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Concepções alternativas dos estudantes sobre conceitos térmicos: Um estudo de avaliação diagnóstica e formativa

Students’ alternative conceptions about thermal concepts: A study of diagnostic and formative assessment

Resumos

Para a realização de um estudo que tinha como objetivo investigar as dificuldades de estudantes de ensino médio na aprendizagem de conceitos térmicos foi necessário fazer um levantamento das concepções alternativas de estudantes sobre calor e temperatura, antes e depois do período letivo de um ano, aplicando-se um questionário disponível na literatura, que teve que ser devidamente adaptado para a língua portuguesa pelos autores do presente trabalho. No presente artigo são analisados os ganhos obtidos pela aplicação desse instrumento, ao longo do processo de ensino-aprendizagem, os quais indicam variações significativas em todas as quatro dimensões referentes às concepções alternativas investigadas, sugerindo um quadro consistente de conservação e de homogeneidade, em que o ganho na direção esperada (conceitos científicos) veio a expensas de perdas em todas as demais (concepções alternativas), e não apenas em uma ou em algumas. Ao longo do artigo é apresentado com detalhes o processo de adaptação do questionário, de análise dos resultados e de construção de uma versão do questionário para a web que permitirá aos professores interessados fazerem uma avaliação diagnóstica e formativa de seus alunos.

Palavras-chave: concepções espontâneas; avaliação diagnóstica e formativa


To conduct a study that aimed to investigate the difficulties of high school students in the learning of thermal concepts it was necessary to survey students about alternative conceptions of heat and temperature, before and after a one year school term, applying a questionnaire available in the literature, which had to be properly adapted to the Portuguese language by the authors of this work. In this paper, the gains between the pre and post testing are analyzed and indicate significant variations in all investigated dimensions, suggesting a consistent framework for the conservation and homogeneity, in which the gain in the expected direction (scientific concepts) came at the expense of losses in all other aspects (alternative conceptions), and not just one or a few directions. Throughout the paper we present in detail the process of adapting the questionnaire, the analysis of the results and the construction of a version of the questionnaire on the web that will allow interested teachers to do a diagnostic and formative assessment of their students.

alternative conceptions; diagnostic and formative assessment


1.

Introdução

Diferentes estudos [1[1] M. Pietrocola, Ensino de Física: Conteúdo, Metodologia e Epistemologia em Uma Concepção Integradora (Editora da UFSC, Florianópolis, 2005).4[4] D. Silva, Estudo das Trajetórias Cognitivas de Alunos: No Ensino da Diferenciação dos Conceitos de Calor e Temperatura. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, 1995.] apontam a dificuldade de muitos alunos no aprendizado dos conceitos da área de física, ocasionando problemas como desinteresse e um elevado índice de reprovações. As causas principais são diversas e interdependentes, mas que poderiam ser agrupadas em dois fatores principais: (i) inadequação curricular que apresenta o conhecimento científico pronto, estático e acabado, e não como fruto de um processo de investigação dinâmico capaz de gerar conhecimento em constante renovação; (ii) corpo docente desmotivado e despreparado, que ensina de forma não experimental uma ciência que por natureza é experimental e que não leva para a sala de aula o que acontece no seu redor nem o que resulta das pesquisas recentes nas áreas pedagógicas, de educação científica e das tecnologias da informação na educação [5[5] M.F. Elia, In: ATAS VI SNEF (SBF, Niterói, 1985), p. 90–98.7[7] M.D. Longhini, Em Extensão 7, 78 (2008).].

Por exemplo, há 30 anos pesquisas na área de concepções espontâneas/intuitivas, ou concepções alternativas,1 1 As concepções alternativas são também conhecidas como erros conceituais, ideias intuitivas ou concepções espontâneas [1]. dependendo da faixa etária (infantil ou juvenil) em que a investigação se processa, têm demonstrado que o ensino de ciências dado em sala de aula desconsidera as ideias próprias que os estudantes têm sobre os fenômenos da natureza. Frases como “hoje vai fazer muito frio” ou “este casaco não esquenta bem” contrastam com os conceitos científicos e refletem concepções obtidas durante a vida cotidiana que podem estar profundamente arraigadas dificultando o aprendizado dos conceitos científicos.

Este tema “misconceptions” (termo em inglês para a área em tela) guarda certa semelhança com a questão que ocupou a manchete dos jornais na segunda semana de maio de 2011, referente à distribuição de um livro de português2 2 Jornal O Globo, 14/5/2011. para uso no ensino fundamental patrocinado pelo MEC, que defende como adequado ou inadequado, mas não certo ou errado, o uso escrito da linguagem falada popularmente.

A semelhança reside no fato de que tanto um professor de português quanto de ciências, antes de iniciar suas aulas, deveria dispor dos resultados de uma investigação diagnóstica que lhe permitisse identificar os vícios de linguagem e as concepções não científicas dos estudantes possibilitando o planejamento de estratégias didáticas voltadas para a construção de um conhecimento por parte dos alunos sobre a matéria em estudo, onde eles ficariam convencidos (e não vencidos!) de que, respectivamente, as normas cultas e os conceitos científicos seriam mais adequados que suas próprias concepções intuitivas ou alternativas sobre a língua mãe e a ciência.

Consciente desta necessidade, os autores desse trabalho resolveram incluir este diagnóstico como parte dos indicadores de desempenho de uma proposta de inovação curricular para o ensino de física em uma escola técnica da rede FAETEC do Rio de Janeiro. Uma pesquisa bibliográfica indicou a ausência de um instrumento diagnóstico em língua portuguesa sobre os conceitos de física térmica abordados na disciplina, mas, por outro lado, mostrou a existência de um inventário em língua inglesa desenvolvido pelos pesquisadores Yeo e Zadnik [8[8] S. Yeo and M. Zadnik, Physics Teacher 39, 496 (2001).] da Universidade de Curtin, na Austrália, para avaliar uma ampla gama de crenças e concepções de estudantes sobre conceitos térmicos, que poderia ser aplicada a alunos de ensino médio. A escolha deste instrumento se justifica também pela abrangência que o mesmo apresenta, como resultado de um cuidadoso estudo preliminar de levantamento das pesquisas realizadas (metadados) na área de concepções alternativas sobre fenômenos térmicos, feito pelos autores australianos.

Assim, este trabalho descreve a adaptação para a língua portuguesa do referido instrumento e os resultados de sua aplicação para alunos do ensino médio durante a implementação institucional de uma pesquisa–ação de inovação curricular, baseada no uso da modelagem computacional para o ensino de física [9[9] A.N. Louzada, Uso da Modelagem Computacional Como Proposta de Inovação Curricular Para o Ensino de Física no Ensino Médio. Dissertação de Mestrado em Informática, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011., 10[10] A.N. Louzada, M.F. Elia, F.F. Sampaio and L.P. Vidal, Informatics in Education 13, 73 (2014). Disponível em http://www.mii.lt/informatics_in_education.
http://www.mii.lt/informatics_in_educati...
].

O corpo do artigo está organizado em seis seções incluindo esta introdução. Na seção 2 é apresentado o instrumento original com a sua concepção, matriz de referência e a forma como os dados foram analisados pelos autores australianos. Na seção 3 são abordados os procedimentos de adaptação e aplicação do instrumento na escola. Na seção 4 são apresentados o modelo de análise e os resultados obtidos. Na seção 5 é apresentado a versão online do questionário com alguns comentários e nas seções 6 e 7 são apresentadas respectivamente nossas considerações finais e as referências consultadas.

2.

Instrumento original da pesquisa

Os autores Yeo e Zadnik [8[8] S. Yeo and M. Zadnik, Physics Teacher 39, 496 (2001).], com base em suas pesquisas em metadados envolvendo estudos relacionados às concepções alternativas em física térmica, classificaram os resultados encontrados em quatro dimensões principais denominadas “Concepções dos estudantes sobre”: (A) calor, (B) temperatura, (C) transferência de calor e mudança de temperatura, (D) propriedades térmicas dos materiais, sendo que cada uma delas foi rubricada por expressões linguísticas, digamos “ingênuas”, objetivando tipificar as concepções alternativas associadas a cada dimensão, conforme mostrado na 1a coluna da Tabela 1.

Em seguida, os autores elaboraram um inventário com base nesta classificação, composto por 26 questões de múltipla escolha, sugerindo as possíveis associações dessas questões com as 4 dimensões de concepções alternativas, através de suas respectivas rubricas (2a coluna da Tabela 1). Uma inspeção comparativa feita entre a 1a e 2a colunas da Tabela 1 permite verificar, de um lado, que cada questão pode ser classificada em mais de uma dimensão e, de outro, que cada dimensão estaria tendo a seguinte participação no instrumento: A (14 questões), B (17 questões), C (21 questões) e D (22 questões). Por exemplo, a questão 10 aparece um total de 6 vezes (vz.) distribuída pelas seguintes dimensões: A (2vz.), B(2vz.), C (2vz.) e D(0vz.).

Cada questão do instrumento original possui, como opção de resposta, quatro a cinco alternativas, contudo não conseguimos ter acesso à associação, atribuída pelos autores do instrumento original, entre cada opção de respostas e cada uma dessas rubricas, como também não tivemos acesso à qual opção corresponderia a resposta científica (gabarito) de cada questão.

No cabeçalho do instrumento dirigido aos alunos é informado, como de praxe, o objetivo do inventário e que as perguntas estão sendo formuladas com base em cenários que lhes são familiares, tal como uma conversa que ocorre entre adolescentes em casa ou na cafeteria de uma escola sobre objetos do cotidiano, que eles (alunos) possam ter manipulado ou vivenciados diretamente. É solicitado também que eles(as) escolham a opção de resposta que esteja mais próxima do seu entendimento.

Ao situar exemplos em contextos comuns, os autores do inventário supõem que os alunos escolherão as respostas que correspondam às suas próprias concepções, em vez de escolher aquelas que refletem declarações que lhes ensinaram, mas em que não necessariamente acreditam.

No que se refere à amostra, os autores aplicaram o inventário a 478 alunos com 10, 11, 12 e 13 anos de escolaridade, o que corresponderiam respectivamente, no caso brasileiro, aos 1°, 2° e 3° anos do ensino médio e ao 1° ano do ensino universitário. Para o grupo com 13 anos de escolaridade foi aplicado um pré-teste e um pós-teste, após o grupo ter recebido um curso sobre conceitos básicos de termodinâmica, tendo sido observado um ganho relativo significativo nas respostas científicas de 0,7% ao nível de confiabilidade de 5%.

Os dados obtidos foram analisados através de uma análise clássica de itens para demonstrar a qualidade do instrumento. Por exemplo, a validade por conteúdo ficou evidenciada pela relação direta de proporcionalidade entre o acréscimo de cada ano de escolaridade de sua amostra com o aumento, tanto dos valores médios obtidos das respostas científicas quanto do índice de discriminação de cada questão (medida pela correlação questão-teste como um todo), quando se comparava a opção de “resposta científica” com qualquer uma das demais opções de resposta baseadas em concepção alternativa. Ou seja, quanto maior o ano de escolaridade (e faixa etária) maior o valor médio das respostas científicas e maior o índice de discriminação das respostas científicas. Os autores Shelley Yeo e Marjan Zadnik [8[8] S. Yeo and M. Zadnik, Physics Teacher 39, 496 (2001).] relatam outros estudos de validade que foram também realizados com base na validade por “constructo” e por “face validity”.

3.

Adaptação e aplicação do inventário aos estudantes brasileiros

3.1

Adaptação

Ao traduzir de forma livre o inventário para a sua aplicação em língua portuguesa foram feitas adaptações para o nosso contexto, como a troca dos nomes dos personagens e também de alguns termos presentes nas questões, para que ficassem mais familiares aos alunos. Fez-se necessário também definir um gabarito indicando qual opção de resposta representaria uma resposta científica, como também associar cada opção de resposta a uma ou mais das dimensões e suas respectivas rubricas. Isto foi realizado, primeiramente, por dois professores de física e por um professor de tecnologia da informação. E em um segundo momento, quando houvesse divergência, a questão era submetida a um quarto professor (de física) para se buscar uma decisão consensual ou arbitrada, sendo todos estes professores autores da presente pesquisa. Cada resposta, em que não foi possível definir o gabarito ou identificar a dimensão a qual estava associada, foi assinalada como “não tipificada”. Já as questões consideradas confusas e que não identificariam com clareza a concepção do aluno foram descartadas da análise das respostas, embora não tenham sido retiradas do inventário. Os resultados destas análises preliminares e adaptativas são mostrados na Tabela 1 e na Tabela 2.

Comparando a 2a e 3a colunas da Tabela 1 encontramos discrepâncias de tipificação das opções de resposta entre o trabalho original e o nosso trabalho, sugerindo, de um lado, que algumas dimensões apresentam maiores dificuldades em serem tipificadas, como é o caso, por exemplo, da dimensão “A = Concepções dos estudantes sobre o calor” e suas 6 rubricas. E, de outro, que a tradução, adaptação e os resultados de alguns procedimentos necessários para operacionalizar o instrumento introduzem alterações importantes nos resultados de sua aplicação e podem comprometer eventuais comparações com o trabalho original.

3.2

Aplicação

A aplicação do instrumento foi institucional, ou seja, foi feita para todos os 151 estudantes distribuídos em cinco turmas cursando em 2010 a disciplina de física do segundo ano do ensino médio, de uma escola pública do Estado do Rio de Janeiro, como parte de uma pesquisa quase experimental sobre o uso de modelagem dinâmica no processo ensino-aprendizagem de conceitos de física térmica. Neste contexto, foram previstos pré e pós-testes.

Cada turma recebeu orientações sobre a aplicação do inventário na aula inicial e, na aula seguinte, os estudantes responderam o inventário durante os dois tempos de aula, totalizando uma hora e quarenta minutos.

3.3

Análise

As três análises descritas nesta seção tiveram dois objetivos principais: o perfil de respostas dos alunos (Análises 1 e 2) de modo a estudar seus conceitos científicos e suas concepções e alternativas de acordo com as dimensões delineadas para o instrumento, tendo como focos: (i) a validação interna aferida pela consistência interna das respostas que compõem cada dimensão e (ii) o índice percentual de respostas para cada caso. A validação externa das dimensões alternativas utilizadas foi feita com base nos estudos com metadados dos pesquisadores australianos, conforme descrito na seção 2.

O objetivo da Análise 3 foi estudar as características de cada questão para investigar a existência de possíveis fatores que estariam influenciando os alunos na escolha de uma dada alternativa.

Para realização dessas três análises, as respostas dos alunos a uma dada questão foram codificadas como sendo “1” na opção escolhida e “0” para as demais opções. Assim, por exemplo, agrupando as 24 respostas científicas possíveis dadas por um determinado aluno, teríamos um perfil de respostas formado por uma carreira (Byte) contendo 24 escores binários (Bit) de “1” e “0” para esses aluno em questão, com os “1s” nas colunas em que suas opções de resposta correspondem às respostas científicas . O número de “1s” sobre o total 24, expresso em percentagem, definiria o índice percentual de respostas científicas desse aluno. Procedemos de maneira análoga para obter o índice percentual de respostas para cada uma das quatro dimensões “A”, “B”, “C” e “D” que correspondem às concepções alternativas.

Análise 1: Validação interna das dimensões “A”, “B”, “C” e “D”, como também das res­pos­tas científicas

Primeiramente, o que se propõe aqui é fazer uma validação interna com base na consistência das respostas dadas pelos alunos às questões tipificadas nas respectivas concepções alternativas ou como resposta científica. Ou seja, considere como exemplo as 24 respostas tidas como científicas de acordo com o nosso gabarito (Tabela 2). Se pudermos garantir que tipificamos essas questões-opções de resposta de forma perfeita e se elas pudessem ser também consideradas equivalentes em termos de quaisquer critérios imagináveis (ex.:grau de facilidade), então poderíamos supor que todos os alunos classificados na dimensão “científica” responderiam de acordo com o gabarito. A este cenário ideal, poderíamos atribuir o índice =1 de consistência interna.

Considere agora que não pudéssemos garantir 100% o que foi dito no parágrafo acima, então alguns alunos classificados na dimensão “científica” seriam levados a cometer um erro gerando uma inconsistência com índice variando entre 0 e 1 na dimensão “científica” .

Técnicas estatísticas permitem calcular o índice de consistência segundo diferentes premissas e, no nosso caso, escolhemos o alfa de Cronbach [11[11] L.J. Cronbach, Psychometrika 16, 297 (1951). ] na forma não estandardizada (apenas as médias das questões são tomadas como iguais), o que significa que de acordo com a teoria clássica de itens estamos supondo que as questões relacionadas a cada dimensão foram construídas com o mesmo grau de facilidade/dificuldade.

A Tabela 3 apresenta os valores de alfa calculados para cada uma das dimensões “A”, “B”, “C” e “D”, como também para as respostas científicas, tanto no pré-teste quanto no pós-teste.

Esta análise de consistência apresenta valores muito baixos para o coeficiente alfa, indicando que é pouco confiável definir uma escala de respostas científicas ou escalas de respostas para diferentes concepções alternativas “A”, “B”, “C” e “D”, a partir dos itens do inventário adaptado. Contudo, o fato de que as consistências melhoraram consideravelmente após um ano de aprendizagem, tanto para as escalas de conceitos científicos quanto de concepções alternativas, sugerem que estas escalas realmente existem e que o processo de ensino-aprendizagem escolar ao longo de um ano letivo foi estruturante para todas as escalas e não somente para a dimensão científica. Este é um resultado deveras interessante para uma reflexão, pois o que se poderia esperar é que a escolarização fosse estruturante apenas para os conceitos científicos.

Análise 2: Determinação do nível médio percentual e da variação de respostas científicas e de respostas alternativas de todos os alunos antes e depois do curso

Tendo em mente as observações acima, a Tabela 4 apresenta os níveis médios percentuais de respostas científicas e de respostas para cada uma das dimensões representativas das concepções alternativas, tanto no pré-teste quanto no pós-teste. São mostradas também as respectivas variações desses índices entre essas duas aplicações, sendo todas significativas ao nível p = 1% de condiança (t-test).3 3 Teste estatístico muito utilizado para verificar, no caso de amostras pequenas, se duas médias amostrais vieram de uma mesma população.

Observa-se que os alunos começaram o ano letivo com 30,2% de resposta científicas e terminaram com 47,7%, sendo esta variação positiva (17,5%) significativa ao nível de 1%. Comparando estes resultados com os obtidos por Yeo e Zadnik [8[8] S. Yeo and M. Zadnik, Physics Teacher 39, 496 (2001).] para as amostras com faixas etárias equivalentes a nossa amostra, podemos verificar que os valores obtidos são bastante similares, conforme indicam as setas desenhadas na Fig. 1.

Note que no pré-teste os alunos estavam iniciando a 2a série EM, portanto, em condições normais tinham 10 anos de escolaridade e ao final do ano, quando foi aplicado o pós-teste, tinham um ano de escolaridade a mais.

Como se pode observar também na Tabela 4, este ganho positivo na construção dos conceitos científicos por parte dos alunos foi feito, qualitativamente falando, a expensas da desconstrução (ganhos negativos) de todas as quatro dimensões de concepções alternativas analisadas no escopo deste trabalho. Entretanto, em termos quantitativos a construção (17,5%) foi menor que a soma das desconstruções (30,0%).

Assim, podemos dizer que o processo de aprendizagem escolarizado vem sendo estruturante tanto para os conceitos “certos” (científicos) quanto para os “errados” (alternativos), posto que os resultados da Tabela 4 mostram que a escolarização vem contribuindo para construir os primeiros e desconstruir os demais.

Análise 3: Análise interpretativa entre a construção dos conceitos científicos e a “desconstrução” das concepções alternativas

A melhora de desempenho nas respostas científicas do grupo de alunos no pós-teste aponta para uma transformação (“Deslocamento”) nas concepções alternativas dos alunos em relação às respostas dadas no pré-teste, a qual será investigada aqui com base no número percentual de respostas dado a cada rubrica de cada dimensão separadamente, conforme mostrado nas Tabelas 58: os valores médios foram arredondados para uma casa decimal; e transformações positivas e negativas foram referidas respectivamente como “Construções” e “Desconstruções”. As diferenças entre médias, significativas pelo t-test ao nível de confiança p = 1%, estão destacadas nas Tabelas 58 com um “*”.

A análise dos valores apresentados na Tabela 5 para a dimensão “A = Concepções dos estudantes sobre o calor” apontam para uma “desconstrução” significativa em 3 das 5 rubricas sobre calor abordadas no instrumento, tais como ‘confundir a natureza do calor a uma substância’ (rubrica 1) e ‘conceber calor e temperatura como quantidades conceitualmente equivalentes (rubrica 4) ou como mensuravelmente proporcionais entre si (rubrica 5)’.

Apesar da desconstrução significativa observada nestas rubricas, o fato é que há uma forte persistência conceitual dos alunos no entendimento alternativo das mesmas. Entretanto, se inspecionarmos o enunciado e as opções de respostas dos alunos na questão 15 do instrumento [Apêndice virtual 6. Apêndice virtual http://ica.nce.ufrj.br/apendice_v. Versão adaptada do instrumento utilizado na pesquisa e planilha com os escores dos alunos no pré e pós-testes, separadamente por turmas e por dimensões. ], tipificada como pertencente à rubrica 4 (Tabela 1), podemos concluir que neste caso há uma aparente presistência provocada por uma má formulação (ou tradução) da questão. Por exemplo, verifica-se que a opção de resposta 15b só pode ter sido escolhida como “científica” apenas por uma questão de lógica, pois “5 °C não são duas vezes mais que 10 °C”. E se nos reportarmos à Tabela 2 veremos que as opções de resposta 15a, 15c e 15d, tipificadas como indicadores da rubrica 4, já tinham sido também objeto de negociação e, portanto, o mais certo seria ter excluído desde o início esta questão da análise.

Com relação à dimensão “B = Concepções dos estudantes sobre temperatura” (Tabela 6) foi observada uma desconstrução significativa na maioria das rubricas de concepções verificadas no instrumento, em especial na concepção relacionada à ‘dificuldade na aceitação da temperatura de ebulição permanecer constante’ (rubrica 4).

Foi verificada para a dimensão “C = Transferência de calor e mudanças na temperatura” (Tabela 7) a maior persistência de dificuldades entre os alunos. Ou seja, os escores permanecem elevados no pré- e pós-testes (rubricas 2, 4 e 5) e há também muitas (4 em 7) desconstruções não significativas, sendo as mais resilientes a ‘ideia de que calor se movimenta apenas para cima’ (rubrica 2) e a não correta interpretação do conceito de transitividade expresso no princípio do equilíbrio térmico (rubrica 6).

Quanto a este segundo caso, foi verificada uma pequena variação nas opções de respostas dos alunos nas questões relacionadas a essa rubrica presentes nas questões 1, 9 e 24 do instrumento [Apêndice virtual 6. Apêndice virtual http://ica.nce.ufrj.br/apendice_v. Versão adaptada do instrumento utilizado na pesquisa e planilha com os escores dos alunos no pré e pós-testes, separadamente por turmas e por dimensões. ], sendo esta última a que exerceu maior influência na escolha das opções alternativas, em especial as opções “a” e “c”, tendo inclusive gerado a maior discussão por parte dos alunos ao final da aplicação do instrumento, tanto no pré como no pós-teste. Embora tenha ocorrido um aumento no número de alunos que optaram pela resposta científica, o assunto precisa ser melhor trabalhado.

Dificuldades de compreensão sobre a teoria do calórico (rubrica 3) podem ser verificadas através das questões 10 e 13 do instrumento [Apêndice virtual 6. Apêndice virtual http://ica.nce.ufrj.br/apendice_v. Versão adaptada do instrumento utilizado na pesquisa e planilha com os escores dos alunos no pré e pós-testes, separadamente por turmas e por dimensões. ], respectivamente através das opções “b” e “d” de respostas dos alunos, as quais indicam uma tendência na concepção de que “calor e frio fluem como líquidos”.

Os valores da Tabela 8 mostram uma significativa transformação dos alunos para a dimensão “D = Concepções dos estudantes sobre propriedades térmicas dos materiais”, em especial naquelas (rubricas 6 e 7): ‘Gelo encontra-se a 0 °C e/ou não pode mudar de temperatura’ e ‘Água não se encontra a 0 °C’. Por outro lado, os deslocamentos não significativos para as rubricas 4, 9, 10 e 12 sugerem a persistência das concepções alternativas para esta dimensão. No entanto, inspecionando a Tabela 8 verificamos que o percentual de marcações para as rubricas 9 e 10 foi pequeno em ambas aplicações do instrumento, enquanto que para as rubricas 4 e 12 os valores da tabela indicam que esta concepção continuou presente no grupo. É importante analisar as questões 11, 12, 23 e 26 do instrumento [Apêndice virtual 6. Apêndice virtual http://ica.nce.ufrj.br/apendice_v. Versão adaptada do instrumento utilizado na pesquisa e planilha com os escores dos alunos no pré e pós-testes, separadamente por turmas e por dimensões. ] que representam essas rubricas.

4.

Questionário online

Com o objetivo de facilitar o uso deste levantamento diagnóstico pelos professores foi desenvolvido um questionario online que pode ser acessado a partir do cadastro do professor no site de nosso projeto (http://ica.nce.ufrj.br).

Para desenvolver o questionário foi utilizado o programa LimeSurvey (https://www.limesurvey.org/pt/), um software livre desenvolvido com o objetivo de preparar, publicar e coletar respostas de questionários. Uma vez criado um questionário, ele pode ser publicado online. O programa permite definir como as questões serão mostradas e variar o formato dos questionários por meio de um sistema de padrões (templates). Fornece ainda uma análise estatística básica sobre os resultados dos questionários.

O LimeSurvey possui a capacidade de gerar Tokens individualizados (chaves), que são informações enviadas para a lista de usuários que se deseja convidar, de forma a permitir maior controle do questionário disponibilizado pela Internet.

Com as informações do cadastro é realizada uma associação entre o professor, seus alunos e um questionário. Cada aluno recebe por email um link exclusivo para que possa responder as questões e ao final enviar para o site do projeto.

Após o envio das respostas dos alunos, o professor recebe por email uma planilha Excel com as opções de resposta separadamente por questões (Colunas) e por aluno (Linhas). Estas informações permitem ao professor fazer uma análise do desempenho individual e do grupo de participantes, como por exemplo, de uma determinada turma. Pode também reproduzir as análises apresentadas neste trabalho seguindo as orientações disponíveis no site do projeto,

5.

Conclusões e considerações finais

Para que uma estratégia de ensino se mostre eficiente é necessário levar em conta o conhecimento prévio dos estudantes sobre o que se pretende ensinar, caso contrário os alunos terão dificuldades em assimilar as novas informações. Além disso, suas concepções alternativas permanecerão e outras, decorrentes das anteriores, poderão até surgir.

Conforme mencionado na seção 1 [11[11] L.J. Cronbach, Psychometrika 16, 297 (1951). ], esta foi a motivação inicial de nossa pesquisa: encontrar na literatura um questionário de avaliação dos conceitos de física térmica dos estudantes de ensino médio que pudesse medir os efeitos produzidos por uma estratégia de ensino apoiada em um ambiente de modelagem dinâmica.

E como esta experiência foi bem sucedida, os autores decidiram, de um lado aprofundar a análise dos resultados diagnósticos, separadamente pelas quatro dimensões, com o objetivo de potencializar o uso do questionário como um instrumento de avaliação formativa para os professores.

E de outro, disponibilizar na Web para estes professores a versão online do questionário de Yeo e Zadnik [8[8] S. Yeo and M. Zadnik, Physics Teacher 39, 496 (2001).] adaptada por nós para o Português (http://ica.nce.ufrj.br) e apresentada na seção 4, com a possibilidade de que as respostas de seus respectivos alunos pudessem ser exportadas para uma planilha de dados de acesso exclusivo do referido professor.

Dessa forma, estariam ao alcance dos professores o instrumento, os dados e o modelo de análise apresentado neste artigo.

Os autores têm também como forte expectativa ir além deste compartilhamento, criando uma comunidade virtual colaborativa de aprendizagem entre os usuários, sobretudo, dentre aqueles que pesquisam na área de concepções alternativas, para que por meio de suas críticas, baseadas em pesquisa, venham a contribuir para tornar o instrumento ICA cada vez mais eficiente e efetivo.

6. Apêndice virtual

http://ica.nce.ufrj.br/apendice_v. Versão adaptada do instrumento utilizado na pesquisa e planilha com os escores dos alunos no pré e pós-testes, separadamente por turmas e por dimensões.

  • 1
    As concepções alternativas são também conhecidas como erros conceituais, ideias intuitivas ou concepções espontâneas [1[1] M. Pietrocola, Ensino de Física: Conteúdo, Metodologia e Epistemologia em Uma Concepção Integradora (Editora da UFSC, Florianópolis, 2005).].
  • 2
    Jornal O Globo, 14/5/2011.
  • 3
    Teste estatístico muito utilizado para verificar, no caso de amostras pequenas, se duas médias amostrais vieram de uma mesma população.

Referências

  • [1]
    M. Pietrocola, Ensino de Física: Conteúdo, Metodologia e Epistemologia em Uma Concepção Integradora (Editora da UFSC, Florianópolis, 2005).
  • [2]
    V. de O Almeida e M.A. Moreira, Revista Brasileira de Ensino de Física 30, 4403 (2008).
  • [3]
    J.F.K. Kohnlein e S.P. Peduzzi, Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências 2, 84 (2002).
  • [4]
    D. Silva, Estudo das Trajetórias Cognitivas de Alunos: No Ensino da Diferenciação dos Conceitos de Calor e Temperatura Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, 1995.
  • [5]
    M.F. Elia, In: ATAS VI SNEF (SBF, Niterói, 1985), p. 90–98.
  • [6]
    A.M.T.B. Silva e T.B. Mazzotti, Ciência & Educação 15, 515 (2009).
  • [7]
    M.D. Longhini, Em Extensão 7, 78 (2008).
  • [8]
    S. Yeo and M. Zadnik, Physics Teacher 39, 496 (2001).
  • [9]
    A.N. Louzada, Uso da Modelagem Computacional Como Proposta de Inovação Curricular Para o Ensino de Física no Ensino Médio Dissertação de Mestrado em Informática, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.
  • [10]
    A.N. Louzada, M.F. Elia, F.F. Sampaio and L.P. Vidal, Informatics in Education 13, 73 (2014). Disponível em http://www.mii.lt/informatics_in_education
    » http://www.mii.lt/informatics_in_education
  • [11]
    L.J. Cronbach, Psychometrika 16, 297 (1951).

Figure and Tables

Figura 1
Níveis de respostas científicas para as nossas amostras e as amostras de Yeo e Zadnik [8[8] S. Yeo and M. Zadnik, Physics Teacher 39, 496 (2001).].
Tabela 1
Matriz de referência do instrumento na forma original por questão (2a coluna) e na forma adaptada por questão & opção de resposta (3a coluna).
Tabela 2
Sumário dos resultados da análise do conteúdo das questões do inventário original feita no presente trabalho.
Tabela 3
Índice de consistência interna (alfa de Cronbach) para as dimensões “científica” “A”, “B”, “C” e “D”.
Tabela 4
Índices percentuais de respostas e variações entre o pré e pós testes para as dimensões alternativas “A”, “B”, “C” e “D” e científicas.
Tabela 5
Índices percentuais de respostas e variações entre o pré e pós testes para as dimensão “A”.
Tabela 6
Índices percentuais de respostas e variações entre o pré e pós testes para as dimensão “B”.
Tabela 7
Índices percentuais de respostas e variações entre o pré e pós testes para as dimensão “C”.
Tabela 8
Índices percentuais de respostas e variações entre o pré e pós testes para as dimensão “D”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2014
  • Aceito
    13 Ago 2014
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