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O experimento didático do lançamento horizontal de uma esfera: Um estudo por videoanálise

The educational experiment of horizontal launch of a sphere: A study by video-analisys

Resumos

Os roteiros e livros que servem de guias para o ensino de Mecânica nos laboratórios didáticos de física experimental no ensino superior costumam apresentar uma experiência que consiste em abandonar uma esfera metálica do topo de uma plataforma de lançamento curva suspensa por um suporte apoiado sobre uma bancada. Ao alcançar a base da plataforma, a esfera é lançada horizontalmente deixando marcado o seu alcance em uma folha com o auxílio do papel carbono. Essa experiência serve para ilustrar a conservação da energia mecânica, supondo a hipótese de que a esfera execute um rolamento puro, bem como mostrar a importância de levar em conta a sua energia cinética de rotação. Contudo, na forma como o experimento é tradicionalmente apresentado não há uma descrição em tempo real do movimento e por isso não é possível perceber que a esfera desliza e rola na maior parte do percurso, só alcançando a condição de rolamento puro ao final da plataforma. Esse equívoco no tratamento é o motivo da sistemática diferença entre o balanço de energia previsto e aquele obtido pelas medidas experimentais. Neste trabalho, desenvolvemos um modelo teórico que considera tanto a curvatura da plataforma como os efeitos de borda devido ao encaixe parcial da esfera na largura da calha. Através da videoanálise extraímos dados experimentais do movimento completo que ilustram claramente uma transição do rolamento com deslizamento para o rolamento puro para diferentes ângulos de inclinação inicial analisados, bem como obtemos o valor aproximado do tempo de transição para um dos casos.

videoanálise; atrito cinético; conservação da energia


The scripts and books that are used as guides for teaching Mechanics in the undergraduate laboratory of experimental physics in higher education often have an experiment that consists in dropping a metal ball on top of a curve launching platform suspended and attached on a support bench. Upon reaching the base of the platform, the ball is launching horizontally marking the reach range on a sheet using the carbon paper. This experience serves to illustrate the conservation of mechanical energy, assuming the hypothesis that the ball rolls without slipping, and the importance of taking into account its rotational kinetic energy. However, as the experiment is traditionally presented there is no description of the motion in real time so it is not possible to realize that the ball rolls and slides in most of the way, only reaching the condition of pure rolling at the end of the way. This misconception is the reason of the systematic difference between the predicted energy balance and that one obtained by experimental measurements. In this paper we develop a theoretical model that takes into account the curvature and the width of the track and using video-analysis we extract experimental data of the full movement that clearly illustrate a transition from rolling with slipping to pure rolling for different initial tilted angles analyzed, as the estimated value of the transition time for one of the cases.

video analysis; kinetic friction; energy conservation


1. Introdução

Os roteiros e livros que servem de guias para o ensino de física experimental nos laboratórios didáticos de ensino superior [ 1L.A.M. Ramos, Física Experimental (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1984)

UFES, Apostila de Laboratório de Física I (CEUNES, São Mateus, 2014).

UFRJ, Apostila da Física Experimental I (UFRJ, Rio de Janeiro, 2014).
- 4M. Matos, Física do Movimento: Observar, Medir, Compreender (Ed. PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2012). ] costumam apresentar uma experiência que consiste em abandonar uma esfera metálica do topo de uma plataforma de lançamento curva suspensa em um suporte. Ao alcançar a base da plataforma, a esfera é lançada horizontalmente deixando marcado o seu alcance numa folha com o auxílio do papel carbono. Essa experiência serve para ilustrar, além do movimento bidimensional e lançamento de projéteis, a conservação da energia mecânica, supondo a hipótese de que a esfera executa um rolamento puro, bem como uma interessante discussão sobre as consequências da rotação da esfera. De fato, se a esfera é considerada uma partícula, o valor da velocidade no momento do lançamento horizontal previsto teoricamente é bem superior ao valor medido, pois uma parcela da energia potencial é convertida em energia cinética de rotação.

Uma variante desse experimento, proposta por diferentes autores, é trocar a plataforma curva por uma calha reta formando um plano inclinado com uma mesa horizontal [ 5W.P. da Silva, C.M.D.P.S. e Silva, J.W. Precker, D.D.P.S. e Silva, I.B. Soares e C.D.P.S e Silva , Revista Brasileira de Ensino de Física 25, 378 (2003). , 6A. Goya, C.A. Laburú, P.S. Camargo Filho, Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 2502 (2014). ]. A esfera é, portanto, lançada obliquamente. Essa configuração torna as equações do movimento mais simples, pois como o ângulo é fixo, as forças são constantes e as equações diferenciais são lineares. Além disso, existe um ângulo crítico que separa a situação onde a esfera realiza um rolamento puro daquela onde ela desliza e rola simultaneamente. Quando a esfera é abandonada do repouso, se o plano estiver inclinado com um valor inferior ao ângulo crítico, ela vai rolar sem deslizar até o final e a energia mecânica será conservada. Caso contrário, a esfera irá desde o início deslizar e rolar permanecendo nessa condição até o fim da rampa [ 6A. Goya, C.A. Laburú, P.S. Camargo Filho, Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 2502 (2014). ].

No presente trabalho, abordamos o experimento com a plataforma curva de forma dinâmica, isto é, observamos o movimento em tempo real através da videoanálise utilizando o software livre Tracker [ 7http://www.cabrillo.edu/~dbrown/tracker/, acessado em 25/11/2013.
http://www.cabrillo.edu/~dbrown/tracker/...

D. Brown and A.J. Cox , The Physics Teacher 47, 145 (2009).
- 9A.G. Bezerra Júnior, J.A. Lenz, L.P. Oliveira e N. Saavedra, Manual para Usuários Iniciantes no Software Tracker. Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba (2011). ]. Esse enfoque revelou que a esfera sofre um deslizamento com rolamento na maior parte do tempo, só alcançando a condição de rolamento puro ao final da plataforma. Nos roteiros, os autores consideram a suposição de que a esfera executa um rolamento puro e usam a conservação da energia mecânica. Esse equívoco no tratamento é o motivo da sistemática diferença entre o balanço de energia previsto e aquele obtido pelas medidas experimentais.

A abordagem adequada dessa experiência apresenta dois desafios: do ponto de vista experimental é preciso dispor de um sistema de aquisição de dados em tempo real que forneça a posição da esfera a cada instante. Do lado matemático, a plataforma curva implica numa variação contínua do ângulo de inclinação, provocando que a força de reação normal ao apoio e a força de atrito sejam variáveis, isto é, uma função do tempo. Então, as equações do movimento são não lineares e suas soluções analíticas não estão disponíveis, o que deixaria a modelagem dinâmica inviável.

Ambas as dificuldades podem ser superadas filmando o experimento com uma câmera de 120 quadros por segundo e usando a videoanálise. Com essa ferramenta, obtêm-se todos os dados de tempo, posição e velocidade da esfera, como se em cada ponto da calha estivesse colocado um sensor eletrônico, revelando claramente que a hipótese de rolamento puro deve ser descartada. Além disso, com a videoanálise podem-se extrair gráficos que possibilitam a construção de aproximações polinomiais entre parâmetros envolvidos, tais como ângulo de inclinação, altura e tempo. Asubstituição apropriada dessas relações nas equações diferenciais permite a obtenção de soluções numéricas completas.

Um diferencial deste trabalho é demonstrar o potencial didático do uso da videoanálise, não somente como uma ferramenta acurada e precisa de obtenção de dados, mas também como um instrumento de auxílio na modelagem matemática.

2. Modelo teórico

A Fig. 1 exibe a esfera em um instante de tempo descendo a plataforma, sendo indicadas as forças peso, P, de reação normal ao apoio, N, e a força de atrito, F at, que pode ser cinético (rolamento com deslizamento) ou estático (rolamento puro).

Figura 1
Digrama da esfera em um determinado instante descendo a plataforma. As forças que atuam na esfera estão representadas e a inclinação da calha é dada pelo ângulo θ(t).

Observe que nesse instante a inclinação da plataforma é dada pelo ângulo θ(t). A partir da Fig. 1, pode-se escrever a componente radial, supondo que a esfera executa um rolamento com deslizamento neste ponto

A componente tangencial é

Usando a Eq. (1) na Eq. (2) e a relação Fat c =μ c N, a aceleração do centro de massa (CM) será

A segunda lei de Newton para rotação fornece

onde τR é o torque resultante realizado pela força de atrito cinético, I=(2∕5)mR 2 é o momento de inércia e α é a aceleração angular da esfera. Um detalhe técnico interessante é o efeito das bordas da calha. Em geral, para evitar colisões com as laterais internas da calha ao longo da trajetória, a esfera tem diâmetro um pouco superior à largura da calha de forma a se encaixar nas suas bordas. O encaixe cria um raio de rotação efetivo, K, que é inferior ao raio da esfera, acarretando um aumento velocidade angular da esfera e a consequente redução da velocidade do CM [ 1010 J.R. Pimentel e M.A. da Silva. Cad. Bras. Ens. Fís. 22, 209 (2005). ].

De fato, observando a Fig. 2, podemos obter a relação do raio efetivo, K, com o raio da esfera, R, e a largura da calha, L

Figura 2
O raio efetivo de rotação, K, representa uma correção para o modelo da esfera apoiada nas bordas da calha de lançamento.

Logo, a Eq. (4) se torna

Usando a Eq. (1) e a relação Fat ccN na Eq. (6) chegamos à aceleração angular da esfera descendo a plataforma

Podemos obter uma relação entre νCM (t) e ω(t) eliminando o termo μCM (t)2r na Eq. (7) a partir da Eq. (3)

Integrando a Eq. (8) e utilizando as condições iniciais νCM 0 = 0 e ω 0 = 0

Estamos interessados no instante de tempo em que ocorre a transição do rolamento com deslizamento para o regime de rolamento puro (tempo crítico tc ). Para isso a relação deve ser satisfeita νCM tc =ωtc K. Podemos escrever a Eq. (9) somente em função da velocidade do CM e assim obtemos a seguinte expressão da velocidade do CM válida somente quando t=tc .

Ressaltamos que a Eq. (10) não representa uma função da velocidade pelo tempo. De fato, para t<tc , ela não tem validade, pois a velocidade do CM e a velocidade angular não estão relacionadas entre si pelo raio efetivo K. Para t>tc , também não podemos usar essa equação, pois a esfera já atingiu a condição de rolamento puro e, portanto, não existe mais a força de atrito cinético que foi usada na sua dedução. A expressão (10) é uma espécie de vínculo matemático que deve ser satisfeito apenas no instante que a esfera alcançar o regime de rolamento puro.

3. Descrição experimental e resultados

A filmagem foi realizada por uma câmera configurada com uma taxa de aquisição de 120 quadros por segundo e resolução de 640x480. A câmera foi posicionada com vista frontal ao plano de lançamento, a uma distância de aproximadamente 1 metro. Os vídeos dos lançamentos foram transferidos para o computador e analisados utilizando o software livre Tracker. A Fig. 3 mostra a plataforma e a esfera, em um instantâneo do vídeo, quando carregado no programa de videoanálise Tracker. O aparato experimental é constituído por uma base com haste de sustentação para a plataforma de lançamento e um fio de prumo. A esfera é abandonada do alto da plataforma de lançamento a uma alturah 0 em relação ao plano do lançamento horizontal. A origem do sistema de coordenadas está localizada no alto da plataforma, de acordo com a seguinte convenção: os sentidos positivos das coordenadas horizontal (x) e vertical (h) são, respectivamente, à direita e para baixo.

Figura 3
Equipamento didático para estudo do lançamento horizontal fabricado pela empresa CIDEPE (Centro Industrial de Equipamentos de Ensino e Pesquisa - www.cidepe.com.br) exibido em um instantâneo do programa de videoanálise Tracker. A origem do sistema de coordenadas está localizada no alto da plataforma, de acordo com a seguinte convenção: os sentidos positivos das coordenadas horizontal (x) e vertical (h) são, respectivamente, à direita e para baixo.

Estimamos, baseado na qualidade das imagens, que a incerteza da localização da esfera está contida em ± 2 mm.2 A velocidade instantânea de cada componente em um determinado instante de tempo tn é aproximada ao valor da velocidade média entre os instantes de tempo t n−3 e t n+3. Por exemplo, para a componente vx (tn ) teremos

A incerteza da velocidade pode ser avaliada utilizando somente a incerteza para a variação da posição que corresponde a

O gráfico da Fig. 4 mostra os pontos experimentais correspondentes aos módulos da velocidade do C.M. de massa da esfera ao longo da descida da plataforma de lançamento parametrizada pela variável y=hh 0, e suas respectivas incertezas. A esfera foi solta de uma altura h 0= 9,7 cm e o seu ângulo inicial de lançamento foi de 52 graus. Superpostos aos pontos experimentais, sãoapresentados os dois modelos tradicionais para o movimento da esfera ao longo da descida pela plataforma de lançamento, usados nos roteiros de física experimental, obtidos a partir da conservação da energia mecânica [ 1010 J.R. Pimentel e M.A. da Silva. Cad. Bras. Ens. Fís. 22, 209 (2005). ]

Figura 4
Gráfico da velocidade do CM da esfera ao longo da descida da plataforma de lançamento, parametrizada pela variável y=hh 0. A esfera foi solta de uma altura h 0 = 9,7 cm e o seu ângulo inicial de lançamento foi de 52 graus.

Observa-se da Fig. 4 que o movimento da esfera ao longo da calha transita de um modelo para o outro. No início a plataforma é muito inclinada e devido à força de atrito cinético, a esfera começa a executar um rolamento com deslizamento aumentando a sua velocidade, mas não tanto quanto seria num deslizamento puro (deslizamento de uma partícula sem atrito). Depois, a componente tangencial da força peso diminui continuamente e tende a zero quando o formato da plataforma se aproxima de uma superfície horizontal. Consequentemente, a esfera diminui a sua velocidade do CM devido à preponderância da força de atrito cinético sobre a componente tangencial do peso.

Um aspecto interessante dessa frenagem é que os dados experimentais cruzam a curva teórica prevista pelo modelo didático tradicional baseado na suposição de que a esfera conserve a sua energia mecânica e execute um rolamento puro. Contudo, como a videoanálise demonstra, existe uma perda de energia mecânica durante a trajetória. Então, quando os dados experimentais coincidem com a curva teórica do rolamento puro, a esfera tem uma uma energia cinética de translação compatível com a prevista por essa teoria, mas a sua energia cinética de rotação é menor do que o valor necessário para a condição de rolamento puro. Esse fator acarreta que a esfera continue rolando e deslizando até perder energia suficiente para que a velocidade do CM e a velocidade angular satisfaçam a condição de rolamento puro. Os resultados obtidos parecem indicar, dentro da margem de incerteza, que tal situação ocorre somente ao final da trajetória, quando a plataforma é praticamente plana.

Uma questão natural é: existe um ângulo inicial para o qual a esfera vai realizar um rolamento puro desde o princípio? Certamente sim, pois um artigo anterior, onde uma esfera metálica com raio um pouco maior (11 mm) foi solta de um plano inclinado de madeira com diferentes ângulos de inclinação, mostrou que para ângulos inferiores a aproximadamente 45 graus, a esfera passava a rolar sem deslizar [ 6A. Goya, C.A. Laburú, P.S. Camargo Filho, Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 2502 (2014). ]. Provavelmente, obteríamos um resultado semelhante na plataforma curva, embora alguns parâmetros sejam diferentes, tais como coeficiente de atrito e raio efetivo de rotação da esfera.

Para confirmar nossa hipótese, soltamos a esfera a diferentes alturas e, consequentemente, ângulos iniciais da plataforma de lançamento e extraímos os dados novamente por videoanálise. A sequência de quatro gráficos da Fig. 5 é bastante elucidativa. Na inclinação inicial de 52 graus, os dados experimentais cortam a curva teórica do rolamento puro entrey=hh 0 = 8 cm e 10 cm. Quando o ângulo inicial diminuiu para 49 graus, esse mesmo fenômeno ocorre em um valor de y menor, entre 6 cm e 8 cm. Reduzindo o ângulo um pouco mais para 44 graus, os dados experimentais cruzam a curva teórica entre com y entre 4 cm e 6 cm. Sabemos que a tempo de transição (tempo crítico) ocorre em algum instante depois desse cruzamento, logo a redução do valor de y à medida que o ângulo inicial diminui, indica também uma queda no tempo crítico.

Figura 5
Gráfico da velocidade do CM da esfera ao longo da plataforma de lançamento, em função de y, para diferentes alturas e, consequentemente, ângulos iniciais.

Essa redução da velocidade do CM ao cruzar a curva é uma condição necessária para que uma esfera rolando com deslizamento efetue a transição para um regime de rolamento puro e sua ocorrência já foi verificada em outras configurações [ 1212 A.V. Andrade-Neto, J.A. Cruz, M.S.R. Miltão e E.S. Ferreira , Revista Brasileira de Ensino de Física 35, 3704 (2013). , 1313 V.L.B. de Jesus e D.G.G. Sasaki. Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 3503 (2014). ]. Infelizmente, nesses 3 casos a condição de rolamento puro foi atingida apenas no final da plataforma quando a superfície é quase plana e a velocidade do centro de massa estabiliza em um valor fixo, dentro da margem de incertezas das medidas.

Finalmente, no último gráfico quando o ângulo inicial é 39 graus, a esfera cruza a curva teórica em um valor de y inferior a 3 cm, e depois entra na condição de rolamento puro antes do final da calha. Essa constatação pode ser confirmada pela sucessão de pontos experimentais que, após cruzarem a curva teórica, acompanham o desenho da curva, só que ligeiramente abaixo. Esse fato era esperado, pois a esfera perdeu um pouco de sua energia mecânica durante a trajetória e portanto os resultados devem se ajustar em outra curva teórica de rolamento puro com menor energia.

4. Obtenção numérica por videoanálise do tempo de transição (tc)

Os dados experimentais da velocidade do CM da esfera demonstram claramente que os modelos teóricos tradicionais falham em prever e descrever a transição entre o regime de deslizameno com rolamento para o de rolamento puro, bem como o tempo crítico de transição. tEssa lacuna pode ser preenchida se obtivermos a expressão da função trigonométrica sen[ θ(t)] para resolver a Eq. (10). Podemos realizar essa operação numericamente a partir dos dados obtidos por videoanálise e obter o valor do tempo de transição entre o regime de rolamento com deslizamento e rolamento puro.

Primeiramente, ajustamos h(x) por interpolação e através de sua derivada calculamos tgθ em função de x. Como a videoanálise proporciona uma relação entre a posição horizontal x da esfera em função do tempo, conseguimos também por interpolação uma função x(t). A composição dessas funções permite extrair θ em função de t, numericamente.

A Fig. 6 mostra os 126 pontos (em vermelho) obtidos utilizando o Tracker para caracterizar a função h(x) que corresponde ao perfil da plataforma. A partir desses dados podemos calcular numericamente, por interpolação, a derivada dh/dx, que corresponde a tgθ.

Figura 6
Instantâneo da tela do software livre Tracker mostrando os pontos (em vermelho) obtidos para caracterizar a função h(x). A partir desses dados podemos calcular numericamente, por interpolação, a derivada dh/dx que corresponde à tgθ.

Podemos graficar os pontos obtidos para h em função de x, como está explícito na Fig. 7. Um ajuste polinomial cúbico fornece uma função aproximada de h(x). A sua derivada corresponde à tgθx

Figura 7
Gráfico de h em função de x, exibindo seu ajuste polinomial cúbico.

Do resultado da videoanálise, exibimos na Fig. 8 um ajuste polinomial quadrático para x(t). A equação é dada por

Figura 8
Gráfico de x em função de t, exibindo um ajuste polinomial do segundo grau.

Utilizando uma planilha eletrônica realizamos a composição numérica (ponto a ponto) de tgθx com x(t) dando origem a uma tabela de dados de tgθ em relação ao tempo. Através de identidades trigonométricas obtêm-se os valores numéricos de senθ em função do tempo, como mostra o gráfico da Fig. 9.

Figura 9
Gráfico exibindo o ajuste de senθ em função de t.

A função sen (θ(t')) pode ser descrita em bom acordo com os dados experimentais por um polinômio de terceiro grau

Substituindo a função dada na Eq. (15) na Eq. (10) obtemos após a integração

No caso em questão, o diâmetro da esfera é 2R=18,1±0,1 mm e L = 14,0 ± 0,5 mm. De posse da Eq. (16) podemos compará-la aos dados experimentais e obter graficamente o instante de tempo em que que ocorre a transição para o regime de rolamento puro. Na Fig. 10, mostramos o gráfico onde estão sobrepostos os valores experimentais de VCM em função do tempo e os pares ordenados de velocidade e tempo crítico que satisfazem a condição imposta pela Eq. (16). A esfera irá atingir o regime de rolamento puro somente quando os dados experimentais coincidirem com esse vínculo matemático.

Figura 10
Valores experimentais de VCM em função do tempo e curva hipotética de valores de velocidade e tempo crítico que satisfazem a condição de rolamento puro.

A análise visual do gráfico VCM x t na Fig. 10 revela que o tempo de transição ocorre em torno de 0,33 s e seus valores limites estão entre 0,30 s e 0,35 s. Esse intervalo de tempo corresponde a uma posição x entre 16,5 cm e 21,5 cm, o que equivale ao final da plataforma como já havia sido previsto no gráfico de VCM x h.

5. Conclusões

O tratamento tradicional desse experimento considerava por hipótese que a esfera executava um rolamento puro desde o princípio. Essa premissa ad hoc, assumida sem nenhuma justificativa plausível, tinha como objetivo assegurar o uso do princípio da conservação da energia mecânica e assim contornar a necessidade de enfrentar equações diferenciais não lineares que uma modelagem dinâmica suscitava.

A videoanálise revelou-se um instrumento eficiente e barato para abordar o problema de forma rigorosa e completa, tanto do ponto de vista experimental quanto teórico. O uso da videoanálise revelou três características interessantes do movimento que estavam ofuscadas pela abordagem tradicional. A primeira foi mostrar que a hipótese do rolamento puro é falsa, pois tal condição é somente atingida nos instantes finais do movimento, quando a esfera já está na base da calha. Logo, a conservação da energia mecânica não se justifica, a princípio.

A segunda característica é a frenagem da esfera ao se aproximar do final da calha, devido à superação da força motora (componente tangencial do peso) pela força de atrito cinético. Isso fica claramente ilustrada através dasequência de 4 gráficos da velocidade do CM pela altura, para lançamentos cujos ângulos iniciais variam de 52 graus até 39 graus. Os dados começam sobre a curva teórica prevista no modelo de deslizamento puro (a esfera se comporta como uma partícula) como consequência da alta inclinação inicial da plataforma e depois, à medida que a declividade diminui, evoluem até se cruzarem à curva do rolamento puro com efeito das bordas da calha. Essa situação é totalmente contraditória ao modelo tradicional de rolamento puro, onde a velocidade do CM da esfera sempre aumenta.

Por fim, o terceiro aspecto é a obtenção do valor aproximado do tempo de transição. De fato, a resolução numérica do modelo, possibilitada pelos ajustes polinomiais dos dados experimentais obtidos pelo Tracker, fornece um intervalo para o tempo crítico que é condizente com a percepção que apenas ao final da plataforma a esfera atinge o rolamento puro, no caso de um ângulo inicial de 52 graus. A teoria, portanto consegue prever com êxito que existe uma transição entre um movimento de rolamento com deslizamento para um regime de rolamento puro.

Agradecimentos

Os autores agradecem aos professores Artur B. Vilar e Dario T.C. Neto pelas discussões e auxílio durante as filmagens. O autor V.L.B. de Jesus é Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID, da CAPES – Brasil.

Referências

  • 1
    L.A.M. Ramos, Física Experimental (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1984)
  • 2
    UFES, Apostila de Laboratório de Física I (CEUNES, São Mateus, 2014).
  • 3
    UFRJ, Apostila da Física Experimental I (UFRJ, Rio de Janeiro, 2014).
  • 4
    M. Matos, Física do Movimento: Observar, Medir, Compreender (Ed. PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2012).
  • 5
    W.P. da Silva, C.M.D.P.S. e Silva, J.W. Precker, D.D.P.S. e Silva, I.B. Soares e C.D.P.S e Silva , Revista Brasileira de Ensino de Física 25, 378 (2003).
  • 6
    A. Goya, C.A. Laburú, P.S. Camargo Filho, Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 2502 (2014).
  • 7
    http://www.cabrillo.edu/~dbrown/tracker/, acessado em 25/11/2013.
    » http://www.cabrillo.edu/~dbrown/tracker/
  • 8
    D. Brown and A.J. Cox , The Physics Teacher 47, 145 (2009).
  • 9
    A.G. Bezerra Júnior, J.A. Lenz, L.P. Oliveira e N. Saavedra, Manual para Usuários Iniciantes no Software Tracker Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba (2011).
  • 10
    J.R. Pimentel e M.A. da Silva. Cad. Bras. Ens. Fís. 22, 209 (2005).
  • 11
    V.L.B. de Jesus e M.A.J. Barros , Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 4309 (2014).
  • 12
    A.V. Andrade-Neto, J.A. Cruz, M.S.R. Miltão e E.S. Ferreira , Revista Brasileira de Ensino de Física 35, 3704 (2013).
  • 13
    V.L.B. de Jesus e D.G.G. Sasaki. Revista Brasileira de Ensino de Física 36, 3503 (2014).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2014
  • Aceito
    27 Nov 2014
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