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Medição de temperatura: O saber comum ignorado nas aulas experimentais

(Temperature measurement: The common knowledge ignored in experimental classes)

Resumos

As medições de temperatura em laboratórios didáticos frequentemente não levam em consideração o tempo morto dos sensores e dos sistemas de medição, sejam esses analógicos ou baseados na aquisição eletrônica de dados. Neste artigo são apresentadas medidas e comparações do tempo morto de diferentes tipos de termômetros, bem como algumas possibilidades e estratégias para a adaptação e controle dessa limitação em experimentos que envolvam medidas de temperatura de líquidos.

instrumentação científica; sensores de temperatura; tempo morto; Arduino


Temperature measurements in undergraduate laboratories often do not take into account the dead time of the sensors and measurement systems, whether analogic or based on electronic data acquisition. This paper presents measurements and comparisons of different types of dead time thermometers, as well as some possibilities and strategies for adaptation and control of this limitation in experiments involving temperature measurements of liquids.

scientific instrumentation; temperature sensors; dead time; Arduino


1. Introdução

Quando as crianças encontram-se em estado febril, os pais repetem os clássicos procedimentos para verificar a temperatura de seus filhos. Dentre estes, o mais relevante é a espera de um algum tempo para que se tenha a leitura correta. Tal conduta justifica-se pelo saber comum de que termômetros clínicos não permitem a informação imediata da temperatura do corpo humano.

O gráfico da Fig. 1 mostra a variação da temperatura em função do tempo detectada por um termômetro clínico [1[1] Tech Line - Termômetro digital Clínico. Disponível em: http://www.techline.com.br/manuais/ts_101.pdf. Visualizado em 08/02/2014.
http://www.techline.com.br/manuais/ts_10...
] que estava a temperatura ambiente de um dia de verão carioca (∼33 °C) e que foi levado ao contato da axila de um corpo humano.

Figura 1
Evolução temporal da temperatura detectada por um termômetro clínico.

Tal demora está relacionada ao conceito de tempo morto de um instrumento de medição, que é o tempo mínimo necessário para que o sensor comece a indicar variações da propriedade física estudada. No caso de um termômetro de líquido em vidro trata-se do tempo necessário para que o bulbo entre em equilíbrio térmico com o meio em que está em contato direto e ocorra a dilatação da substância termométrica utilizada.

A prática docente mostra que a conduta de levar em consideração o tempo morto do sensor de temperatura é ignorada em experimentos de termologia e calorimetria realizados em laboratórios didáticos de nível médio e superior de ensino.

Nos estudos de calorimetria, uma das práticas experimentais mais usuais é a mistura de líquidos de temperaturas diferentes com o objetivo de determinar a temperatura de equilíbrio do sistema. Entretanto, o tempo necessário para a obtenção de tal temperatura de equilíbrio pode ser muito menor do que o tempo morto de muitos termômetros ou sensores de temperatura comumente utilizados. Misturando-se, por exemplo, 200 mL de água a 25 °C com 50 mL de água a 80 °C, a temperatura de equilíbrio, segundo a previsão teórica, é de 36 °C, desprezando-se as trocas energéticas com o meio externo e com o calorímetro. Se o termômetro utilizado para a medição da temperatura de equilíbrio tiver sido retirado da água quente diretamente para a mistura de águas há considerável chance de a temperatura final de equilíbrio medida não ser a real e sim uma temperatura maior do que a verdadeira devido ao, não desprezível, tempo para que o bulbo do termômetro varie de 80 °C para 36 °C, associado à transferência de energia da mistura de águas para o meio externo.

2. Instrumentação científica

A partir da década de 1970 intensificou-se a pesquisa a respeito da utilização de experimentos de baixo custo no ensino de física [2[2] F.L.A. Pena e A.Ribeiro Filho, Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências 9, (2009), disponível em http://revistas.if.usp.br/rbpec/article/view/37.
http://revistas.if.usp.br/rbpec/article/...
]. Em paralelo, ocorreu um grande avanço na acessibilidade a produtos tecnológicos e na facilidade de utilização dos mesmos; principalmente nos grandes centros urbanos. Opções de desenvolvimento de sistemas de aquisição eletrônica de dados de baixo custo para aplicações didáticas surgem com regularidade desde então [3[3] M.A. Cavalcante e C.R.C. Tavolaro, Revista Brasileira de Ensino de Física 22, 247 (2000).,4[4] M.A. Cavalcante, C.R.C. Tavolaro e H. Molisani, Revista Brasileira de Ensino de Física 33, 4503 (2011).]. Tais propostas exigiam, principalmente do professor, conhecimentos de eletrônica analógica e digital [3[3] M.A. Cavalcante e C.R.C. Tavolaro, Revista Brasileira de Ensino de Física 22, 247 (2000).]. Esta defasagem é, até hoje, um grande empecilho para a implementação dessa estratégia pedagógica. A partir de 2005, a plataforma Arduino [5[5] Arduino, disponível em http://www.arduino.cc. Visualizado em 13/11/2014.
http://www.arduino.cc...
] surge como uma interessante solução para este problema por ser uma plataforma livre, com estruturas eletrônicas e conexões simples e por disponibilizar um ambiente de programação amigável. A diversidade de sensores e o considerável número de materiais de apoio e de projetos eletrônicos tornam o Arduino uma plataforma intuitiva e facilmente utilizada como ferramenta de ensino e pesquisa no âmbito das Ciências. Em relação a sistemas de medição de temperatura utilizando-se a plataforma Arduino, três sensores se destacam pela frequência de utilização, quais sejam: o LM35 [6[6] LM35 Precision Centigrade Temperature Sensors, disponível em http://www.ti.com/lit/ds/symlink/lm35.pdf. Visualizado em 13/11/2014.
http://www.ti.com/lit/ds/symlink/lm35.pd...
], o sensor DS18B20 encapsulado [7[7] DS18B20 programmable resolution 1-wire digital thermometer. http://datasheets.maximintegrated.com/en/ds/DS18B20.pdf. Visualizado em 13/11/2014.
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] e os termistores [8[8] Thermistor, disponível em http://playground.arduino.cc/ComponentLib/Thermistor. Visualizado em 13/11/2014.
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].

Neste trabalho, a principal metodologia utilizada foi baseada na técnica de aquisição eletrônica de dados. Esta opção traz como vantagens a automação do processo e a taxa de aquisição de dados experimentais, já que com o sistema desenvolvido é possível obter até dez medidas de temperatura por segundo; taxa impossível com a metodologia tradicional em que o experimentador faz a leitura manualmente e a anota em seu caderno de laboratório.

Os blocos funcionais do sistema projetado estão representados na Fig. 2.

Figura 2
Blocos funcionais do sistema desenvolvido.

Os sensores de temperatura enviam sinais analógicos (corrente elétrica) para a plataforma Arduino. Esses sinais, que estão diretamente relacionados ao fenômeno físico estudado, são convertidos em sinais digitais (níveis lógicos) por um conversor analógico digital (ADC) de 10 bits que faz parte do microcontrolador ATMEGA328, o cerne do sistema eletrônico utilizado. Já o sensor DS18B20 encapsulado, atua enviando a informação em pacotes de sinais digitais que são decodificados por uma biblioteca especifica na programação do microcontrolador que transforma esses pacotes de informação em valores de temperatura. Os sinais digitais são enviados para o computador que também pode desempenhar a função de controle ao interferir em parâmetros como taxa de aquisição, armazenamento de dados, início e término do processo de medição.

Muitos sensores utilizados em instrumentação científica não são caracterizados. Dessa forma, os dados experimentais apresentados ao usuário do sistema de aquisição não estão em graus Celsius (no caso de sensores de temperatura) e sim em canais ou contagens de ADC. No caso de um conversor de 10 bits, tem-se 1024 (210) canais possíveis com valores de 0 a 1023. Faz-se, portanto, imprescindível a caracterização do sistema para que os dados apresentados aos usuários sejam inteligíveis.

O sistema de aquisição utilizado foi desenvolvido no Laboratório de Eletrônica do campus Nilópolis do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). O primeiro sensor conectado ao sistema foi um modelo comercial, encapsulado, do termômetro digital modelo DS18B20, que apresenta as vantagens de poder ser mergulhado em líquidos e de retornar ao usuário o valor da temperatura sem a necessidade de caracterização. Outro sensor utilizado foi um termistor do tipo NTC (Negative Temperature Coefficient) modelo NTCLE100E3103JB0 [9[9] NTCLE100E3, disponível em http://dsp.rice.edu/sites/dsp.rice.edu/files/ntcle100.pdf. Visualizado em 13/11/2014.
http://dsp.rice.edu/sites/dsp.rice.edu/f...
]. Diferente do sensor encapsulado, o termistor precisa ser caracterizado e não pode ser mergulhado em água já que a resistência característica daquela porção de líquido interfere consideravelmente na resistência do termistor. Há também o problema de oxidação do componente. Tais adversidades foram solucionadas isolando-se os terminais do NTC com esmalte de unha de secagem rápida.

A caracterização do sistema Arduino-termistor foi realizada entre 0 °C e 100 °C. Para cada valor de temperatura foram adquiridos 300 dados que compunham uma curva normal, como aquela apresentada na Fig. 3, da qual foi obtido um valor médio de canal. Dessa maneira, foram obtidas as curvas de caracterização mostrada nas Figs. 4, 5 e 6.

Figura 3
Curva gaussiana com trezentas contagens para a temperatura de 100 °C.
Figura 4
Curva de caracterização do sistema de aquisição com termistor entre 0 °C e 100 °C.
Figura 5
Curva de caracterização do sistema de aquisição com termistor entre 0 °C e 40 °C.
Figura 6
Curva de caracterização do sistema de aquisição com termistor entre 40 °C e 100 °C.

Como o sensor apresenta duas regiões com comportamentos levemente distintos [9[9] NTCLE100E3, disponível em http://dsp.rice.edu/sites/dsp.rice.edu/files/ntcle100.pdf. Visualizado em 13/11/2014.
http://dsp.rice.edu/sites/dsp.rice.edu/f...
], utilizou-se duas caracterizações distintas, mostradas nas Figs. 5 e 6.

Foi desenvolvido um programa para implementar o protocolo de comunicação serial entre o sistema de aquisição e o computador, permitindo a coleta dos dados e o envio das instruções de controle para o sistema. Optou-se pela linguagem C# proporcionando uma interface amigável onde o usuário possa ter acesso aos dados e à gráficos de temperatura em tempo real.

3. Estudo do tempo morto dos sensores

Mergulhando-se um sensor encapsulado, à temperatura T, em um líquido à temperatura T0 (banho térmico), haverá um fluxo de energia entre os sistemas. Supondo-se que a imersão no banho térmico é feita de forma súbita, pode-se aproximar a mudança de temperatura por uma função degrau. Admitindo-se que o coeficiente de transmissão de calor (h) e que a temperatura do banho sejam constantes, tem-se como balanço de energia, em um pequeno intervalo de tempo dt, o fato da variação da energia interna do encapsulado ser igual ao fluxo de calor do banho térmico para o encapsulado, ou seja [10[10] Frank Kreith, Princípios de Transmissão do Calor(Ed. Edgar Blücher, São Paulo, 1977).]

(1)cρVdT=hA(TT0)dt,
sendo c, V, A e ρo calor específico, o volume, a área e a densidade do encapsulado, respectivamente.

Integrando-se entre Ti e T, sendo Ti a temperatura do sensor quando t = 0 s e T a temperatura do sensor em um instante de tempo t

(2)TiTdT(TT0)=C0tdt.

A constante de tempo do encapsulado, C, é dada por

C=hAcρV.

A integral resulta em

(3)ΔT(t)=ΔTieCt,
sendo ΔTi = TiT0 e ΔT(t) = T(t) − T0.

O gráfico da Fig. 7 mostra a variação da temperatura apresentada pelo sensor encapsulado em função do tempo. As medidas foram feitas utilizando-se a plataforma Arduino. O termômetro estava inicialmente mergulhado, em equilíbrio térmico, em um dado volume de água a uma conhecida temperatura Ti e depois foi levado à uma mistura de água e gelo em fusão.

Figura 7
Variação da temperatura em função do tempo para diferentes temperaturas iniciais.

Pode-se definir o tempo morto (tmorto) como o tempo necessário para que a temperatura do sensor encapsulado atinja um valor δT próximo do valor ideal (0 °C). Nesse caso δT representa a incerteza de medição do sistema. O valor de corte foi definido como sendo aquele em que o sensor mostra 1 °C. Dessa forma, utilizando a Eq. (3)

(4)tmorto=1Cln(ΔTiδT).

O gráfico da Fig. 8 mostra o tempo morto em função da variação de temperatura para as diferentes medidas apresentadas no gráfico da Fig. 7. Os parâmetros C = (0,076 ± 0,001) s−1 e δT = (0,27 ± 0,03) °C são obtidos a partir do ajuste da Eq. (4) aos dados experimentais. De fato, o valor da constante de tempo está em razoável acordo com as curvas mostradas na Fig. 7. O valor mínimo δT pode ser interpretado como sendo a incerteza aleatória e sistemática combinadas do sistema de medição utilizado [11[11] J.R. Taylor, Introdução à Análise de Erros (Ed. Bookman, São Paulo, 2012), 2a edição.].

Figura 8
Ajuste logaritmo da variação do tempo morto em função da variação de temperatura.

O gráfico da Fig. 9 apresenta a comparação do tempo morto do sensor encapsulado e do NTC para uma diferença de temperatura de 100 °C. O tempo morto do termistor foi de aproximadamente 2 s; um valor 30 vezes menor que o tempo morto do sensor encapsulado (ver gráfico da Fig. 7). Pelo gráfico a seguir também é possível perceber, no intervalo de tempo entre 0 ms e 12000 ms, que os dois sensores são acurados, porém o sensor encapsulado apresenta maior precisão que o termistor.

Figura 9
Comparação entre os tempos mortos do sensor encapsulado e do termistor.

4. Considerações finais

O desenvolvimento do sistema de aquisição de dados permitiu a realização de procedimentos de testes com dois dos sensores de temperatura mais comumente utilizados com a plataforma Arduino. Mostrou-se que os tempos mortos dos sensores estudados devem ser um fator não desprezível, já que os dados obtidos podem não refletir o real fenômeno físico estudado. Embora a utilização da plataforma Arduino seja extremamente amigável e amplamente documentada, esta ferramenta didática não deve ser encarada como um conjunto de blocos de hardwareconectáveis e de fácil utilização. Os sensores devem ser estudados em uma análise isolada e, principalmente, em conjunto com tal plataforma atentando-se para a verificação da funcionalidade do sistema frente ao problema físico a ser estudado.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao professor Alexandre Mendes pelas valiosas discussões. O autor A.B. Vilar agradece ao IFRJ pelo financiamento da pesquisa através dos programas PROCIENCIA, PIBICT e PIVICT. O autor V.L.B. de Jesus é bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - PIBID, da CAPES - Brasil.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2014
  • Aceito
    01 Fev 2015
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