Acessibilidade / Reportar erro

A guitarra como um instrumento para o ensino de física ondulatória

The electric guitar as an instrument for teaching wave physics

Resumos

A utilização de recursos diversos para o ensino de física é muito importante para auxiliar no processo de aprendizagem por parte dos alunos. Neste trabalho apresentamos uma abordagem baseada na utilização da música e de recursos das tecnologias da informação e comunicação (TIC) para ilustrar alguns conceitos físicos de um curso de física ondulatória. Com o auxílio destes recursos, características musicais como timbre, batimentos, harmônicos (artificiais e naturais) e formação de acordes são discutidas e ilustradas na prática através do uso de uma guitarra elétrica, software e um computador.

TIC; física ondulatória; guitarra


The use of several resources in physics teaching is very important to help the students in the learning process. In this work we present an approach based on the use of music and information and communication technology (ICT) to illustrate some physical concepts from a wave physics course. With the aid of such resources, musical features as tone, beats, harmonics (artificial and natural ones) and chord formation will be discussed and illustrated in practice through the use of an electric guitar, a software and a computer.

ICT; wave physics; guitar


1.

Introdução

A curiosidade sobre como podemos descrever os fenômenos sonoros está presente em muitos alunos do curso de física. Aqueles que cantam, tiveram contato com algum instrumento musical ou que simplesmente gostam muito de música costumam perguntar, desde os primeiros períodos, sobre como podemos descrever tais fenômenos. Explorar esse interesse dos alunos auxilia o processo de tornar esses conceitos mais significativos para os mesmos. Em um curso típico de física ondulatória são discutidos diversos fenômenos que podem ser ilustrados utilizando-se instrumentos musicais (de corda, de sopro ou de percussão, por exemplo). Levar um instrumento para a sala de aula torna o aprendizado mais dinâmico e ajuda a consolidar a teoria que foi discutida anteriormente.

Encontramos na literatura alguns trabalhos sobre física, música e instrumentos musicais [1[1] A. Kandus, W. Gutmann e C.M.C. de Castilho, Revista Brasileira de Ensino de Física 28, 4 (2006).3[3] M. Goto, Revista Brasileira de Ensino de Física 31, 2 (2009).]. Recentemente foram publicados dois trabalhos sobre ondas em uma corda [4[4] G.A. Catelli e F. Mussato, Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 1 (2014)., 5[5] G.A. Catelli e F. Mussato, Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 2 (2014).]. O presente trabalho difere dos supracitados por ser uma proposta da utilização da guitarra elétrica em uma sala de aula, com o intuito de consolidar alguns conceitos discutidos a partir dos livros texto adotados em um curso de física ondulatória [6[6] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica (Blucher, São Paulo, 1998), v. 2.,7[7] S.T. Thornton e J.B. Marion, Dinâmica Clássica de Partículas e Sistemas (Cengage Learning, São Paulo, 2001).]. Além do instrumento, a utilização de um software para o processamento do sinal proveniente da guitarra permite discutir e ilustrar diversas propriedades sonoras e características do som da guitarra. Vale ressaltar que as ideias aqui apresentadas visam a utilização destes recursos em um curso de nível superior.

Alguns conceitos básicos de física ondulatória serão discutidos na seção 2. Os aspectos gerais da guitarra serão apresentados na seção 3 e a sua utilização em sala de aula será discutida na seção 4. A seção 5 possui uma discussão sobre a utilização conjunta entre a guitarra e um software de processamento de sinais. Nessa seção serão apresentados diversos espectros sonoros que foram normalizados a 1 no máximo. Por fim, as conclusões são apresentadas na seção 6.

2.

Noções de física ondulatória (ondas em uma corda)

Ao discutirmos a formação de ondas em uma corda tensionada, tipicamente trabalhamos na aproximação em que, ao oscilar, a corda apresenta pequenos desvios em torno de sua posição de equilíbrio. Considere a situação ilustrada na Fig. 1, onde ψ(x, t) é a função de onda de uma corda (descreve o perfil longitudinal da corda em função do tempo), sujeita a uma tensão T (|T1| = |T2| = |T|) e com densidade linear de massa ρ.

2.1.

Equação da onda e ondas estacionárias

Pode-se deduzir a equação da onda para esta situação e chegar a:

(1)2ψx21v22ψt2=0;v=Tρ,
onde v é a velocidade de propagação da onda na corda [7, Seç. 13.4].

Restringindo-se ao caso de ondas harmônicas, se propagando com sentidos opostos na corda, podemos encontrar a solução em termos de ondas estacionárias

(2)ψ(x,t)=A2cos(kxωt+α1)+A2cos(kx+ωt+α2),=Acos(κx+β)cos(ωt+δ),
sendo β=12(α1α2), δ=12(α1+α2) e ω = kv. Note que esta onda não se propaga (não é função de kx±ωt).

As condições de contorno para uma corda de comprimento l com os dois extremos fixos são ψ(0,t) = 0 e ψ(l, t) = 0. Impondo essas condições, obtemos o valor de β e os possíveis valores para k

(3)β=π2,
(4)kn=nπl(n=1,2,3,),
(5)ωn=nπvl(n=1,2,3,),
e as soluções, ou modos normais, obtidos são
(6)ψn(x,t)=Ansin(nπxl)cos(nπvtl+δn),
onde os coeficientes An e δn são determinados a partir das condições iniciais do problema. Analisando o gráfico dos modos normais, para um instante em que a parte temporal é máxima (Fig. 2), é fácil perceber que, além dos extremos fixos, há n − 1 pontos que permanecem parados ao longo do movimento da corda. Estes pontos são denominados nós.

Toda corda vibrante possui uma frequência fundamental

(7)ν1=ω12π=v2l=T/μ2l
e as demais são múltiplos inteiros desta frequência fundamental
(8)νn=nν1;(n=1,2,3,)

A solução geral é uma combinação linear de todos os modos normais

(9)Ψ(x,t)=n=1ψn(x,t),

2.2.

Pulso triangular

Um exemplo de aplicação pode ser encontrado em [7[7] S.T. Thornton e J.B. Marion, Dinâmica Clássica de Partículas e Sistemas (Cengage Learning, São Paulo, 2001)., Seç. 13.2]. Trata-se de uma corda de comprimento l, fixa em ambos os extremos, que inicialmente tem uma forma triangular, conforme ilustrado na Fig. 3, e que é solta a partir do repouso. As condições iniciais são então:

(10)ψ(0,t)={2hlx,0x<l/2,2hl(lx,)l/2xl.
(11)ψ(0,t)t=0.

Para resolver este problema é necessário impor estas condições iniciais e obter os valores de δn e An da Eq. (6). Neste caso em particular temos, além de δn = 0, que

(12)An={0,npar,8hn2π2(1)12(n1),nímpar.

Ou seja, somente os modos com n ímpar estão presentes no movimento desta corda2 2 Mesmo sem fazer a conta é possível, analisando-se a simetria do problema, se convencer que, de fato, um modo n com ψn(L/2,t) = 0 (com um nó em L/2) não poderia contribuir para a descrição de ψ(0) neste caso. e as amplitudes diminuem à medida que n aumenta.

2.3.

Batimentos

Outro objeto de estudo bastante interessante é o dos batimentos. Para estudar este caso vamos analisar o resultado da soma de duas ondas, com frequências próximas, provenientes de duas cordas distintas. Sendo φi(x, t) a onda proveniente da corda i, a onda resultante da soma de φ1 com φ2 será:

(13)ψ(x,t)=φ1(x,t)+φ2(x,t)=A2cos[(k+Δk)x(ω+Δω)t]+
(14)+A2cos[(kΔk)x(ωΔω)t],=A[cos(Δk.xΔω.t)cos(kxωt)].

Para o caso sem dispersão3 3 Caso em que a velocidade de propagação no meio não depende do número de onda. Neste cenário a velocidade de fase (ω/k) é igual à velocidade de grupo (dω/dk). , temos ω = kv e Δω = Δk.v, de modo que o resultado é um pacote de onda, conforme ilustrado na Fig. 4, se movendo com velocidade v igual à de propagação da onda no meio. Caso as frequências sejam suficientemente próximas, o período da modulação em amplitude (linha tracejada na figura) será longo, de modo que esta modulação poderá ser facilmente percebida por quem escutar este batimento. A sensação é a de ouvir um som cuja amplitude varia com o tempo, aumentando e diminuindo sucessivamente.

3.

A guitarra elétrica

Uma guitarra elétrica típica é mostrada na Fig. 5. O comprimento l da corda é a distância entre a ponte e a pestana. Ao tocarmos a corda, ela irá vibrar e produzir som. O material e as características da construção da corda terão influência sobre o som gerado por essa corda. A vibração produzida pela corda será convertida em um sinal elétrico através dos captadores. Note que durante esse processo o próprio corpo da guitarra também irá vibrar e influenciará o movimento da corda, privilegiando algumas frequências. Esse efeito dependerá dos formatos do corpo e do braço da guitarra, além dos tipos de madeira utilizados na sua construção (veja a Tabela 1).

Outros detalhes da construção também afetam o som produzido pelo instrumento. Na grande maioria das guitarras o braço precisa ser fixado ao corpo, por exemplo. O braço pode ser aparafusado ou colado ao corpo e esses dois tipos de fixação podem resultar em sonoridades diferentes. Outro aspecto importante da sonoridade de uma guitarra é o sustain, o tempo que uma corda permanece vibrando antes do som produzido se tornar imperceptível. Além da madeira utilizada na guitarra, o tipo de ponte que compõe o instrumento (fixa, móvel ou flutuante) e o ângulo de inclinação entre a mão e o braço da guitarra também influenciam o sustain.

O captador possui ímãs que magnetizam as cordas. Estas, ao vibrarem, alteram o fluxo de campo magnético através das bobinas do captador, gerando corrente devido à Lei de Lenz-Faraday. Os captadores estão ligados a potênciômetros, para controle do volume e do tom da guitarra, e a uma chave que permite selecionar quais captadores serão ligados4 4 Existem dois tipos principais de captadores: os que possuem uma bobina (single coil) e os que possuem duas bobinas (humbucker). Os humbuckers recebem esse nome porque eliminam o hum, o ruído característico dos single coils, utilizando duas bobinas. Em algumas ligações é possível acionar apenas uma das bobinas e obter um som parecido com o de um single coil. . Em algumas ligações mais complexas, capacitores e resistores também estão presentes neste circuito eletrônico. Em muitas ligações o potenciômetro de tom está ligado a um capacitor e funciona como um filtro passa baixa ajustável. Por fim, o sinal captado e convertido em corrente pode ser transmitido a um amplificador, mesa ou placa de som (mais detalhes podem ser encontrados em [10[10] D. Halliday, R. Resnick, e J. Walker. Fundamentos da Física (LTC, Rio de Janeiro, 2009), v. 3, 8a ed., Seç 30.4]).

A numeração das cordas é feita da mais fina para a mais grossa e a afinação padrão é tal que as cordas, quando tocadas soltas, produzem as seguintes notas musicais: 1a corda - Mi, 2a corda - Si, 3a corda - Sol, 4a corda - Ré, 5a corda - Lá, 6a corda - Mi. O posicionamento dos trastes é tal que o intervalo entre duas notas produzidas por casas adjacentes é de um semitom, ou seja, pressionar a 1a corda na primeira casa produz a nota Fá. Para saber quais notas são produzidas devemos nos atentar à escala cromática, apresentada na Tabela 2. Vale ressaltar que a guitarra é um instrumento temperado e que a razão entre a frequência produzida pela corda ao ser pressionada nas casas m e m − 1, respectivamente, é 21/12.

4.

A guitarra em sala de aula

Levar a guitarra para a sala de aula causa uma agitação inicial compreensível. Após passada essa euforia preliminar, é hora de iniciar a discussão dos conteúdos utilizando o instrumento. A primeira discussão a ser feita leva em conta a distinção entre os conceitos de altura e amplitude sonora. A altura está relacionada à frequência da onda e a amplitude ao que os alunos costumam entender como volume sonoro. Tocando a 1a corda produzimos sons mais agudos, ou seja, ondas de frequência maior, do que quando tocamos a 6a corda da guitarra. Quanto maior o deslocamento produzido por uma palhetada, por exemplo, maior será a amplitude da onda e, consequentemente, sua intensidade.

As Eqs. (1) e (5) podem ser discutidas e ilustradas mostrando-se aos alunos os diferentes calibres das cordas. As cordas mais finas produzem um som mais agudo do que as cordas mais grossas, ou seja, uma nota mais alta. Ao tocar as cordas, os alunos perceberão facilmente esta relação entre a frequência produzida pela corda e a densidade da corda. Há uma sutileza nessa comparação já que para que ela fosse completamente verdadeira, todas as cordas deveriam estar sujeitas à mesma tensão, o que não ocorre, como pode ser verificado através da Tabela 3. Porém, entre as cordas 1 e 3 a diferença entre as tensões é de apenas 2.5%, de modo que essa comparação é válida com boa aproximação para essas duas cordas.

Pode-se perceber ainda a relação entre a frequência e a tensão alterando-se a afinação de uma dada corda através das tarrachas ou dos parafusos da microafinação, dependendo do instrumento utilizado. Caso a guitarra tenha uma ponte móvel, pode-se utilizar a própria ponte para alterar a tensão sobre as cordas através da alavanca. Outra maneira é, escolhendo-se uma corda, de preferência uma das mais finas, tocar uma nota e em seguida executar um bend, ver Fig. 6. Ao executar o bend, a corda será esticada e a frequência do som emitido irá aumentar. Mais detalhes sobre técnicas de guitarra podem ser encontrados em [11[11] J. Chappell e M. Phillips, Guitarra para leigos (Alta Books, Rio de Janeiro, 2010), 2a ed.].

Dado que a velocidade da onda em uma corda depende da sua densidade linear e da tensão, é possível, utilizando-se a Eq. (5), mostrar que ao reduzirmos o comprimento de uma corda, mantendo inalteradas a tensão aplicada e a densidade, a frequência de oscilação aumentará. Para isso, basta tocar uma corda solta e em seguida tocar esta corda pressionada em qualquer casa. Ao ser pressionada, a corda passa a ter um comprimento menor (da ponte ao traste que limita a casa), porém ainda sujeita à mesma tensão de antes e com a mesma densidade, logo a frequência resultante será maior.

Um fato que costuma impressionar bastante os alunos é o de uma corda vibrar com várias frequências diferentes. A ideia de que a corda vibra em uma super-posição de várias ondas costuma ser recebida com estranheza pelos alunos. Em geral, as condições iniciais de uma palhetada não privilegiam as frequências mais altas de oscilação. Sendo assim, nem sempre fica claro que a corda pode vibrar com diferentes frequências. Para isso, pode-se tocar a corda e encostar levemente sobre ela na posição dos trastes (ver Fig. 7), produzindo assim os chamados harmônicos naturais. Isso irá alterar as condições de contorno e fará com que a corda vibre somente com modos normais que possuam um nó na posição em que o dedo está posicionado.

Tocando-se, na corda 6, os harmônicos das casas 12, 7, 5, 4, 3 e um caso especial, no meio da casa 3, produzimos, com uma única corda, todas as notas que compõem o acorde de Mí maior. A Fig. 8 ilustra os harmônicos da 6a corda e as notas do acorde encontradas em outras cordas, para um particular desenho do acorde de Mí maior.

Neste ponto pode-se evidenciar mais uma característica da construção das guitarras. Ao executar o harmônico da casa 4 só foi possível ouvir o som produzido quando se utilizou o captador da ponte. Isso indica que, na guitarra utilizada, o captador do braço está na posição de um dos nós do modo n = 5 e, consequentemente, a amplitude da vibração da corda é nula sobre este captador.

Ainda neste contexto, pode-se explorar também o número de nós em um dado modo normal. Ao executar o harmônico natural no traste 7, é possível encostar na corda, sobre o traste 19, sem que a corda pare de oscilar (este representa o modo com n = 3, que possui dois nós). A Tabela 4 apresenta onde podemos executar alguns dos harmônicos naturais, ou seja, os nós desses modos.

Outro fenômeno que pode ser discutido é o dos batimentos, Eq. (14). Ao pressionar a corda 6 na casa 5, esta produz um Lá com a mesma frequência que a corda 5 solta. Alterando-se ligeiramente a afinação de uma dessas cordas podemos perceber, ao tocá-las juntas, o fenômeno do batimento. Uma outra maneira de se obter esse efeito é, sem alterar a afinação das cordas, tocar a corda 6 na casa 4 (nota Sol sustenido) e a corda 5 solta (nota Lá). Dessa forma, temos uma diferença de frequência de 6.2 Hz, que é alta para o batimento (a amplitude vai oscilar em torno de 6 vezes por segundo), porém, neste caso, os alunos podem tocar o corpo da guitarra para sentir o batimento, já que todo o corpo da guitarra e seu braço irão manifestar esse batimento. Alguns alunos tem mais facilidade com este método, de “sentir” o batimento, do que com a audição do mesmo, pelo menos quando utilizamos instrumentos musicais.

4.1.

Aumentando as possibilidades com a utilização de um efeito de distorção

Certa vez um aluno perguntou como era possível fazer a guitarra “gritar”. Isso nos leva aos chamados harmônicos artificiais. Esta técnica é uma outra maneira de se alterar as condições iniciais e de contorno com o intuito de enfatizar os harmônicos de mais alta frequência. Para obter esse efeito é preciso encostar o polegar da mão direita na corda imediatamente após a palhetada, conforme ilustrado na Fig. 9. Mais uma vez, passa a existir um nó na função de onda, na região em que o polegar tocou a corda.

Neste caso, a amplitude dos modos de baixa frequência será praticamente nula e a dos modos de mais alta frequência será bastante baixa. Ao adicionarmos uma distorção ao sinal, conseguimos amplificar mais as altas frequências produzidas pela vibração da corda, diferentemente de um amplificador de alta fidelidade, que amplifica todas as frequências de maneira igual.

O efeito fica mais apreciável se as cordas 2 ou 3 forem utilizadas, preferencialmente, nas casas 5 ou 7. É interessante executar a técnica com o som limpo e acionar a distorção depois que a corda já estiver vibrando. No primeiro momento, o som ficará bem baixo, quase imperceptível, e com o acionamento da distorção ficará alto e claro. Dessa maneira fica evidente que, para produzir tal efeito, é necessário amplificar algumas frequências que, apesar de estarem presentes, possuem baixa amplitude.

Para fazer a guitarra “gritar”, basta executar um desses harmônicos artificiais com a distorção ligada e em seguida, sem soltar a corda, executar diversos bends seguidos ou utilizar a alavanca da ponte.

5.

Guitarra e TIC

Atualmente existem várias maneiras de conectar a guitarra a um computador. A primeira delas consiste em utilizar um adaptador para conectar o cabo da guitarra diretamente à entrada de microfone. Porém, esse procedimento apresenta muita distorção e atrasos5 5 Os atrasos podem ser minimizados através da utilização de drivers específicos. . Alguns amplificadores contam com saídas em linha que podem ser conectadas diretamente à entrada de microfone do computador. Há modelos de guitarra que possuem saída usb, facilitando a conexão com o computador. Existem também no mercado cabos e interfaces de áudio que possibilitam conectar a guitarra diretamente à porta usb do computador. Esse foi o método utilizado neste trabalho.

Com a ajuda de recursos das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), podemos discutir e ilustrar diversas das abordagens descritas na seção anterior, além de outras. Neste trabalho utilizamos um software para o processamento do sinal da guitarra que permite visualizar, em tempo real, o formato da onda produzida pela guitarra, bem como a sua representação no espaço de frequências, conforme ilustrado na Fig. 10. O software utilizado foi o AudioXplorer, que está disponível gratuitamente para sistemas Mac6 6 Disponível para download em http://www.arizona-software.ch/audioxplorer/. . Usuários dos sistemas Windows e Linux (via wine) podem utilizar o Visual Analyzer7 7 Disponível em http://www.sillanumsoft.org. que também é gratuito.

Seguindo a discussão feita em [6[6] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica (Blucher, São Paulo, 1998), v. 2., Seção 6.4], podemos verificar a diferença entre sons musicais e ruídos utilizando esse recurso da TIC. Ao tocar uma nota na guitarra, percebe-se a periodicidade do sinal através do gráfico exibido pelo programa. Por outro lado, ao arrastarmos a palheta sobre as cordas, por exemplo, o sinal produzido não possui periodicidade e é caracterizado como um ruído. No painel direito da Fig. 10 temos o espectro do som produzido pela corda 1 da guitarra. Este espectro nos mostra a amplitude de cada um dos modos normais presentes na vibração da corda, já com a influência dos tipos de madeira utilizados na guitarra e dos captadores. O espectro possui então informação sobre os valores de An da Eq. (6). Este espectro permite ainda perceber que os espaçamentos entre as linhas verticais são iguais, indicando que as frequências possíveis são múltiplos inteiros da frequência fundamental, de acordo com a Eq. (8).

Ao tocarmos uma mesma nota em diferentes instrumentos (guitarra e flauta, por exemplo) é possível perceber qual instrumento produziu cada nota. Essa característica que permite distinguir as notas produzidas pelos diferentes instrumentos é o que chamamos de timbre do instrumento. No formalismo que discutimos, os valores de An são os responsáveis pelo timbre, ou seja, indicam quanto de cada harmônico está presente no som produzido. Observando o espectro sonoro, podemos discutir ainda algumas características sobre o timbre da guitarra8 8 Diversos fatores alteram o som produzido pela guitarra (seu timbre), como por exemplo: madeira utilizada, tipo da ponte, cordas, palhetas, o jeito de tocar, os captadores e suas posições, o amplificador utilizado e etc, conforme discutido anteriormente. . Por construção, a maioria das guitarras possui um captador próximo à ponte e outro próximo ao braço. A chave seletora permite selecionar diferentes ligações para os captadores. Ligando-se apenas o captador da ponte, o timbre fica mais agudo, em contraste com o do braço que possui um timbre mais grave. Isso pode ser ilustrado através do espectro sonoro. É interessante tocar uma nota e alternar entre os captadores, utilizando a chave seletora para se perceber como o som muda neste caso9 9 A guitarra utilizada para este trabalho possui captadores do mesmo modelo na ponte e no braço, porém, deve-se estar ciente de que, geralmente, os captadores da ponte e do braço não são iguais. . Conforme ilustrado na Fig. 11, modos normais de mais baixa frequência terão uma amplitude maior sobre o captador do braço do que sobre o da ponte, justificando o timbre mais grave do primeiro, em comparação com o segundo. No painel inferior, são apresentados os espectros obtidos utilizando-se cada um dos captadores, da ponte e do braço. Como era de se esperar, no espectro em azul, obtido utilizando-se o captador do braço, os modos normais de mais baixa frequência (os três primeiros) possuem uma amplitude maior do que no espectro vermelho, onde foi utilizado o captador da ponte.

É possível verificar o resultado obtido na Eq. (12). Ao tocar a corda da maneira usual, o espectro produzido contém modos pares e ímpares, conforme ilustrado em azul na Fig. 12. Ao puxarmos e soltarmos a corda pelo meio (sobre o traste da casa 12)10 10 Deve-se tomar cuidado para não puxar demais a corda, caso contrário ela irá bater no braço da guitarra e não produzirá o efeito desejado. o espectro produzido não possui os modos pares11 11 De fato pode-se perceber uma pequena amplitude para os modos pares, devido à dificuldade de se puxar exatamente (matematicamente) no meio da corda. , como era de se esperar (Fig. 12 em vermelho).

Visualizando-se em tempo real a decomposição de Fourier do sinal, pode-se observar o batimento através da variação da amplitude dos modos. Neste caso, as amplitudes mostradas nos espectros irão oscilar com o tempo e, mesmo que as frequências das duas ondas não sejam tão próximas (o período de oscilação da amplitude será curto), poderemos visualizar este efeito. Esta abordagem está ilustrada na Fig. 13, onde espectros obtidos em diferentes instantes de tempo foram utilizados para mostrar a oscilação das amplitudes dos modos normais.

A Fig. 14 ilustra o efeito obtido ao adicionarmos uma distorção ao som da guitarra. Diversas frequências que não seriam percebidas com o som limpo da guitarra passam a ter amplitudes apreciáveis.

6.

Conclusões

Neste trabalho discutimos a utilização da guitarra elétrica como um instrumento para dinamizar uma aula de física. As técnicas de guitarra utilizadas são de fácil aprendizado e não exigem grandes habilidades do professor que venha a aplicar essa abordagem em sala de aula, com excessão dos harmônicos artificiais. Muitas das vezes há na turma quem saiba tocar violão ou guitarra. Nestes casos, pode-se convidar tal aluno para participar da aula executando as técnicas necessárias, aumentado a interação com a turma e a sua participação, enquanto o professor conduz a exposição. Sendo assim, o professor que não possuir a habilidade necessária não deve se sentir desmotivado a utilizar este recurso, já que provavelmente poderá contar com a participação de um aluno. A utilização de efeitos de distorção auxilia nas discussões que envolvem frequências mais altas, já que a distorção privilegia essas frequências. Caso seja possível conectar a guitarra a um computador, pode-se, além de ouvir o som, visualizar o seu espectro e discutir, de uma nova maneira, diversos dos conceitos abordados ao longo do curso de física ondulatória. Dado que quase todos os alunos têm interesse em música, a utilização deste recurso os ajudará a assimilar os conceitos físicos apresentados em sala de aula.

Agradecimentos

Agradeço a todos os alunos que já assistiram a essa aula como parte do curso de física ondulatória por motivar esse trabalho e contribuir para seu desenvolvimento através de dúvidas, discussões e opiniões, e a Cauê Lobo por diversos ensinamentos, informações e dicas sobre guitarra.

  • 2
    Mesmo sem fazer a conta é possível, analisando-se a simetria do problema, se convencer que, de fato, um modo n com ψn(L/2,t) = 0 (com um nó em L/2) não poderia contribuir para a descrição de ψ(0) neste caso.
  • 3
    Caso em que a velocidade de propagação no meio não depende do número de onda. Neste cenário a velocidade de fase (ω/k) é igual à velocidade de grupo (dω/dk).
  • 4
    Existem dois tipos principais de captadores: os que possuem uma bobina (single coil) e os que possuem duas bobinas (humbucker). Os humbuckers recebem esse nome porque eliminam o hum, o ruído característico dos single coils, utilizando duas bobinas. Em algumas ligações é possível acionar apenas uma das bobinas e obter um som parecido com o de um single coil.
  • 5
    Os atrasos podem ser minimizados através da utilização de drivers específicos.
  • 6
    Disponível para download em http://www.arizona-software.ch/audioxplorer/.
  • 7
  • 8
    Diversos fatores alteram o som produzido pela guitarra (seu timbre), como por exemplo: madeira utilizada, tipo da ponte, cordas, palhetas, o jeito de tocar, os captadores e suas posições, o amplificador utilizado e etc, conforme discutido anteriormente.
  • 9
    A guitarra utilizada para este trabalho possui captadores do mesmo modelo na ponte e no braço, porém, deve-se estar ciente de que, geralmente, os captadores da ponte e do braço não são iguais.
  • 10
    Deve-se tomar cuidado para não puxar demais a corda, caso contrário ela irá bater no braço da guitarra e não produzirá o efeito desejado.
  • 11
    De fato pode-se perceber uma pequena amplitude para os modos pares, devido à dificuldade de se puxar exatamente (matematicamente) no meio da corda.

Referências

  • [1]
    A. Kandus, W. Gutmann e C.M.C. de Castilho, Revista Brasileira de Ensino de Física 28, 4 (2006).
  • [2]
    J.P. Donoso, A. Tannús, F.Guimarães e T.C. de Freitas, Revista Brasileira de Ensino de Física 30, 2 (2008).
  • [3]
    M. Goto, Revista Brasileira de Ensino de Física 31, 2 (2009).
  • [4]
    G.A. Catelli e F. Mussato, Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 1 (2014).
  • [5]
    G.A. Catelli e F. Mussato, Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 2 (2014).
  • [6]
    H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica (Blucher, São Paulo, 1998), v. 2.
  • [7]
    S.T. Thornton e J.B. Marion, Dinâmica Clássica de Partículas e Sistemas (Cengage Learning, São Paulo, 2001).
  • [8]
    G.A. Fernandes, Avaliação de Madeiras Brasileiras para Utilização em Guitarras Elétricas Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade de Brasília, 2004.
  • [9]
    http://www.openclipart.org/detail/4447, acessado em agosto de 2014.
    » http://www.openclipart.org/detail/4447
  • [10]
    D. Halliday, R. Resnick, e J. Walker. Fundamentos da Física (LTC, Rio de Janeiro, 2009), v. 3, 8a ed.
  • [11]
    J. Chappell e M. Phillips, Guitarra para leigos (Alta Books, Rio de Janeiro, 2010), 2a ed.
  • [12]
    http://egalo.com/guitar, acessado em agosto de 2014.
    » http://egalo.com/guitar

Figures and Tables

Figura 1
Pulso em uma corda tensionada. (a)Esquema da perturbação em uma corda tensionada. Nesta figura a deformação está exagerada para facilitar a visualização. (b)Detalhe da perturbação em uma corda tensionada.
Figura 2
Modos normais de uma corda vibrante para: (a) n = 1; (b) n = 2; (c) n = 3. Note que a onda estacionária possui n − 1 nós (pontos que permanecem parados durante o movimento da corda, além dos próprios extremos).
Figura 3
Condição inicial ψ(x, 0) para uma corda tensionada.
Figura 4
Batimentos gerados pela soma de duas ondas com frequências próximas (linha sólida preta). As linhas azul e vermelho representam as ondas que geraram o batimento e a linha tracejada representa a envoltória da modulaçao da amplitude.
Figura 5
Guitarra elétrica típica e algumas de suas partes. Figura de domínio público adaptada da Ref. [9[9] http://www.openclipart.org/detail/4447, acessado em agosto de 2014.
http://www.openclipart.org/detail/4447...
].
Figura 6
Detalhe da execução de um bend na 7a casa da corda 3. (a) Tocar a corda enquanto a pressiona. (b)Deslizar o dedo que pressiona a corda na direção paralela à dos trastes.
Figura 7
Detalhe do posicionamento do dedo para a execução do harmônico natural da 7a casa da corda 6.
Figura 8
Harmônicos da 6a corda (representados por losangos) e as correspondentes notas no braço da guitarra (círculos), identificadas pelos números (braço da guitarra retirado da Ref. [12[12] http://egalo.com/guitar, acessado em agosto de 2014.
http://egalo.com/guitar...
]).
Figura 9
Detalhe sobre a execução de um harmonico artificial na corda 3. Deve-se: (a) Encostar a palheta na corda. (b) Tocá-la e encostar imediatamente o dedo polegar na corda. (c) Desencostar rapidamente o dedo da corda.
Figura 10
Onda sonora produzida pela vibração da corda 1 da guitarra (esquerda) e sua transformada de Fourier, representação no espaço de frequências ou espectro (direita).
Figura 11
Relação entre a posição dos captadores e o timbre obtido. (a) Ilustração da relação entre a posiçao dos captadores e os modos normais de vibração da corda. Os modos de frequência mais baixa terão maior amplitude sobre o captador do braço (mais à direita), dando a este um timbre mais grave. (b) Espectro registrado pelos captadores do braço (azul) e da ponte (vermelho) da guitarra. O captador do braço privilegia modos normais com frequências mais baixas, ao contrário do captador da ponte. Um pequeno desvio horizontal no espectro em vermelho foi introduzido para facilitar a visualização.
Figura 12
Espectros obtidos a partir da corda 6 da guitarra ao ser puxada próximo aos captadores (em azul) e próximo à casa 12 (meio da corda) em vermelho. Um pequeno desvio horizontal no espectro em vermelho foi introduzido para facilitar a visualização.
Figura 13
Variacaõ do espectro de uma onda produzida a partir dos harmônicos naturais da 5a casa da corda 6 e da 7a casa da corda 5. É notória a variação da amplitude neste caso.
Figura 14
Espectros da corda 6 com a distorção acionada (azul) e sem o efeito de distorção (vermelho). Diversas frequências, principalmente as mais altas, só apresentam amplitude apreciável após o acionamento da distorção. Um pequeno desvio horizontal no espectro em vermelho foi introduzido para facilitar a visualização.
Tabela 1
Características de algumas madeiras utilizadas na construção de guitarras [8[8] G.A. Fernandes, Avaliação de Madeiras Brasileiras para Utilização em Guitarras Elétricas. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade de Brasília, 2004.]. Note como cada madeira possui sua própria frequência de ressonância.
Tabela 2
Escala cromática. A nota lá (A4) é muito utilizada na afinação de instrumentos e possui frequência igual a 440 Hz.
Tabela 3
Valores de frequência, calibre e tensão para um encordoamento típico de guitarra (marca D’Addario, modelo EXL110).
Tabela 4
Harmônicos naturais no braço da guitarra. Para n ≥ 5 alguns nós aparecem fora da escala do braço da guitarra, na região dos captadores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2014
  • Aceito
    01 Nov 2014
Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: marcio@sbfisica.org.br