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Ondas internas e níveis de transição

Internal waves and transition levels

Resumos

O objetivo principal desse trabalho foi reunir material, de forma didática, sobre a propagação horizontal das ondas de gravidade internas que existem no interior de oceanos estavelmente estratificados. Em particular, a presença de nıveis de transição onde a frequência da onda iguala, localmente, à frequência de Brunt-Vaissalla (N) é considerada usando separadamente dois modelos, tratados com o método dos modos normais verticais. A primeira simulação é numérica e supõe a existência de uma termoclina; foi baseada indiretamente em dados para o Canal de Faeroe-Shetland, um cânion submarino que se estende de (61,29 N, 4,03 E) à (61,40 N, 6,13 E). A segunda simulação considera um perfil linearmente decrescente de N² com a profundidade e é resolvido analiticamente (exceto pela determinação dos autovalores) envolvendo a aproximação clássica de WKB e o uso das funções de Airy.

funções de Airy; método WKB; modos normais; ondas de gravidade internas oceânicas; termoclina


The main objective of this work was to amass didatical material on the horizontal propagation of internal gravity waves within stably stratified oceans. In particular, the presence of turning levels, where the wave frequency locally equals the Brunt-Vaissalla frequency (N) is examined using two distinct models, both using the vertical normal modes technique. The first simulation is numerical and concerns a thermocline in the Faeroe-Shetland Channel extending from (61.29 N, 4.03 E) to (61,40 N, 6,13 E). The second simulation uses a linearly decreasing profile of N² with respect to depth and is solved analytically (except for the eigenvalue calculation) with the classical WKB approximation and use of Airy functions.

Airy functions; normal modes; ocean internal gravity waves; thermocline; WKB method


ARTIGOS GERAIS

Ondas internas e níveis de transição

Internal waves and transition levels

Marco Antonio Maringolo LemesI,1 1 E-mail: marco.lemes@hotmail.com. ; Helber Barros GomesII

IInstituto de Ciências Atmosféricas, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil

IIInstituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

O objetivo principal desse trabalho foi reunir material, de forma didática, sobre a propagação horizontal das ondas de gravidade internas que existem no interior de oceanos estavelmente estratificados. Em particular, a presença de nıveis de transição onde a frequência da onda iguala, localmente, à frequência de Brunt-Vaissalla (N) é considerada usando separadamente dois modelos, tratados com o método dos modos normais verticais. A primeira simulação é numérica e supõe a existência de uma termoclina; foi baseada indiretamente em dados para o Canal de Faeroe-Shetland, um cânion submarino que se estende de (61,29 N, 4,03 E) à (61,40 N, 6,13 E). A segunda simulação considera um perfil linearmente decrescente de N2 com a profundidade e é resolvido analiticamente (exceto pela determinação dos autovalores) envolvendo a aproximação clássica de WKB e o uso das funções de Airy.

Palavras-chave: funções de Airy, método WKB, modos normais, ondas de gravidade internas oceânicas, termoclina.

ABSTRACT

The main objective of this work was to amass didatical material on the horizontal propagation of internal gravity waves within stably stratified oceans. In particular, the presence of turning levels, where the wave frequency locally equals the Brunt-Vaissalla frequency (N) is examined using two distinct models, both using the vertical normal modes technique. The first simulation is numerical and concerns a thermocline in the Faeroe-Shetland Channel extending from (61.29 N, 4.03 E) to (61,40 N, 6,13 E). The second simulation uses a linearly decreasing profile of N2 with respect to depth and is solved analytically (except for the eigenvalue calculation) with the classical WKB approximation and use of Airy functions.

Keywords: Airy functions, normal modes, ocean internal gravity waves, thermocline, WKB method.

1. Introdução

Todos estão familiarizados com as ondas de natureza eólica que se manifestam na superfície dos oceanos, porém o objetivo desse trabalho diz referência as ondas que se propagam no interior dos oceanos. Difíceis de serem detectadas a olho nu (se bem que algumas vezes, elas produzem uma resposta visível na superfície, como mostrado em imagens de satélites) elas devem sua existência a força de flutuação. Através desse mecanismo restaurador, uma parcela quando deslocada de sua posição encontra um meio ambiente com diferente densidade; no caso de uma estratificação estável, a força de flutuação sempre age no sentido de trazer a parcela para sua posiçãoao original, dando origem às oscilações conhecidas por ondas de gravidade internas.

Ondas internas já eram conhecidas desde 1847 (Stokes e seu estudo sobre ondas na interface de dois fluidos de diferentes densidades), mas uma importante contribuição viria de Rayleigh que, em 1883 introduziu o conceito de modos verticais normais considerando uma estratificação contínua. Do ponto de vista observacional, podem ser citados dois registros de expedições oceanográficas: a) Nansen, que em 1902 notou a presença dessas flutuações em perfis de variáveis oceanográficas com a profundidade e b) [1] que fizeram as primeiras observações sistemáticas das ondas internas, notando que elas eram responsáveis por mudanças significativas em perfis de temperatura dentro de um intervalo de tempo de somente algumas horas.

A atmosfera é tratada como um fluido que ocupa o semi-plano z > 0 (supondo ausência de topografia), não apresentando nenhuma superfície delimitadora em sua parte superior, ao contrário dos oceanos que é um fluido confinado entre uma superfície livre e um fundo sólido. Essas duas fronteiras permitem que as ondas internas nos oceanos possam ser tratadas com a técnica dos modos normais, desde que seu fundo seja uma superfície plana. Essa restrição se deve ao fato que se usa a técnica de separação de variáveis na obtenção da dos modos normais.

A superfície e o fundo podem formar uma espécie de guia de onda (outra forma de guia de onda surge em regiões de estratificação pronunciada) ao longo do qual as ondas são capazes de se propagarem por grandes distâncias, mantendo, no entanto, uma estrutura vertical de onda estacionária (nós fixos).

O mecanismo restaurador para essas ondas depende crucialmente da distribuição vertical (muito mais pronunciada que a variação horizontal) da densidade, que por sua vez é função da profundidade (via pressão),

temperatura e salinidade. E frequente encontrar camadas relativamente mais estáveis e persistentes, denominadas termoclinas (o análogo na atmosfera, com boa aproximação, seria as camadas de inversão térmica) que podem substancialmente modificar a propagação das ondas internas. Maiores detalhes sobre termoclinas pode ser encontrado, por exemplo, na Ref. [2].

Uma grandeza fundamental no estudo das ondas internas é a frequência de Brunt-Vaissalla, N(z), ou, simplesmente frequência de flutuação, definida por

onde ρ* é um valor de referencia para a densidade, com N2> 0 para um oceano estavelmente estratificado (notar que o eixo z aponta para cima). Quanto maior N, mais forte é a estratificação da coluna de água; assim termoclinas correspondem à regiões de máximos no perfil vertical da frequência de flutuação. Assim definida, a frequência de flutuação é consistente com a aproximação de Boussinesq [3].

Mais diretamente, o objetivo desse trabalho é revisar aplicações do método dos modos normais para oceanos estavelmente estratificados (rotação omitida) para dois casos de distribuição de N(z) em especial, quando existem os chamados pontos de transição no perfil vertical da frequência de flutuação. Nesses níveis, o caráter da solução muda de oscilatório para exponencial, ou vice versa. Os dois exemplos permitem discutir a aplicação dos métodos matemáticos (não exclusivos para ondas internas) usualmente usados em teoria das ondas.

2. Formulação matemática

2.1. Equações e condições de contorno

Para um oceano incompressível (ausência de ondas acústicas), estavelmente estratificado, as equações fundamentais, na ausência de rotação, dissipação e efeitos não lineares [4] se reduzem à duas equações envolvendo somente a pressão p(x, z, t) e a velocidade vertical w(x, z, t), a saber

e

que devem ser resolvidas considerando as seguintes condições de contorno: W = 0 em z =0e z =-D. A primeira condição é a aproximação da "tampa rígida" que elimina as ondas de superfície e a segunda é a condição de escoamento normal zero para uma superfície sólida horizontal. Uma descrição dessa técnica pode ser encontrada na Ref. [5].

A técnica matemática (padrão) que geralmente acompanha problemas de modos normais é a da separação de variáveis2 2 Não se deve sempre associar a técnica de separação de variáveis com a de modos normais. Muitos problemas na atmosfera (que não admitem modos verticais, por exibir uma fronteira superior aberta) são resolvidos usando o método de separação de variáveis. que consiste em se obter equações governantes, separadamente, para a estrutura horizontal e vertical das soluções. Esse método foi usado pela primeira vez por Lamb [6], quando derivou a chamada equação das marés para um oceano homogêneo de profundidade constante. Matematicamente, consiste em supor soluções na forma

e

já antecipando a existência dos modos normais, designados pelo índice3 3 Na realidade, qualquer solução pode ser escrita como uma combinação linear de modos normais; no caso acima, supõe-se que todos os coeficientes sejam iguais a um. 4 Este procedimento é também usado no método de escalas múltiplas, que poderia ser igualmente usado para resolver o problema em questão. 5 Pois a) In [ f ( x)] e b) exp [-ln ( x)] = . j, devido Às condições de contorno usadas.

A substituição das Eqs. (4) e (5) nas Eqs. (2) e (3) resulta

e

onde se conclui que

para que a equação seja válida para qualquer x, z e t. Daí, decorre da Eq. (6) que

A Eq. (7) pode ser reescrita como

Como o termo do lado esquerdo é função somente de x e t e o do lado direito, somente de z, cada termo deve, por consistência, ser uma constante. Essa constante é a constante de separação e, é comumente designada por -1/c2j (conveniente em termos de dimensões físicas, como visto a seguir). c2j pode ser escrito como c2j= ghj e, nesse caso hj é a profundidade equivalente (no caso de um fluido homogêneo de espessura constante, a profundidade equivalente coincide com a profundidade H do fluido) ou, ainda em termos do número de onda horizontal, pois c2j= ω2j 2. Em qualquer forma, as constantes de separação (válidas para cada valor de j) constituem os autovalores do problema que devem ser determinados (juntamente com as autofunções) como um problema clássico de autovalores/ autofunções do tipo dado pela Teoria de Sturm-Liouville, encontrada, por exemplo, na Ref. [7]. Nos exemplos ilustrativos desse trabalho, os autovalores são dados em função de κ.

2.2. Estrutura vertical

A estrutura vertical é obtida a partir da Eq. (10), ou seja

As duas condições de contorno tornam-se

A estrutura vertical pode ser expressa, também, em termos da função F(z); nesse caso, como o leitor pode verificar, ela é

sujeita as duas condições de contorno

Desde que a aproximação da "tampa rígida" seja adotada, é irrelevante resolver a formulação (11) ou (12). No entanto, se essa aproximação não for usada, a formulação (12) é recomendada pois a condição de contorno na superfície não contém os autovalores (parte do problema) como mostrado, por exemplo, na Ref. [5].

2.3. Estrutura horizontal

A estrutura horizontal dos modos normais é obtida também da Eq. (10) pois

que, derivada com respeito a t e combinada com a Eq. (9) resulta em

Esse é um resultado surpreendente. Primeiramente, a Eq. (14) é a equação que governa as ondas de gravidade de superfície longas (comprimento de onda bem maior que a profundidade do meio) e hidrostáticas. Assim, vê-se que a estrutura horizontal de um modo interno, em um oceano estratificado, é idêntica a de um oceano homogêneo, exceto pelo fato de se usar uma velocidade de fase cj = (ou, uma profundidade equivalente) correspondente ao dado modo normal. Essa velocidade é fornecida pela relação de dispersão obtida na determinação da estrutura vertical dos modos. Nota-se, também que a estratificação entra no problema somente para resolver o problema de autovalores / autofunções associado à estrutura vertical e não aparece explicitamente na estrutura horizontal. A solução geral da Eq. (14) pode se encontrada, por exemplo, na Ref. [8] e, é

onde Pj± são duas funções arbitrárias que expressam duas ondas planas propagando-se em sentidos opostos ao longo do eixo x e que são determinadas a partir de condições iniciais. Como não se trata de um problema de condições iniciais, pode-se supor (somente para os modos com propagação para a direita) que a estrutura horizontal é do tipo exp [ijxt)].

Essa constatação poderia ser usada ad initio. Nesse caso, as Eqs. (2) e (3) poderiam ser combinadas, resultando

e, em seguida supondo soluções da forma w (x, z, t)= Re {W (z) exp [ixt)]} para se chegar à conhecida equação

com as condições de contorno W (z = 0) = W (z = -D) = 0. Essa formulação é usada no segundo exemplo considerado no trabalho.

2.4. Método numérico

Do ponto de vista da obtenção da solução numérica, o intervalo contínuo [-D, 0] é subdividido, de modo que a profundidade total seja D = IΔz, com Δz sendo o intervalo de grade e I um inteiro que depende da resolução desejada. A Eq. (11) é aproximada por uma equação de diferenças finitas, ou seja

válida para os pontos internos 2 < i < I-1. Nos pontos extremos, G1 = GI = 0, são as condições de contorno. Em uma forma matricial, a Eq. (19) torna-se

onde é uma matriz de dimensões (I -1) x (I -1), do tipo tridiagonal sendo as componentes da diagonal principal todas iguais a -2 e as das diagonais adjacentes todas iguais a 1. é um vetor coluna que fornece a autofunção associada ao correspondente autovalor. Esse método é usado no primeiro exemplo do trabalho.

3. Primeiro problema: com uma termoclina

A motivação para considerar esse problema deve-se àum ecograma, gentilmente cedido por Dr. Theo Gerkema (comunicação particular) do Royal NIOZ, Texel na Holanda mostrado na Fig. 1. Essa tomografia acústica vertical foi realizada no Canal de Faeroe-Shetland, um cânion submerso, na parte nordeste do Atlântico Norte (61,29 N, 4,03 E a 61,40 N, 6,13 E, com uma profundidade variando de 155 a 1200 m) e, é estudada mais detalhadamente na Ref. [9].


A Fig. 1 é muito rica em informações, mas para o presente propósito, deve-se notar a existência das ondas de gravidade internas na forma de raios que se propagam em ziguezague entre as profundidades aproximadas de 200 e 500 m. Essa camada é uma termoclina, como mostrado no perfil vertical de N, na Ref. [9], quando a frequência corresponde à da componente da maré lunar semi diurna M2 (ω = 1,405 × 10-4 rad/s). No entanto, o perfil medido foi substituído por um perfil idealizado, como dado na Fig. 2.


Para frequências tais que

o caráter da solução será oscilatório no intervalo de profundidades determinado pelos níveis onde N(z)= ω. Esses níveis são os níveis de transição (turning levels, ou transition levels) onde a frequência da onda é localmente igual à frequencia de Brunt-Vaissalla, e marcam a mudança da natureza da solução, de oscilatória para exponencial ou vice versa, como visto na Eq. (7).

Os modos normais para esse problema foram determinados numericamente usando a técnica de diferenças finitas, como acima descrita. A profundidade do oceano foi de 4000 m (profundidade média dos oceanos globais), com uma resolução vertical Δz = 10 m (grade com 401 pontos). Devido ao fato de , com dimensões de 401 x 401 ser uma matriz tridiagonal, a obtenção dos autovalores/autofunções é um procedimento bastante econômico do ponto de vista computacional, mesmo para matrizes razoavelmente grandes.

3.1. Síntese de soluções

A Fig. 3 mostra alguns dos modos verticais identificados pelo índicej (que também é o número de zeros dentro do intervalo [-D, 0]). Dos 401 modos, somente os primeiros 300 foram usados na síntese de uma solução, construída usando a Eq. (5). Notar que problemas de síntese de soluções não estão associados a problemas de valores iniciais de modo que na combinação linear dos modos foram usados os mesmos coeficientes modais (nesse caso, todos iguais a um). A solução está mostrada na Fig. 4, que mostra os raios se propagando dentro do um guia de onda entre aproximadamente 1000 e 3000 m de profundidade; nestes dois níveis a onda é totalmente refletida de modo que não vazamento de energia. A Ref. [10] mostra figuras semelhantes a essa, mas usando um perfil diferente (ainda, analítico) de N.



4. Segundo problema: perfil linear

Muitos dos perfis analíticos encontrados na literatura incluem a presença de uma termoclina, como nas Refs. [10-11], entre outros. De fato, são relativamente poucas as escolhas de N que permitem soluções analíticas, mesmo em termos de funções especiais. Uma delas é o perfil linear de N, agora discutido em detalhes. Ele é dado por

onde Λ (positivo) é a taxa linear de variação de N2 (lembrando-se que z ∈ [-D, 0]). Apesar da ausência da termoclina, é possível se ter um nível de transição, acima (abaixo) do qual a solução é oscilatória (evanescente).

4.1. Solução na ausência de nível de transição

Para uma frequência suficientemente pequena, tal que 0 <ω < N (z) para qualquer z ∈ [-D, 0], ondas podem se propagar através de uma coluna inteira de fluido. Reescrevendo a Eq. (17) como

nota-se que agora se trata de uma equação com coeficiente variável e que os k (ou, m) são os autovalores a serem determinados. Se a aproximação hidrostática fosse usada bastaria substituir N2(z) - ω2 or N2(z).

A forma da Eq. (22), mais um pouco de intuição física, sugere que ela pode ser transformada para reproduzir a equação protótipo de Airy. De fato, usando a Eq. (21), é possível transformar a Eq. (22) em

onde λ2 ≡ Λ κ22 contém os autovalores e r ≡ (N2o- ω2/Λ) . A transformação (talvez não óbvia) para se chegar à uma equação de Airy consiste em introduzir uma nova variável, do tipo de coordenada esticada (stretched coordinate) usada em teoria de camadas limites, a saber

com νainda a ser determinado. Desse modo, a Eq. (23) se transforma de acordo com

mostrando que basta escolher ν = 2/3, para resultar em

cuja solução geral é W (ξ) = C1Ai (ξ) + C2(ξ), com Ai (z) e Bi(z) sendo as funções de Airy; ver Ref. [12], entre outros. A Eq. (25) é a equação de segunda ordem mais simples com um ponto de transição (turning point) onde o caráter da solução muda de oscilatório para exponencial (ou, vice versa), como mostrado na Fig. 5.


As constantes C1 e C2 são determinadas a partir das novas condições de contorno que são dadas por

A aplicação das duas condições de contorno resulta em um sistema homogêneo de duas equações, cujo determinante deve ser nulo, isto é,

se soluções não triviais forem de interesse. A solução dessa equação transcendental fornece os autovalores desejados; sendo que as dezenove primeiras raízes são mostradas na Tabela 1. Notar que a sequência de autovalores está em conformidade com a teoria de Sturm-Liouville.

A síntese de uma onda constituída pelos dezenove primeiros modos verticais é dada pela Eq. (28)

com r e λ definidos na Eq. (23) e mostrada na Fig. 6.


Vê-se que o feixe de raios experimenta (como no exemplo anterior) uma refração gradual com a profundidade tornando-se cada vez mais próximo da vertical. A propósito, essa é curvatura é devido à diminuição de N com a profundidade (no caso, não mostrado de N constante os raios formariam um ziguezagueado retilíneo). Reflexões totais ocorrem em z = 0e em z = -D.

4.2. Solução com nível de transição

Considere agora uma frequência mais alta de modo que N(z) > ω somente para uma camada superior do oceano, de modo que para profundidades maiores que a da base da camada, a solução deve ser evanescente. Em outras palavras, a onda deve permanecer confinada dentro dessa camada.

Apesar da Eq. (17) ser usada, alguma modificação será feita; por exemplo escrevê-la como abaixo

onde q(z), como definido acima, é uma função "lenta" de z com N(z) o é. Nessa forma, a Eq. (29) é convidativa para receber a aplicação do método WKB-J, cuja descrição é dada no Apêndice A. Ainda, para facilitar os cálculos, supõe-se um oceano de profundidade infinita, devendo a condição de contorno inferior ser, simplesmente, substituída por W → 0 para z → ∞.

Finalmente, é conveniente colocar a Eq. (29) em uma forma não dimensional e isso é facilmente feito bastando redefinir z → D z* e, ao mesmo tempo usar supondo um perfil normalizado (portanto, também adimensional) de N(z), por exemplo, do tipo abaixo

supondo nesse problema que o domínio da solução seja 0 < z < ∞. O nível de transição acontece para q (z) = 0 ou z = 1. essa reversão de eixos é de conveniência puramente matemática e não impede a visualização gráfica da solução na forma conhecida.

4.2.1. Método de WKB-J

A solução do problema, pelo método de WKB (ver Apêndice A) é

quando q(z) > 0, [N2(z) > ω2], no domínio 0 < z < 1 e

onde q(z) < 0[N2(z) < ω2], no domínio 1 < z < ∞.

Se não existisse um nível de transição, a solução seria dada ou pela Eq. (31.a) ou Eq. (31.b), como "esboçado" na Fig. 7 (foi usado um valor provisório de κ somente para efeito de ilustração gráfica). Agora, na presença do nível de transição, conclui-se que o método de WKB-J não consegue reproduzir corretamente a mudança do caráter oscilatório para um exponencial presente na solução exata. Um alerta nesse sentido foi implicitamente dado ao se escrever a solução da Eq. (29) - uma equação diferencial de segunda ordem -envolvendo quatro constantes arbitrárias (C1, C2, C3 e C4). Ou, em outras palavras, isso sugere a existência de alguma relação entre essas constantes, a qual deve ser determinada por outros métodos.


4.2.2. Expansão uniforme em torno do nível de transição

Uma maneira de relacionar essas constantes é obter para a Eq. (29), uma expansão válida na vizinhança de z = 1. A expansão é conseguida usando a técnica de coordenadas esticadas (stretched coordinates), muito comum em estudos de camadas limites. Assim, introduzindo a coordenada transformada

a Eq. (29), com q(z) = 1 - z pode ser escrita como

se γ = 2/3 e a = 1. Esta é a forma padrão da equação de Airy, cujas soluções são perfeitamente conhecidas e dadas por

onde Ai e Bi são as funções de Airy da primeira e segunda espécie e >1 e >2 são duas novas constantes arbitrárias.

O passo seguinte consiste em determinar relações entre as várias constantes arbitrárias. Uma maneira de acoplar as soluções dadas pelas Eqs. (31.a), (31.b) e (34) usa as expressões assintóticas das funções de Airy, obtidas de suas representações na forma de integrais. No entanto, o método da transformação de Langer pode gerar uma áo uniforme em termos dessas unica expansão funções especiais, isto é válida para qualquer z do intervalo de interesse, inclusive para as vizinhanças do nível de transição.

A descrição dessa transformação é omitida nesse trabalho por questão de espaço, mas o leitor encontrará na Ref. [13] o tópico discutido de uma maneira didática e com grande nível de detalhamento.

onde

de modo que σ > 0 quando z > 1, com os autovalores dados por

A Fig. 8 mostra a estrutura vertical de alguns modos.


A Fig. 9 mostra os raios formados pela combinação linear dos trinta primeiros modos verticais, notandose em particular o confinamento da onda na camada [-1, 0].


Recebido em 11/5/2012

Aceito em 23/6/2012

Publicado em 18/3/2013

Apêndice

A

Nota histórica

A sigla WKB expressa as iniciais dos matemáticos G. Wentzel, H.A. Kramers e L. Brilloin que, quase simultaneamente mas independentemente, em 1926 publicaram trabalhos sobre o método (a ser apresentado nesse apêndice) em conexão com à equação de Schrondinger da física quântica. O método WKB, no entanto, é bastante similar a outro desenvolvido na Ref. [13] e a outro publicado segundo a Ref. [14]. Daí, certos autores referirem-se ao método pelo "método de WKB-J".

Mas, mais curioso ainda é que a essência desse método já era conhecida [15] e [16]. Alguns autores mais recentes, como a Ref. [4], entre outros, denominam o método como "o método de aproximação de Liouville-Green". O autor conseguiu achar na Ref. [13] a "transformação de Liouville-Green que chega aos mesmos resultados obtidos pelo método de WKB-J, porém transformando ambas variáveis [(z e W (z)] de modo a se ter uma equação cuja parte dominante tem coeficientes constantes. Grande parte do material apresentado a seguir é baseado essencialmente na Ref. [13]; o leitor que desejar um tratamento matemático mais formal deve consultar a Ref. [17].

Sobre o método

A equação governante para um meio incompressível e estavelmente estratificado é

onde

é uma função lenta de z. A fim de enfatizar essa peculiaridade, é conveniente introduzir uma variável "lenta"

z", com ∈ ≪ 1. A Eq. (A.2), escrita em termos dessa nova variável,

Uma rápida análise dessa equação mostra que para ∈ ≪ 1, o segundo termo torna-se dominante e a solução da equação é a trivial. Esse é um caso de nenhum interesse. A fim de se obter alguma solução não trivial, o método WKB (ou WKBJ, ás vezes) será usado (e, é agora detalhado passo a passo) na busca dessas soluções. Tentando uma solução na forma

onde

A Eq. (A.3) transforma-se em

que é uma equação diferencial não linear, para as quais não existem métodos gerais de obtenção de soluções. Nesse ponto crucial, a expansão dada pela Eq. (A.5) é usada, resultando

Reagrupando os infinitos termos da Eq. (A.7) como coeficientes de termos de mesmas potências de σ, obtém-se as seguintes equações

e assim por diante. Termos de ordem maior, bem como mais detalhes (convergência, por exemplo) do método podem ser encontrados na Ref. [17]. Em princípio, as equações da expansão podem ser resolvidas sequencialmente, mas para uma grande maioria de problemas práticos os dois primeiros termos são suficientes.

A Eq. (A.8) -conhecida por equação eiconal -tem por solução

sendo omitida a constante de integração. E interessante notar que se m fosse constante, a solução da Eq. (A.3) seria

e, portanto

que é uma solução do tipo onda plana. Para o caso de m2 (z"constante, a solução até essa ordem, é

e

mostrando que, devido à presenca da integral, a componente vertical do vetor número de onda é dada pelo seu valor local, pois

Desse modo, a função Z0 pode ser interpretada como a "parte" vertical da função de fase. Agora, o problema de 0{∈} é resolvido.

A Eq. (A.9) pode ser diretamente integrada,

como facilmente verificado. A solução da Eq. (A.1), com erro da 0{∈2}, é portanto

onde

Colapso do método nas vizinhanças de níveis de transição

Nas vizinhanças de um nível de transição, o método de WKB falha, pois nesse nível m = 0 e a onda sofre reflexão total. Pode-se mostrar, como na Ref. [5] ou a Ref. [2] que, localmente a solução forma uma cúspide, como mostrado na Fig. 10.

Matematicamente, esse ponto pode ser mais bem esclarecido, notando que a solução aproximada da Eq. (A.1), dada pela Eq. (A.18) coincide ser a solução exata de uma outra equação, a saber

onde

notando que para ∈(z) → 0, Eq. (A.20) → Eq. (A.1). Vê-se que quando m → 0, ∈ → ∞, mostrando que a aproximação de WKB não é apropriada quando os raios sofrem reflexão.

Outra pergunta pertinente é conhecer as condições sob as quais essa aproximação é válida; ou, em outras palavras, em que condições ∈ (z) ≪ 1? Isso pode acontecer quando: a) m (faz o papel de um número de onda vertical) for grande, o que corresponde a comprimentos de ondas verticais (λν) "pequenos" e b) se

com H sendo uma escala típica representativa da variação vertical da frequência de flutuação. Em suma, desde que as variações do meio aconteçam em escalas bem maiores que as correspondentes da onda e ausência de níveis de transição, o método de WKB é uma excelente ferramenta para se usar no estudo de propagação de ondas (em geral) em meios não uniformes.

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    E-mail:
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    Não se deve sempre associar a técnica de separação de variáveis com a de modos normais. Muitos problemas na atmosfera (que não admitem modos verticais, por exibir uma fronteira superior aberta) são resolvidos usando o método de separação de variáveis.
  • 3
    Na realidade, qualquer solução pode ser escrita como uma combinação linear de modos normais; no caso acima, supõe-se que todos os coeficientes sejam iguais a um.
    44 é Este procedimento é também usado no método de escalas múltiplas, que poderia ser igualmente usado para resolver o problema em questão.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      11 Maio 2012
    • Aceito
      23 Jun 2012
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