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Campo elétrico "na superfície'' de um condutor: uma questão a ser esclarecida

Electric field "on the surface'' of a spherical conductor: an issue to be clarified

Resumos

Neste artigo tratamos de um problema clássico no âmbito do Ensino Médio: como se comporta o campo na superfície de um condutor esférico em equilíbrio eletrostático? Argumentamos que, devido à descontinuidade do campo na superfície do condutor, o mesmo não pode admitir um valor único definido na superfície.

campo elétrico; superfície do condutor; descontinuidade


In this paper we deal with a classical problem in the context of high-school teaching: how the field behaves on the surface of a spherical conductor in electrostatic equilibrium? We argue that, due to the discontinuity of the field on the surface of the conductor, it cannot assume a unique value on the surface.

electric field; the conductor surface; discontinuity


NOTAS E DISCUSSÕES

Campo elétrico "na superfície'' de um condutor: uma questão a ser esclarecida

Electric field "on the surface'' of a spherical conductor: an issue to be clarified

Gustavo Elia Assad1 1 E-mail: gustavo.elia.assad@gmail.com.

Departamento de Física, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil

RESUMO

Neste artigo tratamos de um problema clássico no âmbito do Ensino Médio: como se comporta o campo na superfície de um condutor esférico em equilíbrio eletrostático? Argumentamos que, devido à descontinuidade do campo na superfície do condutor, o mesmo não pode admitir um valor único definido na superfície.

Palavras-chave: campo elétrico, superfície do condutor, descontinuidade.

ABSTRACT

In this paper we deal with a classical problem in the context of high-school teaching: how the field behaves on the surface of a spherical conductor in electrostatic equilibrium? We argue that, due to the discontinuity of the field on the surface of the conductor, it cannot assume a unique value on the surface.

Keywords: electric field, the conductor surface, discontinuity.

Há muito que encontramos certas divergências entre conceitos de física vistos no Ensino Médio e os que aprendemos nos livros universitários. Alguns livros didáticos para o Ensino Médio têm propagado inverdades, ao discorrer sobre alguns temas, que merecem um olhar mais cuidadoso do público interessado. Vejamos um erro ubíquo neste segmento, com especial atenção para a turma dos pré-universitários, iniciandos em eletricidade: a discussão acerca do campo elétrico de um condutor esférico em equilíbrio eletrostático.

Para iniciarmos a discussão, tomemos um condutor esférico de raio R, com carga superficial Q uniformemente distribuída, densidade superficial de cargas σ e colocado no vácuo, cuja permissividade é ε0. Considerando a simetria esférica da distribuição de cargas, o campo no exterior deste condutor é radial e só depende da distância r ao centro dele. Usando a lei de Gauss, é fácil ver que o campo no interior do condutor (r < R) é nulo, pois as cargas se distribuem na superfície do condutor, não há carga líquida no interior dele. Para pontos externos (r > R), o campo se comporta como se a carga Q estivesse concentrada no seu centro, tendo intensidade variável com inverso do quadrado da distância a este ponto, de acordo com a Eq. (1)

Dessa forma, se tomarmos pontos muitíssimo próximos do condutor, com um afastamento infinitesimal dr da superfície (r = R + dr) e utilizarmos a Eq. (1), concluiremos que, como Q = 4πR2σ, o valor do campo nesta região vale σ/ε0. Estes resultados estão ilustrados, sem demonstração, na Fig. 1.


Chegamos, então, aqui ao motivo pelo qual escrevemos este texto. Como vimos, há uma descontinuidade do campo, no valor de σ/ε0, em r = R, entre pontos do interior do condutor esférico e pontos do exterior, muito próximos a ele. O problema está justamente no que se diz sobre o comportamento do campo exatamente na superfície do condutor. A quase totalidade dos livros do Ensino Médio [1-7], com algumas exceções [8-10], atribui um "misterioso'' valor para a intensidade do campo em pontos da superfície do condutor, que corresponde à metade do valor do campo elétrico em pontos exteriores próximos à superfície do condutor, de acordo com o gráfico da Fig. 2. Este é o erro para o qual chamamos a atenção. Segue então a pergunta: como surge o valor ? De onde ele vem?


Relembremo-nos de como se obtém o campo do condutor esférico a partir do potencial por ele gerado (por conveniência adotaremos o potencial nulo no infinito). O campo elétrico de uma distribuição de carga com simetria esférica é igual ao negativo do gradiente do potencial ao longo da direção radial, ou, simplesmente, E = - , sendo dr um deslocamento infinitesimal ao longo da direção radial. Assim, vejamos na Fig. 3, o gráfico do potencial de um condutor esférico carregado (positivamente, por exemplo) em função da distância ao seu centro. Neste caso, não há discordância alguma no âmbito secundarista, todos os livros da literatura aqui citados apresentam esse gráfico. Pois bem, como o gradiente de uma constante é zero, vemos que o campo elétrico é nulo par pontos internos. Para pontos externos, o campo é inversamente proporcional ao quadrado da distância ao centro da esfera, resultado já mencionado anteriormente e que encontra total concordância entre os autores de livros do segundo grau. Porém, observemos com atenção que o potencial elétrico não é derivável na superfície (r = R), implicando uma descontinuidade do campo neste ponto. Configura-se, portanto, um absurdo admitir que neste ponto o campo tenha um valor definido por . Na verdade, a descontinuidade do campo está justamente no fato de que, em r = R, as derivadas da função potencial à esquerda e à direita neste ponto assumem valores diferentes. De fato, a derivada à direita (isto é, para r > R) é igual a σ/ε0, enquanto que a derivada à esquerda (r < R) é zero.


Mas, afinal, onde está a causa desse erro? Onde está a origem deste pensamento equivocado, que se repete epidemicamente em várias bibliografias secundaristas distribuídas Brasil afora e proliferado em tantas salas de aula? Acreditamos que há uma equivocada interpretação de uma bela explicação para o fato de o campo no interior do condutor ser nulo e, em um ponto externo imediatamente próximo a ele, ser σ/ε0. Vários bons textos de autores renomados [11-14] observam que este resultado, σ/ε0, é exatamente igual ao dobro do valor campo de um pequeno disco uniformemente carregado em pontos próximos de seu centro, σ/2ε0. Pois bem, dividindo-se a carga de um condutor em duas partes - uma devida a um pequeno disco circular tomado sobre a superfície e outra devido ao restante das cargas - o disco produz campos de intensidade σ/2ε0 acima e abaixo dele e em sentidos opostos, assim, o restante das cargas deve "conspirar'' para produzir um campo no valor σ/2ε0 de dentro para fora do condutor e fazer com que o campo seja nulo no seu interior (σ/2ε0- σ/2ε0 = 0 = Eint) e igual a σ/ε0 em suas proximidades (σ/2ε0+ σ/2ε0 = σ/ε0 = Eprox). Observe a Fig. 4.


No entanto, este resultado não nos diz que o valor do campo na superfície é metade do valor do campo nas proximidades desse condutor. Não! O condutor é a composição do disco com seu entorno, e não um ou outro isoladamente. Um condutor furado não está completo, e o campo do condutor esférico é dado pela superposição dos campos dos dois elementos. Pode ter sido aí que tenha se originado a afirmação errônea de que o valor do campo na superfície do condutor seja ESup = .

Outra possibilidade para a origem do erro apontado acima provém da análise da força exercida sobre o pequeno disco pelas cargas do entorno, mencionada no famoso livro da universidade de Berkeley [15]. Se considerarmos que o pequeno disco apresenta uma pequena fração da carga total, dQ, e o recolocarmos na sua posição de origem no condutor, a força exercida pelo restante das cargas sobre ele terá intensidade dada por F = dQ., será radial e para fora do condutor. Lembremo-nos de que a carga dQ não exerce força sobre si mesma! Veja a Fig. 5. É igualmente óbvio que este resultado não deve ser confundido com o de um campo na superfície do condutor. Devemos observar que o disco agora faz papel de carga de prova para o campo das cargas do entorno, e que força não é igual a campo! É certo que, na escala atômica, em um modelo mais realista, que leve em conta a estrutura da matéria, o campo apresenta um comportamento transitório entre pontos internos e externos, porém ele não é, simples e arbitrariamente, dado por na superfície. A análise dessa transição também pode ser vista na Ref. [15] e, mais precisamente, na Ref. [16].


Ainda, quando já finalizávamos nossa redação do presente trabalho, nos deparamos com o artigo, "Uma pequena sutileza em um problema eletrostático'', publicado na RBEF [17], de autoria de, Salvatore Ganci, que propõe uma demonstração, esteticamente interessante de que o valor do campo deve ser na superfície do condutor. Entretanto, não concordamos com o resultado obtido pelo referido autor, pelas seguintes razões:

I O autor diz, no 3º parágrafo do seu artigo, que o campo deve existir em todo o espaço. Isto não é verdade. Se tomarmos uma carga puntiforme, por exemplo, o campo não existe na posição da carga e, analogamente, não há razão para existir na superfície do condutor.

II O fluxo do campo elétrico de uma carga puntiforme através de uma superfície que passa pela carga não está definido porque é dado por uma integral divergente, já que o campo elétrico tem uma singularidade não integrável no ponto da superfície em que a carga está. Portanto, o argumento do autor de que o fluxo é dado tomando metade do ângulo sólido total é apenas uma maneira de atribuir um valor finito a essa integral, equivalente a supor que "metade'' da carga puntiforme está dentro e a outra "metade'' está fora da superfície. Outras formas de regularizar essa integral divergente, certamente, podem dar outros resultados para o suposto campo sobre na superfície do condutor.

III Quando Ganci cita a Ref. [15], no 4º parágrafo do seu artigo, não leva em consideração que ali está sendo calculada a força sobre uma carga na superfície e não o campo na superfície, situação esta, aqui já discutida.

Concluindo, para nós, a afirmação que ESup = não parece estar fundamentada por nenhum argumento plausível. Ademais, não há desconforto algum em dizer que o campo elétrico não está definido na superfície de um condutor esférico uniformemente carregado.

Agradecimentos

O autor gostaria de agradecer ao Prof. Dr. Mário José Delgado Assad (in memoriam) pelo grande incentivo à redação deste trabalho. Agradecemos também ao Prof. Dr. Carlos Romero pela leitura crítica e discussão. Finalmente, somos gratos ao Prof. Dr. Nivaldo Lemos pelo argumento esclarecedor de que, em um modelo em que a distribuição de cargas é singular, o campo elétrico não está necessariamente definido em todos os pontos do espaço.

Recebido em 14/11/2011; Aceito em 3/3/2012; Publicado em 7/12/2012

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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      14 Nov 2011
    • Aceito
      03 Mar 2012
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