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Gulliver, os liliputianos e a física

Gulliver, the Lilliputians and physics

Resumos

A aprendizagem em física requer a compreensão de conceitos básicos como escalas, proporções, áreas e volumes. A compreensão de tais alicerces não é, de forma nenhuma, algo trivial, e não deve ser tratada como simples pré-requisito para a construção de conceitos físicos mais elaborados. A realização de atividades que tratem destes alicerces é fundamental para uma aprendizagem em física, seja qual for o nível de ensino em que o estudante se encontra. Com o objetivo de discutir aspectos relacionados à aprendizagem de conceitos considerados alicerces para a aprendizagem em física, são propostas situações-problema envolvendo o imaginário reino de Liliput, descrito na mais famosa obra de Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver. A narrativa de Swift apresenta diversas circunstâncias que, apesar de fictícias, são muito ricas e nos permitem explorar os alicerces de uma forma interessante e, principalmente, abordando uma grande variedade de situações que envolvem as principais dificuldades apresentadas pelos estudantes no estudo de conceitos físicos básicos.

escalas; proporções; áreas e volumes


Learning physics requires an understanding of basic concepts such as scales, proportions, areas and volumes. The understanding of these foundations is in no way trivial, and should not be treated as mere prerequisite for the construction of more elaborate physical concepts. Conducting activities that address these foundations is critical for learning in physics, whatever the level of education in which the student is. Aiming to discuss aspects related to the learning of concepts considered foundations for learning in physics, problems are proposed involving the imaginary k1 ngdom of Lilliput, described in the most famous works of Jonathan Swift, Gulliver's Travels. Swift's narrative presents various circumstances which, though fictional, are very rich and allow us to explore the foundations of an interesting way, and especially addressing a wide variety of situations involving the main difficulties presented by the students in the study of basic physical concepts.

scales; proportions; areas and volumes


ARTIGOS GERAIS

Gulliver, os liliputianos e a física

Gulliver, the Lilliputians and physics

Luiz Raimundo Moreira de Carvalho1 1 E-mail: luiz.fisica.prof@gmail.com.

Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

A aprendizagem em física requer a compreensão de conceitos básicos como escalas, proporções, áreas e volumes. A compreensão de tais alicerces não é, de forma nenhuma, algo trivial, e não deve ser tratada como simples pré-requisito para a construção de conceitos físicos mais elaborados. A realização de atividades que tratem destes alicerces é fundamental para uma aprendizagem em física, seja qual for o nível de ensino em que o estudante se encontra. Com o objetivo de discutir aspectos relacionados à aprendizagem de conceitos considerados alicerces para a aprendizagem em física, são propostas situações-problema envolvendo o imaginário reino de Liliput, descrito na mais famosa obra de Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver. A narrativa de Swift apresenta diversas circunstâncias que, apesar de fictícias, são muito ricas e nos permitem explorar os alicerces de uma forma interessante e, principalmente, abordando uma grande variedade de situações que envolvem as principais dificuldades apresentadas pelos estudantes no estudo de conceitos físicos básicos.

Palavras-chave: escalas, proporções, áreas e volumes.

ABSTRACT

Learning physics requires an understanding of basic concepts such as scales, proportions, areas and volumes. The understanding of these foundations is in no way trivial, and should not be treated as mere prerequisite for the construction of more elaborate physical concepts. Conducting activities that address these foundations is critical for learning in physics, whatever the level of education in which the student is. Aiming to discuss aspects related to the learning of concepts considered foundations for learning in physics, problems are proposed involving the imaginary k1 ngdom of Lilliput, described in the most famous works of Jonathan Swift, Gulliver's Travels. Swift's narrative presents various circumstances which, though fictional, are very rich and allow us to explore the foundations of an interesting way, and especially addressing a wide variety of situations involving the main difficulties presented by the students in the study of basic physical concepts.

Keywords: scales, proportions, areas and volumes..

1. Introdução

Dificilmente será contestada a importância da compreensão, por parte dos estudantes, dos conceitos de área e volume, uma vez que tais conceitos são tratados como alicerces [1] para a construção de inúmeros outros conceitos físicos, como pressão, densidade, fluxo de energia etc. Apesar da importância dada ao tema, a responsabilidade pelo trabalho pedagógico envolvendo os conceitos básicos de área e volume costuma ser tacitamente atribuída ao ensino da matemática. Entretanto, é um equivoco tratar os conceitos de área e volume, considerados alicerces para o ensino de física, como simples pré-requisitos, por duas razões: 1ª) Os estudantes exibem uma resistência muito grande ao pensamento em termos de relações de proporção [1, p. 14], em especial porque a maioria dos estudantes de nível médio (e até mesmo muitos estudantes de nível superior) não apresenta uma compreensão elaborada sobre a relação funcional básica entre área e dimensões lineares ou entre volume e dimensões lineares [1, p. 12]. 2ª) Na construção de conceitos físicos que envolvem áreas e volumes, esses dois alicerces encontram-se contextualizados em fenômenos que envolvem outros conceitos (força, massa, energia etc.). Consequentemente, uma abordagem pedagógica de temas considerados alicerces deve ser diferenciada no ensino de física.

Existem diversos entraves cognitivos que se destacam na aprendizagem dos conceitos de área e volume. Inicialmente, destaca-se o fato de que os estudantes apresentam muita dificuldade em formar uma clara definição operacional de área (e também de volume). Mas a construção de uma definição operacional é apenas o início do processo de aprendizagem dos alicerces [1, p. 3]. Espera-se que o estudante apresente uma capacidade cognitiva que vá muito além da construção de definições operacionais de área e volume. De fato, a expectativa dos professores é de que os estudantes, em primeiro lugar, sejam capazes de manipular esses alicerces na elaboração de um raciocínio proporcional envolvendo mudanças de escala e, em segundo lugar, que apresentem um pensamento em termos de proporções que envolvam a relação entre os alicerces e outros conceitos físicos básicos. Geralmente a expectativa é frustrada, dadas as razões expostas acima.

Parece claro, portanto, que a construção de conceitos físicos e a elaboração de linhas de raciocínio matemático e físico devem passar necessariamente pela aprendizagem dos alicerces: escalas, proporções, áreas e volumes. Sendo assim, é imprescindível que o trabalho pedagógico aborde os alicerces em diferentes momentos e de diferentes maneiras, e que estes nunca sejam tratados como pré-requisitos ou como temas que sejam de responsabilidade exclusiva de uma determinada disciplina.

2. Proporções envolvendo áreas e volumes

O trabalho pedagógico nas salas de aula nos mostra, em diferentes níveis de ensino, que existe uma grande deficiência na aplicação de um raciocínio que trate intimamente com a proporcionalidade envolvendo áreas e volumes. Segundo Arons, "a razão para essa deficiência é muito simples: os estudantes têm pouca ou nenhuma prática com esse tipo de pensamento, e esta capacidade não se desenvolve espontaneamente" [1, p. 14].

Se dobrarmos o comprimento do lado de um quadrado, obteremos um novo quadrado cuja área será quantas vezes maior do que a área do quadrado original? Este problema é um exemplo básico de proporções envolvendo áreas. Como a capacidade de raciocínio em termos de proporções envolvendo áreas e volumes não se desenvolve espontaneamente, é comum os estudantes tentarem resolver esse e outros problemas do mesmo tipo aplicando relações de proporção direta, e assim acabam tratando áreas (e volumes) como se fossem dimensões lineares. Não é surpreendente, portanto, o fato de muitos estudantes afirmarem, na solução para o problema anterior, que a área do novo quadrado é o dobro da área do quadrado original, e não quatro vezes maior. Essa dificuldade dos estudantes costuma ser tratada de forma particular, uma vez que tradicionalmente procura-se demonstrar a relação entre as áreas dos quadrados com o uso de figuras ("demonstração geométrica", como apresentado na Fig. 1) ou com o uso de uma fórmula ("demonstração algébrica", como apresentado na Tabela 1).


A demonstração geométrica apresentada na Fig. 1 é uma forma muito particular de se tratar com a dificuldade dos estudantes, já que não se aplica a qualquer situação. Se dobrarmos o comprimento do raio de um círculo, obteremos um novo círculo cuja área será quantas vezes maior do que a área do círculo original? Para esse novo problema, uma demonstração geométrica que possibilite uma comparação entre as áreas dos círculos não é trivial. Por outro lado, é possível a utilização de uma demonstração algébrica nesse caso. Entretanto, mais uma vez teremos uma forma particular de se tratar com a dificuldade dos estudantes, já que a demonstração algébrica também não se aplica a qualquer situação. Na Fig. 2, se ampliarmos N vezes a distância dPQ entre os pontos P e Q, obteremos uma nova figura cuja área será quantas vezes maior do que a área da figura original? Este é um exemplo de um problema em que não se aplica facilmente uma demonstração geométrica ou algébrica.


Comparar os valores final e inicial de áreas (ou volumes) quando as dimensões lineares são ampliadas ou reduzidas de um determinado fator não é trivial para os estudantes [1, p. 4]. A situação piora nos casos em que o fator de escala não é inteiro [1, p. 12]. O que se pretende, em última instância, é fazer com que os estudantes percebam que a ampliação ou redução de um determinado fator linear de escala e a consequente comparação entre áreas ou volumes independe de uma regularidade geométrica ou dos termos de uma fórmula. No problema do quadrado, por exemplo, não é obrigatório que a dimensão linear a ser considerada seja o lado. Poderíamos considerar, nesse caso, a diagonal do quadrado ou qualquer outra dimensão linear. No problema do círculo também poderíamos considerar qualquer outra dimensão linear além do raio, como o diâmetro ou o perímetro, por exemplo. Essas considerações dificilmente são feitas pelos estudantes e consequentemente não existe a percepção de que áreas variam com o quadrado do fator linear de escala, qualquer que seja a dimensão linear considerada. Da mesma forma, não existe a percepção de que volumes variam com o cubo do fator linear de escala, qualquer que seja a dimensão linear considerada.

Arons afirma que não é surpreendente o fato de que os "estudantes não têm consciência de que todas as áreas variam com o quadrado do fator linear de escala, e que volumes variam com o cubo, independentemente de uma regularidade ou irregularidade na forma e independentemente da existência ou não de uma fórmula" [1, p. 12]. Por outro lado, é especialmente importante no desenvolvimento do trabalho pedagógico que os estudantes tenham a percepção de que tanto a regularidade geométrica quanto a existência de uma fórmula não são essenciais na abordagem de um problema em que são feitas comparações entre áreas ou volumes quando as dimensões lineares são ampliadas ou reduzidas de um determinado fator.

3. As viagens de Gulliver (1726)

Em As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift (1667-1745) apresenta uma narrativa dividida em quatro partes, nas quais Lemuel Gulliver relata suas experiências fantásticas em diversas viagens que duraram, ao todo, "dezesseis anos e mais de sete meses" [2]. Na primeira parte, Uma viagem para Liliput, a mais famosa da obra, Gulliver descreve suas experiências em um reino em que todas as coisas (pessoas, animais, plantas etc.) apresentam-se idênticas, em forma, às coisas do mundo usual, porém em escala reduzida. Na segunda parte Gulliver passa a descrever o reino de Brobdingnag, em que todas as coisas também se apresentam idênticas às coisas do mundo habitual, porém em escala ampliada. A terceira e a quarta parte da obra não apresentam muitos elementos para uma discussão sobre escalas e proporções. Entretanto, vale destacar que Swift utiliza a narrativa, principalmente na terceira parte, para fazer diversas críticas à ciência da época (século XVIII).

O livro Física do PSSC [3] propõe, em seu capítulo 4, Funções e Escalas, uma discussão introdutória da física dos mundos de Liliput e Brobdingnag. Nesta discussão, o livro do PSSC menciona que Swift não tinha conhecimento do trabalho de Galileu sobre o fato de que modelos muito pequenos ou muito grandes de homens não poderiam ser como nós. Uma vez que a primeira parte de As Viagens de Gulliver é a mais conhecida do público, são exploradas a seguir algumas situaçõesproblema envolvendo pontos da narrativa desse trecho da obra de Swift, com enfoque nos conceitos de área, volume, escalas e proporções.

4. Peso, altura e estrutura óssea de um liliputiano

No capítulo I da primeira parte, Gulliver relata que sobrevive ao naufrágio do navio Antelope, indo parar em um local desconhecido, posteriormente identificado como reino de Liliput. A passagem da narrativa em que Gulliver descreve seu primeiro contato com os liliputianos já informa, antes de qualquer outra coisa, a forma e a altura de um liliputiano: "... forçando os olhos para baixo o mais que pude, vi uma criaturazinha humana, que mal chegava a quinze centímetros de altura..." [2, p. 43]. Posteriormente, Gulliver relata que "... os matemáticos de Sua Majestade, tendo conseguido a medida de meu corpo com a ajuda de um quadrante ... [calcularam] que meu tamanho excedia o deles na proporção de doze para um..." [2, p. 69-70]. Nesse trecho da narrativa encontramos elementos que nos permitem concluir que a proporção entre um liliputiano e Gulliver é de uma polegada (2,54 cm) para um pé (30,48 cm), isto é, 1:12. Portanto, a relação de proporcionalidade descrita na narrativa entre a altura de Gulliver (HG) e a altura de um liliputiano típico (HL) pode ser expressa por = por = , por 12 · HL = HG ainda por

Considerando2 2 Não existem referências à altura de Gulliver no texto de Swift. HG = 1,68 m, teremos HL = = 0,140 m = 14,0 cm.

Vamos considerar verdadeira a seguinte hipótese: a massa específica média de Gulliver é uma constante (Hipótese 1). Com essa hipótese são evitados problemas de cálculo decorrentes de uma massa específica que varie em função da massa do corpo, de seu volume ou de outro fator externo ou interno. Essa simplificação torna irrelevante uma possível variação na massa de Gulliver, ou seja, o fato de Gulliver engordar ou emagrecer não interfere no fato de que a massa de Gulliver (mG) é proporcional ao seu volume (VG), isto é, mG α VG. Lembrando que volumes variam com o cubo do fator linear de escala, qualquer que seja a dimensão linear considerada, esta pode ser, por exemplo, a altura de Gulliver (HG). Sendo assim, o volume de Gulliver pode ser expresso como proporcional ao cubo de sua altura, isto é, VG α H3G. As duas relações de proporcionalidade apresentadas podem ser reescritas na forma das seguintes equações

Nas Eqs. (2) e (3) acima, k1 e k2 são constantes de proporcionalidade, onde k1 poderia ser medida, por exemplo, em kg/m3, e k2 é adimensional. Substituindo a Eq. (3) na Eq. (2) obtemos

Portanto, a massa de Gulliver pode ser expressa como proporcional ao cubo de sua altura, onde C é uma constante de proporcionalidade (C = k1 · k2).

Analogamente, a massa de um liliputiano típico (mL) deve ser proporcional ao seu volume (VL), ou seja

Por sua vez, VL também pode ser expresso como proporcional ao cubo da altura de um liliputiano (HL), ou seja

Convenientemente também estamos usando para um liliputiano a altura como dimensão linear considerada. Sendo assim, a massa de um liliputiano também pode ser expressa como proporcional ao cubo de sua altura, ou seja

O problema nesse caso é que, mesmo considerando C e C' medidas em uma mesma unidade, não temos a garantia de que a constante C' = k'1 · k'2 seja igual à constante C = k1 · k2, em especial porque a massa específica média de Gulliver (k1) poderia ser diferente da massa específica média de um liliputiano (k'1).

Para simplificar o problema, vamos considerar verdadeira a seguinte hipótese: a massa específica média de um liliputiano é igual à massa específica média de Gulliver, ou seja, k'1 = k1 (Hipótese 2). Uma vez que Swift descreve os liliputianos como seres semelhantes aos homens (isto é, com a mesma forma geométrica, porém em escala menor), a relação entre as constantes de proporcionalidade k'2 e k2 será k'2 = k2. Essa relação, em conjunto com a Hipótese 2, nos permite escrever que C' = C, e deste modo as Eqs. (4) e (7) podem ser combinadas

Lembrando da Eq. (1) que HG = 12 · HL, teremos

Considerando3 3 Não existem referências à massa de Gulliver no texto de Swift. mG = 60kg, obtemos mL = = 0,035 kg = 35 g. Assim, dadas as considerações e hipóteses feitas até aqui, concluímos que um liliputiano apresenta uma altura da ordem de 14 cm e uma massa da ordem de 35 g.

O problema maior, nesse caso, está na suposição de que um liliputiano pode ser semelhante a um homem (mesma geometria, mesma densidade etc). Em sua obra Discurso e Demonstrações Matemáticas em Torno de Duas Novas Ciências, Galileu argumenta sobre a impossibilidade da existência de modelos muito grandes ou muito pequenos que sejam semelhantes ao homem ou a qualquer outro ser [4]. Antes de comentar sobre modelos vivos, Galileu trata de objetos inanimados: "A partir do que já foi demonstrado, você pode claramente ver a impossibilidade de se ampliar o tamanho de estruturas a grandes dimensões, tanto na arte [isto é, produtos do engenho humano, como, por exemplo, da arquitetura, da construção naval etc.] quanto na natureza..." [4, p. 130]. A argumentação4 4 Embora Galileu também fale sobre modelos reduzidos, sua argumentação se concentra na análise de modelos ampliados. de Galileu passa pela análise da resistência que objetos semelhantes, feitos de um mesmo material, apresentam sob a ação de seus próprios pesos.

Usando argumentos geométricos e valendo-se de relações envolvendo torques, Galileu acaba demonstrando que "dentre uma infinita variedade de sólidos que sejam similares entre si, não existem dois para os quais as forças5 5 A confusão na terminologia da época envolvendo os conceitos de "força" e "momento" transparece na obra de Galileu. 6 Uma alternativa interessante para demonstrar a Eq. (12) seria substituir as Eqs. (2) e (5) na Eq. (9) e em seguida aplicar ao resultado obtido a relação dada pela Hipótese 2. 7 A Eq. (19) só tem validade se ambos os alimentos, X e X', apresentassem a mesma capacidade de armazenamento energético por volume (isto é, se k' 5 = k 5). Vamos considerar verdadeira esta hipótese. e respectivas resistências dos sólidos estejam relacionadas em uma mesma proporção" [4, p. 125]. A partir desse fato, Galileu passa a dissertar sobre a consequente desproporção que seres de diferentes tamanhos apresentam em suas estruturas ósseas, ressaltando também a possibilidade de que a proporção geométrica só seria possível caso os "materiais" que constituem os ossos e/ou a carne de tais seres apresentassem diferentes características físicas [4, p. 130 e 132].

Embora a regularidade geométrica e a existência de uma fórmula não sejam essenciais na abordagem de um problema em que são feitas comparações entre áreas ou volumes quando as dimensões lineares são ampliadas ou reduzidas de um determinado fator, os argumentos de Galileu são apresentados em termos de proposições envolvendo cilindros e prismas. A simplificação de Galileu é oportuna, pois dessa forma podemos tratar com dimensões lineares bem definidas e costumeiras, como a altura de um cilindro ou o raio de sua base, assim como também podemos fazer referência a dimensões de área igualmente bem definidas e costumeiras, como a área da base de um cilindro ou sua área superficial total. Galileu ressalta o fato de que para esses objetos (cilindros e prismas homogêneos) o peso é proporcional ao volume, que por sua vez pode ser expresso como proporcional ao cubo de uma de suas dimensões lineares (como a altura, por exemplo), ao passo que a resistência é proporcional á área da base, e esta é proporcional ao quadrado de uma de suas dimensões lineares [4, p. 124-125].

A análise das consequências trazidas para a resistência da estrutura óssea de um liliputiano também pode ser feita a partir de simplificações geométricas, de forma análoga à análise feita por Galileu no Discurso, adotando cilindros (ou prismas) como modelos comparativos. Assim como na abordagem de Galileu, não existirá aqui qualquer prejuízo lógico às conclusões obtidas. Volumes e áreas variam, respectivamente, com o cubo e com o quadrado do fator linear de escala, qualquer que seja a dimensão linear considerada. E sabemos que esse fato não implica nem em regularidade geométrica nem na existência de uma fórmula.

Assim, as conclusões obtidas a respeito da resistência oferecida pela estrutura óssea de um organismo submetido à ação de seu peso são equivalentes às conclusões que podemos obter a partir da análise da resistência oferecida por uma coluna (cilindro ou prisma) submetida à ação de seu peso. Uma vez que as compressões que colunas geometricamente semelhantes suportam (comparando apenas as de um mesmo material) podem ser expressas como proporcionais às áreas (S) de suas respectivas seções transversais, a relação entre a estrutura óssea de Gulliver necessária para sustentar seu próprio peso (PG) e & estrutura óssea de um liliputiano para sustentar seu próprio peso (PL) poderia ser expressa por

Substituindo mG da Eq. (9) na Eq. (10), obtemos portanto

Mas para que a área da seção transversal da estrutura óssea de um liliputiano seja da área da seção transversal da estrutura óssea de Gulliver, sua espessura (ou raio, ou diâmetro...) deveria ser da espessura da estrutura óssea de Gulliver, ou seja, da ordem de 2,4%. (Entretanto, esse fato parece contradizer a relação de proporcionalidade estabelecida anteriormente, que é de 1:12, ou seja, da ordem de 8,3%.)

Esse resultado é muito importante e a partir dele podemos extrair diversas conclusões. Um ser que seja um modelo semelhante, em escala reduzida de 1/12 de um ser humano, poderia ter ossos extremamente finos e mesmo assim seu esqueleto seria capaz de sustentar seu próprio peso. Mas se isso fosse verdade, será que sua densidade média poderia ser igual à densidade média de um homem? Por outro lado, se seus ossos não fossem extremamente finos, mas proporcionais aos ossos de um homem, ele teria um esqueleto capaz de sustentar até 12 vezes seu próprio peso. A Tabela 2 esquematiza a relação entre a capacidade de sustentação da estrutura óssea e uma dimensão linear (a altura H) para Gulliver e para um liliputiano.

A estrutura óssea de Gulliver apresenta uma capacidade de sustentação ZG necessária ao peso de Gulliver (PG). Mas, segundo a Eq. (1), HL = . Logo

Como H2G é, por sua vez, diretamente proporcional a ZG, podemos afirmar, indiretamente, que ZL α . Por outro lado, da Eq. (9) concluímos que PL = . Sendo assim, a estrutura óssea de um liliputiano apresentaria da capacidade de sustentação que a estrutura óssea de Gulliver apresenta, ao passo que o peso a ser sustentado é apenas do peso de Gulliver. Concluímos, portanto, que se um liliputiano possuísse ossos feitos de um mesmo material e que fossem proporcionais aos ossos de um homem, ele realmente teria um esqueleto capaz de sustentar até 12 vezes seu próprio peso!

5. Alimentar Gulliver em Liliput

O problema da alimentação de Gulliver em Liliput é tratado no capítulo III da primeira parte de As Viagens de Gulliver, onde encontramos a transcrição de um instrumento legal elaborado pelo imperador de Liliput. Esse documento apresenta uma série de artigos e Gulliver (também chamado pelos liliputianos de Homem Montanha) jurou que se submeteria a todas as determinações do imperador, de modo a obter sua liberdade e outras concessões, ficando estabelecido que "... o dito Homem Montanha receberá todos os dias um fornecimento de carne e bebida suficiente para a alimentação de 1728 dos nossos súditos..." [2, p. 69].

E interessante destacar que na própria narrativa se encontra uma explicação para que a quantidade de alimento seja equivalente a 1728 porções: "... o imperador estipula o fornecimento de uma quantidade de comida e de bebida suficiente para a alimentação de 1728 liliputianos. Algum tempo depois, perguntei a um amigo da corte como tinham feito para chegar àquele número; ele me disse que os matemáticos de Sua Majestade, tendo conseguido a medida de meu corpo com a ajuda de um quadrante e calculado que meu tamanho excedia o deles na proporção de doze para um, haviam chegado à conclusão, pela similaridade de nossos corpos, que o meu podia conter pelo menos 1728 dos deles..." [2, p. 69-70]. O fato de que o volume de Gulliver (VQ) é 1728 vezes maior que o volume médio de um liliputiano (VL) pode ser facilmente demonstrado a partir da similaridade geométrica (k'2 = k2) e pela combinação das Eqs. (3), (1) e (6). Temos assim VG = k2 · (12 · HL)3 = 1728 · k'2 · H3L. Dessa forma

Mas será que o fato do corpo de Gulliver ter um volume equivalente ao volume de 1728 corpos de liliputianos nos permite inferir diretamente que Gulliver necessita de 1728 porções de alimento liliputiano? Na realidade não, pois como o problema envolve uma análise comparativa entre volumes (e também entre áreas, como veremos a seguir), a solução não deve ser considerada trivial.

O alimento ingerido por um ser deve suprir sua necessidade energética relativa a atividades físicas, metabolismo, dissipação de calor através da pele etc. Considerando o ser em repouso, a necessidade mínima de alimento deve repor a energia desprendida sob a forma de calor. Para simplificar a análise do problema, vamos desconsiderar os efeitos decorrentes da possível diferença entre as atividades metabólicas de Gulliver e de um liliputiano. Assim, o calor desprendido por Gulliver (QG) deve ser proporcional de sua superfície (AG), isto é, à área de sua pele. Analogamente, o calor desprendido por um liliputiano (QL) também deve ser proporcional à área de sua superfície (AL). Na realidade, o fluxo de calor através de uma superfície depende de diversos fatores, tais como a diferença de temperatura entre os meios delimitados pela superfície e a natureza da superfície em questão. Ainda com o intuito de simplificar o problema, vamos considerar que esses e outros fatores não influenciam no fluxo de calor do corpo para o ambiente, supondo que a pele de um liliputiano apresenta a mesma constituição e a mesma temperatura média da pele de Gulliver. Dessa forma, teremos apenas

onde k3 será considerada como uma constante de proporcionalidade (tendo em vista todas as simplificações lançadas anteriormente), podendo ser expressa, por exemplo, em J/m2 ou cal/cm2.

Por outro lado, a área superficial pode ser expressa como proporcional ao quadrado de uma dimensão linear, esta podendo ser, por exemplo, a altura, o que nos leva a escrever

Nessa equação, k4 é uma constante de proporcionalidade adimensional. Substituindo a Eq. (14) naEq. (13), obtemos

Mais uma vez vamos supor a presença de uma constante K = k3· k4 que seja a mesma para Gulliver e para um liliputiano, dada a série de considerações que estabelecem semelhanças entre eles. Portanto, da Eq. (15) obtemos

Substituindo a Eq. (1) na Eq. (16) ficamos com

, o que nos leva à conclusão de que

Sendo assim, Gulliver precisa repor uma quantidade de energia 144 vezes maior que a quantidade necessária a um liliputiano, e portanto o volume de alimentos que Gulliver necessita deve ser 144 vezes maior que o volume de alimentos de que necessita um liliputiano (e não 1728 vezes maior, como calculou o imperador).

Em contrapartida, como a reposição da energia se dá através da ingestão de alimentos, é razoável supor que o conteúdo energético (E) de um alimento uniforme seja proporcional ao seu volume (V), isto é

onde k5 é uma constante que poderia ser medida, por exemplo, em J/m3 ou cal/mL. O problema maior, nesse caso, está na suposição de que o universo liliputiano poderia ser fielmente semelhante ao universo humano (mesmas geometrias, mesmas densidades etc). Dada a Eq. (18), a relação entre a energia por unidade de volume em um alimento X na escala humana e a energia por unidade de volume em um alimento X' geometricamente semelhante, porém em escala reduzida de 1/12, poderia ser expressa por

Entretanto, como o universo liliputiano apresenta-se em escala reduzida para 1/12 das dimensões lineares do universo humano, os volumes dos objetos liliputianos são (1/12)3 = 1/1728 quando comparados aos volumes dos objetos no universo humano. Já que V' = , consequentemente

Esse resultado é muito importante e indica que um alimento X' em escala liliputiana armazena apenas 1/1728 da energia que um alimento X em escala humana armazena.

Retornando à Eq. (17), concluímos que um liliputiano necessita de 1/144 da energia que Gulliver necessita. O problema é que, segundo a Eq. (20), o alimento liliputiano fornece apenas 1/1728 da energia que o alimento humano fornece. Dessa forma, um liliputiano necessitaria de 12 porções de X' para repor sua perda de energia! A Tabela 3 justifica essa conclusão.

Para conseguir uma quantidade de energia 144 vezes maior que um liliputiano, Gulliver necessita de 144 vezes mais alimento que um liliputiano. Porém, um alimento em escala liliputiana não é capaz de satisfazer o liliputiano como o alimento em escala humana satisfaz o homem. Um liliputiano necessitaria de 12 porções do alimento X' para se satisfazer da mesma forma que um homem se satisfaz com apenas uma porção do alimento X.

6. Vestir Gulliver em Liliput

Após o naufrágio do Antelope, Gulliver chega a Liliput trazendo consigo apenas alguns objetos e a roupa do corpo. O problema da confecção de vestimentas para Gulliver em Liliput é tratado no capítulo VI da primeira parte de As Viagens de Gulliver. Diferentemente do que se encontra no relato sobre a alimentação, nessa parte da narrativa não se encontram dados numéricos fornecidos pelo autor.

A partir da Eq. (14) demonstra-se que

Substituindo a Eq. (1) na Eq. (21) obtém-se a relação

Portanto, como a área superficial de Gulliver é 144 vezes maior que a área superficial de um liliputiano, para confeccionar roupas para Gulliver deve-se utilizar uma quantidade de tecido cuja área seja aproximadamente 144 vezes maior que a área do tecido utilizado para as roupas de um liliputiano.

Por outro lado, está sendo levada em consideração apenas a relação entre as áreas superficiais, o que não resolve totalmente o problema da confecção de roupas para Gulliver. O próprio Gulliver esclarece o porquê: "Duzentas costureiras foram encarregadas de fazer camisas e roupas de cama e mesa para mim, tudo com o pano melhor e mais forte que conseguissem encontrar, mas assim mesmo tiveram que dobrá-lo várias vezes, pois o tecido mais grosso que têm é mais fino do que a nossa cambraia." [2, p. 91]

Fica claro, portanto, que também se deve levar em consideração a proporcionalidade existente entre a espessura do tecido liliputiano e a do tecido em escala humana, o que, em última instância, nos levaria ao volume total de tecido liliputiano necessário para se confeccionar roupas para Gulliver.

7. A cama de Gulliver em Liliput

O local designado para servir de moradia para Gulliver em Liliput trazia apenas o espaço necessário para seu abrigo. Inicialmente, Gulliver não dispunha de qualquer objeto ou utensílio que lhe proporcionasse comodidade. Mas o narrador relata que com o passar do tempo foram feitas várias adaptações de modo que sua vida em Liliput pudesse se tornar mais confortável. Dentre essas adaptações, encontramos o relato da construção de uma cama para Gulliver: "A noite entrei em minha casa com certa dificuldade e dormi no chão, o que continuei fazendo por duas semanas. Durante esse tempo, o imperador ordenou que arranjassem uma cama para mim. Seiscentas camas [isto é, colchões] de tamanho comum foram transportadas em carroças e descarregadas em minha casa; encostaram cento e cinquenta umas nas outras, para conseguir uma cama com a largura e o comprimento adequados; as restantes foram colocadas por cima, formando quatro camadas..." [2, p. 54].

Com 600 colchões foi preparada para Gulliver uma cama com quatro camadas de 150 colchões. O número de colchões por camada é razoável, já que uma cama para Gulliver deveria ter dimensões lineares 12 vezes maiores do que as dimensões de uma cama liliputiana, e portanto sua superfície deveria ser 122 = 144 vezes maior que a cama de um liliputiano. O problema está no número de camadas.

A cama de Gulliver deve ser projetada de forma a sustentar seu peso (PG), que é proporcional ao seu volume (VG). Da mesma forma, a cama de um liliputiano deve sustentar o peso de um liliputiano típico (PL), que é proporcional ao volume de um liliputiano típico (VL). Entretanto, da Eq. (9) conclui-se que

Sendo assim, é possível demonstrar que a relação entre a pressão pG exercida pelo corpo de Gulliver sobre o solo e a pressão pL, exercida por um liliputiano típico sobre o solo poderia ser expressa por

A pressão exercida por um liliputiano é sustentada por apenas uma camada de colchão, isto é, por apenas um colchão. Como a pressão exercida por Gulliver é 12 vezes maior, seriam necessárias 12 camadas de colchões. Já que a cama de Gulliver deve apresentar uma superfície 144 vezes maior que a cama de um liliputiano, o número total de colchões para a cama de Gulliver deveria ser 144 × 12 = 1728. Esse resultado corrobora a proposta, apresentada anteriormente, de que a cama de Gulliver deve ser projetada de forma a sustentar seu peso, que é 1728 vezes maior que o peso de um liliputiano típico. Com apenas 600 colchões, Gulliver certamente não obteve o conforto que gostaria de ter em sua casa em Liliput.

8. Considerações finais

Os problemas envolvendo Gulliver, assim como outras situações da ficção literária (ou de outras mídias), contemporânea ou histórica, estão disponíveis para o desenvolvimento de atividades pedagógicas que tratem dos alicerces. Explorar a física envolvendo temas ficcionais de interesse dos estudantes pode contribuir para a formação ou aprimoramento de uma capacidade de manipulação de grandezas em relações que não sejam apenas de proporcionalidade direta. Atividades que tratem de conceitos envolvendo escalas, proporções, áreas e volumes são essenciais para a aprendizagem em física, visto que a compreensão de tais conceitos não é trivial, seja qual for o nível de ensino em que o estudante se encontra.

Agradecimentos

À professora Susana Lehrer de Sousa Barros (in memoriam), por proporcionar as discussões que levaram à realização deste trabalho. À professora Marta Feijó Barroso, do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelas inúmeras contribuições e orientação durante a elaboração deste trabalho.

Recebido em 09/5/14

Aceito em 10/6/14

Publicado em 3/10/2014

  • [1] Arnold B. Arons, Teaching Introductory Physics (John Wiley & Sons, 1997).
  • [2] Jonathan Swift, As Viagens de Gulliver (Nova Cultural, São Paulo, 2003).
  • [3] PSSC, Física - Parte I (Edart, São Paulo, 1966), 2ª ed.
  • [4] Galileo Galilei, Dialogues Concerning Two New Sciences (Dover Publications, New York, 1954).
  • 1
    E-mail:
  • 2
    Não existem referências à altura de Gulliver no texto de Swift.
  • 3
    Não existem referências à massa de Gulliver no texto de Swift.
  • 4
    Embora Galileu também fale sobre modelos reduzidos, sua argumentação se concentra na análise de modelos ampliados.
  • 5
    A confusão na terminologia da época envolvendo os conceitos de "força" e "momento" transparece na obra de Galileu.
    6
    Uma alternativa interessante para demonstrar a Eq. (12) seria substituir as Eqs. (2) e (5) na Eq. (9) e em seguida aplicar ao resultado obtido a relação dada pela Hipótese 2.
    7
    A Eq. (19) só tem validade se ambos os alimentos,
    X e
    X', apresentassem a mesma capacidade de armazenamento energético por volume (isto é, se
    k'
    5 =
    k
    5). Vamos considerar verdadeira esta hipótese.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Recebido
      09 Maio 2014
    • Aceito
      10 Jun 2014
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