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Michell, Laplace e as estrelas negras: uma abordagem para professores do Ensino Médio

Michell, Laplace, and the Dark Stars for high school teachers

Resumos

O conceito moderno de buraco negro como uma região do espaço-tempo da qual a luz não pode escapar tem suas origens no século 18 com John Michell e Pierre Simon Laplace. Neste trabalho apresentamos as abordagens destes dois cientistas buscando dar ao professor do ensino médio subsídios para a compreensão das idéias precursoras do buraco negro moderno da teoria de Einstein da gravitação.

Palavras-chave:
estrelas negras; buracos negros; gravitação; velocidade de escape


The modern concept of a black hole as a region of spacetime from which light cannot escape owns its origins to John Michell (1724-1793) and Pierre Simon Laplace (1749-1827). In the present work we review the approaches of these distinguished scientists in an attempt to provide the high school teacher with tools to understand those early ideas before the advent of the modern black hole of Einstein's gravitational theory.

Keywords:
Dark stars; black holes; gravitation; escape velocity


1. Introdução

O conceito moderno de buraco negro como uma região do espaço-tempo da qual a luz não pode escapar tem suas origens no século 18 com o reverendo inglês John Michell (1724-1793) que propôs a existência de estrelas invisíveis para o observador - estrelas negras- porque a luz não poderia escapar da atração gravitacional gerada por elas. A sugestão de Michell está em um trabalho apresentado perante a Royal Society de Londres por Henry Cavendish (1731-1810) em três sessões distintas: 11 e 18 de dezembro de 1783 e 15 de janeiro de 1784 [1[1] W. Israel, in: Three Hundred Years of Gravitation, edited by S.W. Hawking and W. Israel (CUP, Cambridge, 1987)., 2[2] C. Montgomery, W. Orchiston and I. Whittingham, J. of Astron. Hist. and Her. 12, 90 (2009).] e publicado em 1784 nas atas da Royal Society [3[3] J. Michell, Phil. Transc. Roy. Soc. of London 74, 35 (1784).]. Cavendish era considerado o mais importante cientista teórico e experimental do Reino Unido em seu tempo e a apresentação e leitura pública dos resultados de Michell atesta a afinidade cientí fica entre os dois filósofos naturais, ambos newtonianos convictos e adeptos da aplicação da teoria à obtenção de resultados concretos aplicáveis às observações experimentais. Ambos também eram adeptos do modelo corpuscular da luz. A importância dos trabalhos científicos de Michell como astronômo e sismólogo com contribuições importantes para estas áreas da ciência só recentemente começou a ser reconhecida [1[1] W. Israel, in: Three Hundred Years of Gravitation, edited by S.W. Hawking and W. Israel (CUP, Cambridge, 1987)., 4[4] G. Gibbons, New Scientist, 28, 1101 (1979).].

Em 1796, doze anos após o trabalho de Michell ter sido apresentado por Cavendish perante a Royal Society e publicado nas suas atas [3[3] J. Michell, Phil. Transc. Roy. Soc. of London 74, 35 (1784).], Pierre Simon, Marquês de Laplace ou Pierre Simon Laplace (1749-1827) como é mais conhecido, escreve sem demonstrar [5[5] P.S. Laplace, Exposition du Sistéme du Monde (Duprat, Paris, 1796), partes I e II.]:

A atração gravitacional de uma estrela com um diâmetro de 250 vezes o diâmetro do Sol e comparável em densidade com a [densidade] da Terra seria tão grande que a luz não poderia escapar da sua superfície. Os maiores corpos do Universo poderiam ser invisíveis por causa da sua magnitude [da velocidade de escape].

Em 1799, atendendo ao pedido do editor de uma revista geográfica alemã, Laplace publica sua demonstração [6[6] P.S. Laplace, Allegemeine Geographische Ephemeriden 4, 1 (1799).].

Aqui descreveremos a parte do trabalho de Michell de 1784 concernente à possibilidade da existência de estrelas negras e a versão de Laplace do mesmo conceito. Para facilitar a compreensão, a linguagem newtoniana essencialmente geométrica do original1 1 “Mesmo o estilo geométrico de raciocínio de Michell é profundamente newtoniano”, W. Israel em [1] será traduzida para a linguagem dos textos modernos de cálculo e mecânica clássica como sugerido em [2[2] C. Montgomery, W. Orchiston and I. Whittingham, J. of Astron. Hist. and Her. 12, 90 (2009).]. O objetivo último do presente trabalho é dar ao professor do Ensino Médio subsídios para a compreensão das idéias precursoras do buraco negro moderno da gravitação relativística. Para isto, na seção 2, seguimos a referência [2[2] C. Montgomery, W. Orchiston and I. Whittingham, J. of Astron. Hist. and Her. 12, 90 (2009).] e apresentamos detalhadamente o cálculo de Michell e na seção 3, a versão de Laplace. Na seção 4, tecemos alguns comentários finais.

2. A estrela negra de Michell e a velocidade de escape

No diagrama que acompanha o trabalho original de Michell - ver Figura 1 - O círculo de raio R=|CD| representa uma estrela de massa M, a semirreta vertical AdC representa a distância radial r ao centro da estrela, ponto C, e os segmentos de reta horizontais representam o módulo da força gravitacional F(r) ou da aceleração gravitacional a(r) 2 2 Newton, logo, Michell, sabia que a massa inercial e a massa gravitacional do corpo de prova eram equivalentes. . Por exemplo, como o comprimento do segmento de reta dr é menor do que o comprimento de DR, a intensidade da força/aceleração gravitacional em r=|Cd| é menor do que em r=R=|CD|. Em linguagem moderna, o diagrama de Michell representa o gráfico da força/aceleração gravitacional como função da distância radial ao centro da estrela.

Figura 1
Figura original do trabalho de 1784 de J. Michell.

A ideia de Michell é calcular a velocidade radial terminal de um corpo de massa m que parte com velocidade inicial nula de uma distância radial r tal que rR, quando este atinge a superfície da estrela em r=R. Esta velocidade será igual à velocidade de escape no problema do movimento inverso, isto é: ela será a resposta à pergunta: com que velocidade deve ser lançado um corpo se quisermos que ele chegue ao infinito com velocidade nula?

A velocidade radial em um ponto da reta AC, digamos d, pode ser calculada com a Proposição 39 dos Principia de Newton [8[8] I. Newton, The Principia, translated by A. Motte (Prometheus Books, New York, 1995).] pela qual fica demonstrado que o quadrado da velocidade do corpo em d é igual ao dobro da área do retângulo rdC, e como rdC é a quadratura de BAdr, também é igual ao dobro da área BAdr, isto é:

(1) v 2 = 2 × r d C = 2 × B A d r .

A demonstração deste resultado em notação moderna encontra-se no Apêndice. Por outro lado, a área do retângulo rdC é igual a

(2) r d C = G M r 2 × r = G M r .

Na superfície da estrela, r=R, a área do retângulo CDR será igual a

(3) C D R = G M R ,

que por sua vez é igual à área sob a curva BADR. Segue então que

(4) v 2 = 2 × B A D R = 2 G M R .

De um ponto de vista moderno, este resultado segue do teorema trabalho-energia cinética:

(5) W = Δ K = m v 2 2 - m v 0 2 2 ,

onde

(6) W = - r G M m r 2 d r .

Como no caso a velocidade inicial é nula, obtemos para um r arbitrário:

(7) v 2 = 2GM r .

Voltemos à abordagem de Michell e suponhamos agora que a estrela tenha uma densidade uniforme ρ, isto é: ρ=4πM3R3. Então, para um r arbitrário, a velocidade radial se escreve,

(8) v 2 = γ ρ R 3 r ,

onde

(9) γ ≡ 3 G .

Na superfície da estrela, a velocidade radial terminal é

(10) v 2 = γ ρ R 2 .

Para completar o cálculo da velocidade terminal é preciso rescrevê-la em termos de quantidades mais convenientes à observação astronômica. Michell sabia que a velocidade radial terminal de um corpo em queda livre a partir do repouso e de uma altura infinita é igual àquela que ele teria em uma órbita parabólica osculante à superfície do Sol no ponto de retorno, o ponto no qual a velocidade radial é zero. De fato, a energia de um corpúsculo de massa m no problema de Kepler se escreve [7[7] R.D. Gregory, Classical Mechanics (CUP, Cambridge, 2006).]:

(11) E = m 2 2 + 2 2 m r 2 - G M m r ,

onde supusemos que mM e

(12) = m r 2 θ ,

é o momento angular do corpúsculo em relação ao centro geométrico do Sol. Aqui θ é o ângulo entre o vetor posição do corpúsculo com origem no centro de força e o eixo principal de simetria da órbita - Figura 2. A solução do problema de Kepler é dada por três famílias de órbitas conhecidas coletivamente como cônicas: a elipse, a parábola e a hipérbole. A órbita circular é um caso particular da elipse. Para uma órbita parabólica, o corpúsculo parte do repouso de uma distância inicial r muito maior do que o raio do Sol, i.e.: podemos tomar o limite r na equação para a energia. Mas observe que na órbita parabólica, o momento angular não pode ser nulo, logo devemos impor a condição θ→ 0 no limite r→∞ de tal modo que o produto r2θ seja constante. Como na órbita parabólica, a energia mecânica inicial E é nula e como a atração gravitacional newtoniana é uma força conservativa, a energia mecânica será nula durante todo o movimento, e mais ainda, como no ponto em que a parábola tangencia a superfície do Sol, a velocidade radial é nula, podemos escrever

Figura 2
Órbita parabólica que roça a superfície do Sol no ponto de retorno.
(13) - G M + ( R θ ) 2 2 R = 0 .

Mas, Rθ é a velocidade tangencial V do corpo no ponto de retorno, logo

(14) V 2 = 2 G M R ,

isto é, a mesma que teria em queda livre a partir do repouso ao atingir a superfície do Sol! Portanto, V=v.

Michell a seguir relaciona a velocidade radial terminal do corpo em queda livre com a velocidade tangencial da Terra em sua órbita ao redor do Sol. Isto pode ser feito da seguinte forma: considere a órbita aproximadamente circular3 3 A excentricidade da órbita da Terra em torno do Sol é muito pequena: ε=0,00335, a aproximação de órbita circular funciona muito bem no que diz respeito aos aspectos pedagógicos. de raio D da Terra em torno do Sol. A força sobre a Terra é fornecida pela força de atração gravitacional, logo

(15) G M D 2 = V 2 D ,

onde V é a velocidade tangencial da Terra em torno do Sol. Portanto,

(16) V 2 = G M D .

O raio da órbita da Terra pode ser escrito como um múltiplo simples do raio do Sol, isto é: D= λR, onde λ=214,64, logo, podemos escrever:

(17) V 2 = G M λ R = 2 × G M (2λ) × R = v 2 .

Segue que:

(18) v 2 = 429,28 V 2 ,

ou, extraindo a raiz quadrada de ambos os lados desta equação:

(19) v = 20,72 V .

Michell sabia que a velocidade da luz, c, era igual a 10310 vezes a velocidade tangencial da Terra em torno do Sol, 4 4 A velocidade da luz foi medida por James Bradley (1693-1762) em 1728. Bradley usou o método da aberração estelar (descoberta por ele) e obteve o valor: c=301000km/s. Este valor significa que a velocidade tangencial da Terra é: 29, 19km/s. O valor moderno da velocidade tangencial média (velocidade orbital) é 29, 78km/s. isto é:

(20) c = 10 310 V .

Segue que

(21) c v = 10 310 20,72 ≈ 498.

Suponha agora que c seja a velocidade terminal de um corpúsculo de luz que atinge a superfície de uma estrela de raio R que tem a mesma densidade que o Sol. Então, podemos escrever:

(22) c 2 = γ ρ R 2 .

Segue que

(23) c v = R R = 498,
isto é, se uma estrela tiver um raio igual a 498 vezes o raio do Sol, a sua velocidade de escape será igual a velocidade da luz! Nas palavras de Michell:

.. se o semi-diâmetro de uma esfera com a mesma densidade do Sol excedesse o semi-diâmetro do Sol na proporção de 500 para 1, um corpo que caísse de uma altura infinita em direção a ela [a esfera] teria na sua superfície uma velocidade maior do que a velocidade da luz, e consequentemente, supondo que a luz fosse atraída pela mesma força em proporção com sua vis inertiae [massa], como outros corpos, toda a luz emitida por tal corpo [a esfera] retornaria a ele em razão da sua própria gravidade [3[3] J. Michell, Phil. Transc. Roy. Soc. of London 74, 35 (1784).].

A estrela negra de Michell é a versão newtoniana dos buracos negros previstos pela teoria relativística da gravitação de Einstein.

2.1. A massa da estrela negra de Michell

De acordo com a descrição de Michell, uma estrela com um raio aproximadamente igual a 500 vezes o raio do Sol e mesma densidade (ρ=1,41×103kg/m3) terá uma massa igual a

(24) M estrela negra = (500) 3 M = 1.25 × 10 8 M ,

onde M=1,99×1030 kg é a massa do Sol. Como comparação, tenhamos em mente que um buraco negro estelar tem uma massa entre 5 e 30 massas solares. A estrela negra de Michel tem uma massa da ordem de um buraco negro supermassivo cuja massa está entre 106 e 109 massas solares.

3. A estrela negra de Laplace

Vejamos agora como Laplace construiu sua versão newtoniana de uma estrela negra. Eis aqui em notação moderna, o cálculo de Laplace ao longo das linhas esboç adas em [2[2] C. Montgomery, W. Orchiston and I. Whittingham, J. of Astron. Hist. and Her. 12, 90 (2009).].

Seja m a massa do corpúsculo de luz5 5 Laplace, assim como Michell, adota o modelo corpuscular para a luz. Mais tarde, como consequência dos experimentos de Young que favoreceram o modelo ondulatório, abandonaria o modelo corpuscular e o cálculo da velocidade de escape. . Por simplicidade, consideremos apenas o seu movimento radial. Fazendo uso da lei newtoniana do movimento escrevemos:

(25) F = m d v d t = m d r d t d v d r = m v d v d r .

Mas, como o corpúsculo está sujeito à lei de atração universal, o lado esquerdo da equação acima se escreve:

(26) F = - G M m r 2 .

O sinal negativo indica que a força gravitacional atua no sentido oposto ao movimento radial do corpúsculo de luz. Portanto, podemos escrever

(27) - G M r 2 d r = v d v .

Integrando ambos os lados desta equação:

(28) 2 G M r + 2 A = v 2 ,

onde A é uma constante de integração a ser determinada. Suponha agora que c seja o módulo da velocidade da luz na superfície da estrela cujo raio é R, isto é:

(29) 2 G M R + 2 A = c 2 ,

logo,

(30) 2 A = c 2 - 2 G M R ,

e a velocidade radial em função de r se escreve:

(31) v 2 = c 2 - 2 G M R + 2 G M r .

Considere uma segunda estrela de massa M=αM, onde α é um número real maior do que a unidade. Suponhamos que o corpúsculo de luz tenha a mesma velocidade radial inicial que no caso anterior. Então é fácil ver que podemos escrever,

(32) v 2 = c 2 - 2 G α M R + 2 G α M r ,

onde Ré o raio da segunda estrela. Suponhamos agora que r→∞, então:

(33) v 2 = c 2 - 2 G α M R .

Agora façamos a suposição adicional de que para a segunda estrela, a atração gravitacional seja tão forte que quando r→∞ o corpúsculo de luz tenha velocidade radial nula, isto é: v=0. Segue que

(34) c 2 = 2 G α M R .

Agora vejamos o ponto crucial do argumento de Laplace: a determinação de α. Se supusermos que as estrelas têm densidade uniforme podemos escrever:

(35) M M = ρ R 3 ρ R 3 ,

onde ρ e ρ são as densidades da primeira e da segunda estrela, respectivamente. Laplace agora faz uso da suposição apresentada na primeira parte de [5[5] P.S. Laplace, Exposition du Sistéme du Monde (Duprat, Paris, 1796), partes I e II.]: o raio da segunda estrela é 250 vezes maior do que o raio da primeira6 6 Pelo exposto antes, no contexto, o termo diâmetro deve ser interpretado como o raio , isto é: R=250R. Segue que:

(36) 1 α = ρ (250) 3 ρ ,

ou

(37) α = (250) 3 ρ ρ .

Substituindo este resultado na equação para c2 obtemos:

(38) ρ ρ = c 2 R 2 (250) 2 M .

Observe que a densidade relativa da segunda estrela depende da massa e do raio da primeira, o que sugere a escolha de uma estrela conhecida para a determinação da densidade da segunda estrela, a estrela negra. Laplace escolhe então o Sol como a primeira estrela, isto é: R =R e M=M. A seguir, Laplace relaciona c com as observações relativas ao movimento da Terra em torno do Sol. Do diagrama 1 da Figura 3, podemos escrever

Figura 3
Diagramas para o cálculo de Laplace.
(39) G M M D 2 = M V 2 D ,

onde D é a distância média entre o Sol e a Terra e V é a velocidade tangencial desta última. Segue que a massa do Sol pode ser escrita como

(40) M = V 2 D G .

Substituindo na expressão para a densidade relativa temos finalmente:

(41) ρ ρ ρ rel ao Sol = 8 (1000) 2 a V 2 R D .

Desprezando os efeitos gravitacionais que o Sol exerce sobre o corpúsculo luminoso, Laplace faz uso das medidas conhecidas na época da aberração da luz solar

(42) c V = 1 tan 20,2 5 ′′ .

Por outro lado, do diagrama 2 da Figura 3, e usando os resultados observacionais da época:

(43) R D = tan1 6 2 ′′ .

Portanto, a densidade da segunda estrela - a estrela negra - é

(44) ρ rel ao Sol = 8 tan1 6 2 ′′ 1000 tan 20,2 5 ′′ 2 ≈ 4.

Este valor está próximo ao valor da densidade da Terra, isto é ρrel Terra/ Sol=5513∕1420 ≈ 4. Portanto, a estrela negra de Laplace deve ter um diâmetro 500 vezes maior do que o diâmetro do Sol e uma densidade igual a densidade média da Terra. Em termos de massas solares, a massa dessa estrela seria:

(45) M estrela negra = 4 × M R 3 × (250) 3 R 3 = 6,257 M .

Este valor é 10 vezes menor do que o valor obtido por Michell: 1,25×108M e está em desacordo com o valor citado em [2[2] C. Montgomery, W. Orchiston and I. Whittingham, J. of Astron. Hist. and Her. 12, 90 (2009).].

Como curiosidade, podemos obter o valor da velocidade da luz usada por Laplace e compará-la com o valor moderno. A expressão para c2 pode ser rescrita na forma:

(46) c 2 = 2 (250) 2 G M ρ rel ao Sol R .

Dividindo ambos os lados pelo quadrado do valor aceito para o módulo da velocidade da luz, identificando o raio de Schwarzschild do Sol, extraindo a raiz quadrada e inserindo o valor 4 para a densidade relativa ao Sol da estrela negra, temos:

(47) c c atual = 500 × R S R .

Como para o Sol: RS=2,95km, e R=696000km, obtemos:

(48) c = 1,029 c atual .

Este é o módulo da velocidade limite. Para um valor infinitesimalmente inferior a este limite, a luz não consegue escapar da atração gravitacional da estrela negra. Isto não significa necessariamente que o corpúsculo de luz não possa ser emitido da superfície da estrela, mas acabará por ser atraído e voltará. Um observador distante não perceberia a radiação e a estrela para ele seria negra.

4. Comentários finais

O cálculo pioneiro de John Michell nos mostra que para uma estrela com uma densidade igual à densidade do Sol, mas raio 500 vezes maior, a velocidade de escape é igual à velocidade da luz, logo, é capaz de aprisionar a luz. Tal estrela seria invísivel aos observadores aqui na Terra o que levou Michell a ponderar sobre a existência de muitas delas:

Se na Natureza existem realmente corpos cuja densidade não é menor do que a [densidade] do Sol, e cujos diâmetros [raios] são 500 vezes maiores do que o diâmetro [raio] do Sol, como sua luz não poderia chegar até nós; ou se existem outros corpos de menor tamanho que são naturalmente não-luminosos, sobre suas existências nessas circuntâncias não poderíamos ter informações provindas da luz [emitida]; ainda assim, se outros corpos luminosos revolvessem em torno deles. P oderíamos talvez a partir do movimento revolvente desses corpos inferir a existência dos corpos centrais com um certo grau de probabilidade, já que isto poderia dar uma pista para algumas das irregularidades dos corpos revolventes, as quais não poderiam ser explicadas facilmente com outras hipóteses… [3[3] J. Michell, Phil. Transc. Roy. Soc. of London 74, 35 (1784).].

É notável a confiança de Michell nos métodos da mecânica newtoniana e sua antecipação de um dos métodos modernos de detectar buracos negros. Uma descrição pedagógica sobre a detecção do buraco negro no centro da Via Láctea que faz uso da terceira lei de Kepler não-relativística, ver Figura 4, uma consequência das leis da mecânica newtoniana, é apresentada em [9[9] M.J. Ruiz, Phys. Teach. 46, 10 (2008).]. Longe do buraco negro, a terceira de Kepler pode dar-nos um resultado aceitável para a sua massa que, no caso, foi estimada em 4×106M, isto é: 4 billhões de massas solares.

Figura 4
O buraco negro no centro da nossa galáxia. A estrela amarela no centro da imagem marca a posição do buraco negro. Órbitas de várias estrelas são mostradas. (Imagem Telescópio Keck/UCLA Galactic Center Group.)

Como vimos também, o grande físico-matemático francês Pierre Simon Laplace apresentou também a sua versão newtoniana de uma estrela negra, [5[5] P.S. Laplace, Exposition du Sistéme du Monde (Duprat, Paris, 1796), partes I e II., 6[6] P.S. Laplace, Allegemeine Geographische Ephemeriden 4, 1 (1799).], mas na terceira edição da Exposition du Sistème du Monde, ela já não aparece. O motivo parece ter sido a comprovação experimental de que a natureza da luz é ondulatória e, naturalmente, nessa época um comportamento dual da luz estava fora de cogitação.

  • 1
    “Mesmo o estilo geométrico de raciocínio de Michell é profundamente newtoniano”, W. Israel em [1[1] W. Israel, in: Three Hundred Years of Gravitation, edited by S.W. Hawking and W. Israel (CUP, Cambridge, 1987).]
  • 2
    Newton, logo, Michell, sabia que a massa inercial e a massa gravitacional do corpo de prova eram equivalentes.
  • 3
    A excentricidade da órbita da Terra em torno do Sol é muito pequena: ε=0,00335, a aproximação de órbita circular funciona muito bem no que diz respeito aos aspectos pedagógicos.
  • 4
    A velocidade da luz foi medida por James Bradley (1693-1762) em 1728. Bradley usou o método da aberração estelar (descoberta por ele) e obteve o valor: c=301000km/s. Este valor significa que a velocidade tangencial da Terra é: 29, 19km/s. O valor moderno da velocidade tangencial média (velocidade orbital) é 29, 78km/s.
  • 5
    Laplace, assim como Michell, adota o modelo corpuscular para a luz. Mais tarde, como consequência dos experimentos de Young que favoreceram o modelo ondulatório, abandonaria o modelo corpuscular e o cálculo da velocidade de escape.
  • 6
    Pelo exposto antes, no contexto, o termo diâmetro deve ser interpretado como o raio

Agradecimentos

Os autores agradecem aos colegas Filadelfo C. Santos e Mariana Francisquini pela leitura atenta do manuscrito original.

Apêndice: a Proposição 39

Na Proposição 39, Newton considera o movimento retilíneo sob a ação de uma força centrípeta (central) arbitrária. Eis a proposição 39 na tradução dos autores:

Supondo [a existência de] uma força centrípeta de qualquer tipo e assegurando as [existências das] quadraturas [integrais] das figuras curvilíneas, pede-se encontrar a velocidade de um corpo, ascendente ou descendente sobre a linha reta nos vários pontos pelos quais [o corpo] passa; assim como o [instante de] tempo nos quais chegará em qualquer ponto [sobre a linha reta]; e vice versa.

Aqui apresentamos uma versão simplificada em notação moderna ao longo das linhas sugeridas por Chandrasekhar em [10[10] S. Chandrasekhar: Newton's Principia for the Common Reader (Clarendon Press, Oxford, 1995).] da parte da demonstração desta proposição que é relevante para o cálculo de Michell.

Considere a Figura 5 que mostra uma versão simplificada do diagrama que acompanha a demonstração de Newton, pois nele vemos apenas os elementos geométricos que estão diretamente relacionados com o resultado que Michell utilizou, isto é: a primeira parte da Proposição 39. A semirreta AEC representa a coordenada radial r que cresce no sentido de C para A. A semirreta AB representa a intensidade da aceleração centrípeta como função da coordenada radial, a(r). Portanto, a curva BFG é o gráfico de a(r). Segue que

Figura 5
Versão simplificada do diagrama que acompanha a Proposição 29.
D F G E = a ( E ) Δ E ;

mas

Δ E = v ( E ) Δ t ;

logo,

D F G E = a ( E ) v ( E ) Δ t ;

De acordo com a Segunda Lei de Newton:

a ( E ) Δ t = Δ [ v ( E )] = 1 2 Δ [ v 2 ( E )].

logo,

D F G E = v ( E ) Δ v ( E ) = 1 2 Δ[ v 2 ( E )].

Portanto, a área ABGE pode ser calculada integrando o resultado acima, isto é:

A B G E = ∫ D F G E .

Segue então que

A B G E = 1 2 [ v 2 ( E ) ],

ou ainda,

v 2 ( E ) = 2 × A B G E ,

que é o resultado que se queria demonstrar.

Referências

  • [1] W. Israel, in: Three Hundred Years of Gravitation, edited by S.W. Hawking and W. Israel (CUP, Cambridge, 1987).
  • [2] C. Montgomery, W. Orchiston and I. Whittingham, J. of Astron. Hist. and Her. 12, 90 (2009).
  • [3] J. Michell, Phil. Transc. Roy. Soc. of London 74, 35 (1784).
  • [4] G. Gibbons, New Scientist, 28, 1101 (1979).
  • [5] P.S. Laplace, Exposition du Sistéme du Monde (Duprat, Paris, 1796), partes I e II.
  • [6] P.S. Laplace, Allegemeine Geographische Ephemeriden 4, 1 (1799).
  • [7] R.D. Gregory, Classical Mechanics (CUP, Cambridge, 2006).
  • [8] I. Newton, The Principia, translated by A. Motte (Prometheus Books, New York, 1995).
  • [9] M.J. Ruiz, Phys. Teach. 46, 10 (2008).
  • [10] S. Chandrasekhar: Newton's Principia for the Common Reader (Clarendon Press, Oxford, 1995).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2016
  • Revisado
    24 Fev 2016
  • Aceito
    29 Fev 2016
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