummétodo científico, pode-se dizer que, nessa esfera, há espaço para diferenciados métodos. Esses métodos não são engessados, e dependem de diversos fatores momentâneos que se apresentam aos cientistas. Gil-Pérez e cols. [10] destacam a importância das hipóteses no desenvolvimento de um conceito científico. Elas não se baseiam apenas nos conhecimentos adquiridos previamente; o contexto em que se insere o cientista, relativo ao lançamento das hipóteses e do estado da pesquisa científica, exerce forte influência inclusive para a aceitação ou a negação delas, em um processo bastante complexo.

A hipótese da natureza atômica da radioatividade foi essencial nas investigações do casal Curie, e continuou fértil nas pesquisas de Rutherford, Soddy e Ramsay. Eles reforçam sistematicamente em seus trabalhos que suas teorias - como a desintegração atômica e a relação entre o hélio e a partícula alfa - partem do princípio fundamental de que a radioatividade é um fenômeno relativo ao átomo, e não à molécula. Essa hipótese balizadora assume uma faceta diferenciada da que tem no método científico, onde figura como alternativa de explicação para o fenômeno observado. No caso da hipótese atômica da radioatividade, a relevância era muito maior, permitindo diversas pesquisas produtivas. Sua importância é enfatizada pelos cientistas que trabalhavam no fenômeno, como remarcam Rutherford e Soddy [33].

Todos os mais eminentes trabalhadores nesse assunto concordam em considerar a radioatividade um fenômeno atômico. O Senhor e a Senhora Curie, os pioneiros na química do assunto, recentemente expressaram seus pontos de vista. Eles enfatizam que essa ideia é subjacente aos seus trabalhos inteiros, desde o começo, e promoveu seus métodos de pesquisa. O Senhor Becquerel, o descobridor original da propriedade do urânio [...] aponta a significância do fato de que o urânio emite raios catódicos. Estes, de acordo com a hipótese de Sir William Crookes e do Professor J J. Thomson, são partículas materiais de massa igual a um milionésimo da do átomo de hidrogênio.

4.2. A recusa da indução a partir de "dados puros" e a investigação do pensamento divergente

Na dinâmica entre hipóteses e evidências reside a possibilidade para uma pluralidade de métodos científicos. E a pesquisa rigorosa para a corroboração de hipóteses configura a característica da investigação ao pensamento divergente.

Quando uma hipótese é lançada, empreendem-se diversos tipos de experimentos para testá-las. Esses experimentos, no entanto, são interpretados à luz dos conhecimentos e das convicções teóricas de seu formulador. Essa característica da atividade científica, segundo Gil-Pérez e cols. [33], apesar de muito típica e frequente, foi deixada de lado pelos defensores das concepções empírico-indutivistas, que consideram que a gênese do conhecimento tem, apenas, embasamento no fato concreto. Isso é a tão conhecida (e errônea) imagem ateórica da ciência, de que os conhecimentos são estruturados a partir da obtenção de "dados puros". Os dados providos de um experimento não são puros, por serem interpretados a partir de uma hipótese balizadora, que passará por rigorosos testes para a verificação de sua validade.

Um exemplo muito claro na passagem histórica do desenvolvimento da radioatividade, do exercício do pensamento divergente, encontra-se nas pesquisas com os raios emitidos pelas substâncias radioativas. Primeiramente, utilizou-se a radiação do urânio - e, a partir dela, Rutherford observou dois tipos distintos de radiação. Um ano depois, com preparações de rádio, Becquerel, os Curie e Villard também o fizeram. Dois anos mais tarde, com sais de rádio ainda mais concentrados, as pesquisas continuaram - auxiliando, inclusive, na interpretação da natureza das partículas alfa. Ou seja, as pesquisas com as radiações complexas dos elementos radioativos não ficaram estagnadas nos compostos de urânio, mas continuaram conforme se enriquecia os sais de rádio, reconhecidamente mais ativos, e foram feitas à luz de outras teorias, com experimentos de naturezas elétrica, magnética e fotográfica.

Um outro exemplo de investigação do pensamento divergente é dado por Geiger e Marsden [37], que ao observarem que uma pequena fração das partículas alfa lançadas contra uma fina chapa metálica sofria espalhamento em grandes ângulos (contrariando as expectativas anteriores baseadas nas suas naturezas e no modelo de Thomson), empreendem experimentos meticulosos e rigorosos a fim de entender melhor esse fenômeno.

Para ter uma ideia da maneira com que esse efeito ocorre, foram investigados os seguintes pontos:

1. A quantidade relativa de reexão em diferentes metais.

2. A quantidade relativa de reexão em metais de diferentes espessuras.

3. A fração das partículas alfa incidentes que são reetidas.

Como já foi mencionado previamente no estudo histórico, Rutherford, baseado nas evidências geradas por esses experimentos, considera que o átomo deva ser constituído de um núcleo carregado, que exerça um campo elétrico forte o suficiente para provocar o espalhamento [38]. Geiger e Marsden publicam novamente um artigo em que descrevem novos e mais rigorosos experimentos que, segundo eles "foram feitos para testar a teoria atômica proposta por Professor Rutherford" [44]. Essa dinâmica entre hipótese e evidências reforça fortemente haver uma investigação do pensamento divergente.

4.3. A busca pela coerência global

Apesar da grande importância que as hipóteses tomam para a construção de uma teoria científica, o que as legitimar à será, certamente, a coerência que os resultados experimentais e teóricos encontrarão no corpo de conhecimentos já estabelecido. Assim, essa característica rivaliza com a imagem distorcida de que a ciência é exclusivamente analítica, ou seja, de que é da natureza da atividade científica trabalhar específica e sistematicamente nas suas ramificações, ignorando qualquer tipo de tendência à procura por um conjunto de conhecimentos unificados.

Primeiramente, Rutherford observa haver dois tipos distintos de radiação sendo emitidos pelo urânio, que ele denomina alfa e beta, de acordo com seus poderes de penetração em camadas de papel e alumínio [20]. No ano seguinte, na França, Becquerel e os Curie observam, com o auxílio de preparações de rádio, também dois tipos distintos de raios. Entretanto, essa distinção não foi feita através de análise de poderes de penetração e, sim, através da observação de seus desvios na presença de campos elétricos e magnéticos. A segunda constatação indicava a concordância com as conclusões de Rutherford e, por isso, figura aqui como um exemplo de coerência global.

As Conferências Nobel de Rutherford e Soddy, por sua forte característica de recapitulação histórica das descobertas da partícula alfa e dos isótopos, respectivamente, oferecem outros exemplos da busca pela coerência global.

Ernest Rutherford inicia sua aula descrevendo os esforços despendidos para a determinação da natureza das radiações alfa. Um dos primeiros dados conseguidos pelos cientistas tratava da relação carga/massa da partícula alfa, um forte indício de que ela seria um átomo de algum elemento químico muito leve. A constatação da natureza atômica da radiação alfa inuenciou fortemente os estudos que Rutherford e Soddy realizaram na Universidade de McGill, em Montreal, pois era uma indicação da desintegração dos elementos [22].

Mesmo antes da descoberta do material fonte de raios alfa, considerara-se provável que a radiação de qualquer substância em particular acompanhava a quebra de seus átomos. A prova de que a partícula alfa era um átomo ejetado da matéria fortaleceu essa conclusão e, ao mesmo tempo, deu uma representação mais correta e definida dos processos que ocorrem na matéria radioativa.

A definição parcial da natureza da partícula alfa, como descrita nesse trecho da conferência, oferece um forte indício de que um resultado corroborava o outro, em um exemplo pontual de busca pela coerência global do corpo de conhecimentos até então colecionados sobre o fenômeno. E, em um panorama mais geral, o reconhecimento da natureza daquelas partículas foi capaz de explicar, por exemplo, a hipótese de Boltwood, de que o chumbo seria o produto final das séries de desintegração. Essa corroboração, por sua vez, teve papel essencial para a consolidação da ideia de isótopos.

A coerência entre a noção de isótopos e a teoria atômica nuclear de Rutherford, por Frederick Soddy em sua Conferência Nobel [35], tem um valor especial neste trabalho, pois mostra que um determinado conceito pode ser estudado a partir de perspectivas diferentes, como as do químico e do físico, e, finalmente, mostrar que essas perspectivas são fortemente articuladas e coerentes entre si.

4.4. A compreensão do caráter social do trabalho científico

Nos primeiros anos de estudos com radioatividade, o casal Curie notara que sua descoberta do rádio poderia ter aplicações imediatas na medicina. Em 1905, Pierre Curie mencionou [32]: "Finalmente, nas ciências biológicas, os raios de rádio e suas emanações produzem efeitos interessantes, que estão sendo presentemente estudados. Os raios de rádio vêm sendo usados nos tratamentos de certas doenças (lúpus, câncer, doenças nervosas)."

Já nos anos que se seguiram, um dos grandes nomes do período demonstrou o mesmo interesse. Frederick Soddy, que já havia inovado o tratamento da tuberculose com a utilização do gás radônio, voltou suas atenções ao rádio, cuja utilidade para a medicina já era, de alguma forma, reconhecida, defendendo que a Escócia deveria produzir suas próprias fontes desse elemento [45].

Essa é uma faceta de Soddy que pouco se conhece - o lado do cientista que se preocupava com as implicações práticas de suas descobertas. No entanto, parece que essas implicações práticas tiveram mais do que um papel secundário em suas pesquisas, constituindo-se de certa maneira num dos fatores causais para a descoberta dos isótopos radioativos [45].

O mesotório I - que se sabe hoje ser um isótopo do rádio - emitia radiações de capacidade de penetração muito similar à do rádio, mas poderia ser produzido muito mais facilmente, o que lhe conferia grande valor para a crescente indústria da matéria radioativa. Assim, Freedman [45] defende que Soddy foi levado à empreitada de caracterizar as propriedades químicas do mesotório, que, como apresentado no estudo histórico, culminou com a noção de isótopos. Soddy patenteou o processo de produção do mesotório, mas publicou a técnica empregada, o que indica que sua intenção ao fazê-lo, longe do lucro, era levar esse conhecimento, de grandes implicações práticas, ao público geral.

É impossível afirmar com certeza que esse foi o único, ou principal, fator motivador para que Soddy descobrisse os isótopos. Apesar disso, é razoável aceitar que essa foi uma das motivações para que ele se propusesse a fazer essa pesquisa. As intenções de Soddy extrapolavam, então, a esfera estritamente científica, pois ele tinha algumas perspectivas de cunho tecnológicosocial para suas pesquisas. Essa é uma característica do trabalho científico que por muito tempo foi negada nas correntes empiristas - sua relação com aspectos tecnológicos e sociais.

Voltando ao exemplo da descoberta dos isótopos, a preocupação de Soddy não parou na disponibilidade comercial dos elementos rádio e mesotório. Segundo Freedman [45], Soddy ainda se dedicou a outra implicação prática dos fenômenos, que se pode compreender como profética: a geração de energia.

Não passou despercebida pelos diversos cientistas que se debruçavam sobre a radioatividade naquele começo de século 20 a magnífica fonte de energia que os elementos radioativos liberavam, e em suas primeiras pesquisas, Soddy calculou, juntamente a Rutherford, a quantidade de energia envolvida nos fenômenos radioativos. Em seus anos na Universidade de Glasgow, Soddy publicou diversos trabalhos enfatizando a importância da busca por geração de energia através de processos atômicos. Ele já previa que a industrialização exigiria uma energia que as fontes de combustíveis disponíveis até o momento não dariam conta de suprir, apontando para a utilização de energia atômica e enfatizando a necessidade de se pesquisar processos que pudessem proporcionar essa transformação [45].

5. Considerações finais

O que começou com as misteriosas radiações X no final do século 19 cresceu e se tornou um corpo de conhecimentos revolucionário para a ciência, logo na década seguinte. Ao se depararem com as chapas fotográficas impressionadas na forma do esqueleto da mão da esposa de Röntgen e com seu procedimento experimental, os cientistas certamente imaginaram que um novo mundo se expunha aos seus olhos. A chapa mostrava aplicações diretas desses raios em outras áreas do conhecimento, como a médica, notadamente. Mas mesmo para os mais otimistas, as descobertas que se seguiram foram, no mínimo, admiráveis. O desvelar desse novo domínio abalou as estruturas da ciência clássica mas, ao mesmo tempo, forneceu bases para as rápidas mudanças que caracterizaram todo o século 20.

Para a química, as noções que surgiram como produto das investigações sobre a radioatividade, como o número atômico e a isotopia, colaboraram de uma certa maneira para uma compreensão mais global da disciplina. A postulação do número atômico como nova base para a classificação periódica dos elementos, em substituição da massa atômica, permitiu uma melhor clareza nas representações dos elementos dentro de um sistema que há muitos anos vinha sendo desenvolvido e que é extremamente importante até hoje. Ainda, a compreensão da natureza complexa dos elementos, representada pela existência de isótopos, reforça a importância que o fenômeno da radioatividade teve para conclusões mais generalizadas, abrangendo inclusive os átomos estáveis.

A isotopia, que surgiu como uma propriedade dos elementos radioativos, logo foi procurada nos outros elementos e, finalmente corroborada. Frederick Soddy afirmou em sua Conferência Nobel que, já em 1913, J.J. Thomson e Francis Aston observaram na atmosfera um isótopo de massa 22 do neônio. No ano seguinte à premiação de Soddy, Aston recebeu o Prêmio Nobel de Química de 1922, pela "sua descoberta, através de seu espectrógrafo de massa, de isótopos em um grande número de elementos não radioativos e por sua enunciação da regra do número inteiro". A nova concepção de complexidade dos elementos rivalizava fortemente com a teoria atômica de Dalton, que enunciava serem os átomos de um elemento sempre iguais em massa - algo bastante dogmático na Química - e, juntamente com a noção de desintegração atômica, foi revolucionária para a área. Medeiros [46] aponta que ensinar a história dos isótopos nas aulas da disciplina pode contribuir para desconstruir a ideia ainda tão costumeira entre os alunos de que os átomos de um elemento são sempre idênticos em massa.

Se as conseqüências desses novos conhecimentos para a Química foram revolucionárias, na física elas abriram portas para a descoberta de diversos outros conceitos e fenômenos. O novo modelo atômico elucidou um novo domínio a ser estudado - o nuclear. A fissão e a fusão nucleares puderam se consolidar sem terem que enfrentar a concepção de matéria imutável. Quanto às implicações tecnológicas e sociais permitidas por essa nova ciência, pode-se mencionar o desenvolvimento de novas formas de geração de energia e instrumentos medicinais, além, é claro, das armas nucleares.

É bastante relevante ressaltar que o conjunto de conhecimentos que se construiu a partir da descoberta da radioatividade foi feito sem o conhecimento do nêutron - descoberto por James Chadwick, em 1932. Certamente, esse extraordinário fato pode impressionar o aluno que, usualmente, aprende sobre radioatividade e isótopos já familiarizado com o conceito. A tradição de organização dos conhecimentos científicos de maneira dessincretizada de certa forma descaracteriza essa face construtivista da ciência, e colabora para promover imagens inapropriadas do conhecimento científico.

Uma combinação de esforços para tornar a ciência e sua imagem menos problemática, ao menos, parece passar, entre outras ações, por um melhor apreço didático à história da ciência moderna e contemporânea. Apesar de o presente trabalho estar voltado ao aluno do ensino superior, frisa-se novamente que tal aluno, possivelmente, será ele mesmo professor - de Ensino Médio ou superior - e que sua formação em uma física moderna contextualizada histórica e filosoçamente pode trazer reexos positivos para o ensino dessa matéria com seus alunos.

Longe de intentar esgotar o assunto, espera-se, através deste trabalho, ter apresentado argumentos convincentes e desaádores para levar o aluno universitário a se interessar e a reetir, com mais fundamento, sobre um tema com tantos desdobramentos, dentro e fora da ciência, como é o período inicial da radioatividade.

Recebido em 9/6/2010; Aceito em 6/5/2011; Publicado em 5/10/2011

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011

    Histórico

    • Aceito
      05 Out 2011
    • Revisado
      06 Maio 2011
    • Recebido
      09 Jun 2010
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