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As passagens de Cesar Lattes e de Leite Lopes pela Ilha do Fundão

The short stays of Cesar Lattes and Leite Lopes at Fundão Island

Resumos

Em 2012, ano do centenário da descoberta dos raios cósmicos por Victor Hess, é oportuno descrever dois projetos independentes de Cesar Lattes e de José Leite Lopes na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esses pioneiros da física das partículas elementares brasileira foram professores da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) do Rio de Janeiro e atuaram na formação de pesquisadores no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Durante o regime militar das décadas de 1960 e 1970, atos oficiais atingiram os quadros docentes de estabelecimentos do ensino superior. Um desses atos foi específico para instituições federais de ensino superior do Rio de Janeiro, que foram incorporadas na atual UFRJ, determinando sua transferência para o campus da Ilha do Fundão. Esses atos oficiais, alterando o quadro de pessoal docente, e deslocando os campi de universidades públicas, têm uma longa história, comentada nesse artigo. Na primeira parte dessas Notas são apresentadas algumas evidências da tentativa de Lattes, em 1968, de instalar um laboratório de pesquisa na Ilha do Fundão, iniciativa pouco conhecida porque os arquivos de Lattes estão hoje na UNICAMP. Na segunda parte, serão comentadas as atuações de José Leite Lopes no Instituto de Física da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, e, em particular, do seu projeto de aquisição de um acelerador que seria instalado na Ilha do Fundão; essas atuações de Leite Lopes são mais conhecidas porque foram documentadas em seus livros e depoimentos. Na parte final dessa contribuição apresentam-se alguns comentários sobre o envolvimento do autor com os episódios mencionados acima.

Cesar Lattes; Leite Lopes; UFRJ; Ilha do Fundão; raios cósmicos


In 2012, the centenary of the discovery of cosmic rays by Victor Hess, it is appropriate to describe two independent projects, by Cesar Lattes and José Leite Lopes. These pioneers of elementary particle physics in Brazil were thesis advisors at the Brazilian Center of Physics Researches (CBPF), and professors at Rio de Janeiro National Faculty of Philosophy (FNFi). During the military regime of the 1960s and 1970s, a number of government decisions affected higher education institutions in Brazil. One of these determinations was specific to federal institutions of higher education in Rio de Janeiro that were grouped and incorporated to the UFRJ, and determined to transfer to the campus of the Fundão Island. These official acts, altering the teaching staff, and shifting the campuses of public universities have a long history. In the first part these Notes, we present some evidence of the attempts by Lattes in 1968 to install a research laboratory in Fundão Island. This is a little-known initiative because the files of Lattes are nowadays at UNICAMP. In the second part, we comment on the plans of José Leite Lopes at the Institute of Physics of the University of Brazil, current Federal University of Rio de Janeiro, UFRJ, and in particular of his proposal to build an accelerator that would be installed in the Fundão Island. The proposals of Leite Lopes are better known, as they have been documented in his books and interviews. In the final part of these Notes, we present some comments on the author's involvement with these episodes.

Cesar Lattes; Leite Lopes; UFRJ; Fundão Island; cosmic rays


NOTAS E DISCUSSÕES

As passagens de Cesar Lattes e de Leite Lopes pela Ilha do Fundão

The short stays of Cesar Lattes and Leite Lopes at Fundão Island

Fernando de Souza Barros1 1 E-mail: fsbarros@if.ufrj.br.

Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Rio de Janeiro, Cidade Universitária, Ilha do Fundão Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Em 2012, ano do centenário da descoberta dos raios cósmicos por Victor Hess, é oportuno descrever dois projetos independentes de Cesar Lattes e de José Leite Lopes na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esses pioneiros da física das partículas elementares brasileira foram professores da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) do Rio de Janeiro e atuaram na formação de pesquisadores no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Durante o regime militar das décadas de 1960 e 1970, atos oficiais atingiram os quadros docentes de estabelecimentos do ensino superior. Um desses atos foi específico para instituições federais de ensino superior do Rio de Janeiro, que foram incorporadas na atual UFRJ, determinando sua transferência para o campus da Ilha do Fundão. Esses atos oficiais, alterando o quadro de pessoal docente, e deslocando os campi de universidades públicas, têm uma longa história, comentada nesse artigo. Na primeira parte dessas Notas são apresentadas algumas evidências da tentativa de Lattes, em 1968, de instalar um laboratório de pesquisa na Ilha do Fundão, iniciativa pouco conhecida porque os arquivos de Lattes estão hoje na UNICAMP. Na segunda parte, serão comentadas as atuações de José Leite Lopes no Instituto de Física da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, e, em particular, do seu projeto de aquisição de um acelerador que seria instalado na Ilha do Fundão; essas atuações de Leite Lopes são mais conhecidas porque foram documentadas em seus livros e depoimentos. Na parte final dessa contribuição apresentam-se alguns comentários sobre o envolvimento do autor com os episódios mencionados acima.

Palavras-chave: Cesar Lattes, Leite Lopes, UFRJ, Ilha do Fundão, raios cósmicos.

ABSTRACT

In 2012, the centenary of the discovery of cosmic rays by Victor Hess, it is appropriate to describe two independent projects, by Cesar Lattes and José Leite Lopes. These pioneers of elementary particle physics in Brazil were thesis advisors at the Brazilian Center of Physics Researches (CBPF), and professors at Rio de Janeiro National Faculty of Philosophy (FNFi). During the military regime of the 1960s and 1970s, a number of government decisions affected higher education institutions in Brazil. One of these determinations was specific to federal institutions of higher education in Rio de Janeiro that were grouped and incorporated to the UFRJ, and determined to transfer to the campus of the Fundão Island. These official acts, altering the teaching staff, and shifting the campuses of public universities have a long history. In the first part these Notes, we present some evidence of the attempts by Lattes in 1968 to install a research laboratory in Fundão Island. This is a little-known initiative because the files of Lattes are nowadays at UNICAMP. In the second part, we comment on the plans of José Leite Lopes at the Institute of Physics of the University of Brazil, current Federal University of Rio de Janeiro, UFRJ, and in particular of his proposal to build an accelerator that would be installed in the Fundão Island. The proposals of Leite Lopes are better known, as they have been documented in his books and interviews. In the final part of these Notes, we present some comments on the author's involvement with these episodes.

Keywords: Cesar Lattes, Leite Lopes, UFRJ, Fundão Island, cosmic rays.

1. O roteiro dos atos oficiais sobre as instituições de ensino do Rio de Janeiro

As criações, transferências e reformas das universidades foram conseqüências de atos políticos. O roteiro histórico desses atos é comentado a seguir. Os principais episódios dessas reformas estão relacionados na Tabela 1.

A Faculdade Nacional de Filosofia, FNFi, foi fundada em 1939 com a extinção da Universidade do Distrito Federal (UDF) e criação da Universidade do Brasil (UB). A UB foi criada pela Lei nº 452 de julho de 1937, a partir de uma proposta de Anísio Teixeira de 1935, quando foram agrupadas faculdades isoladas e escolas profissionais (da antiga Universidade do Rio de Janeiro e da Universidade do Distrito Federal). Na sua última sede, a FNFi ocupava um prédio da Esplanada do Castelo, no centro urbano do Rio de Janeiro. Na década de 1940, quando foi criado o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, CBPF, um conjunto significativo de seus fundadores, incluindo Cesar Lattes, Leopoldo Nachbin, Jayme Tiomno e José Leite Lopes, eram professores da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Universidade do Brasil (UB). Lattes assumiu a cátedra de física nuclear da FNFi em 1948. O CBPF recebeu o "mandato universitário" da UB em 1950; posteriormente, o CBPF deixaria de participar dos cursos universitários da UB, transformando-se num centro de pós-graduação de física.

Em 1945, um decreto federal reformou a estrutura operacional da UB. A construção do campus da Ilha Universitária foi iniciada em 1945 no governo de Getulio Vargas. Foi aterrado um conjunto de pequenas ilhas nas proximidades da Avenida Brasil. A transferência das faculdades e escolas profissionais para a Ilha do Fundão foi um processo de vários anos. Um decreto-lei de 1966 reorganizou as universidades federais; a reforma universitária de 1968 concluiu o processo. Na época de Vargas, receitas extraordinárias foram destinadas pelo governo central para cobrir as despesas da transferência de faculdades e escolas profissionais para a Ilha Universitária. Essa transferência transcorreu ao longo de vários anos. A Faculdade de Direito, por exemplo, ainda permanece na Avenida Presidente Vargas, no centro urbano da cidade do Rio de Janeiro. A seqüência dos atos do governo central relacionados na Tabela 1 revela que essas intervenções tinham propósitos políticos, o afastamento das universidades dos centros urbanos, dificultando manifestações estudantis. A transferência da Universidade do Brasil para a Ilha do Fundão, ato do governo de Getúlio Vargas, tinha o propósito de favorecer o crescimento de um centro universitário para contribuir no desenvolvimento do país. Esse propósito também estaria presente nos planos desenvolvimentista do regime militar de 1964. Uma das metas do regime militar instalado em 1964 seria a transformação do país em uma "potência mundial". O reconhecimento de que esse programa requereria o domínio de tecnologias de ponta explica a priorização do apoio financeiro do governo aos projetos científicos e tecnológicos de centros de pesquisa e laboratórios universitários, notadamente depois do AI5, de 1968.

2. A atuação de Leite Lopes em política científica

Em 1963, Leite Lopes e outros membros do Conselho Diretor da FNFi elaboraram uma proposta de diretrizes para a modernização do Departamento de Física, que foram aprovadas pelo conselho diretor da Universidade do Brasil (UB) em 1964. Essas diretrizes são comentadas por Leite no último capítulo do seu livro Ciência e Libertação [1], publicado inicialmente em 1969. Essa proposta seria utilizada pelo governo em 1967, na elaboração da reforma universitária de 1968. As diretrizes do conselho diretor da UB estão presentes nos Decretos Leis No. 53 de 1966 e No. 252 de 1967 [2].

As iniciativas de Leite Lopes com o propósito de promover o desenvolvimento tecnológico nacional ocorreram antes do golpe militar de 1964. O Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, BNDE, em 1962, criou um fundo de tecnologia, FUNTEC. Um dos responsáveis, José Pelúcio Ferreira, chefe do Departamento Econômico do BNDE, recebeu um estímulo relevante de Leite Lopes [3]. O FUNTEC seria o "instrumento financeiro" para a promoção do desenvolvimento de instituições de pesquisa e laboratórios universitários. Os recursos do BNDE estiveram presentes no desenvolvimento de laboratórios de pesquisa durante as décadas de 1960 e 1970, isto é, particularmente no processo da reforma universitária, instituída pela Lei 5540 de 1968. Para isso foi criada a empresa Financiadora de Estudos e Projetos de Pesquisa, FINEP. A ciência brasileira teria uma nova fonte de recursos direcionada para o desenvolvimento de pesquisa em instituições de ensino com cursos de pós-graduação, outro "legado" da atuação de Leite Lopes junto ao BNDE. Além dos Institutos de Física e de Matemática, outras unidades da UFRJ foram propostas em 1968 pelo Conselho Universitário da UB. João Christovão Cardoso foi o autor da proposta de criação do Instituto de Química (IQ) e Luiz Alberto Coimbra propôs a criação da Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Engenharia (COPPE). A reforma de 1968 transformou a estrutura operacional das universidades federais. Na Constituição de 1967, foi eliminada a cátedra das universidades públicas federais, e no decreto No. 62.937, de 1968, foram extintas as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. Leite Lopes e outros professores da antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, enquadrados no corpo docente da UFRJ, seriam assim transferidos para a Cidade Universitária da Ilha do Fundão.

Os projetos de Leite Lopes e de Lattes que seriam desenvolvidos na Cidade Universitária tinham propósitos e dimensões distintos. A proposta de Lattes era a verificação experimental de uma conjectura de Dirac, de 1937, de que as constantes fundamentais teriam uma variação temporal. O projeto de Leite Lopes era a aquisição de um acelerador de partículas de porte médio, com o propósito de dar um "salto de qualidade" na pesquisa nacional. O projeto de Lattes recebeu o apoio financeiro dos dirigentes universitários, enquanto que a proposta de Leite Lopes, de maior abrangência, foi submetida às agências de fomento de pesquisa FINEP e CNPq, e foi arquivada depois da sua cassação em 1969.

3. O projeto do acelerador de partículas de Leite Lopes

Após a criação do CBPF, em 1949, e do CNPq, em 1951, a ciência nacional teria dotações de recursos oriundos do governo central. É dessa década a primeira proposta de Leite Lopes de construção de um acelerador de partículas de porte médio. Em 1955, como participante da Comissão de Energia Atômica do CNPq, Leite concebeu a proposta da criação de um laboratório nacional, centrado na aquisição de um acelerador de partículas. O "modelo" de Leite Lopes foi o acelerador do CERN, concebido como pólo de desenvolvimento científico e tecnológico europeu; o início de operação do acelerador do CERN ocorreu em 1954. O projeto de Leite Lopes centrava-se na aquisição de um acelerador sincrocíclotron de 400 Mev (ver Leite Lopes, em Ciência e Liberdade, [4]). Essa proposta original de Leite, da década de 1950, é coerente com aquela de 1968, da instalação de um "Laboratório de Física Moderna" na Ilha do Fundão. Leite considerava que um projeto desse porte provocaria um salto de qualidade no desenvolvimento tecnológico nacional, mesmo argumento que foi utilizado pelos fundadores do CERN junto aos governos europeus. Esse projeto de Leite Lopes, e a sua presença na Ilha do Fundão, estão registrados nos seus livros e depoimentos (Refs. [1-6]).

Em 1964, ano da instalação do regime militar, Leite Lopes ausentou-se do país aceitando um contrato de professor na Faculdade de Ciências de Paris, no campus de Orsay. Em 1966 foram fixadas as normas para a organização das universidades federais. Leite Lopes regressaria ao Brasil em 1967, quando ocorreu a reforma da Universidade do Brasil. Foi o início das atividades administrativas de Leite Lopes, relatado no seu texto Ciência e Libertação [1]. Em 1967 o reitor Moniz de Aragão convidou Leite Lopes para assumir interinamente a direção do Departamento de Física, denominado Instituto de Física pela reforma de 1968. Segundo o seu depoimento, Leite dispunha de uma única funcionária e de um zelador, Euclides Sant'Ana de Azeredo, que também era motorista da diretoria do Instituto de Física.

Leite atuou no ensino e pesquisa do Instituto, formando um grupo de trabalho no novo Departamento de Física Teórica, com mestres de física da Pontifícia Universidade Católica, PUC, notadamente Luiz Pinguelli Rosa e Zieli Dutra Tomé Filho. Esses professores que iriam participar da formação da COPPE registraram essa atuação de Leite em vários depoimentos. O episódio é relatado no texto de Leite Lopes, Ciência e Libertação, de 1969 [1]. Nessa oportunidade, Leite propôs seu projeto de aquisição de um acelerador de partículas para ser instalado na Ilha do Fundão. Em 1968, Leite Lopes enviaria cartas para vários pesquisadores brasileiros que trabalhavam no exterior, descrevendo o projeto. Reconhecemos que a carta que recebemos de Leite Lopes, em 1968, quando trabalhávamos no Carnegie Institute of Technology, em Pittsburgh, seria um dos fatores que despertou nossa atenção para as possibilidades potenciais de pesquisa e ensino na UFRJ. Logo após, em 1969, Leite seria cassado pelo Ato Institucional Nº 5. Leite recebeu um convite, na mesma semana da cassação, para trabalhar no Carnegie Institute of Technology, em Pittsburgh, nos Estado Unidos, como Professor Visitante por um ano, iniciativa do chefe do grupo teórico, Lincoln Wolfenstein. Após essa breve estadia em Pittsburgh, Leite Lopes aceitou o convite para ser professor da Universidade de Strasbourg, na França.

4. A passagem de Cesar Lattes no campus da Cidade Universitária

O acervo da UFRJ de toda a documentação pessoal de Cesar Lattes, do período de 1950 a 1980, seus objetos e o mobiliário do seu gabinete foram enviados em 2010 para a Universidade Estadual de Campinas. O arquivo de Lattes com documentos científicos e textos de projetos de pesquisa encontra-se hoje no Departamento de Raios Cósmicos e Cronologia do Instituto de Física Gleb Wathagin da UNICAMP, mas não há publicações sobre esse material. Dois textos do CBPF, editados por Alfredo Marques, foram utilizados nesse artigo (Refs. [7-10]). A presente reconstrução do projeto de Lattes também se apoia nas evidências das modificações de salas a fim de abrigar seu projeto de pesquisa, e nos instrumentos e produtos químicos que foram adquiridos com recursos da UFRJ.

Lattes, por força do decreto que transferia a Universidade do Brasil, permaneceu brevemente na Ilha do Fundão durante o ano de 1968, indo para a Itália como pequisador visitante da Universidade de Pisa.

Existiam duas linhas de trabalho utilizando traços de partículas alfa em folhas de mica. No projeto proposto por Lattes à reitoria da UFRJ em 1968, denominado Geocronologia, eram propostas determinações nas folhas de mica das densidades de traços de partículas alfa emitidas por U-238. Essas medidas seriam então utilizadas para a datação de ocorrências geológicas [11-13]. O outro projeto de Lattes, pertinente ao campo da física, requeria especialistas de minerais e uma análise estatística muito mais complexa das densidades de traços de partículas alfa, com o propósito de verificar se a constante de decaimento tinha uma dependência temporal. Seria uma verificação experimental de uma conjetura de Dirac, de que os valores das constantes fundamentais variavam com o tempo. Este tema de trabalho foi iniciado por Lattes em Campinas, e estava sendo continuado na Universidade de Pisa. Este fato explica a decisão de Lattes de voltar à Itália, após sua breve passagem pela UFRJ.

Desde o início da década de 1950 Lattes já considerava uma verificação experimental da conjectura de Dirac, proposta no artigo The Cosmological Constants publicado no periódico Nature, em 1937. Essa conjetura associada à "hipótese de grandes números" propunha que a dependência temporal das constantes fundamentais seria uma consequência do limite temporal da idade do universo. A hipótese de Dirac despertou o interesse de vários grupos de pesquisa. Uma possível verificação experimental, associada à variação da constante de desintegração λ de isótopos de longa vida, foi o estudo do decaimento de partículas alfas de U-238. O valor da constante de decaimento, λF, de Urânio-238 havia sido determinada por Emilio Segrè em 1952, λF = 6,85 x 10 – 17/ano. Lattes decidiu realizar nova determinação por que o trabalho de Segrè tinha grande incerteza experimental.

A utilização por Lattes de folhas de mica em estudos experimentais de eventos geológicos tem sua "história", resumida a seguir. No início da década de 1960, um grupo norte-americano da empresa General Electric propôs a técnica de datação de minerais pela contagem de traços de partículas alfa, um produto da fissão espontânea de Urânio-238. A presença de Urânio-238 na crosta terrestre é reconhecida como uma evidência da idade da sua atual estrutura. Pode-se assim justificar a seleção de folhas de mica, um silicato presente em rochas ígneas, por serem "testemunhos" de atividades vulcânicas que ocorreram ao longo de toda a formação da crosta terrestre, até o presente. Fragmentos do mineral mica são encontrados em várias regiões do planeta, em rochas ígneas, metamórficas e em sedimentos. A mica seria assim uma escolha natural para um projeto de geocronologia, nome do projeto que foi submetido por Lattes aos dirigentes da UFRJ. Lattes deve ter selecionado o projeto de datação geológica por ser demais fácil execução como tema de trabalho na UFRJ.

O procedimento experimental necessário para verificar a validade da conjetura de Dirac também poderia justificar as reformas solicitadas por Lattes. O experimento consistia na verificação de uma anomalia na distribuição dos traços de partículas alfa, produtos de desintegração de núcleos de Urânio-238 presentes na mica de rochas ígneas. Essa determinação exigia uma análise estatística complexa e uma cuidadosa filtragem de traços espúrios de partículas alfas. Lattes tinha o know-how necessário, obtido quando iniciou esses estudos em Campinas e depois na Universidade de Pisa, para iniciar esse projeto na UFRJ, mas isso requereria a existência de possíveis colaboradores e acesso às amostras geológicas de diferentes épocas geológicas. Os recursos para o projeto de Lattes foram solicitados pela diretoria do Instituto de Física à reitoria e foram concedidos em 1968. Como consequência das reformas oficiais já mencionadas, principalmente o Decreto-Lei Nº 53 de 1966, os recursos financeiros das faculdades e escolas profissionais passaram a serem regidos pelos dirigentes universitários. As salas que seriam utilizadas por Lattes ficavam no 4º andar do atual Bloco A do Centro de Tecnologia da UFRJ. Foi providenciada a compra de um conjunto de microscópios que seriam colocados no conjunto da atual sala A432, com gabinetes para professores e pesquisadores; Lattes afixou um cartão postal na porta de entrada desta sala (ver Fig. 2). Também foi adaptada a sala A443 para estocagem de produtos químicos e de material radioativo, e a sala A451, para "revelação" de traços de partículas alfas em folhas de mica.


Essas adaptações de salas, os produtos químicos e o conjunto de microscópios adquiridos pela UFRJ, são os "indícios" que confirmam que em 1968 Lattes pretendia realizar no Instituto de Física o experimento mais simples de determinação da densidade de traços de partículas alfa para datação de rochas.

A existência de uma fonte radioativa de Urânio-238, na atual sala A443 do Instituto de Física, sugere que Lattes pretendia determinar o melhor "tempo de revelação" de traços de partículas alfa. Foi encontrada uma grande quantidade de ácido fluorídrico na Sala A443; esse produto era necessário para a observação dos traços de partículas alfa nas folhas de mica, utilizando-se os microscópios adquiridos para o projeto.

Lattes deve ter tido dificuldades para iniciar os trabalhos, visto que não conseguiu atrair alunos ou professores do Instituto para participar do projeto. A ida de Lattes para a Universidade de Pisa foi motivada pela presença de seus ex-colaboradores da Unicamp, que tinham formado um grupo de pesquisa em Pisa, e que continuavam mantendo aquela linha de trabalho.

Os produtos químicos comprados para o projeto de Lattes foram entregues a pesquisadores do grupo de geologia, ou doados a um grupo de pesquisa do Instituto de Química. Os microscópios foram utilizados posteriormente por Solange de Barros, ex-pesquisadora do CBPF e responsável pela implantação do primeiro grupo de pesquisa nuclear do Instituto de Física da UFRJ. As salas são atualmente utilizadas pelo Departamento de Física dos Sólidos.

Um pequeno pormenor revela a atenção especial que Lattes dispensava aos funcionários que exerciam funções modestas. Ao receber nosso telefonema sobre o falecimento do funcionário Euclides, Lattes viajou de Campinas para, juntos, participarmos do enterro de Euclides, num modesto cemitério da zona norte do Rio de Janeiro.

5. Nossa participação na instalação do Instituto de Física na Ilha do Fundão

Em 1952, como bolsista do CNPq, participei do grupo de Cesar Lattes no CBPF. Havia concluído apenas o 2º ano da Escola de Engenharia de Recife, quando fui convidado por Luiz Freire, meu professor de física da Escola de Engenharia, fundador do CBPF e do CNPq, para entrar no curso de física da Faculdade Nacional de Filosofia e estagiar no CBPF no grupo de Lattes. Outros colegas foram convidados por Freire para realizar estágios no Rio de Janeiro, mas do meu grupo apenas Ricardo Palmeira e eu completamos o estágio. Impedimentos legais impossibilitaram nossa transferência para a FNFi. Decidimos então concluir nosso curso na Escola de Engenharia de Recife. Viajávamos em aviões pelo Correio Aéreo Nacional, CAN, do Rio para La Paz, na Bolívia, a fim de trabalhar no Laboratório de Chacaltaya, e depois para Recife, a fim de realizar os exames de segunda época do curso de engenharia. O Laboratório de Chacaltaya, a 5000 metros de altitude, onde Lattes expôs as chapas utilizadas para observar o decaimento de méson p, está na encosta da montanha Chacaltaya, nos Andes Bolivianos, nas cercanias da cidade de La Paz.

Nossa "iniciação" em física moderna foi um "processo artesanal", decorrente do convívio com vários pesquisadores que trabalhavam em Chacaltaya. Nossos "orientadores" principais foram Ugo Camerini, técnico especialista da UNESCO, Alfred Hendel, físico da Universidade de Michigan e colaborador de Ismael Escobar na implantação do Laboratório de Chacaltaya, Theodore Bowen, da Universidade de Chicago, e Georges Schwachheim, pesquisador do CBPF. Camerini e Hendel foram os responsáveis pelo nosso engajamento em física experimental, atuando na nossa aceitação em curso de pós-graduação no MIT (Ricardo Palmeira) e na Universidade de Manchester (Susana de Souza Barros e o autor dessa Nota).

Existem dois "episódios" do autor associados às salas utilizadas por Lattes, no prédio do Instituto de Física da Ilha do Fundão. No primeiro episódio, em 1961, ao regressar da pós-graduação na Inglaterra, ministrei durante um curto período a disciplina de Lattes na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Plínio Sussekind Rocha, então diretor do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, nos convidou para participar da planificação das salas de aulas, biblioteca e oficinas de serviços do futuro Instituto de Física da UFRJ, na Ilha do Fundão. Em 1969, o Ato Institucional Nº5 aposentaria Plínio Rocha. Visitei Plínio várias vezes no seu pequeno apartamento, situado num prédio da antiga Praça Onze, praça eternizada na letra de um samba, mas que deixou de existir para dar espaço à Avenida Presidente Vargas. A atual biblioteca do Instituto de Física receberia o nome de Plínio Rocha, e tem uma placa com sua fotografia.

O segundo episódio ocorreu quando regressamos dos Estados Unidos para a UFRJ, na década de 1970, processo que tomaria alguns anos face aos nossos compromissos de orientação de teses na Carnegie-Mellon University; a "conclusão da transferência" ocorreu apenas em 1975. O propósito principal desse retorno seria a implantação de projetos de pesquisa para consolidar o curso de pós-graduação do Instituto de Física. Utilizamos na Ilha do Fundão as salas destinadas a Lattes para montagem de laboratórios de física experimental. As chaves da sala dos microscópios e das outras salas do projeto de Lattes nos foram entregues pelo funcionário Euclides Santana de Azeredo, a pedido do próprio Lattes.

Agradecimentos

Agradeço o convite de colegas do CBPF para participar do Simpósio do Centenário da Descoberta dos Raios Cósmicos, coordenado por Ronald Shellard, que motivou a preparação da presente Nota. Agradeço também a vários colegas do Instituto de Física da UFRJ, pelas informações sobre a presença de Cesar Lattes e de Leite Lopes no Instituto, em particular aos colegas Ricardo Barthem e Vitorvani Soares, por suas retificações sobre datas e sobre referências pertinentes ao presente texto. Um agradecimento especial ao colega Mauro Doria que preservou o cartão postal de Lattes, exibido na Fig. 2.

Referências

[1] José Leite Lopes, Ciência e Libertação (Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1969).

[2] M. de L. Albuquerque Favero, A Universidade do Brasil: Um Itinerário Marcado de Lutas, (Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 1999).

[3] José Leite Lopes, Ciência e Desenvolvimento (Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1964).

[4] José Leite Lopes, Ciência e Liberdade, editado por Ildeu de Castro Moreira (Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 1998).

[5] Aula Magna (Setor de Mídia Impressa da UFRJ, Rio de Janeiro, 2005).

[6] Francisco Caruso e José Leite Lopes, Ideias e Paixões (Edições do CBPF, Rio de Janeiro, 1999).

[7] Alfredo Marques, editor, Cesar Lattes 70 Anos: A Nova Física Brasileira (Edições do CBPF, Rio de Janeiro, 1994).

[8] Alfredo Marques, Cesar Lattes, a Descoberta do Méson-π e a Física de Partículas (Cosmos e Contexto, Rio de Janeiro, 2012).

[9] F. Caruso, Alfredo Marques e Amos Troper, editores, Cesar Lattes, a Descoberta do Méson π e Outras Histórias, (Edições do CBPF, Rio de Janeiro, 1999).

[10] Vera Maria de Carvalho e Vera Rita da Costa (eds) Cientistas do Brasil: Depoimentos - Edição Comemorativa dos 50 anos da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, São Paulo, 1998).

[11] C. Bernardes, G. Bigazzi, F.P. Bonadonna, E. Centamore, C.M.G. Lattes and J.C. Hadler, International Journal of Radiation Applications & Instrumentation; Part D, Nuclear Tracks & Radiation Measurements 12, 901 (1986).

[12] G. Bigazzi, M. Cattani, U.G. Cordani and K. Kawashita, Anais da Academia Brasileira de Ciências 43, 633 (1971).

[13] R.L. Fleischer e H.R. Hart, in: Calibration of Hominoid Evolution, edited by W.W. Bishop, J.A. Miller and S. Cole (Scottish Academic Press, Edinburgh, 1972), p. 135-170.

Recebido em 6/2/2013

Aceito em 21/4/2013

Publicado em 1/11/2013

  • [1] José Leite Lopes, Ciência e Libertação (Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1969).
  • [2] M. de L. Albuquerque Favero, A Universidade do Brasil: Um Itinerário Marcado de Lutas, (Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 1999).
  • [3] José Leite Lopes, Ciência e Desenvolvimento (Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1964).
  • [4] José Leite Lopes, Ciência e Liberdade,
  • editado por Ildeu de Castro Moreira (Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 1998).
  • [5] Aula Magna (Setor de Mídia Impressa da UFRJ, Rio de Janeiro, 2005).
  • [6] Francisco Caruso e José Leite Lopes, Ideias e Paixões (Edições do CBPF, Rio de Janeiro, 1999).
  • [7] Alfredo Marques, editor, Cesar Lattes 70 Anos: A Nova Física Brasileira (Edições do CBPF, Rio de Janeiro, 1994).
  • [8] Alfredo Marques, Cesar Lattes, a Descoberta do Méson-π e a Física de Partículas (Cosmos e Contexto, Rio de Janeiro, 2012).
  • [9] F. Caruso, Alfredo Marques e Amos Troper, editores, Cesar Lattes, a Descoberta do Méson π e Outras Histórias, (Edições do CBPF, Rio de Janeiro, 1999).
  • [10] Vera Maria de Carvalho e Vera Rita da Costa (eds) Cientistas do Brasil: Depoimentos - Edição Comemorativa dos 50 anos da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, São Paulo, 1998).
  • [11] C. Bernardes, G. Bigazzi, F.P. Bonadonna, E. Centamore, C.M.G. Lattes and J.C. Hadler, International Journal of Radiation Applications & Instrumentation; Part D, Nuclear Tracks & Radiation Measurements 12, 901 (1986).
  • [12] G. Bigazzi, M. Cattani, U.G. Cordani and K. Kawashita, Anais da Academia Brasileira de Ciências 43, 633 (1971).
  • [13] R.L. Fleischer e H.R. Hart, in: Calibration of Hominoid Evolution,
  • edited by W.W. Bishop, J.A. Miller and S. Cole (Scottish Academic Press, Edinburgh, 1972), p. 135-170.
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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      06 Fev 2013
    • Aceito
      21 Abr 2013
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