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Transformações de Galileu e de Lorentz: um estudo via teoria de grupos

Galileo and Lorentz Transformations: a study via group theory

Resumos

Neste trabalho destacaremos a conexão entre teoria de grupos e transformações entre referenciais. A partir da definição da representação dos grupos abstratos de Galileu e de Lorentz sobre o espaço-tempo, somos levados naturalmente às transformações de Galileu e de Lorentz nos regimes newtoniano e relativístico. Além de fornecer um material introdutório para assuntos mais avançados, como teoria de grupos e suas representações, este artigo apresenta também uma formulação alternativa à teoria da relatividade especial.

princípio da relatividade; teoria de grupos; relatividade especial


In this work we explore the connection between group theory and transformations among frames of reference. Starting from the very definition of representations of the abstract Galileo and Lorentz groups over the space-time, we are naturally led to the Galileo and Lorentz transformations in classical and relativistic regime. In addition to providing an introductory material for advanced topics, such as group theory and its representations, this paper also brings an alternative formulation to the special relativity theory.

principle of relativity; group theory; special relativity


ARTIGOS GERAIS

Transformações de Galileu e de Lorentz: um estudo via teoria de grupos

Galileo and Lorentz Transformations: a study via group theory

A.N. Rocha; B.F. Rizzuti* * E-mail: adson.anr@gmail.com; brunorizzuti@ufam.edu.br. ; D.S. Mota

Instituto de Saúde e Biotecnologia, Universidade Federal do Amazonas, Coari, AM, Brasil

RESUMO

Neste trabalho destacaremos a conexão entre teoria de grupos e transformações entre referenciais. A partir da definição da representação dos grupos abstratos de Galileu e de Lorentz sobre o espaço-tempo, somos levados naturalmente às transformações de Galileu e de Lorentz nos regimes newtoniano e relativístico. Além de fornecer um material introdutório para assuntos mais avançados, como teoria de grupos e suas representações, este artigo apresenta também uma formulação alternativa à teoria da relatividade especial.

Palavras-chave: princípio da relatividade, teoria de grupos, relatividade especial.

ABSTRACT

In this work we explore the connection between group theory and transformations among frames of reference. Starting from the very definition of representations of the abstract Galileo and Lorentz groups over the space-time, we are naturally led to the Galileo and Lorentz transformations in classical and relativistic regime. In addition to providing an introductory material for advanced topics, such as group theory and its representations, this paper also brings an alternative formulation to the special relativity theory.

Keywords: principle of relativity, group theory, special relativity.

1. Introdução

A universalidade da física é descrita por um princípio básico, que talvez devesse ser chamado de axioma, por ser aceito sem demonstração devido a sua clareza e razoabilidade: o princípio da relatividade.1 1 Um nome mais sugestivo seria princípio do absoluto, pois sua formulação retrata leis válidas independentes do observador. Seu enunciado é o seguinte,

As leis da física são as mesmas em qualquer referencial inercial [1].

Com este princípio somos levados implicitamente a fornecer a ligação entre referenciais distintos utilizados para descrever determinado fenômeno, garantindo assim que a física é a mesma, seja em um ou outro referencial. O objetivo central deste trabalho será então caracterizar esta ligação entre observadores, chegando às transformações de Galileu e de Lorentz entre referenciais inerciais. Esta construção fornece, em particular, uma formulação alternativa para a teoria da relatividade especial. Para isso, utilizaremos uma ferramenta matemática poderosa, a teoria de grupos. Mostraremos que os grupos estão intimamente ligados com o princípio da relatividade, seja na mecânica clássica ou relativística. Infelizmente a disciplina formal de teoria grupos não é vista nos cursos de graduação em física, tanto nas licenciaturas quanto nos bacharelados, apesar da sua conexão direta com a física. Além disso, a bibliografia padrão utilizada que trata da aplicação em física da teoria de grupos é avançada, veja por exemplo [2-4]. Desta maneira, este trabalho propõe também fornecer de maneira didática uma primeira leitura à teoria de grupos, ressaltando sua proximidade com a física. Dividiremos este artigo da seguinte maneira: na Seção 2, motivaremos, de maneira intuitiva, o uso da teoria de grupos para estabelecer a conexão entre referenciais distintos. A formalização desta discussão intuitiva é feita na Seção seguinte, quando obteremos as transformações de Galileu a partir da definição da representação do grupo de Galileu sobre o espaço-tempo. Na Seção 4, discutiremos as razões pelas quais o grupo de simetrias (grupo de Galileu) da mecânica clássica deveria ser substituído por outro que garantisse, por exemplo, que o princípio da relatividade fosse aplicado também às equações de Maxwell. Este novo grupo de simetrias, o grupo de Lorentz, é analisado na Seção 5: a partir da sua ação no espaço-tempo seremos levados naturalmente à formulação da relatividade especial. Por fim, dedicamos a Seção 6 para a conclusão.

2. Por que teoria de grupos?

Muitas teorias em física são descritas por ramos da matemática que por vezes foram desenvolvidos de maneira independente da sua aplicação. Por exemplo, é muito difícil analisar um trabalho moderno ligado com a teoria da relatividade geral sem conhecer geometria diferencial [5]. O mesmo podemos dizer da mecânica quântica em nível elementar: já nos primeiros capítulos nos deparamos com palavras "vetores num espaço de Hilbert representam estados de uma partícula" ou ainda "operadores hermitianos representam quantidades observáveis" [6]. Isto mostra a forte dependência da mecânica quântica com a álgebra linear.

O que podemos dizer sobre a teoria de grupos?2 2 Vamos abordar neste trabalho a associação entre teoria de grupos e o princípio da relatividade. Naturalmente este não é o fim da história: grupos são ainda utilizados, entre outros assuntos, na teoria do momento angular em mecânica quântica [7], física do estado sólido [8], física de partículas elementares [9], mas estes assuntos fogem do escopo deste artigo. Como nosso objetivo é retratar a sua associação com o princípio da relatividade, vamos considerar a seguinte situação: três rapazes discutem sobre o estado de movimento de uma criança andando de bicicleta. O primeiro rapaz está parado, o segundo anda com mesma velocidade que a bicicleta e o terceiro corre mais rápido que as pedaladas. O primeiro então diz para os outros dois que a criança se afasta com velocidade positiva. O segundo nega, afirmando que a bicicleta está parada. Já o terceiro comenta que a bicicleta está se afastando com velocidade negativa. Qual dos três está correto? Cada um deles tem razão, já que as afirmações são feitas em relação aos seus respectivos referenciais. Para garantir que os três rapazes não vão brigar, devemos permitir que haja comunicação entre os três, assim cada um estará ciente do que o outro está vendo. É razoável esperar que esta troca de informações entre observadores obedeça certas regras:

1. A situação em que o primeiro avisa o segundo rapaz, que por sua vez avisa o terceiro sobre o que o primeiro vê é equivalente ao primeiro avisar diretamente o terceiro.

2. A afirmação do que cada um vê pode ser transmitida, sem seguir uma ordem do primeiro para o segundo e assim sucessivamente. Por exemplo, se colocarmos um quarto rapaz no jogo, então a situação em que o primeiro avisa o segundo, o segundo avisa o terceiro e por sua vez comunica ao quarto a informação vinda do primeiro é equivalente ao primeiro passar sua informação à frente depois de ter estabelecido a comunicação entre os três rapazes seguintes.

3. A informação entre o estado de movimento da criança na bicicleta pode ser transmitida tanto num sentido quanto no outro: o primeiro pode avisar o segundo do que vê ou vice-versa.

Se associarmos a troca de informação com elementos gi, i = 1, 2, ... de um conjunto G, então é natural pensar que G é um grupo, isto é, um conjunto munido de uma operação que associa pares de elementos a um terceiro elemento,

obedecendo

a) g1 · (g2 · g3) = (g1 · g2) · g3, para todos g1, g2, g3 em G.

b) Existe e em G tal que ge = eg = g, para todo g em G.

c) Para todo g em G, existe g-1 tal que gg-1 = g-1g = e.

As regras que pedimos para a troca de informações possuem exatamente a estrutura de um grupo: a regra 1 fornece o fechamento do produto, a número 2 corresponde à associatividade do produto em G e por fim a regra 3 está ligada com a existência do elemento inverso (e identidade). Assim fica justificado o uso da teoria de grupos para estabelecer a relação entre diferentes referenciais. Como discutimos anteriormente, a ligação entre referenciais é essencial para assegurar o princípio da relatividade. Nas próximas seções discutiremos os detalhes técnicos da discussão informal acima. Veremos como somos levados às transformações de Galileu, seu declínio e por fim chegaremos às transformações de Lorentz, culminando com a teoria da relatividade especial.

3. Ligação entre referenciais na mecânica clássica: transformações de Galileu

Nesta Seção mostraremos como a teoria de grupos está por trás do princípio da relatividade: a partir da representação do grupo de Galileu no espaço-tempo somos levados às transformações de Galileu entre referenciais inerciais.

Consideremos uma situação hipotética em que uma partícula encontra-se afastada de tudo e livre de forças externas. É impossível descrever sequer o estado de movimento desta partícula. Por outro lado, se nos aproximarmos dela, poderemos dizer se ela está parada ou se movimentando. Neste caso, ao observador que se aproximou da partícula está associado um sistema de referência ou referencial: ele pode dizer onde a partícula se encontra, digamos x e em qual instante de tempo t a partícula encontra-se em x. Esta construção nos leva naturalmente ao espaço 4 com coordenadas

onde x0 = t, x1 = x, x2 = y, x3 = z. Índices gregos µ, υ, ..., assumem os valores 0, 1, 2, 3. O índice 0 corresponde à variável temporal x0 e os índices latinos i, j, k, ... correm valores 1, 2, 3 e estão associados às variáveis espaciais. Chamamos xµ de coordenadas de espaço-tempo.

Se a partícula é livre, então sua descrição com coordenadas xµ é a mais simples possível: ou ela está parada ou em movimento retilíneo e uniforme. Caso usássemos um outro sistema de coordenadas x'µ para descrevê-la, ela deve continuar livre. Assim, associamos xµ e x'µ com uma transformação linear, que leva retas em retas,

onde usamos a notação de Einstein: índices repetidos significam soma. O índice µ corresponde à linha e υ a coluna da matriz G.

De uma maneira ou de outra gostaríamos de associar a matriz G acima a um certo grupo, como discutimos anteriormente. Vejamos então como isto pode ser feito.

Começamos com a definição do seguinte conjunto de matrizes munido com o produto usual,

isto é,

Como G possui três entradas independentes, a saber, υ1, υ2 e υ3, usamos a expressão "v'' na Eq. (5) para simplificar a notação. A verificação que é um grupo é direta:

a) O produto é fechado em

b) O produto usual de matrizes é associativo;

c) O elemento neutro é a própria identidade;

d) Para todo G(v) em , seu inverso é dado por,

Chamaremos de grupo de Galileu.3 3 Vamos estudar aqui somente o setor do grupo de Galileu associado com os boosts. O grupo de Galileu, além dos boosts contém ainda um setor responsável por rotações [1]. A palavra boost em inglês significa "empurrão". Daí ela ser usada para se referir a troca de referenciais quando um se desloca em relação ao outro com velocidade constante. No exemplo dos rapazes discutindo sobre o estado de movimento da criança de bicicleta ficou claro que a troca sucessiva de referenciais estava associado com o produto de grupos. Por outro lado, com a Eq. (3) vimos que a associação entre referenciais inerciais é feita por uma transformação linear. Para que o produto do grupo seja respeitado pelas transformações da forma da Eq. (3), devemos associar a cada G em um operador linear que atua no espaço-tempo,

obedecendo à seguinte regra,

Denotamos por L(4) o espaço dos operadores lineares sobre 4. A interpretação para a Eq. (9) é simples: estamos obrigando que o produto dos operadores (lado direito) obedeça ao produto do grupo (lado esquerdo). φ é chamado de homomorfismo [10]. Como as matrizes de são 4 ×4 e dim 4 = 4, o homomorfismo escolhido será a aplicação identidade φ = id. Assim a Eq. (3) fica reduzida a

Neste caso dizemos que está dada uma representação linear do grupo de Galileu no espaço-tempo.4 4 A teoria de representações de grupos tem um papel central em física de partículas elementares. Veja por exemplo a Ref; [9]. Qual é a interpretação física desta construção? Se escrevemos a Eq. (10) explicitamente, encontramos

As expressões (11) e (12) são bem conhecidas e correspondem às transformações de Galileu [11]. Elas fazem as ligações entre referenciais inerciais e os parâmetros vi, i = 1, 2, 3 correspondem às componentes da velocidade relativa entre os referenciais. Se mudarmos o sentido da velocidade, invertemos a troca de referenciais, isto é,

Isto justifica a expressão

Vamos inserir mais um referencial no jogo, se afastando de x'µ com velocidade v', conforme mostra a Fig. 1.


Por um lado,

Por outro lado,

Substituindo a Eq. (16) na Eq. (15),

Lembrando que

ganhamos naturalmente a ligação entre xµ e x"µ.

Como x"µ afasta-se de x'µ com velocidade v' e x'µ afasta-se de xµ com velocidade v', x"µ afasta-se de xµ com velocidade v + v', a qual é a composição clássica de velocidades. Ressaltamos que o produto do grupo carrega a informação de que podemos fazer transformações sucessivas entre referenciais, veja a Eq. (18). Observemos também que o princípio da relatividade está garantido já que a segunda lei de Newton tem sua forma mantida por uma transformação de Galileu.

4. Declínio das transformações de Galileu

Com o advento das equações de Maxwell, surgiu um impasse com o princípio da relatividade: elas implicavam, na ausência de fontes, em uma equação de ondas para os campos elétricos e magnéticos,

Mas as equações acima não são invariantes para as transformações de Galileu, quebrando o princípio da relatividade. Como as equações de Maxwell descreviam muito bem tanto fenômenos eletromagnéticos quanto óticos, sendo sugestivo que elas correspondiam a leis fundamentais da natureza, a física deveria passar por uma reformulação profunda: ou as equações de Maxwell deveriam ser substituídas por um modelo covariante sob a ação do grupo de Galileu ou as equações de Maxwell seriam mantidas, trocando o grupo de transformações que garantia o princípio da relatividade.5 5 Esta última opção implicava ainda na reformulação da mecânica de Newton pois sua segunda lei era covariante sob transformações de Galileu Esta segunda opção foi exatamente a escolha de Einstein. Aspectos históricos sobre a formulação da relatividade especial podem ser encontrados nas Refs. [12] e [13]. Na próxima Seção vamos obter a representação de outro grupo sobre o espaço-tempo e discutiremos a sua interpretação física. Mencionaremos que a forma da equação de onda (que se propaga com uma velocidade bem definida) é mantida sob as novas transformações e mostraremos como a relatividade especial surgirá naturalmente a partir desta construção.

5. Reformulando a ligação entre referenciais: transformações de Lorentz

Anteriormente discutimos que as equações de Maxwell necessitavam de um novo grupo de transformações que garantissem sua covariância. Nesta Seção apresentaremos este grupo e definiremos sua representação no espaço-tempo, seguindo a mesma prescrição utilizada para o grupo de Galileu na Seção anterior. Por fim, daremos a interpretação física correspondente.

5.1. Definição e investigação formal do grupo de Lorentz

Seja o seguinte conjunto de matrizes 4×4 com entradas reais, munido com o produto usual satisfazendo

onde η = diag(-1, +1, +1, +1) é uma matriz diagonal fixa. é de fato fechado para o produto,

para todos Λ1, Λ2 em , e ainda, a partir da restrição ΛTηΛ = η, obtemos detΛ = ±1. Assim para todo Λ em , existe Λ-1. Logo, tem estrutura de grupo e o denotaremos como grupo de Lorentz. Vamos analisar somente o subconjunto de (que também é um grupo) das matrizes com determinante igual a 16 6 O conjunto de matrizes com determinante -1 não é fechado para o produto. Para evitar este problema, analisaremos somente o setor de com determinante igual a 1.

As letras S e O correspondem a special e orthogonal. A primeira refere-se à restrição do determinante das matrizes ser unitário e a segunda indica que parte do grupo é formado por matrizes ortogonais. Os parêntesis (1,3) indicam que o grupo atua no espaço-tempo com uma dimensão temporal e três espaciais. A investigação de SO(1,3) é facilitada se escrevemos Λ ∈ SO(1,3) como a exponencial de uma matriz ω,

Os detalhes técnicos e as propriedades que utilizaremos aqui sobre exponenciais de matrizes estão no apêndice ao final do texto. A restrição (22) é equivalente a,

Usando agora a Eq. (25) na Eq. (26),

onde usamos as propriedades (1) e (2) do Apêndice. É possível mostrar também que = A-1eBA, veja a propriedade (3). Portanto, a Eq. (27) toma a forma

Devido à propriedade (4) do apêndice, podemos escrever

A restrição (29) implica que as matrizes w são obrigatoriamente compostas por uma parte simétrica e outra antissimétrica,

ou ainda,

onde a, ..., f são parâmetros arbitrários reais e, por exemplo

A restrição detΛ = 1 não traz nada novo: de acordo com a propriedade (5), temos,

Mas pela Eq. (30), vemos que o traço de ω é nulo. Existe uma maneira elegante de se reescrever a expressão (31). Definimos um objeto antissimétrico com dois índices, ωαβ = - ωβα, como segue,

Enumeramos as matrizes Ma, ..., Mf da mesma maneira,

Também por definição, Mαβ = - Mβα. Desta forma,

Observemos que os índices acima não representam os índices dos elementos de matriz. Eles se referem à enumeração dos parâmetros a, ..., f e das matrizes Ma, ..., Mf. Finalmente, chegamos a,

As matrizes ω pertencem a um conjunto que tem estrutura de espaço vetorial: qualquer ω pode ser escrita como combinação linear das matrizes Ma, ..., Mf, veja a Eq. (31). Por definição, as Mαβ são chamadas geradores (do grupo). Este conjunto recebe o nome de álgebra de Lie do grupo SO(1,3), sendo denotado por so(1,3),

Os geradores Mαβ são dados pela Eq. (35). A relação entre um grupo e sua álgebra de Lie é dada pela fórmula ilustrativa,

Para o caso em que discutimos, SO(1,3) = eso(1,3).

5.2. Representação do grupo SO(1,3) no espaço-tempo

Assim como fizemos com o grupo de Galileu, vamos definir a representação do grupo de Lorentz no espaço-tempo e discutir as consequências físicas desta construção.7 7 Este não é o fim da história: a equação de Dirac, por exemplo, pode ser deduzida a partir de propriedades das transformações de espinores sob ação do grupo de Lorentz [14]. Como gostaríamos de fornecer um trabalho introdutório sobre grupos e suas representações, não trataremos estes assuntos aqui. Para maior aprofundamento nestes tópicos, indicamos a Ref. [2]. Sendo o grupo SO(1,3) também formado por matrizes 4×4, novamente tomamos o homomorfismo de SO(1,3) sobre o espaço de operadores lineares que atuam em 4 como a identidade, onde L(4) é o conjunto de operadores lineares sobre o espaço-tempo (Fig. 2). Desta maneira, as coordenadas xµ de 4 transformam-se como


5.3. Interpretação física de SO(1,3): rotações espaciais

Para discutir a interpretação da expressão (40), consideremos o caso particular de Λ dado quando tomamos todos os ωαβ = θ, com exceção de ω12 = q (lembremos que os ωαβ são constantes arbitrárias). Assim

A exponencial de matrizes acima é uma das poucas que pode ser calculada analiticamente (veja os detalhes no Apêndice) e fornece

De acordo com a Eq. (40),

As expressões acima são bem conhecidas na geometria analítica [15] e significam rotação dos eixos de coordenadas x1 e x2 em torno do eixo x3 por um ângulo θ. Vamos assumir que x0 está ligado com a coordenada temporal e não se altera sob rotações. Por analogia, concluímos que as transformações associadas com as coordenadas ω13 e ω23 significam rotações em torno dos eixos x2 e x1 respectivamente. Portanto, um setor do grupo de Lorentz está associado com rotações espaciais.

5.4. Interpretação física de SO(1,3): boosts de Lorentz

Tomemos agora como único parâmetro não-nulo ω01φ. Neste caso,

A exponencial acima também pode ser calculada (veja Apêndice) e encontramos

onde usamos as funções hiperbólicas coshφ = (eφ + e-φ) e senhφ = (eφ - e-φ). Fazendo agora

encontramos

Passamos agora efetivamente à interpretação física das transformações acima. Como assumimos anteriormente que a coordenada x0 está ligada com a coordenada temporal e ainda, para que a expressão (50) fique dimensionalmente correta ao substituirmos x0 por t, façamos, por simplicidade,8 8 A ideia inicial de se construir um espaço quadridimensional foi de Poincaré. Minkowski deu continuidade a este trabalho e conseguiu dar, por exemplo, interpretação para as transformações de Lorentz, que veremos a seguir, utilizando a notação de quadrivetores. A proposta inicial para a utilização da notação x 0 também foi de Minkowski [16].

onde c é uma constante com dimensões de velocidade. Assim

enquanto as coordenadas x2 e x3 permanecem inalteradas. As expressões acima nos remetem às transformações de Galileu, que misturam coordenadas espaciais e temporais, como nas Eqs. (11) e (12). Assim, vamos supor que as transformações (55) e (56) também descrevem a troca de coordenadas entre referenciais que se afastam um em relação ao outro com velocidade V, mas com maior precisão. V aponta no sentido positivo do eixo x1 e no instante t = 0 os referenciais coincidem. Passado um intervalo de tempo t, ocorre um evento e que coincide com a origem do referencial que se desloca em relação ao primeiro (Fig. 3)


Neste caso, temos: x'1 = 0 e x1 = Vt, que substituídos na Eq. (56) fornecem,

A partir da identidade cosh2φ = 1 + senh2φ, temos, em conjunto com a Eq. (57),

Como senhφ = -coshφ e coshφ > 0, para todo φ,

Finalmente, como senhφ = tghφ coshφ,

Retornamos agora para as transformações (50)

As transformações acima são chamadas transformações de Lorentz. Faremos agora uma lista dos resultados obtidos, enunciando algumas consequências físicas associadas às transformações de Lorentz.

1. Assim como os parâmetros ω12, ω13 e ω23 são identificados com rotações em 3, em torno dos eixos x3, x2 e x1, os parâmetros ω01, ω02 e ω03 correspondem aos boosts na direção dos eixos x1,x2 e x3 com velocidade Vi tal que

2. As transformações (61)-(64) são singulares para Vc. Isto indica que devemos esperar uma nova física para velocidades próximas de c. Mais ainda, c determina um limite superior para velocidades: para que o fator esteja bem definido, devemos ter V < c.

3. No limite c → +∞, as transformações (61)-(64) coincidem com as transformações de Galileu. Neste sentido, podemos interpretar as transformações de Galileu como transformações efetivas para as transformações de Lorentz quando V << c.

4. Vamos obter a regra de transformações para velocidades,

Suponhamos que v = c. No referencial que afasta-se do primeiro, temos

Logo, c determina uma escala invariante independente do observador.

5. Lorentz obteve as transformações (61)-(64) de forma que a equação de uma onda que se propaga com velocidade c,

mantivesse sua forma. Isto já era um indício para ser mostrado mais tarde a covariância das equações de Maxwell sob ação das transformações de Lorentz. Como afirmamos anteriormente, as equações de Maxwell sem fontes implicam em equações de onda para os campos elétrico e magnético com velocidade , veja as Eqs. (20) e (21). Hertz conseguiu gerar experimentalmente ondas eletromagnéticas, previstas teoricamente, além de mostrar que sua velocidade coincidia exatamente com o valor teórico [17]. Ele mostrou também que estas ondas eram refletidas em metais, assim como a luz é refletida por um espelho. Desta maneira concluímos que a constante c que aparece nas transformações de Lorentz coincide com a velocidade da luz,

unificando o eletromagnetismo e a ótica.

Resumindo agora as observações feitas acima, nasce a relatividade especial, já que Einstein baseou toda a teoria em dois postulados,

I - A velocidade da luz no vácuo é a mesma em todos os referenciais que se movam uniformemente um em relação aos outros.

II - As Leis da natureza são as mesma em todos os referenciais que se movam uniformemente uns em relação aos outros.

6. Conclusão

Neste trabalho destacamos a importância da teoria de grupos para a física: o princípio da relatividade é garantido quando estabelecemos a ligação entre referenciais distintos, seja clássica ou relativisticamente. Mostramos com um exemplo intuitivo que esta ligação entre referenciais deve obedecer certas propriedades similares às propriedades de uma estrutura algébrica bem conhecida, um grupo. A formalização da discussão intuitiva da Seção 2 é feita nas Seções 3 e 4, quando descrevemos uma maneira de carregar a informação contida no grupo até as transformações de coordenadas no espaço-tempo. Para isto, a cada elemento do grupo de Galileu e de Lorentz associamos uma transformação linear que atua no espaço-tempo, respeitando o produto do grupo. Como interpretação física para a representação do grupo de Galileu encontramos as transformações de Galileu, que relacionam as coordenadas de referenciais inerciais movendo-se um em relação ao outro. Com o advento das equações de Maxwell, Einstein decide substituir o grupo de transformações da mecânica clássica por outro que garantisse a covariância das equações de Maxwell. Seguindo esta prescrição, definimos a representação do grupo de Lorentz no espaço-tempo e como consequência somos levados naturalmente à formulação da relatividade especial. Acreditamos que este trabalho possa servir como uma primeira leitura em cursos de graduação para a teoria de grupos, caracterizando sua ligação com a física. Fornecemos também uma introdução alternativa e didática para relatividade especial. As transformações de Lorentz são extraídas a partir da representação do grupo de Lorentz no espaço-tempo, evitando as deduções usuais que encontramos na literatura, onde é pedido por exemplo, que a frente de onda de um pulso luminoso mantenha sua forma (dedução esta prevista pelo próprio Einstein [18]). Ressaltamos que o intuito deste artigo não é substituir a extensa literatura sobre teoria de grupos, tão pouco sobre relatividade especial. Como dissemos, gostaríamos de fornecer um material acessível e complementar para estes assuntos.

7. Apêndice

Vamos definir a exponencial de matrizes e destacar algumas de suas propriedades, que foram úteis para a investigação do grupo de Lorentz, veja por exemplo, a Eq. (25). Por fim, calcularemos duas exponenciais que foram utilizados ao longo do texto.

Definição 1 Seja M o conjunto de todas as N × N-matrizes com elementos reais. A função exponencial sobre M é uma aplicação exp: M → M definida por

A série acima é convergente no seguinte sentido: cada elemento da matriz é uma série convergente de números reais. Vejamos agora algumas propriedades das exponenciais,

1. ()T = eAT.

2. ()-1 = e-A.

3. = A-1eB A. Com efeito,

4. A aplicação A é uma bijeção de uma vizinhança pequena da matriz N × N nula sobre uma vizinhança pequena da identidade de ordem N.

5. Por fim, det() = etrA.

Não demonstraremos as propriedades acima para não nos distanciarmos do objetivo deste trabalho. Elas podem ser encontradas em [2]. Calcularemos agora algumas exponenciais específicas que apareceram no decorrer do texto. A primeira delas foi . Temos,

e assim sucessivamente. Logo

As séries de números que aparecem na exponencial acima são convergentes para todo θ real e correspondem às séries para senos e cossenos,

Portanto,

Passemos agora à exponencial de φM01. Temos

e assim por diante. A exponencial fica,

Combinando as séries da exponencial real,

encontramos as séries para as funções hiperbólicas de seno e cosseno,

Logo

Agradecimento

Durante a revisão deste manuscrito os autores forem direcionados para a Ref. [19]: parte do capítulo 1 é dedicado à construção do grupo de Lorentz a partir da constância da velocidade da luz. Gostaríamos de agradecer ao Prof. Alexei Deriglazov pela sugestão.

Recebido em 5/3/2013;

Aceito em 1/5/2013;

Publicado em 15/10/2013

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  • 1
    Um nome mais sugestivo seria princípio do absoluto, pois sua formulação retrata leis válidas independentes do observador.
  • 2
    Vamos abordar neste trabalho a associação entre teoria de grupos e o princípio da relatividade. Naturalmente este não é o fim da história: grupos são ainda utilizados, entre outros assuntos, na teoria do momento angular em mecânica quântica [7], física do estado sólido [8], física de partículas elementares [9], mas estes assuntos fogem do escopo deste artigo.
  • 3
    Vamos estudar aqui somente o setor do grupo de Galileu associado com os
    boosts. O grupo de Galileu, além dos
    boosts contém ainda um setor responsável por rotações [1]. A palavra
    boost em inglês significa "empurrão". Daí ela ser usada para se referir a troca de referenciais quando um se desloca em relação ao outro com velocidade constante.
  • 4
    A teoria de representações de grupos tem um papel central em física de partículas elementares. Veja por exemplo a Ref; [9].
  • 5
    Esta última opção implicava ainda na reformulação da mecânica de Newton pois sua segunda lei era covariante sob transformações de Galileu
  • 6
    O conjunto de matrizes com determinante -1 não é fechado para o produto. Para evitar este problema, analisaremos somente o setor de
    com determinante igual a 1.
  • 7
    Este não é o fim da história: a equação de Dirac, por exemplo, pode ser deduzida a partir de propriedades das transformações de espinores sob ação do grupo de Lorentz [14]. Como gostaríamos de fornecer um trabalho introdutório sobre grupos e suas representações, não trataremos estes assuntos aqui. Para maior aprofundamento nestes tópicos, indicamos a Ref. [2].
  • 8
    A ideia inicial de se construir um espaço quadridimensional foi de Poincaré. Minkowski deu continuidade a este trabalho e conseguiu dar, por exemplo, interpretação para as transformações de Lorentz, que veremos a seguir, utilizando a notação de quadrivetores. A proposta inicial para a utilização da notação
    x
    0 também foi de Minkowski [16].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      05 Mar 2013
    • Aceito
      01 Maio 2013
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