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Uma proposta para o ensino da astronomia e astrofísica estelares no Ensino Médio

A proposal for the teaching of stellar astronomy and astrophysics in the Middle/High School

Resumos

Discutimos neste trabalho uma abordagem empírica para o ensino da astrofísica estelar no Ensino Médio. Utilizando um mínimo de informação, desenvolvemos alguns pontos-chave para a realização de aulas e trabalhos que resultam análogos em dificuldade e conceitos àqueles realizados para o estudo do sistema Terra-Sol-Lua a partir da fenomenologia observada. A abordagem dispensa o uso de conceitos mais avançados (por exemplo, fusão nuclear) em favor da possibilidade concreta de incorporar estes temas de astrofísica das estrelas na sala de aula, tal como sugerido pelos PCNs.

estrelas; empirismo; astrofísica estelar


We discuss in this work an empirical approach for the study of stellar astrophysics in the Middle/High School. Using a minimum of information, we develop some key points to perform tasks and lessons which result analogous in difficulties and concept to those made for the system Earth-Sun-Moon starting from the observed phenomena. This approach does not require the use of more advanced concepts (such as nuclear fusion) in favor of the concrete possibility to incorporate these stellar astrophysics subjects in the classroom, as suggested by brazilian PCNs.

stars; empirism; stellar astrophysics


DESENVOLVIMENTO EM ENSINO DE FÍSICA

Uma proposta para o ensino da astronomia e astrofísica estelares no Ensino Médio

A proposal for the teaching of stellar astronomy and astrophysics in the Middle/High School

J.E. Horvath1 1 E-mail: foton@iag.usp.br.

Departamento de Astronomia, Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Discutimos neste trabalho uma abordagem empírica para o ensino da astrofísica estelar no Ensino Médio. Utilizando um mínimo de informação, desenvolvemos alguns pontos-chave para a realização de aulas e trabalhos que resultam análogos em dificuldade e conceitos àqueles realizados para o estudo do sistema Terra-Sol-Lua a partir da fenomenologia observada. A abordagem dispensa o uso de conceitos mais avançados (por exemplo, fusão nuclear) em favor da possibilidade concreta de incorporar estes temas de astrofísica das estrelas na sala de aula, tal como sugerido pelos PCNs.

Palavras-chave: estrelas, empirismo, astrofísica estelar.

ABSTRACT

We discuss in this work an empirical approach for the study of stellar astrophysics in the Middle/High School. Using a minimum of information, we develop some key points to perform tasks and lessons which result analogous in difficulties and concept to those made for the system Earth-Sun-Moon starting from the observed phenomena. This approach does not require the use of more advanced concepts (such as nuclear fusion) in favor of the concrete possibility to incorporate these stellar astrophysics subjects in the classroom, as suggested by brazilian PCNs.

Keywords: stars, empirism, stellar astrophysics.

1. Introdução

As ciências naturais estão cada vez menos "naturais". Embora seja verdade que, no início, as ciências naturais estavam dentro do alcance e a vivência possível das pessoas, hoje vemos que isto é cada vez menos verdadeiro. O contínuo aprimoramento tecnológico provoca o afastamento progressivo da apreensão direta das ciências pelo professor e pelos alunos; por exemplo, enquanto a biologia se contentava com classificar e comparar plantas e animais, não resultava difícil se introduzir na disciplina. No Século 19 as coisas mudaram bastante, e tanto os desenvolvimentos devidos a Mendel quanto a teoria da Evolução de Darwin exigiram considerável esforço (não só pela dificuldade, mas antes pela oposição às ideias muito enraizadas...), para serem incorporadas e elaboradas no Século 20, e finalmente pertencerem à bagagem cultural das pessoas instruidas. Já os desenvolvimentos na segunda metade do Século 20 estão até hoje esperando uma síntese educativa abrangente, que começe pela descoberta do ADN e continue até a moderna genética molecular e seus desdobramentos (plantio de transgênicos, terapias com células-tronco, etc.). O certo é que a biologia escapou bastante do ámbito "natural", no sentido de que suas descobertas e objetos de interesse básicos não mais são perceptíveis com os sentidos e descansam mais e mais nos instrumentos especializados desenhados para pôr em evidência sua presença e funcionamento, incluídas aí várias ferramentas conceituais muito sofisticadas.

Esta situação exemplificada com a biologia se repete na astronomia, onde a percepção natural do ser humano deu passagem há muito tempo à percepção através dos instrumentos, muito complexos e eficientes, diga-se de passagem, mas totalmente alheios às pessoas enquanto suas vivências e experiências no dia-a-dia. Assim, criou-se uma divisão cada vez mais profunda entre aquilo que vemos e tentamos compreender (fenômenos atmosféricos, a Lua, eclipses, etc.) e aquilo no qual devemos confiar, já que feito pelos profissionais do mundo globalizado com um notável esforço científico e financeiro. O nosso ponto central é que, embora acreditemos e fiquemos fascinados pelas imagens dos telescópios Hubble, Spitzer, VLT e outros, existe uma completa delegação de competência aos cientistas para nos dizer como funciona isto ou aquilo, ou como entender as medidas e ideias a respeito do universo e seu conteúdo. Assim, a brecha mencionada entre a percepção sensorial dos fenômenos e os objetos almejados pelos instrumentos de última geração só aumenta. Não vamos observar com nossos olhos nem com instrumentos de pequeno porte coisas como buracos negros supermassivos, ou estrelas prestes a morrerem, ou detalhes finos dos asteróides: devemos confiar que todo isto acontece tal como se nos diz que acontece porque os instrumentos assim o mediram. Existe assim um afastamento progressivo dos fenômenos que dificulta qualquer abordagem pedagógica, e coloca uma barreira muito substancial para o ensino das ciências segundo o constructivismo [2] e várias outras possíveis abordagens.

Desta discussão resulta evidente (pelo menos para o autor) que o ensino de astronomia (e outras disciplinas) está em um beco sem saída: o que é tangível, torna-se finalmente enfadonho e é repetido ad nauseam nos ciclos da educação , enquanto o que faz a cabeça dos alunos (e professores) está se deslocando rapidamente para longe do alcançe deles e fica cada vez mais difícil de ser incorporado aos temas tratados na sala de aula. Os PCNs recomendam, no entanto, uma série de temas desta classe "não natural", indo desde as estrelas até a cosmologia e o Big Bang. Como nem mesmo os conteúdos do Sistema Solar são discutidos e apresentados de forma substanciosa e lógica na maioria das vezes, segue-se que o professor está normalmente inseguro e reticente para entrar nesses problemas menos familiares para ele/ela. Porém, estes contém grande parte da astronomia do Século 20, e resultam muito atrativos e desafiadores, especialmente para aqueles alunos com inclinação científica (< 5% do total, segundo estudos recentes, mas ainda assim vitais para a saúde e desenvolvimento das sociedades [1]). Nem mesmo temas importantes já descobertos antes da virada do Século 19 são incorporados apropriadamente (natureza da luz, emissão e absorção , radiação do corpo negro, etc.), estes todos elementos básicos para estudar as estrelas. A pergunta a fazer é: será possível discutir em sala de aula conteúdos astronômicos, por exemplo, as estrelas, da mesma forma que se faz com o Sistema Solar? Mais ainda, como começar? Como esprimir uma abordagem empírica que resulte em um avanço real para compreender as estrelas? O restante deste artigo contém um princípio de resposta (positiva) para esta questão, pelo menos para pisar em terreno firme e motivar os alunos para irem além da astronomia do sistema Sol-Terra-Lua. A ideia é a de tender uma ponte inicial que possa ligar o conhecimento empírico à construção de um quadro básico a respeito das estrelas, utilizando um mínimo de informação e trabalhando o contato dos alunos com os fenômenos observados.

2. Comparando as estrelas

Para continuarmos é preciso começar por uma consideração de caráter geral e hipotética, já que precisamos comparar as estrelas com algo bem conhecido. A astronomia indiana fez essa identificação há quase 2000 anos (tal como registrada nos versos do Veda), e o indiano Aryabhata por volta do ano 500 D.C. tinha por certo que as estrelas eram, na verdade, outros sóis [3]. Note-se que não é necessário agora nos perguntarmos a respeito da sua natureza exata, basta adimitirmos, provisionalmente, que as estrelas que observamos são corpos como o Sol. No ocidente, um milênio mais tarde, Giordano Bruno (1548-1600) foi censurado e depois executado pela Igreja Católica por fazer a mesma hipótese, acrescentada da ideia de infinitos planetas habitados (isto último foi demais para os teólogos da época). Chamaremos a esta identificação Sol = estrelas de hipótese de semelhança.

Como é que a hipótese de semelhança pode ser utilizada? A resposta passa pela comparação do brilho das estrelas. Quando aceita aquela hipótese, estamos admitindo que existe um padrão de estrela (o Sol) e que, se todas as estrelas são iguais a ele, então as variações que observarmos devem-se somente à distância. Daí que de conseguirmos medir o fluxo F da luz de uma estrela (quantidade de energia por unidade de área e de tempo), a distância fica totalmente determinada, já que este fluxo cai como o quadrado da distância. O exemplo mais simples, em escala humana, é o de ter uma lâmpada de potência dada (digamos, 100 Watts) e medirmos o fluxo a uma distância conhecida (digamos, 1 m). Uma lâmpada idêntica levada a uma distância qualquer pode ser localizada medindo o fluxo, já que a distância d estará determinada como d = 1m

1/2. Isto só é possível porque sabemos que as lâmpadas são idênticas. Transportado ao caso estelar, o argumento precisa da hipótese de semelhança.

Porém, no caso específico das estrelas, a escala de brilho utilizada traz algumas novidades particulares. Este problema do brilho das estrelas já foi abordado no Século III A.C. pelo astrónomo grego Hipparcos, quem se preocupou de definir uma hierarquia de brilhos em termos de uma quantidade que chamou de magnitude. Mais tarde, Ptolomeu a difundiu na sua obra Almagesto. A escala grega propunha que as estrelas mais brilhantes do céu eram (por definição ) de primeira magnitude, e as menos brilhantes, quase invisíveis, de magnitude 6 (também por definição ). Mais tarde formalizou-se esta classificação definindo que cada 5 magnitudes exista um fator 100 no brilho das estrelas. Ou seja, uma estrela de magnitude 1 e uma de magnitude 6 diferem em 100 no brilho observado [4]. Como esta definição se refere somente à observação , sem dizer nada a respeito da natureza estelar nem a sua distâncias (a mesma estrela muito mais longe brilhará menos e terá uma magnitude diferente), denomina-se de forma mais precisa magnitude aparente.

É possível escrever de forma matemática uma expressão simples para a magnitude aparente de uma estrela com um certo brilho (caracterizado também pelo fluxo F), respeito de um valor de referência com subíndice "0" . Assim temos

onde F0 é o fluxo de referência, a ser escolhido para referir a magnitude aparente à estrela (u outro objeto) padrão em um dado comprimento de onda, por exemplo, nós sempre utilizaremos aqui a luz visível denominada V na notação astronômica . Note-se que quanto mais fraca é a estrela, maior resulta sua magnitude. Isto decorre do sinal (-) na Eq. (1), e do fato que o log10 de um número < 1 é negativo. Assim, a expressão dá uma ideia real do que acontece com estrelas idênticas (igual fluxo) a distâncias cada vez maiores: a magnitude aparente aumenta, mas só segundo o logaritmo do fluxo, ou seja mais ou menos suavemente (vide Fig. 1)


A utilização imediata da hipótese de semelhança nos diz que o fluxo que aparece dentro dos logaritmos na Eq. (1) pode ser traduzido em distância logo mais, já que se todas as estrelas forem iguais, brilharão mais ou menos se estiverem mais perto ou mais longe, de tal forma que o fluxo diminui proporcionalmente ao quadrado da distância à fonte F = C/d2 (isto deveria ser bem familiar para os alunos), e chegamos assim a

Da expressão da magnitude também resulta que duas estrelas com magnitudes diferentes m1 e m2 (onde a primeira é suposta mais fraca que a segunda), têm uma diferença de brilho de

(o valor exato da base é ~ 2.512, decorrência da definição formal de uma amplitude = 100 entre a 1ª e a 6ª magnitude). Portanto, se medirmos a magnitude de uma estrela fraca e a compararmos com a solar, teremos como dizer a distância dela respeito da distância Terra-Sol. O Sol está tão próximo (astronomicamente falando), e brilha tanto, que sua magnitude aparente resulta ser = -26.7, valor enorme e negativo de tão brilhante (de novo, o sinal "–" na Eq. (1)) . Por outro lado sua distância foi estimada com vários métodos e resulta, em média, de 150 ×109 m, ou 150 milhões de quilômetros. Também seria possível referenciar tudo a outra estrela que não o Sol, próxima, da qual conheçamos a distância, já que feita que foi a hipótese de que todas são iguais (semelhança), e o resultado seria equivalente. Por exemplo, a magnitude aparente da estrela Alfa do Centauro, terceira mais brilhante do céu, é de -0.27. Sua distância estimada é de 4,37 anos-luz, baseada na medida da paralaxe estelar e serve para este propósito.

Vamos agora propôr aos alunos observar o céu e detectar a estrela mais fraca que seja possível enxergar. Isto é todo um desafio para eles e constitui em si próprio um programa altamente interessante. Leve a turma para um lugar bastante escuro e peça para eles localizarem e desenharem as Três Marias ou o Cruzeiro do Sul e seu entorno no papel. A partir daí peça para localizarem a estrela mais fraca próxima destas. O olho humano enxerga ate magnitude +6 aproximadamente, portanto, a determinação deles deve ser uma estrela entre magnitude > +5. Supondo que o valor mais elevado é atingido, peça para eles calcularem quanto mais distante que o Sol ou que Alfa do Centauro está a estrela que supuseram idêntica. Usando a Eq. (3), o resultado é +6-(-0.27) = 6.27, de tal forma que, usando Alfa do Centauro como comparação é 2.56.27~ 322 vezes mais brilhante. Agora, se aceitarmos 4.37 anos-luz como a distância à referência Alfa do Centauro, poderemos utilizar as Eqs. (2) e (3) para calcular d à estrela fraca, e definir uma esfera de raio igual a esta distância onde poderemos observar estrelas, enquanto as mais longínquas não serão visíveis ao olho humano, esta esfera terá um raio de uns 90 anos-luz (mais tarde, ao questionar a hipótese de semelhança, veremos que isto não é totalmente correto, mas por ora as coisas podem ficar assim).

Já temos um excelente ponto de partida para discutir as distâncias estelares, em particular para entender por quê os astrônomos teimam em usar o ano-luz e o parsec (= 3,26 anos-luz) para medir distâncias: estas são realmente enormes para a escala humana e precisam de unidades adequadas. Quando feita a estimativa, os alunos vão refletir a respeito e se convencer logo desta conveniência. Ato seguido, sugerimos o seguinte exercício para fixar a ideia de distâncias: suponha que o Sol é do tamanho de uma bolinha de gude e agora peça para colocar, em escala, uma segunda bolinha de gude que represente Alfa do Centauro. Uma regra de três simples dará a resposta (digamos, para um raio de ~ 1 cm, a distância é de uns 500 km!). Lembrando que a estrela fraca é, por hipótese, da mesma classe que o Sol), peça para imaginarem um lugar para os alunos depositarem uma terceira bolinha de gude, estando a primeira (o "Sol") na frente da sala de aula. A distância necessária levaria esta bolinha para Tokio (...) E lembre que podem existir estrelas ainda mais fracas, já que somente estiveram limitados pela capacidade do olho. Peça para trazerem binóculos e observarem a mesma estrela. Possívelmente "descobrirão" outras mais fracas ainda, umas duas magnitudes maior pelo menos (+8 é um bom chute...). Repita a operação de posicionamento, sem se importar se as distâncias estão além da escola. Para finalizar, e embora não resulte estrictamente um tópico estelar, peça que indiquem a órbita de Plutão (umas 40 U.A., ou 40 vezes 150 milhões de quilômetros) na mesma escala. Terão dado um grande e interessante passo para os alunos relacionarem uma escala cósmica com seus equivalentes terrestres, os últimos bem conhecidos e apreendidos em termos da escala humana.

3. A distribuição espacial das estrelas

Um passo além da comparação baseada na hipótese de semelhança está a questão da distribuição espacial das estrelas. Estão isoladas (o Sol não tem companheiras)? Estão em grupos? Como é possível determinar se estão fisicamente juntas, embora pareçam está-lo no plano do céu? Esta questão levará de imediato ao reconhecimento das constelações . É um excelente momento para descrever a história das constelações e suas implicações culturais, já que o tópico se presta para esses fins (vide, por exemplo, a referência [5]). O tempo que pode ser dedicado a esta discussão depende das circunstâncias, e idealmente deveria ser coordenado com os professores de história e geografia para dar uma ênfase adicional que ponha em evidência aspectos interdisciplinares vários. Peça aos alunos para calcularem, de novo usando a fórmula da magnitude e a hipótese de semelhança, a distância relativa entre as estrelas de uma constelação (na Ref. [5] encontrarão as magnitudes de várias estrelas do Cruzeiro do Sul, de Orion e outras, vide Tabela 1). Em posse das distâncias díspares, os alunos podem concluir bastante rapidamente que as constelações são resultado da projeção (embora algumas estrelas estejam sim, fisicamente próximas). É importante destacar que isto não prova que não há estrelas associadas, somente diz que a maior parte delas que participa das constelações conhecidas não o está. Um segundo ponto interessante é a observação da Vía Láctea, de enorme significação cultural. Uma revisão das ideias e visões da Vía Láctea pelos povos antigos constitui um assunto de interface com as aulas de história que não deve ser desperdiçado. Como explicar a Vía Láctea? Que tipo de informação está oculta na sua existência? (os filósofos gregos Leucipo e Demócrito, pais do atomismo, pensavam, por exemplo, que a Vía Láctea estava constituída de estrelas muito pequenas -isto é, não as identificavam como sendo similares ao Sol-, o seu mundo era assim muitíssimo menor já que as estrelinhas deviam estar próximas da Terra, embora além do círculo lunar [6]). Em todo caso, antes de introduzir a ideia de estarmos dentro de uma distribuição plana (não esferoidal) e compará-la com outras alternativas (por exemplo, que a Vía Láctea seja um conjunto de estrelas totalmente externo a nós, e procedimentos para conferir qual é a proposta mais acurada -no último caso, vale observar a Vía Láctea no hemisfério norte e no sul, e em todas as épocas do ano-); faça junto com os alunos um levantamento a respeito desta questão na história das ciências. Isto será de grande valor para localizar os alunos no entorno astronômico local. Por último, alguns exemplos de associação espacial podem ser trazidos a tona. Um conjunto muito evidente são as Três Marias no cinturão de Orion. As três estrelas têm quase o mesmo brilho e estão muito próximas, poderiamos dizer que estão associadas (pesquisar). Uma última atividade interessante pode ser a localização da Caixinha de Joias (carta do céu na Ref. [5]) e a discussão da sua natureza e proximidade física. Os alunos podem ser informados que, segundo os estudos astronômicos, mais da metade das estrelas que eles observam são binárias, embora sejam muitas vezes difíceis de identificar como tais (Alfa do Centauro, por exemplo, é um sistema duplo com uma componente muito mais fraca que a outra, embora a efeitos das tarefas propostas esta realidade não faz muita diferença e foi tratada como uma estrela única). O Sol parece pertencer a uma minoria neste sentido. A existência de associações com mais de dois membros é bastante natural, e "enxames" como a Caixinha de Joias ou aglomerados globulares (não observáveis diretamente a olho nu) um grupo que nasceu ao mesmo tempo e evolui junto desde então.

4. Variam seu brilho as estrelas?

O começo da sistematização das observadas pelo grego Hipparcos traz uma interessante questão a tona: seriam as estrelas observadas por Hipparcos há mais de 2 milênios as mesmas que observamos hoje? Obviamente o grego classificou primeiro as estrelas mais brilhantes do hemisfério norte, as quais deveriam ser visíveis até hoje. Uma tabela com < 1000 destas estrelas [7] é a constatação da permanência delas no céu atual permite afirmar que as propriedades dessas estrelas não mudaram significativamente em tempos inferiores a 2000 anos. Ou seja, a natureza das estrelas as faz muito estáveis e de muito longa duração brilhando no céu. Trazida para a sala de aula, esta discussão está longe de ser óbvia: lidamos com coisas que permanecem essencialmente iguais desde o começo da história humana. Mais ainda, os registros geológicos contém fósseis de 3 bilhões de anos que mostram que a iluminação solar mudou pouco nesse intervalo (!), a relação com outros estudos em ciências fica por conta de cada professor.

É claro que as exceções podem ser até mais interessantes do que a regra: em tempos históricos, uma que outra estrela decidiu dar espetáculo, aumentando violentamente seu brilho primeiro e depois sumindo de vez. Um destes casos aconteceu no ano 1006 A.D., e a falta de registros na Europa Medieval (afetada pelo dogma da imutabilidade dos céus, herança de Aristóteles e sua conceição do mundo) resulta significativa. No entanto, astrônomos chineses viram essa estrela brilhar muito no firmamento, e a interpretaram em termos de augúrios (positivos) para o Imperador. Como resulta difícil achar razões para entender por quê um conjunto grande de homens instruídos possa ter deixado de ver a estrela de 1006 A.D., especialmente na Itália onde a supernova deve ter sido visível acima do horizonte por várias horas todos os dias, temos na mão um possível exemplo de como as crenças afetam a objetividade humana: a estrela "não poderia ter estado aí" dentro da visão aristotélica, mas estava. Já no ano de 1054 A.D., outra estrela irrompeu no céu, para depois esmaecer definitivamente, e foi registrada na Europa, embora a concordância com as observações na China tem sido contestada [8]. Este evento deve ter originado a atual nebulosa do Caranguejo, a qual sabemos que contém uma estrela de nêutrons muito energética, no meio das "cinzas" daquela explosão. É razoável pensar que os monges mais cultos tinham "aprendido" a ver as estrelas violentamente variáveis. Registros na cultura Anazasi na América parecem também corresponder a esta explosão histórica [9]. Uns séculos mais tarde, e com a evolução do pensamento e a mudança de mentalidade dos cientistas, já não houve problemas para Johannes Kepler (1450-1450) e Tycho Brahe (1430-1430), dois dos mais eminentes astrônomos da história, registrarem dois eventos do mesmo tipo (denominados supernovas) que hoje levam seus nomes e ainda são objeto de estudos científicos. A última versão destas explosões visível a olho nu aconteceu em 1987, com a explosão da supernova 1987A (Fig. 2), depois de mais de quatro séculos de quietude.


Se ignorarmos as supernovas, e aceitamos as tabelas de Hipparcos-Ptolomeu e outros catálogos ao longo dos séculos, concluimos que poucas estrelas variam definitivamente seu brilho, mesmo em tempos muito longos. Existem também exemplos menos espetaculares e mais numerosos de variabilidade estelar, por exemplo, a supergigante Betelgeuse (a mais brilhante na parte inferior da Fig. 3), varia seu brilho bastante e chega a ficar mais brilhante que Rigel (na parte superior da mesma imagem). É possível monitorar esta variação no tempo com a ajuda de binóculos. Este tipo de constatação traz elementos adicionais para depois considerar a natureza estelar.


5. O problema da energia, a luminosidade e a idade do Sol e as estrelas

A questão da energia emitida pelas estrelas passa, de novo, por trazer para uma escala humana os números medidos e obtidos. Embora é dito que o Sol é nossa fonte de energia para a fotossíntese e outros processos fundamentais, é difícil dar uma ideia quantitativa da potência irradiada por ele.

Para medirmos a luminosidade ou potência (energia por unidade de tempo) emitida pelo Sol, podemos construir um fotómetro elementar que emprega materiais comuns. Os elementos são:

* Uma folha de papel branco comum;

* Um pouco de óleo de cozinha;

* Uma lâmpada de 100 Watts.

Espalhe uma gota de óleo numa área de uns 2 cm de diâmetro no papel. Acenda a lâmpada ao ar livre, onde o Sol incida diretamente. Ponha o papel próximo à lâmpada e afaste-o até que o brilho de ambos os lados (aquele que é iluminado pela lâmpada e o que está voltado para o Sol) seja o mesmo. A cor dos lados do papel será levemente diferente, já que a lâmpada está mais fria do que a superfície do Sol. Quando o brilho for igual, faça a medida da distância à lâmpada. Da igualdade do brilho de cada lado sabemos que o fluxo luminoso é aproximadamente o mesmo. Como este último diminui conforme o quadrado da distância à fonte, e resulta diretamente proporcional à luminosidade da fonte (ou seja, à emissão de energia luminosa de ambos os lados da folha, grosseiramente diferente para a lâmpada e para o Sol), escrevemos que

como já medimos dlamp e sabemos sua luminosidade (potência) diretamente, podemos estimar a luminosidade do Sol sabendo que a sua distância é de 1 U.A., ou 150 milhões de quilômetros. Os cálculos a serem completados indicam algo como L= 4 ×1026 Watts. Este número confere com o seu resultado? Para efeitos de comparação , uma usina hidrelétrica de grande porte, a maior do mundo na China, produz 1.8 ×1010 Watts. Assim, vemos como o Sol produz e emite uma energia muitos bilhões de vezes maior que a produção total de energia pela humanidade por todos os métodos disponíveis hoje. Alguns fatores que complicam uma comparação direta são as diferentes temperaturas da lâmpada e do Sol (de fato, a Tlamp é menos da metade de T), e assim a fração da energia emitida na forma de luz visível é maior para o Sol do que para a lâmpada. A atmosfera espalha e absorve ainda parte desta luz, e assim deveríamos introduzir uma correção nos cálculos para levar em conta esses efeitos. O resultado pode ser preciso dentro de um fator 2-3 devido a estes erros experimentais e incertezas no processo de medida, mas certamente nada pior que isso. Determinar com um método direto a energia que sai do Sol por segundo não foi possível até depois da Revolução Industrial (assim, os alunos podem se sentir legitimamente orgulhosos de ter atingido agora esse patamar...).

Agora que conferimos quanta energia por segundo sai do Sol na forma de luz visível, podemos tentar relacioná-la com as propriedades solares. Para fazer isto devemos recorrer a um desenvolvimento do Século 19 que descreve a tal luminosidade (potência na forma de luz) de um corpo incandescente (a chamada radiação do corpo negro). A constatação dos físicos da época foi que a emissão não depende do tipo de corpo (composição ), mas tão somente da temperatura. Mais precisamente, da temperatura elevada à quarta potência. Empregaremos este resultado para caracterizar as estrelas, com boa aproximação , corpos negros (lembre-se que esta última denominação se refere à forma da emissão, não a cor real que pode variar bastante). Imaginemos agora uma bola de ferro exposta ao fogo. Este corpo cumpre com todas as hipóteses das leis de radiação de corpo negro anteriores, e daria na mesma que fosse de qualquer outro material. Observando a bola com cuidado, veremos que ela começa a ficar avermelhada conforme o tempo passar. Se continuar exposta ao fogo um pouco depois apresentará uma cor avermelhada intensa e mais tarde (e se não derreter antes!) branco-amarelada. Como a bola esquenta progressivamente, estas observações sugerem que a cor pode ser usada como indicador da temperatura. Por exemplo, o minério de ferro derretido na metalúrgica a uma temperatura de quase 2000 K apresenta uma cor amarelo-avermelhada. Seria possível conhecer a temperatura somente olhando para essa cor, independentemente de saber se o metal é ferro ou qualquer outro. Isto é o que de fato fazemos na astrofísica estelar para identificarmos a temperatura das estrelas!

É importante apontar que ao coletar toda essa radiação emitida, poderíamos calcular o fluxo de radiação F da Eq. (1) (ou quantidade de energia que atravessa a unidade de área por segundo) e conferir que este aumenta rapidamente conforme sobe a temperatura, segundo

onde σ = 5.67 ×10-8 Watts m-2 K-4 é uma constante. Esta é a relação que foi estudada e confirmada no Século 19 para o corpo negro, conhecida como lei de Stefan-Boltzmann [10]. A Eq. (5) relaciona a quantidade de energia radiante recebida por segundo por unidade deárea com a temperatura do corpo que a está emitindo, mas não diz quanta energia está sendo emitida no total. Precisaríamos ainda saber a distância à bola. No caso das estrelas, como saber o valor da energia total emitida? Isto é muito importante já que é uma propriedade do corpo emissor, e não simplesmente uma quantidade que nós observamos. Por exemplo, ao levar uma lâmpada comum a um quarteirão de distância, o fluxo que receberemos é muito diferente, mas a energia da lâmpada (corpo emissor) será a mesma. Assim, e fundamental ter alguma estimativa da distância até a fonte quando considerarmos as estrelas (note-se que no caso do cálculo da L já sabíamos a distância ao Sol independentemente da medida).

O que permite relacionar o fluxo com a energia emitida por segundo é considerar que a emissão é igual para qualquer direção , assim a energia por segundo resulta simplesmente o fluxo multiplicado pela área que emite, isto é, a área total da estrela, portanto

e ainda sabemos que, estando a uma distância d da estrela, mediremos um fluxo que cai com o inverso do quadrado desta distância, já que a luminosidade L da estrela é fixa (não depende de onde está o observador), ou seja FL/d2. Combinando a medida obtida para a luminosidade em Watts com a Eq. (6), podemos calcular de imediato o raio solar, desde que utilizarmos a temperatura de ~ 5800 K (faça os cálculos e compare seus resultados com o valor "preciso" dos astrônomos, R = 6.96 ×105 km). Se formos capazes de calcular ainda quanta energia está estocada no Sol para este continuar brilhando, poderiamos de imediato estimar sua idade, já que emitindo a uma taxa L (e supondo que esta não variou ao longo de ~ bilhões de anos), a energia que tem E sería exaurida em um tempo τ (a idade), que resulta ser τ = E/L . Porém, esta estimativa da energia "combustível" não pode ser feita simplesmente com o que conhecemos, é necessário um tratamento da natureza do Sol e sua luminosidade, para conseguirmos este valor (que depende do mecanismo de fusão nuclear do hidrogênio, e portanto, da fração deste no interior).

6. Questionando a hipótese inicial: as estrelas e sua semelhança

Até agora a hipótese de semelhança foi suficiente para calcularmos distâncias estelares e distribuição espacial, analisarmos as constelações e colocarmos em perspectiva o Sistema Solar. Mas fica a pergunta a respeito da validade da hipótese. Nas ciências, todas as hipóteses empíricas são provisionais, somente o experimento pode dizer se resultam verdadeiras, e nada mais natural que corrigi-las. Para questionar a hipótese, nada melhor que voltarmos a observar o céu. Localize, por exemplo, as Três Marias de novo (Fig. 3) e observe as estrelas próximas. Tente determinar a cor delas a olho nu.

Neste caso, e para muitas outras estrelas no céu, podem ser constatados desvios substanciais respeito da cor amarelada do Sol. Lembrando da discussão acima, vemos estrelas azuladas e avermelhadas. As primeiras, pela Lei do deslocamento de Wein (1893) [10] correspondem a comprimentos de onda menores, e portanto, sua temperatura é maior que a do Sol. Com as avermelhadas deve acontecer o contrário. Mas se a expressão de Stefan-Boltzmann LR2T4 for utilizada como representação da emissão estelar, uma estrela fria deve emitir muito menos que uma muito mais quente, a menos que o fator R2 consiga "compensar" isto, de tal forma que as estrelas mais frias tenham sempre raios maiores. Isto é improvável (de fato, poucas vezes é verdade, e somente para alguns tipos de estrelas), e assim concluímos que a hipótese de semelhança tem todo para ser incorreta: as estrelas podem ser bastante diferentes que o Sol, somente algumas das que têm cores similares devem parecer com ele, emitindo (L) quantidades similares de energia. Se a temperatura e/ou o raio são diferentes, a emissão varia muito e as distâncias derivadas resultarão incorretas. Esta constatação afeta diretamente o que dissemos da idade, de fato, e comparando com o Sol, podemos voltar à expressão τ = E/L e dividirmos membro a membro para chegar ao quociente

Assim, uma estrela azul, que emite muito mais que o Sol (L >> L) deve viver muito menos que este, a menos que o reservatório de energia seja muito maior e compense esse fator. Na prática, a diferença em energia é modesta, e a taxa de emissão da energia é o que determina a vida. Por outro lado, estrelas menos luminosas (mais frias) têm L << L, e devem brilhar por muito mais tempo, sem se alterar ainda depois do Sol acabar a fusão de hidrogênio. Esta relação entre a taxa de consumação /emissão da energia e a reserva não é exclusiva das estrelas: os seres vivos também dependem dela e é chamada de metabolismo pelos biólogos: uma ratinho vive ~ alguns meses, porque consome energia a uma taxa muito grande, enquanto um elefante vai bem mais devagar e vive tanto quanto um ser humano ou mais. Em uma analogia mecânica mais direta acontece a mesma coisa: se fornecida a mesma quantidade de combustível, por exemplo, um carro pequeno e popular demorará muito mais em gastá-lo ("viverá" mais) enquanto um carro de corrida que desenvolve grandes velocidades e para isso precisa consumir o combustível mais rápido parará ("morrerá") logo mais. As estrelas mais frias que o Sol estão brilhando quase desde a formação da galáxia, e continuarão assim depois que o Sol esgote seu combustível, porque sua luminosidade ou dispêndio de energia por unidade de tempo é muito menor.

7. Conclusões

Tentamos aqui uma abordagem empírica, suplementada com alguns conceitos e quantidades necessários para construir o quadro básico da astrofísica estelar. Na forma de recomendação ao professor, procuramos orientar a respeito de atividades observacionais e cálculos que liguem o assunto aos alunos, na sua escala humana, e também a outras disciplinas (história, geografia) de interesse para o desenvolvimento de uma visão concreta das estrelas. É possível ainda adaptar estes procedimentos para as últimas séries do Ensino Fundamental, desde que os cálculos sejam omitidos, se mantendo em uma abordagem qualitativa. Em um segundo trabalho vamos a discutir outros aspectos das estrelas menos simples, tais como espectros e a informação que carregam, classificação estelar, etc., possivelmente adequados para o Ensino Médio e com o auxílio de telescópios pequenos e instrumentos mais avançados, disponíveis de forma pontual. Ainda que limitada, a abordagem apresentada é viável e segue de perto a metodologia já aplicada ao estudo do Sistema Solar, sendo que este paralelo poderá ser ampliado pelos próprios professores para sua utilização prática nas aulas.

Agradecimentos

O autor agradece discussões e críticas de L.C. Jafelice e P. Bretones a respeito destes e outros temas em Educação. O CNPq (Brasil) financiou parte destas pesquisas na forma de Bolsas concedidas ao longo de vários anos ao autor. Finalmente, agradecemos ao referee da RBEF que contribuiu para melhorar a clareza do texto inicial.

Recebido em 10/1/2013

Aceito em 12/2/2013

Publicado em 15/10/2013

  • [1] Documentação da UNESCO acessível em unesdoc.unesco.org/images/0015/001505/150585por.pdf, consultada em 3/1/2013
  • [2] J. Matui, Construtivismo: Teoria Construtivista Sócio-Histórica Aplicada ao Ensino (Ed. Moderna, São Paulo, 1995).
  • [3] Documentação em http://www.starteachastronomy.com/indian.html, consultada em 3/1/2013.
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  • [4] Documentação em http://www.astronomy-education.com/index.php?page=192, consultada em 3/1/2013.
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  • [5] P.S. Bretones, Os Segredos do Universo (Ed. Atual, São Paulo, 2010).
  • [6] J. Burnet, A Aurora da Filosofía Grega (Ed. PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2007).
  • [7] Documentação em http://en.wikipedia.org/wiki/Hipparchus, consultada em 3/1/20103.
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  • [8] G.W. Collins, W.P. Claspy and J.C. Martin, Publications of the Astronomical Society of the Pacific 111, 871 (1999).
  • [9] Documentação em http://en.wikipedia.org/wiki/SN1054, consultada em 3/1/2013.
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  • [10] R. Eisberg e R. Resnick, Física Quântica (Ed. Campus, São Paulo, 2003).
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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      10 Jan 2013
    • Aceito
      12 Fev 2013
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