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Panorama geral da obra astronômica de Kepler

(General overview on Kepler's astronomical work)

Resumos

Nesse trabalho apresentamos uma visão panorâmica da obra astronômica de Johannes Kepler. Tratamos, em ordem cronológica, dos quatro principais livros relacionados ao tema por ele escritos, a saber, Mistério Cosmográfico, Astronomia Nova, Harmonia dos Mundos e Epitome de Astronomia Copernicana, a fim de evidenciar as etapas históricas do desenvolvimento do pensamento científico do autor. Procuramos ressaltar a presença nesse pensamento de um elemento filosófico-teológico e de uma concepção física fortemente determinantes, paralelamente a um orientação metodológica já significativamente típica da ciência moderna, então nascente.

Palavras-chave:
Kepler; revolução astronômica


In this work we give a general overview on Johannes Kepler's astronomical work. We treat, in a chronological order, the four most important books related to the issue written by him, namely, the Mysterium Cosmographicum, the Astronomia Nova, The Harmony of the Worlds and Epitome of Copernican Astronomy, in order to make clear the historical stages of the development of the author's scientific thought. We tried to emphasize the rather determining presence in his thought of a philosophical-theological element and a physical conception, as well as a methodological inclination already typical of the emerging modern science.

Keywords:
Kepler; astronomical revolution


1. Introdução

Johannes Kepler nasceu em 1571, na cidade de Weil, Alemanha. Figura entre os grandes personagens que deram curso à imensa transformação no pensamento ocidental ocorrida nos Séculos XVI e XVII e denominada de “Revolução Científica” [1[1] A. Koyré, Études Newtoniennes(Gallimard, Paris, 1968).4][4] T.S. Kuhn, A Revolução Copernicana(Edições 70, Lisboa)..

Kepler deu contribuições em várias áreas do conhecimento, como a Matemática, a Óptica e a Astronomia [5][5] M. Caspar, Kepler (Dover, New York, 2012)., porém foi a esta última que seu nome ficou indelevelmente associado, sobretudo através das leis dos movimentos planetários por ele formuladas. No entanto, sua importância para a ciência vai além do conteúdo objetivo dessas leis; Kepler reformulou profundamente a concepção científica prevalecente em sua época, introduzindo o embrião de várias ideias que, posteriormente, sob o desenvolvimento de outros cientistas e pensadores, tornaram-se a base da visão física moderna [1[1] A. Koyré, Études Newtoniennes(Gallimard, Paris, 1968).,6][6] A. Koyré, The Astronomical Revolution(Dover, London, 1992)..

Na realidade, há na obra de Kepler um forte elemento norteador, de natureza filosófico-teológica, que se expressa em uma crença enfática no ordenamento matemático do Universo [6][6] A. Koyré, The Astronomical Revolution(Dover, London, 1992). e se revela, por exemplo, em seu modelo cosmológico dos sólidos geométricos e em suas harmonias celestiais. Esse elemento, que constitui uma base epistêmica (no sentido da palavra que lhe dá Foucault [7][7] M. Foucault, As Palavras e as Coisas (Martins Fontes, São Paulo, 1981).) de seu pensamento, foi, de longe, o que gerou maiores desconfortos à posteridade, sendo duramente criticado por historiadores do Iluminismo [8][8] B. Stephenson, Kepler's Physical Astronomy(Princeton University Press, Princeton, 1994).. Mesmo em época bem mais recente, na primeira metade do Século XX, Alexandre Koyré chama a atenção para o fato de que a obra de Kepler não teve, durante a vida de seu autor, qualquer seguidor e que suas visões cosmológicas foram rejeitadas por seus contemporâneos e pelos que vieram após [6][6] A. Koyré, The Astronomical Revolution(Dover, London, 1992).. Ainda segundo Koyré, as citações de Kepler durante a primeira metade do Século XVII praticamente se resumiram a Pierre Gassendi e Ismael Boulliaud.

No entanto, esse elemento acima mencionado, que o leitor atual muitas vezes tende a considerar desconcertantemente idiossincrático, não foi o único princípio norteador presente em sua obra; nem sequer o mais determinante para os desenvolvimentos que constituíram seu legado mais importante para a ciência futura. Este título poderíamos certamente conferir a sua concepção de que o modelo astronômico assentasse suas bases sobre a identificação de uma estrutura física causal real dos movimentos planetários e não em uma mera descrição geométrica deles [6][6] A. Koyré, The Astronomical Revolution(Dover, London, 1992). [8][8] B. Stephenson, Kepler's Physical Astronomy(Princeton University Press, Princeton, 1994).. Foi essa concepção que fez Kepler, por exemplo, rejeitar modelos astronômicos anteriores para a órbita do planeta Marte em favor de uma nova proposta, gradualmente elaborada a partir das evoluções de sua análise do problema, mesmo quando essas versões anteriores produziam erros bastante toleráveis do ponto de vista observacional.

Aliás, essa questão da forma das órbitas planetárias evidencia um aspecto metodológico de seu pensamento já bastante característico da ciência empírica moderna, então nascente: formulação de hipóteses e confrontação meticulosa com as observações experimentais [8[8] B. Stephenson, Kepler's Physical Astronomy(Princeton University Press, Princeton, 1994).,9][9] C.R. Tossato and R.P. Mariconda, Scientiae Studia 8, 3 (2010).. Foi, portanto, de nosso interesse salientá-lo, apresentando as diversas etapas da detalhada análise kepleriana do problema. Nesse ponto, a historiografia da ciência foi facilitada pela peculiar disposição de Kepler em apresentar as sucessivas tentativas e elaborações de seu pensamento [6][6] A. Koyré, The Astronomical Revolution(Dover, London, 1992)..

Esse trabalho tem por objetivo, portanto, apresentar uma visão histórica panorâmica dos desenvolvimentos astronômicos propostos por Kepler, tendo em perspectiva os estudos de história da física presentes em diversas matrizes curriculares de cursos de licenciatura nesta ciência. Não se trata, decerto, de uma leitura original dessa obra científica, que encontra excelentes análises nas referências citadas [6[6] A. Koyré, The Astronomical Revolution(Dover, London, 1992).,8[8] B. Stephenson, Kepler's Physical Astronomy(Princeton University Press, Princeton, 1994).,10][10] J.L.E. Dreyer, A History of Astronomy from Thales to Kepler (Dover, Newt York, 1953)., mas uma tentativa, ancorada em nossa experiência docente na área e na percepção de uma relativa escassez de literatura didática em português relacionada ao tema, de contribuir para a elaboração de material que possa ser aproveitado no ensino de disciplinas de caráter histórico. Optamos por acompanhar a sequência cronológica das obras, de forma a analisar os progressos gradualmente efetuados pelo autor. Assim sendo, dedicamos uma seção a cada um dos principais livros relacionados diretamente ao tema: o Mistério Cosmográfico [11][11] J. Kepler, Le Secret du Monde(Société Les Belles Lettres, Paris, 1984)., de 1596, a Astronomia Nova [12][12] J. Kepler, New Astronomy (Cambridge University Press, Cambridge, 1993)., de 1609, a Harmonia dos Mundos [13][13] J. Kepler, The Harmonies of the World(Prometheus Books, Amherst, New York, 1995)., de 1619 e, por fim, o Epitome de Astronomia Copernicana [14][14] J. Kepler, Epitome of Copernican Astronomy(Prometheus Books, Amherst, New York, 1995)., publicado em três partes, entre 1618 e 1621.

No tocante à bibliografia apresentada, com a preocupação de sugerir as referências mais acessíveis e, assim, reforçar o caráter de divulgação deste texto, demos preferência, sempre que possível, às edições brasileiras, solicitando de antemão perdão pela omissão das que eventualmente não forem do nosso conhecimento.

2. O Mistério Cosmográfico

Kepler adquiriu de seu mestre, o astrônomo Michael Mästlin, a firme convicção da correção do sistema copernicano, admirando a maneira pela qual, através da hipótese heliostática, diversas características dos movimentos planetários se explicavam de forma bem mais natural do que no sistema ptolomaico. Entretanto, o pensamento de Kepler não se satisfazia com os sucessos obtidos por Copérnico. Pelo contrário, ansiava por uma explicação causal mais fundamental para diversos aspectos da estrutura do Universo, como, por exemplo, o número de planetas e a duração de seus períodos de revolução em torno do Sol, que, em seu entendimento, mantinham-se no nível meramente constatatório no sistema copernicano.

E eu não hesito em afirmar que tudo o que Copérnico estabeleceu a posteriori e demonstrou através de observações ou por meio de axiomas da geometria, tudo isso pode ser demonstrado a priori e sem qualquer dificuldade, (...) [15][15] Ver Ref. [10], p. 34.

e, ainda,

E havia então, particularmente, três coisas que eu buscava com obstinação por que eram dessa maneira e não de outra, a saber: o número, a grandeza e o movimento das esferas. O que me impelia a atacar esse problema é a bela harmonia das coisas imutáveis, Sol, Estrelas Fixas e o espaço intermediário, com Deus-Pai, o Filho e o Espírito Santo, similitude que eu desenvolverei mais a fundo na minha Cosmografia. Eu não duvidava de que, uma vez que as coisas imutáveis apresentavam essa harmonia, as coisas móveis também devessem apresentar alguma. [16][16] Ver Ref. [10], p. 22.

Com esse objetivo em vista, Kepler mergulhou em uma análise de possíveis relações matemáticas entre as órbitas dos planetas. Investigou proporções entre os raios do que seriam as esferas planetárias tradicionais, buscando identificar se esses raios guardavam entre si alguma relação numérica simples. Fez o mesmo, não mais para os raios diretamente, mas para a diferença entre eles. No entanto, suas investigações nesta direção não tiveram êxito.

A partir daí, Kepler se voltou para uma tentativa de natureza geométrica, buscando relacionar, através de construções geométricas envolvendo, por exemplo, figuras planas, os raios de esferas cristalinas subseqüentes. Novamente, suas tentativas nesse sentido se mostraram infrutíferas.

Foi então que ocorreu a Kepler buscar relações, não mais entre os raios das esferas planetárias e números ou figuras planas, mas entre esses raios e sólidos geométricos. Seu pensamento voltou-se, pois, para os poliedros regulares, conhecidos desde os gregos e em número de cinco: tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro e icosaedro. Imaginou, então, um sistema cosmológico-geométrico de poliedros regulares inscritos e circunscritos em esferas; cada esfera planetária circunscreveria um dos sólidos perfeitos e, ao mesmo tempo, estaria inscrita em outro, como mostra a Fig.1.2 2 A esfera de Mercúrio estaria inscrita em um octaedro, por sua vez inscrito na esfera de Vênus; esta esfera estaria inscrita em um icosaedro; a da Terra em um dodecaedro; a de Marte em Tetraedro; a de Júpiter em um cubo, finalmente inscrito na esfera de Saturno Como há cinco poliedros desta natureza, haveria a necessidade de seis esferas cristalinas para a realização deste esquema. Uma vez que cada planeta estaria acoplado a uma esfera cristalina, explicaria-se, deste modo, a existência de exatamente seis planetas, e não cinco ou sete, aleatoriamente. No entendimento de Kepler, superava-se assim o nível simplesmente descritivo da concepção do Cosmos proposta por Copérnico, estabelecendo-se uma base explicativa mais fundamental para sua estrutura.

Figura 1
Modelo cosmológico dos sólidos geométricos de Kepler.

Com efeito, que poderíamos dizer ou imaginar de mais admirável ou de mais próprio a persuadir do que isso: o que Copérnico, a partir dos “fenômenos”, a partir dos efeitos, a posteriori, estabeleceu, por meio de uma conjectura mais feliz do que propriamente assegurada, como um cego que assegura sua marcha por uma bengala (como ele mesmo se acostumara a dizer a Rheticus), isso que ele cria que se passava verdadeiramente dessa forma, sim, muito bem, é isso que se demonstrará perfeitamente estabelecido a partir de argumentos a priori, das causas e da Criação. [17][17] Ver Ref. [10], p. 52.

A euforia de Kepler foi ainda mais intensa quando observou que, para o funcionamento geométrico deste sistema cosmológico era necessário que os raios das esferas inscritas e circunscritas correspondessem bem aproximadamente às distâncias entre o Sol e os planetas, estabelecidas segundo o modelo de Copérnico.

Enfim, no dia 20 de julho, em meio a uma torrente de lágrimas (à exemplo daquele que gritou “Heureka”!), eu descobri o modo e a causa do número seis de esferas e de suas distâncias, (...) [18][18] Carta de Kepler a Mästlin, de 2 de agosto de 1595, apud Ref. [10], p. xii.

Para esta comparação, Kepler utilizou as distâncias reais entre o Sol e os planetas e não a distância entre esses e o centro da esfera terrestre, o qual não coincidia com a posição do Sol, já que, de acordo com o modelo copernicano, este se situava excentricamente. Ao fazê-lo, Kepler atribuía ao posicionamento do Sol uma importância compatível com o novo status adquirido por aquele astro no Universo copernicano.

Esse modelo cosmológico foi apresentado em seu livro O Mistério Cosmográfico, de 1596, enviado a Mästlin, que o acolheu muito favoravelmente.

Além dessa construção geométrica, Kepler apresentou nesse livro um outro elemento, que seria o embrião de um importantíssimo desenvolvimento para a dinâmica dos movimentos planetários, tal como os descreveu posteriormente. Esse elemento a que nos referimos foi a discussão a respeito da causa dos movimentos dos planetas.

Kepler analisou os diferentes períodos de revolução dos planetas em torno do Sol em termos de suas distâncias àquele astro. Observou que, quanto maior a distância, maior o período. Isso poderia ser explicado pelo fato de que, quanto maior a distância, maior a extensão da órbita. Entretanto, o período não aumentava proporcionalmente à distância, porém mais rapidamente. Kepler concluiu então que o aumento da extensão da órbita não era a única razão para o aumento do período; para ele a “ação” motora responsável pelo movimento decresceria com a distância.

É preciso agora refletir sobre o meio de determinar a proporção que buscamos. Viu-se anteriormente que, se somente a amplitude da esfera contribuísse para aumentar o período, deveríamos encontrar a mesma diferença entre os movimentos e as distâncias médias. Por exemplo, a relação entre os 88 dias do período de Mercúrio e os 225 dias do período de Vênus deveria ser a mesma que entre o semi-diâmetro da esfera de Mercúrio e o da esfera de Vênus. Ora, o enfraquecimento da alma motriz no caso do astro mais afastado se mistura à relação entre os movimentos. [19][19] Ver Ref. [10], p. 138.

Diante disso, havia duas alternativas: uma “ação” motora diferente para cada planeta, de natureza anímica, isto é, um princípio de movimento próprio do corpo celeste, que, por alguma razão, diminuía com a distância ao Sol, ou uma única ação motora para todos, cuja fonte seria o Sol e que, por este motivo, diminuía conforme o planeta estivesse mais distante dele (Sol). Para Kepler a segunda interpretação constituiria uma alternativa mais logicamente fundamentada.

Entretanto, se quisermos nos aproximar ainda mais da verdade e encontrar qualquer regularidade nas proporções, de duas coisas uma: seria preciso admitir (2) que quanto mais afastadas estejam as almas motrizes do Sol, mais elas serão fracas; ou então (3) que há apenas uma alma motriz, localizada no centro de todas as esferas ( quer dizer, no Sol), que move tão mais vigorosamente um corpo qualquer quanto mais próximo ele esteja dela e que, nos corpos mais afastados, em razão de seu afastamento e da diminuição de sua força, se enfraquece. Da mesma forma, então, que a fonte da luz está no Sol e o princípio do círculo está no lugar do Sol, quer dizer, no centro, eis que a vida, o movimento e a alma do mundo retornam a este mesmo Sol, de sorte que aos fixos pertence o repouso, aos planetas o ato segundo, que é o movimento, ao Sol o ato primeiro ele mesmo, que é incomparavelmente mais digno do que os atos segundos em todas as coisas(...) [19][19] Ver Ref. [10], p. 138.

Assim, Kepler concluiu que, de fato, o princípio motriz dos movimentos planetários estava localizado no Sol e, deste modo, a distância realmente determinante seria aquela entre os planetas e este astro e não entre os planetas e o centro da esfera terrestre, onde não havia corpo material algum, porquanto o modelo mantinha a característica excêntrica do sistema ptolomaico, apenas invertendo os papéis do Sol e da Terra.

Kepler ainda analisou nesse livro possíveis relações numéricas específicas entre os períodos das órbitas planetárias e seus raios. Chegou a alguns resultados preliminares, porém equivocados em relação ao que posteriormente se mostrou correto e que ficou conhecido como sua terceira lei. Esta só seria apresentada na obra Harmonia dos Mundos, quase vinte anos mais tarde.

3. Astronomia Nova

Em 1609, Kepler publicou sua obra Astronomia Nova. Entre essa publicação e a do Mistério Cosmográficopassaram-se mais de dez anos e ocorreu um evento verdadeiramente crucial para a trajetória científica do autor: em 1600 ele se tornou colaborador do grande astrônomo dinamarquês Tycho Brahe, obtendo acesso ao imenso conjunto de dados astronômicos por ele coletados, notórios pela sua abrangência e precisão. Em particular, Brahe deu a Kepler conhecimento de seus dados observacionais referentes ao planeta Marte, atribuindo-lhe a tarefa do estudo e da descrição do movimento desse planeta, segundo as bases do modelo que ele próprio, Tycho, havia concebido. Kepler conferiu a esse encontro e à tarefa que dele decorreu um caráter quase sobrenatural, uma intervenção da Providência Divina em favor da elaboração de sua obra astronômica.

É verdade que a voz Divina, que nos encoraja a estudar astronomia, se expressa no próprio mundo, não em palavras ou sílabas, mas nas próprias coisas e na conformidade do intelecto e dos sentidos humanos com a sequência dos corpos celestes e de suas disposições. Entretanto, existe um outro tipo de destino, por cuja agência vários indivíduos são impelidos em direção a determinadas artes, que os deixam certos de que, assim como são uma parte da obra da Criação, igualmente partilham em alguma medida da providência divina. [20][20] Ver Ref. [11], p. 183.

e

Eu, portanto, uma vez mais, penso que aconteceu por arranjo divino que eu chegasse no momento em que ele[Longomontanus] estava envolvido com Marte, cujos movimentos proporcionam o único acesso possível aos segredos da astronomia, sem o qual nós permaneceríamos para sempre ignorantes desses segredos. [21][21] Ver Ref. [11], p. 185.

De fato, a órbita de Marte, pelas suas características, mais precisamente, sua maior excentricidade se comparada à dos demais planetas, excetuando-se Mercúrio, ofereceu a Kepler um desafio de grande vulto, resistindo às tentativas de modelá-la através das formas circulares até então adotadas desde a antiguidade (ainda que fosse de forma combinada e não elementar) e levando-o, finalmente, ao abandono desse padrão circular. Nessa análise, Kepler retomou e aprofundou diversos elementos já esboçados no Mistério Cosmográfico.

3.1. O problema da não uniformidade dos movimentos planetários

Realmente, de início, Kepler tentou modelar os dados de Brahe referentes a Marte em termos de uma órbita circular em torno do Sol, situado, no entanto, ligeiramente fora de seu centro. Kepler tentou reproduzir os dados observacionais atribuindo ao planeta velocidades diferentes ao longo da órbita: conforme os pontos da órbita estivessem mais próximos ou mais afastados do Sol, a velocidade do planeta nessas posições seria, respectivamente, maior ou menor.

Nessa análise Kepler restabeleceu a idéia do equanto,3 3 O equanto seria um ponto em torno do qual os planetas, em sua órbita, descreveriam ângulos a ritmos constantes, isto é, tomando-o como vértice do ângulo subentendido pelo arco de círculo descrito pelo planeta em um certo tempo, para intervalos de tempo iguais, esses ângulos seriam iguais utilizada por Ptolomeu e repudiada por Copérnico, para quem a violação do princípio da uniformidade dos movimentos celestes era uma das principais distorções a serem eliminadas pelo seu modelo heliostático. De fato, segundo Kepler, assim como no modelo ptolomaico, haveria um ponto, não material, em torno do qual os planetas descreveriam arcos a um ritmo constante. Entretanto, em lugar de assumir a priori, concordando com Ptolomeu, que esse ponto se localizasse simetricamente disposto ao Sol em relação ao centro da órbita, Kepler procurou determinar sua localização a partir dos dados experimentais. Realizada essa análise, porém, constatou que as observações astronômicas lhe forneciam dados conflitantes em relação ao posicionamento do equanto; era como se esse ponto se deslocasse ao longo da reta que unia o centro da órbita ao Sol, comportamento esse bastante implausível.

Ainda que surpreendido pela mencionada constatação, Kepler prosseguiu sua análise, utilizando os dados de Marte apresentados por Brahe para estudar a situação do planeta Terra. Como se sabe, o modelo de Copérnico propunha o Sol estático, com os planetas a girar em torno dele, presos às esferas cristalinas introduzidas por Aristóteles; conforme já dissemos, nesse modelo o Sol não se situava no centro do Universo, e, por conseguinte, das esferas celestes, mas em uma posição excêntrica. Entretanto, Tycho Brahe propôs um modelo astronômico alternativo ao de Copérnico, em que a Terra se mantinha estática, com o Sol orbitando em torno dela, enquanto os demais planetas giravam em torno dele. Segundo o modelo de Copérnico, o movimento que nós atribuímos ao Sol seria, na verdade, um movimento aparente, devido ao movimento de nosso próprio planeta. Já segundo Brahe, o movimento do Sol seria um movimento real, enquanto a Terra permaneceria parada. Kepler considerou indistintamente as duas possibilidades e, a partir dos dados experimentais relacionados a Marte, chegou à conclusão de que, quem quer que realmente se movimentasse, fosse a Terra ou o Sol, também descreveria uma órbita com velocidade não uniforme.

Partindo então das premissas copernicanas, Kepler procurou descrever o movimento da Terra em torno do Sol em termos de uma órbita circular, não centrada nele. Do mesmo modo, partindo das premissas de Brahe, procurou descrever o movimento do Sol em torno da Terra de maneira análoga. Em ambos os casos, Kepler observou que os dados indicavam movimentos tão mais rápidos quanto mais próximos os corpos, seja a Terra ou o Sol, estivessem daquele em torno do qual orbitavam. Haveria um equanto para ambos os movimentos, qualquer que fosse o caso.

Contudo, agora que temos a confirmação de uma astronomia mais aprimorada, deve ficar claro, que de fato, é necessária a existência de um equanto na teoria do Sol ou da Terra. [22][22] Ver Ref. [11], p. 372.

3.2. Quem move os planetas?

Confrontado com a não uniformidade do movimento, que para ele constituía uma evidência,

Pois, quer seja a Terra ou o Sol a ser movido, foi certamente demonstrado que o corpo que é movido é movido em uma maneira não uniforme, isto é, mais lentamente quanto mais afastado do Sol, e mais rapidamente quanto mais próximo a ele. [23][23] Ver Ref. [11], p. 51.

Kepler se voltou para a necessidade de explicação deste fenômeno.

Nesse ponto, novamente se manifesta um aspecto da metodologia e da concepção científica de Kepler que o distingue claramente de seus antecessores: ele não se contentou com uma mera descrição cinemática dos movimentos celestes, mas buscou uma compreensão dinâmica das causas desses movimentos. Ao contrário de Ptolomeu, Copérnico e Brahe, não bastava para ele descrever com exatidão como se movem, mas porque se movem dessa maneira.

Meu propósito nesta presente obra é, principalmente, reformar a teoria astronômica (especialmente do movimento de Marte) nas três formas de hipóteses, de tal modo que os cálculos a partir das tabelas correspondam aos fenômenos celestes. (...) Entretanto, embora tenha estabelecido esse primeiro objetivo e perseguido-o animadamente, também fiz uma incursão à Metafísica de Aristóteles, ou melhor, eu investiguei a física celeste e as causas naturais do movimento. [24][24] Ver Ref. [11], p. 48.

Segundo esse ponto de vista, a primeira questão obviamente que surge é: quem move os planetas? No tocante a esse ponto, Kepler era plenamente fiel à doutrina aristotélica de que todo movimento exige um agente motor (somente em 1632 Galileu exporia em sua obra Diálogo sobre os dois Máximos Sistemas do Mundo a concepção da permanência inercial do movimento). Portanto, antes de tudo era preciso identificar esse agente.

Lembremos que no modelo cosmológico-astronômico de Aristóteles os corpos celestes estavam presos às esferas cristalinas homocêntricas, que, ao girarem em torno do centro do Universo (finito), movidas por inteligências imateriais associadas a cada uma delas, arrastavam os planetas, fazendo com que descrevessem os movimentos orbitais observados. Em que pese a modificação introduzida por Copérnico nessa estrutura cosmológica, substituindo a Terra pelo Sol como referência estática em torno da qual orbitavam os demais corpos celestes, ele ainda conservou a concepção das esferas cristalinas e, portanto, manteve intacta a natureza da explicação aristotélica dos movimentos observados. No entanto, as observações efetuadas por Tycho Brahe de cometas, cujas trajetórias claramente transporiam as fronteiras delimitadas pelas esferas planetárias, colocaram em xeque a existência material dessas esferas; afinal, como seria possível que eles, em seu movimento, as atravessassem? Mas, o abandono da idéia da realidade material das esferas celestes implicava também o abandono da idéia do agente motor externo, de natureza imaterial, dos movimentos planetários.

Aceito esse cenário, novamente restavam duas alternativas para explicação do movimento dos planetas: atribuir-lhes um princípio interno de movimento, ou seja, uma alma interna motora, ou considerar uma outra fonte externa, distinta das antigas esferas. As reservas de Kepler em relação à concepção animista eram bastante severas. Com efeito, Kepler era bastante cético sobre a possibilidade de que uma inteligência própria dos corpos governasse o seu movimento segundo uma determinação matemática tão precisa quanto aquela que observamos nas órbitas planetárias:

Além disso, ultrapassa a nossa compreensão como essa força animal poderia guiar os planetas através do espaço do Universo, onde não há esferas sólidas, como Tycho Brahe provou. [25][25] Apud Ref. [1], p. 189.

Para Kepler, constituía um elemento adicional de implausibilidade o fato de as órbitas serem descritas em torno de um ponto central onde não se situava, em nenhum dos modelos astronômicos propostos, qualquer corpo material, e, assim, as supostas almas motrizes teriam de efetuar os movimentos tomando por base essa referência imaginária.

O planeta deve agora executar uma órbita perfeitamente circular através do puro éter por meio de sua força inerente, epicíclica no primeiro modelo e excêntrica no segundo. É portanto claro que o movente teria duas tarefas: primeiramente, deveria ter uma faculdade forte o suficiente para manter seu corpo em movimento, e, em segundo lugar, deveria ter suficiente conhecimento para encontrar um contorno circular através do puro éter, que não é, em si mesmo, dividido desta forma. Essa é uma função da mente. Por favor, não me falem que a alma tem uma aptidão inata para o movimento circular, exatamente como a natureza da pedra em cair em linha reta. Por que eu rejeito que Deus tenha criado qualquer movimento perpétuo não retilíneo que não seja governado por uma mente.(...) Além disso, é completamente impossível para qualquer mente realizar uma trajetória circular sem a referência de um centro ou de algum corpo que que apareça sob um maior ou menor ângulo, conforme sua aproximação ou seu recuo. Pois um círculo é tanto definido como levado à perfeição pelo mesmo critério, qual seja, igualdade de distância ao centro. Não importa quantas dessas faculdades motrizes você estabelece, um círculo, mesmo para Deus, não é senão o que foi dito. Geômetras, obviamente, mostram que, se dermos trê pontos sobre uma circunferência, podemos traçar um círculo contínuo, porém isso pressupõe que alguma porção da circunferência seja dada. Quem, então, mostrará ao planeta esse espantoso lugar, em conformidade com o qual será traçada o resto de sua trajetória? [26][26] Ver Ref. [11], p. 126–127.

Além disso, se, por um lado, Kepler compartilhava com Aristóteles a idéia de que todo movimento exige um (agente)“motor”, dele discordava em relação a sua teoria dos lugares naturais. Com efeito, para Aristóteles o Universo possuía um ordenamento global que reservava aos corpos um lugar adequado, conforme sua natureza, de tal forma que, uma vez deslocados desse lugar natural, esses corpos espontaneamente se movimentariam em direção às posições originais. Para Kepler, nada de semelhante a essa predisposição natural existia. Seu Universo, embora também finito, não possuía esse ordenamento hierárquico segundo a natureza dos corpos. Se um corpo, quer terrestre ou celeste, fosse deixado em qualquer lugar, aí tenderia a permanecer; antes, pelo contrário, ofereceria uma resistência ao deslocamento para onde quer que fosse.

E então, como foi demonstrado, consideremos estes axiomas, de grande certeza: primeiramente, que o corpo de um planeta é inclinado por natureza a permanecer em repouso em qualquer local em que seja colocado. [27][27] Ver Ref. [11], p. 407.

Para Kepler essa resistência estava ligada à dimensão material do corpo; quanto maior o corpo, maior a resistência oferecida. Kepler denominou essa resistência de “inércia” (note-se que o conceito de inércia aqui introduzido é oposto à idéia de inércia formulada por Galileu e traduzida quantitativamente por Newton no conceito de massa inercial, isto é, a quantidade de matéria do corpo, já que traduz a idéia de que o movimento se mantém somente pela ação da força motriz e que se extingue tão logo se extinga aquela). Por conseguinte, não seria em tendências espontâneas dessa natureza que encontraríamos a razão do movimento dos corpos planetários.

Observemos finalmente que, através dessas considerações, Kepler desfez um elemento fundamental da cosmologia aristotélica, qual seja, a divisão radical do Universo em dois mundos essencialmente diferentes, terrestre (sublunar) e celeste ( supralunar), submetidos, por conseguinte, a leis completamente distintas. Portanto, a física, que até então se referia apenas à realidade terrestre, feita de uma matéria distinta da do mundo supralunar, passava a se aplicar também aos corpos celestes, segundo as mesmas regras. Nas palavras do grande historiador da ciência Alexandre Koyré:

Apesar disso, a concepção kepleriana possuiu uma importância capital para a história da ciência. A questão: “a quo moveantur planetae”? [a partir do que se movem os planetas?4 4 T.A. ] – que ele foi o primeiro, ou ao menos um dos primeiros, a se colocar – reuniu-se ao famoso problema: “a quo moveantur projecta”? [a partir do que se movem os projéteis?5 5 T.A. ] – em torno do qual havia se cristalizado a crítica da dinâmica aristotélica. E pode-se dizer que a ciência moderna, união da física celeste e da física terrestre, nasceu no dia em que foi possível dar a mesma resposta a essa dupla questão. [28][28] Ver Ref. [3], p. 14.

3.3. A força do Sol sobre os planetas

Como vimos, examinando os dados dos planetas proporcionados por Tycho Brahe, porém referentes às posições de afélio e periélio (isto é, pontos da órbita que estão mais afastados ou mais próximos do Sol, respectivamente), Kepler constatou que a velocidade do movimento planetário era inversamente proporcional à distância do planeta ao Sol. Na verdade, hoje sabemos que se trata de uma conclusão equivocada, uma vez que é verdadeira somente nas posições especificamente consideradas e não de forma geral. Entretanto, Kepler tomou-a como se fosse geral. Esta premissa parcialmente equivocada, aparentemente extraída da experiência, contribuiu, contudo, de maneira significativa, para a elaboração de uma concepção dinâmica do movimento planetário.

De fato, se o parâmetro relevante para a determinação da velocidade do movimento era a distância do planeta ao Sol, nada mais razoável de se imaginar do que o Sol desempenhasse um papel fundamental na dinâmica do movimento, como Kepler já havia começado a pensar desde o Mistério Cosmográfico. Somando-se esse aspecto com a concepção de que a continuidade deste movimento, como aliás de qualquer outro, requeria a atuação permanente de um agente motor, tornou-se para Kepler igualmente natural concluir que do Sol proviesse essa força motriz dos planetas.

E então, como foi demonstrado, consideremos estes axiomas, de grande certeza: primeiramente, que o corpo de um planeta é inclinado por natureza a permanecer em repouso em qualquer local em que seja colocado. Em segundo lugar, que ele é transportado de uma posição longitudinal para outra pelo poder que emana do Sol. [27][27] Ver Ref. [11], p. 407.

Se assim fosse, a intensidade dessa força diminuiria tão mais quanto mais distante dele estivesse o planeta. Novamente segundo uma concepção aristotélica do movimento, a velocidade seria proporcional à força motriz; por conseguinte, nas posições em que estivesse mais distante do Sol, menor seria sua velocidade, em concordância com os dados observacionais de que Kepler dispunha.

A atribuição deste papel motor ao Sol fornecia a Kepler um argumento sólido para descartar a idéia de que pontos não ocupados por corpos materiais pudessem desempenhar qualquer papel relevante para a determinação das órbitas planetárias, como até então vinham fazendo os modelos de Ptolomeu, Copérnico e Brahe. Dito de outro modo, para Kepler não apenas fazia sentido que os movimentos dos planetas fossem referenciados à posição real do Sol, como também não fazia sentido que o fossem em termos de qualquer outro ponto.

Um ponto matemático, seja ou não o centro do Universo, não pode afetar o movimento de corpos pesados nem tampouco atuar como um objeto em direção ao qual eles tendam. Que os físicos provem que essa força está em um ponto em que não há qualquer corpo nem é compreendido de uma outra maneira que não seja a de uma mera relação. [29][29] Ver Ref. [11, p. 54.

E, também

Concebamos um poder motor que, situado sobre o concêntrico B e, ele mesmo, desprovido de corpo, move-se em torno de um corpo situado em A com um ação uniforme de forces, mantendo uma distância constante desse ponto. Seja agora um outro poder residente no corpo do planeta C, capaz de manter sua atenção sobre o poder incorpóreo em B, estimando e mantendo sua distância desse poder, e movendo-se uniformemente em torno dele. Assim, como antes, esse poder terá várias tarefas. Mas será também incrível em si mesmo que um poder imaterial resida em um não corpo, se mova no espaço e no tempo, mas não tenha sujeito, movendo-se ele mesmo (como disse) de lugar para lugar. E estou fazendo essas hipóteses absurdas para estabelecer, ao fim, a impossibilidade de que todas causa do movimento de um planeta seja inerente a seu corpo ou a algum lugar de sua órbita. [30][30] Ver Ref. [11], p. 128.

Postos esses fundamentos, surgia para Kepler uma nova questão essencial: qual a natureza da força exercida pelo Sol sobre os planetas? Ele baseou sua resposta em uma analogia entre essa suposta força e a luz; essa força motriz seria um elemento imaterial, emanado do Sol como a luz. No entanto, ao contrário da luz, que é emitida esfericamente em todas as direções, a emanação da força solar ocorreria de forma planar. Essa diferença proporcionava uma conseqüência importantíssima com relação à maneira como a intensidade da força variaria conforme a distância à fonte.

Com efeito, Kepler considerava que a força solar, sendo, como a luz, um elemento imaterial, não seria absorvida pelos corpos presentes nos espaços por onde se propagasse, de tal sorte que a quantidade total através do espaço permaneceria constante, rarefazendo-se à medida que se afastasse da fonte. Entretanto, como a luz é emitida em todas as direções, sua conservação implicaria que a quantidade presente em esferas concêntricas de diferentes raios seria constante e, para isso, sua intensidade teria de variar com o inverso do quadrado do raio, ou seja, da distância da fonte ao ponto considerado. Já a força solar, na medida em que seria emanada de maneira planar, se conservaria ao longo de círculos concêntricos e não esferas, de sorte que sua intensidade decairia linearmente com a distância à fonte e não com o quadrado dela. Essa característica era essencial para o modelo dinâmico de Kepler, em que a velocidade dos planetas variaria de acordo com o inverso da distância ao Sol.

Por outro lado, a analogia entre a força motriz solar e a luz impunha ao modelo dinâmico um outro questionamento: o que ocorreria quando um outro corpo se colocasse entre o Sol e um planeta? Assim como a luz, a força motriz proveniente do Sol seria barrada pelo corpo? Se assim fosse, a força sendo responsável pelo movimento do planeta, esse movimento se interromperia momentaneamente. Entretanto, isso não é observado; aparentemente a força motriz não seria barrada por corpos materiais.

Como justificar, porém, essas diferenças cruciais entre as características da emanação da força motriz e da emissão da luz? Para Kepler, a explicação residia no fato de que a analogia entre a força motriz e a luz era apenas parcial.

Mas é respondido primeiramente que a analogia entre a luz e a o poder motor não deve ser perturbada por uma precipitada confusão de suas propriedades. A luz é obstruída pelo opaco, mas não é obstruída por um corpo, já que a luz é luz e não age sobre o corpo e sim sobre a superfície (ou como se fosse sobre a superfície). O poder motor age sobre o corpo, sem relação com sua opacidade. Deste modo, uma vez que não está correlacionado ao opaco, da mesma forma não é obstruído pelo opaco. [31][31] Ver Ref. [11], p. 393.

A principal inspiração de Kepler para o modelo dessa força solar era dado pelo magnetismo terrestre, então recém elucidado por William Gilbert. Assim como ocorreria para essa força solar, a ação magnética de um imã sobre um objeto ferroso também não sofre interferência de corpos materiais, a não ser que também sejam ferrosos ou imantados. Além disso, e sobretudo, a ação magnética era o exemplo conhecido à época de ação exercida entre corpos sem contato direto.

Kepler concebeu então um modelo dinâmico em que a força motriz emanava do Sol na forma de raios. Segundo ele, o próprio Sol, embora fixo em sua posição, girava em torno de seu próprio eixo, de maneira que os raios emitidos acompanhavam esse movimento, arrastando assim os planetas ao longo de sua trajetória. Em um primeiro momento poderíamos imaginar que, na medida em que eram arrastados pelos mesmos raios emanados do Sol, que, por sua vez, compartilhavam a velocidade angular do Sol, todos os planetas se moveriam com a mesma velocidade angular. Entretanto, sabe-se que não é o que ocorre e, de acordo com Kepler, isso se devia às diferentes inércias dos planetas; cada planeta, conforme as suas dimensões materiais, ofereceria diferentes resistências à ação motriz do Sol. Suas velocidades, portanto, seriam diferentes.

Vencido, contudo, esse obstáculo, surgiu um outro: se os planetas são arrastados ao longo de suas órbitas pelos raios emanados do Sol, então por que essas órbitas não são círculos com centro naquele astro motor? A resposta só poderia ser a de que alguma outra força, que não a ação solar anteriormente postulada, teria de ser responsável por aproximações e afastamentos eventuais do Sol ao longo do período de revolução em torno daquele astro. Kepler considerava que não restava a ele naquele momento, contra sua disposição original, outra solução que não atribuir novamente aos próprios planetas um movimento, de caráter anímico, de aproximações e afastamentos do Sol.

Particularmente felizes e mais adequados a nossa investigação são os fenômenos exibidos pela propulsão de barcos. (...) Em grande medida, da mesma forma, o poder motor [ do Sol ] propagando-se pelo mundo como por meio de uma “espécie” é um tipo de torrente veloz, que arrasta os planetas, bem como, talvez, todo o vento etéreo, de oeste para leste. Não é adequado para atraí-los para o Sol ou para arrastá-los para longe dele, o que seria uma tarefa infinitamente problemática É, portanto, necessário que os planetas mesmos, como os esquifes, tenham seus próprios poderes motores, como marinheiros, que, por meio de sua preciência, realizem não apenas a aproximação e o recuo do Sol, mas também (e isso deve ser chamado de segundo argumento) as declinações das latitudes;(...) [32][32] Ver Ref. [11], p. 405.

e, ainda,

E, entretanto, em sexto lugar, a aproximação e o recuo de um planeta em relação ao Sol provém de um poder que é próprio de cada planeta. [27][27] Ver Ref. [11], p. 407.

Essa solução respondia à aparente contradição de um sistema ancorado em uma força emanada do Sol a arrastar os planetas e o fato de eles não manterem uma distância fixa àquele astro. Contudo, esse sistema ainda comportava outras dificuldades.

Com efeito, para que a trajetória dos planetas fosse circular, como imaginava Kepler desde o início, porém excêntrica em relação ao Sol, seria preciso que resultasse de uma combinação de um epiciclo e um deferente, isto é, de um círculo menor cujo centro descrevesse um outro círculo, como aliás já ocorria no próprio modelo de Copérnico. No entanto, essa deveria ser uma combinação muito peculiar, em que os ritmos dos movimentos epicíclicos e deferentes estivessem finamente ajustados. Isso talvez não representasse um problema para uma perspectiva puramente cinemática da descrição astronômica, porém era desconcertante para a concepção dinâmica de Kepler: por que a força solar a agir sobre o planeta determinaria um ritmo preciso para o movimento do centro do epiciclo, que não era um ponto material? Dito de outra forma, como explicar em termos de uma ação entre corpos materiais a determinação de um movimento preciso de um ponto não material, tal como o centro do epiciclo?

(...) essa noção implica muitos absurdos. Particularmente esse que torna necessário atribuir a mesma velocidade ao centro N do epiciclo, em seu movimento em torno do Sol, que ao planeta D [ em seu movimento ] em torno do centro B de seu excêntrico, com o resultado de que esses movimentos se acelerariam e se retardariam sincronizadamente. Observando que essas acelerações e esses retardamentos provêm da maior ou menor distância entre o corpo do planeta e o Sol, seria necessário assumir que o cento do epiciclo, que está sempre à mesma distância, move-se com uma maior, ou menor, velocidade, conforme o planeta está mais afastado ou mais próximo do Sol. [33][33] Ver Ref. [11], p. 409.

3.4. A forma elíptica das órbitas

Diante dessa contradição, Kepler convenceu-se de que a ideia de uma órbita planetária perfeitamente circular deveria ser afastada.

A partir daí imaginou primeiramente uma trajetória oval, mas ainda resultante de combinações de círculos. O caráter oval da órbita proporcionaria a vantagem de liberar o sistema da artificialidade do ajuste fino entre os movimentos circulares combinados. No entanto, ao longo do embate entre a modelagem teórica e os dados observacionais, Kepler convenceu-se de que tal sistema de epiciclos e deferentes, ainda que com resultantes ovais e não mais circulares, não se coadunava com as observações proporcionadas pela experiência. Deste modo, decidiu-se pelo passo final, mais radical, do abandono da idéia das formas circulares elementares do movimento planetário, passando a adotar a hipótese do movimento irredutivelmente elíptico.

Mas meu trabalho exaustivo não estava completo: restava ainda um quarto passo a ser dado em direção às hipóteses físicas. Através de provas laboriosíssimas e por meio de cálculos com base em um enorme número de observações, eu descobri que o curso de um planeta nos Céus não é um círculo(...), mas uma oval, perfeitamente elíptica. [34][34] Ver Ref. [11], p. 68.

Nesse instante, foram superados duas dezenas de séculos do pensamento cosmológico e astronômico, em grande medida impulsionado por Platão, centrado no paradigma da circularidade fundamental dos movimentos celestes [6[6] A. Koyré, The Astronomical Revolution(Dover, London, 1992).,35][35] C.R. Tossato, Cadernos Espinosianos V, 35 (1999)..

Assumindo a forma elíptica das órbitas, Kepler ainda chegou, por vias geométricas tortuosas, à chamada lei das áreas, ou seja, aquela que prediz que a medida das áreas determinadas por um arco de órbita descrito pelo planeta é proporcional ao tempo necessário para descrevê-lo. Em realidade, essa demonstração envolve equívocos que curiosamente se compensam, em particular, como já antecipamos, a idéia de que a velocidade do movimento planetário é inversamente proporcional, em qualquer ponto, à distância do Sol à posição considerada, o que não é um resultado geral. No entanto, a lei das áreas é uma verdade experimental, que Kepler pôde verificar através dos dados observacionais de que dispunha.

4. Harmonia dos Mundos

Os avanços realizados por Kepler na elucidação da dinâmica do movimento planetário haviam sido imensos: por exemplo, a natureza da ação solar sobre os planetas, a forma elíptica de suas órbitas e a explicação da relação entre velocidade e distância ao Sol (ainda que imperfeita). Entretanto, algumas relações matemáticas, já vislumbradas por Kepler, envolvendo aspectos desses movimentos como a conexão entre as distâncias dos planetas ao Sol e o período da órbita precisavam ser melhor compreendidos. Essa foi a principal inovação trazida pelo livro Harmonia dos Mundos, publicado em 1619.

Nesse livro, novamente observamos a ênfase na ordem matemática do Cosmos como expressão máxima da perfeição Criadora. Observamos o retorno da cosmologia poliédrica, surgida no Mistério Cosmográfico. Entretanto, a estrutura geométrica inicialmente proposta por Kepler não havia se mostrado capaz de explicar a dinâmica do Cosmos, apenas aspectos estáticos da configuração geral, como o número de planetas e os valores aproximados das distâncias solares. Todavia, essas distâncias não eram de fato elementos estáticos; pelo contrário, variavam a cada instante, segundo uma lei dinâmica bem característica. Portanto, apenas a estrutura geométrica do Cosmos proposta inicialmente não era capaz de esclarecer os detalhes desses movimentos planetários; era preciso a incorporação de novas relações matemáticas, dessa vez envolvendo o elemento tempo.

O elemento tempo intervém, primeiramente, através da velocidade angular dos planetas em torno do Sol, contribuindo para a identificação de relações matemáticas, de caráter arquetípico, mais uma vez reveladoras da profunda intencionalidade existente por detrás da configuração do Cosmos. Kepler associou as diferentes velocidades angulares dos planetas ao longo da órbita a freqüências musicais. Em particular, ele comparou os valores máximos e mínimos dessas freqüências para cada planeta, observando que a razão entre eles correspondia a números inteiros, ou seja, a intervalos consonantes. Para Kepler, cada planeta, ao se movimentar, emitia notas musicais que correspondiam a uma música celeste, tão silenciosa quanto harmoniosa. Em realidade, ele de certo modo reeditava, em outras bases, uma ideia do pensamento pitagórico, que outrora já falara a respeito de uma música celeste.

No entanto, mais importante e consequente para a ciência astronômica foi a descoberta de Kepler, a partir dos dados observacionais de Tycho Brahe, de que o período da órbita de cada planeta guardava uma relação funcional de expoente fracionário 3/2 com a distância média do planeta ao Sol (T2~R̄3). Mais ainda, essa relação era a mesma para todos os planetas. Sem dúvida, essa descoberta, que ficou celebrizada como sua Terceira Lei do Movimento planetário, se tornou mais um motivo de euforia para Kepler, em sua busca apaixonada pela ordem matemática do Universo.

5. Epítome de Astronomia Copernicana

Epítome significa resumo. Portanto, o livro Epítome de Astronomia Copernicana, composto entre os anos de 1618 e 1621, é, antes de mais nada, uma obra de síntese. Nele Kepler faz uma grande exposição de sua astronomia, reunindo os elementos que constituíram seu pensamento desde o princípio.

O livro começa com um apanhado de informações a respeito da evolução e do estado da ciência astronômica. Na segunda parte, que se inicia com o livro IV, Kepler em certa medida retorna à linguagem analógica do Mistério Cosmográfico, em contraposição à análise astronômica mais tecnicista da Astronomia Nova. Kepler estabelece diversos paralelos envolvendo a estrutura cosmológica trinitária do Universo, composta do Sol, ao centro, da esfera das estrelas, a delimitar-lhe sua abrangência, e, por último, do espaço etério intermediário, por onde se movimentam os planetas; essa estrutura cosmológica é comparada à Santíssima Trindade: o Sol, associado ao Pai; a esfera estelar, relacionada ao Filho e a região intermediária, relacionada ao Espírito Santo. Grande destaque é dado por Kepler para a centralidade da posição do Sol, justificada tendo em vista que aquele astro é a fonte da luz e do calor em que está embebido este Universo, bem como de seu movimento, cabendo-lhe, portanto, tal qual já lhe havia atribuído Copérnico, a localização central, mais nobre.

Kepler retorna, então, à descrição da estrutura geométrica do Cosmos, apresentada no Mistério Cosmográfico, retomando a questão dos poliedros regulares e suas relações com as distâncias celestes. No entanto, Kepler também avança na discussão de natureza mais técnica. Ele reapresenta, didaticamente, na forma de perguntas e respostas, as questões relacionadas às causas dos movimentos celestes: se está descartada a existência das esferas homocêntricas, então o que movimenta os planetas? Os planetas possuem uma inércia, que exige a ação de um motor externo para que seu movimento se realize; por diversas razões esse motor só pode ser o Sol.

Por que razões você é levado a fazer do Sol a causa motriz ou a fonte do movimento dos planetas?

  1. Porque é visível que, na medida em que qualquer planeta está mais distante do Sol do que o resto, ele se move mais lentamente – de tal modo que a razão entre os períodos é a razão entre as potências 32das distâncias ao Sol. Desta forma concluímos que o Sol é a fonte do movimento.

  2. Abaixo, ouviremos o mesmo se aplicar aos planetas individuais – de tal forma que quanto mais próximo o planeta chegue do Sol, em qualquer tempo, ele é dotado de um aumento de velocidade exatamente na razão do quadrado.

  3. Tampouco é a dignidade ou a aptidão do corpo solar oposta a isso, uma vez que ele é muito belo e de uma perfeita esfericidade, é muito grande e é a fonte de luz e calor, de onde emana para os vegetais toda a vida: a tal ponto que podem-se julgar luz e calor como certos instrumentos ajustados pelo Sol para causar movimento nos planetas.

  4. Mas, em especial, todas as estimativas de probabilidade são satisfeitas pela rotação do Sol, no mesmo lugar, em torno de seu próprio eixo imóvel, na mesma direção em que o planetas avançam: e em um período menor do que o de Mercúrio, o mais próximo do Sol e o mais rápido dos planetas. [36][36] Ver Ref. [13], p. 895.

Como se dá a ação do Sol, em resumo, como é a dinâmica do movimento planetário? Todas essas questões, bem como outras relacionadas, são retomadas e expostas didaticamente ao leitor.

Contudo, neste livro, ele apresenta uma importante modificação em relação a sua concepção astronômica tal como elaborada na Astronomia Nova : o movimento de aproximação e afastamento dos planetas com relação ao Sol, antes atribuído a um princípio anímico dos próprios planetas, era agora atribuído a uma outra forma de atuação daquele astro, de natureza magnética.

Kepler atribuiu aos planetas e ao Sol propriedades magnéticas que resultariam em uma interação semelhante à de dois imãs. Mais precisamente, ele imaginou a existência no interior dos planetas de uma estrutura magnética direcional caracterizada por fibras (como mostra a Fig. 2), cujas extremidades apresentariam comportamentos opostos do ponto de vista da interação com o Sol: uma extremidade seria atraída enquanto a outra seria repelida. Assim, conforme a disposição espacial dessas fibras, haveria a preponderância ou de um caráter atrativo ou de um caráter repulsivo da força solar, fazendo com que o planeta se aproximasse ou se afastasse do Sol.

Figura 2
O modelo de fibras magnéticas dos planetas para explicar sua interação com o Sol. De acordo com Kepler, um dos extremos das fibras é atraído pelo Sol, enquanto o outro é repelido. A partir da figura vemos que, dependendo da posição ao longo da órbita, um desses extremos está mais próximo do Sol do que o outro, de tal modo que, conforme o caso, prevalece uma atração ou uma repulsão e o planeta se aproxima ou se afasta do astro central.

A interação com o Sol da estrutura magnética de fibras atribuída por Kepler aos planetas com o Sol era responsável por outro importante efeito na dinâmica dos movimentos planetários: segundo Kepler, o Sol produz uma pequena deflexão na orientação das fibras, que possuem uma grande resistência inercial a essa rotação. Entretanto, essa pequena deflexão produz pequenas variações na força solar que fazem com que a trajetória planetária seja exatamente elíptica.

No Epitome Kepler retoma o tema, recententemente abordado na Harmonia dos Mundos, da relação entre os períodos das órbitas dos planetas e as distâncias deles ao Sol. Entretanto, enquanto no livro anterior, a relação era apresentada como uma conclusão empírica, no Epitome Kepler procura explicá-la em termos de princípios mais fundamentais.

Desde a Astronomia Nova, Kepler já havia estabelecido uma relação entre a distância do planeta ao Sol e a intensidade da força motriz. Dentro da concepção aristotélica, ainda adotada por Kepler, a velocidade do movimento seria proporcional à intensidade da ação motriz e, portanto, inversamente à distância. No entanto, a resistência que os planetas ofereciam ao movimento, isto é, suas “inércias”, eram proporcionais às suas dimensões materiais. Kepler especificou no novo livro o significado dessas dimensões, através dos conceitos de massa e de densidade. Segundo ele, a diversidade do Universo não seria compatível com a ideia de que todos os corpos celestes tivessem a mesma massa ou a mesma densidade. Em vista disso, quanto maior a massa, mais lentamente o planeta se moveria, em razão de sua inércia. Por outro lado, essa massa seria uma combinação de seu volume e sua densidade.

Assim sendo, sempre partindo da ideia de que o Universo foi estruturado pelo Criador em termos de proporções matemáticas simples, Kepler buscou relações entre as densidades, os volumes e as distâncias ao Sol dos diversos planetas, de tal modo que verificassem sua lei da dependência entre período e distância solar média. Finalmente, ele considerou que tivesse obtido êxito nessa busca, estabelecendo, segundo sua concepção geométrica e harmônica, as distâncias dos planetas ao Sol e os seus diâmetros.

No começo dessas considerações sobre o movimento, você disse que os períodos dos planetas se encontram exatamente na razão da potência 32de suas órbitas ou círculos. Eu pergunto qual a causa disso?

Quatro causas concorrem para estabelecer a medida dos períodos. A primeira é o comprimento da órbita; a segunda é o peso ou a quantidade [“copia”] de matéria a ser transportada; a terceira é a intensidade da virtude motriz; a quarta é o volume [“moles”] ou espaço no qual a matéria transportada se arrola.(...)Mas a jornada circular dos planetas estão na razão simples dos intervalos. Pois, da mesma forma que SA está para SD, assim também o círculo completo BA está para o círculo ED. Porém o peso, ou a quantidade de matéria nos diferentes planetas, está na razão da potência 12dos intervalos, como foi provado antes, de tal modo que sempre o planeta mais alto possui mais matéria e é movido mais lentamente, e acumula mais tempo em seu período, uma vez que, mesmo antes, sua jornada mais longa demandaria mais tempo para realização. Pois, tomando-se SK como a média proporcional entre SA e SD, os intervalos dos dois planetas; como SK está para a distância maior, assim a quantidade de matéria no planeta A está para a quantidade no planeta D. Mas a terceira e a quarta causas se compensam uma à outra na comparação dos diferentes planetas; porém a razão simples entre os intervalos, combinada à razão de potência 1/2, constitui a razão entre as potências 3/2 deles. Deste modo, os períodos estão entre si na razão das potências 3/2 dos intervalos. [37][37] Ver Ref. [13], p. 905–906.

Kepler finalizou sua contribuição para a ciência astronômica com a publicação em 1627 das “Tábuas Rudolfinas”, um compêndio de posições plenatárias e estelares geradas por Kepler a partir de dados observacionais obtidos por Tycho Brahe, por sua vez inseridos em um modelo planetário heliocêntrico constituído por órbitas elípticas, tal como concebido por ele mesmo, Kepler.

6. Conclusão

A obra astronômica de Kepler se estende essencialmente desde 1596, com o Mistério Cosmográfico, até 1627, data da publicação das “Tábuas Rudolfinas”. Ela contém diferentes elementos, que levaram a julgamentos distintos por sua posteridade.

Há nela, de saída, um forte elemento filosófico-teológico, que assume a forma de diretriz teórica para sua concepção astronômica e cosmológica. Assim, verificamos claramente no pensamento de Kepler a influência de elementos neoplatônicos e neopitagóricos, expressos em sua ênfase central na idéia de um Cosmos ordenado segundo relações matemáticas de natureza geométrica e harmônica, como manifestação máxima da perfeição da Criação Divina. Essa vertente se traduziu, por exemplo, em seu modelo cosmológico dos sólidos geométricos inscritos e circunscritos, propostos já na primeira obra, e nas relações harmônicas entre as distâncias dos planetas ao Sol e seus períodos orbitais, que se converteram no que ficou conhecido como sua terceira lei do movimento planetário.

No entanto, há outros elementos presentes na obra de Kepler, de natureza metodológica, que podem com ampla justiça ser incluídos na concepção de ciência surgida na era Moderna. Em particular, verificamos como a sua abordagem a respeito da questão da forma das órbitas planetárias se deu a partir de um esquema de formulação de hipóteses e confrontação com dados empíricos. De início, Kepler se manteve na tentativa de descrever os movimentos dos planetas em termos de figuras circulares. No entanto, essa tentativa foi terminantemente frustrada pelos dados observacionais. Assim Kepler abandonou esse paradigma, duas vezes milenar, da circularidade, primeiro em favor de uma forma oval, também inconciliável com os dados de que dispunha, e, por fim, das formas elípticas. Note-se o que os estudiosos não se furtaram de enfatizar: a rejeição da circularidade se deu por uma incompatibilidade muito pequena entre as previsões teóricas e os dados experimentais; mais precisamente, uma diferença angular de apenas oito minutos verificada na órbita do planeta Marte, o que nos permite interpretar como um exemplo contundente da convicção metodológica de Kepler da necessidade de confirmação experimental das hipóteses assumidas.

Afora as questões epistemológicas referentes a método, temos o conteúdo científico propriamente dito dessa contribuição astronômica: além de chegar à forma elíptica das órbitas (Primeira Lei do movimento planetário) e à relação entre os períodos orbitais e as distâncias médias ao Sol (Terceira Lei), Kepler também formulou a chamada “lei das áreas” (segunda lei). Todavia, mais do que isso, Kepler foi responsável por reformulações cruciais do pensamento científico, por exemplo, estabelecendo a universalidade das leis físicas, isto é, a aplicabilidade do raciocínio físico ao domínio celeste, antes reservado exclusivamente à astronomia, rompendo assim a dicotomia aristotélica entre dois mundos materialmente distintos e radicalmente separados. Novamente segundo Koyré, pode-se dizer que a ciência moderna nasceu quando se unificaram em uma mesma resposta as questões: ‘o que move os planetas?’ e ‘o que move os projéteis?’.

De fato, Kepler promoveu essa unificação impondo a necessidade de uma explicação física para o movimento dos planetas, a qual formulou em termos de uma força, de natureza magnética, do Sol sobre eles. Some-se a isso o tratamento essencialmente matemático que deu à questão, com a hipótese de uma ação solar de intensidade inversamente dependente da distância, que, se posteriormente não se mostrou correta, certamente estabeleceu uma diretriz para a concepção científica da ação gravitacional que encontraria uma forma acabada com Isaac Newton. Por todos esses méritos, seu nome surge hoje na historiografia da ciência como uma figura central no desenvolvimento da chamada “Revolução Científica” dos Séculos XVI e XVII.

Finalmente, a obra de Kepler corresponde à obra de um homem tomado pelo propósito de compreender e revelar a perfeição do planejamento Divino. Para ele, suas descobertas tiveram o valor de verdadeiras epifanias; o Senhor lhe havia concedido contemplar a terra prometida do alto da montanha. Na reedição do Mistério Cosmográfico, em 1621, ele próprio afirma: “nunca antes tinha sido dado a alguém se lançar de maneira tão afortunada em tão maravilhosa obra, e tão digna do objeto ao qual foi devotada”.

Mas, foi dito anteriormente que, além dessa força motriz do Sol existe uma inércia natural dos próprios planetas em relação ao movimento: de onde, em razão de sua matéria, eles são inclinados a permanecer no mesmo lugar. Deste modo, o poder motor do Sol [“potentia vectoria”] e a impotência ou inércia material do planeta estão em guerra um com a outra. [38][38] Ver Ref. [13], p.899.

  • 2
    A esfera de Mercúrio estaria inscrita em um octaedro, por sua vez inscrito na esfera de Vênus; esta esfera estaria inscrita em um icosaedro; a da Terra em um dodecaedro; a de Marte em Tetraedro; a de Júpiter em um cubo, finalmente inscrito na esfera de Saturno
  • 3
    O equanto seria um ponto em torno do qual os planetas, em sua órbita, descreveriam ângulos a ritmos constantes, isto é, tomando-o como vértice do ângulo subentendido pelo arco de círculo descrito pelo planeta em um certo tempo, para intervalos de tempo iguais, esses ângulos seriam iguais
  • 4
    T.A.
  • 5
    T.A.

Referências

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    Ver Ref. [10], p. 52.
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    Carta de Kepler a Mästlin, de 2 de agosto de 1595, apud Ref. [10], p. xii.
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    Ver Ref. [11], p. 183.
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    Ver Ref. [11], p. 128.
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  • [38]
    Ver Ref. [13], p.899.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2014
  • Aceito
    01 Fev 2015
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