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"Demonstração" da lei da inércia?

"Demonstration" of inertia's law?

Resumos

Há muitas sugestões de "demonstrações" da lei de inércia, tanto na rede mundial de computadores quanto em livros texto de ensino de Física. A questão explorada nesse trabalho é: essas demonstrações põem de fato a inércia em destaque? Na primeira parte do artigo, argumenta-se que, em muitos casos, não. É então explorada a manipulação na qual uma tira de papel colocada entre duas garrafas, equilibradas pelos seus gargalos, é retirada, sem que elas caiam. O resultado final (a garrafa não cair) dependerá da existência de uma força resultante, não dependerá (ou dependerá muito pouco) das massas envolvidas, e dependerá de forma decisiva da magnitude do intervalo de tempo de aplicação da força; ou seja, a inércia não aparecerá em primeiro plano. Então, um procedimento alternativo é sugerido no qual objetos com massas diferentes apresentam estados finais de movimento também diferentes, quando submetidas a forças (aproximadamente) idênticas em intensidade e duração; nesse caso, é a segunda lei de Newton que é posta em evidência. Por fim, de um ponto de vista didático, os autores preconizam atividades experimentais argumentativas, em vez de demonstrativas.

Palavras-chave
ensino de física; inércia; leis de Newton; demonstração


There are many suggestions of "demonstrations" of the law of inertia, both in the internet and teaching physics textbooks. This work explores the following question: these demonstrations actually put the inertia in highlight? In the first part of the paper it is argued that not. The experiment explored in this work consists in a strip of paper between two bottles, balanced by its bottlenecks, which is removed without them falling. The experiment result, i.e., the upper bottle does not fall, will depend on the existence of a resultant force that does not depend (or depends a little) of the masses involved and decisively depends on the magnitude of the force application time interval. Then, an alternative experiment is suggested in which two objects with different masses receive different accelerations when subjected to forces (approximately) identical in magnitude and duration. In this experiment, Newton's second law allows a very rich analysis of the results. Finally, from a didactic point of view, the authors recommend that if the experiments are based on arguments instead of "demonstrations", the teaching of physics would be more clear and plausible.

Keywords
physics teaching; inertia; Newton's laws; demonstration


1. Introdução

Esse trabalho surgiu a partir da busca, na rede de computadores, de vídeos relativos às leis de Newton. Há um grande número deles (referências [1[1] https://www.youtube.com/watch?v=txfKsEEZNI8, acesso em 23/5/2016.
https://www.youtube.com/watch?v=txfKsEEZ...
] a [10[10] https://www.youtube.com/watch?v=r64lTH8YQXk, acesso em 3/5/2016.
https://www.youtube.com/watch?v=r64lTH8Y...
]), e em geral, apresentam "demonstrações" práticas das leis de Newton. Os vídeos apresentam um número significativo de acessos tanto dos vídeos em português como os de língua inglesa ([5[5] https://www.youtube.com/watch?v=T1ux9D7-O38, acesso em 23/5/2016.
https://www.youtube.com/watch?v=T1ux9D7-...
] e [6[6] https://www.youtube.com/watch?v=sabH4bJsxWA, acesso em 23/5/2016.
https://www.youtube.com/watch?v=sabH4bJs...
]), e por tratarem de um tema frequentemente abordado em sala de aula, é razoável supor que eles sejam visualizados, em número expressivo, por estudantes; um desses vídeos, por exemplo, teve mais de um milhão e meio de acessos [1[1] https://www.youtube.com/watch?v=txfKsEEZNI8, acesso em 23/5/2016.
https://www.youtube.com/watch?v=txfKsEEZ...
]. Além da satisfação de uma curiosidade natural, pode-se supor que o que é buscado também pelos estudantes é uma melhor compreensão das leis de Newton.

No que diz respeito à primeira lei de Newton, foram encontrados diversos vídeos, alguns deles exibindo variações de procedimentos conhecidos já há muito tempo e que eram apresentados muitas vezes como números de magia. Elas consistem em diferentes versões da que propõe retirar uma toalha posta sobre uma mesa, e sobre essa toalha são colocadas taças, garrafas, pratos e talheres. A toalha é puxada, bruscamente, e os objetos permanecem sobre a mesa, em seus lugares originais. Nos livros de física, como seria de esperar, também há referências [11[11] P.G. Hewitt, Física Conceitual (Bookman, Porto Alegre, 2011), 11ª ed.], [12[12] A. Máximo e B. Alvarenga Física: Contexto e Aplicações (Scipione, São Paulo, 2011), v. 1.] a tais "demonstrações". O fato de essas taças, garrafas e outros objetos permanecerem (praticamente) imóveis sobre a mesa é explicado pela inércia que apresentam. Esse procedimento não é de execução simples, e muitos objetos poderão ser quebrados até que a necessária habilidade em executá-lo seja adquirida. Então, exploraremos a seguir uma "demonstração" nessa linha, simples e fácil de executar; ela está esquematizada na Fig 1. Retire o papel que está entre as garrafas, sem que elas caiam, e sem tocar nelas diretamente (não é permitido segurá-las).

Figura 1
Tire o papel, sem tocar nas garrafas, e sem deixá-las cair.

Adiantemos o "truque": o papel deve ser puxado o mais rapidamente possível. Cabe aqui uma sugestão, de ordem prática: inicie o puxão com a mão que segura a tira de papel bem próxima ao gargalo da garrafa; assim, a tira estará inicialmente dobrada. Ao puxar rapidamente, a mão adquire maior velocidade, a tira estica, e sai do espaço entre as garrafas, sem que essas caiam. Outra variante da "demonstração" (veja a Fig 2) consiste em manter a tira esticada com uma mão, e com a outra mão, aplicar um "caratê" na região mediana da fita. Essa variante, um tanto mais "espetacular", é de execução simples, e funciona igualmente bem (veja também o vídeo produzido pelos autores em https://youtu.be/N0AwKiVS6VU).

Figura 2
Imagem de múltipla exposição do procedimento de retirada da tira de papel. O intervalo entre dois disparos sucessivos do flash é de 1/20 s. A nitidez das garrafas na imagem (de vidro, cada uma com massa de aproximadamente 0,5 kg), sugere que elas não se movem de maneira perceptível (veja também o vídeo produzido pelos autores em https://youtu.be/N0AwKiVS6VU)

A explicação convencional consiste em alertar que a garrafa superior (que é a que tem mais tendência a cair) não cai, porque ela está em repouso, e tende a permanecer assim, por conta de sua inércia. Retirar o papel não leva à queda da garrafa superior, desde que esse seja retirado rapidamente; nos vídeos (listados na bibliografia) e livros analisados, é feita menção à primeira lei de Newton. Em geral, apenas é mencionado que se trata da inércia, mas não é estabelecido nenhum procedimento argumentativo.

Analisemos, então, alguns aspectos físicos no experimento com as duas garrafas, como exibido na Fig. 1 e na Fig. 2.

2. Análise do experimento: as forças envolvidas

Os livros didáticos de ensino médio, e também os de Física introdutória da universidade, associam o conceito de inércia à primeira lei de Newton ([12[12] A. Máximo e B. Alvarenga Física: Contexto e Aplicações (Scipione, São Paulo, 2011), v. 1.], [13[13] C.M.A. Torres N.G. Ferraro e P.A.T. Soares, Física Ciência e Tecnologia, volume 1: Mecânica (Moderna, São Paulo 2010), 2ª ed.], [14[14] J.R. Bonjorno R.A. Bonjorno V. Bonjorno e C.M. Ramos, Física História & Cotidiano, Mecânica (FTD, São Paulo 2003).] e [15[15] A. Gaspar, Física Mecânica (Editora Ática, São Paulo 2002), 1ª ed.]). A gênese histórica do conceito, que remonta a Descartes é, via de regra, ignorada nesses textos. Além disso, não serão consideradas, nesse trabalho, conceituações de inércia associadas, por exemplo, à relatividade geral, por não terem relação com as demonstrações encontradas.

A argumentação que será construída a seguir parte, inicialmente, da primeira lei, tal como enunciada por Newton[16[16] I. Newton, Princípios Matemáticos de la Filosofia Natural (Alianza Editorial, Madri 1987), v. 1.]: "Todo corpo preserva seu estado de repouso ou de movimento uniforme e retilíneo a menos que seja obrigado por forças impressas a mudar seu estado"1 1 Tradução dos autores. O texto original (da versão espanhola consultada [16]) é "todo cuerpo persevera em su estado de reposo o movimiento uniforme y rectilíneo a no ser en tanto que sea obligado por fuerzas impressas a cambiar su estado" . Adicionalmente, lembremos que, como afirmam Serway e Jewett [17[17] R.A. Serway, J.W. Jewett Princípios de Física, Volume 1: Mecânica Clássica (Pioneira Thomson Learning, São Paulo 2005).], p. 111, "… a primeira lei de Newton é chamada algumas vezes lei da inércia", denominação que também é compartilhada por Chaves e Sampaio [18[18] A. Chaves e J.F. Sampaio, Física Básica: Mecânica (LTC, Rio de Janeiro 2011).], Knight [19[19] R. Knight, Física 1: Uma Abordagem Estratégica (Bookman, Porto Alegre, 2009), 2ª ed.], Young e Freedman [20[20] H.D. Young, R.A. Fredmann Física I Mecânica (Addison Wesley, São Paulo 2008), 12ª ed.] e Nussensveig [21[21] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica, 1 - Mecânica (Edgard Blücher, São Paulo, 1996), 3ª ed.].

Por outro lado, alguns livros de física [22[22] D. Halliday, and R. Resnick, Physics: For Students of Science and Engineering. Combined Edition (John Wliey & Sons, New York 1963).], [23[23] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos de Física, v. 1 Mecânica (LTC, Rio de Janeiro 2012), 9ª ed.] em nenhum momento identificam a primeira lei de Newton com a lei, ou princípio, da inércia. Esse fato parece indicar que não há um consenso nessa denominação para a primeira lei de Newton. Em um trabalho recente sobre a força de inércia [24[24] J.P.M.C. Chaib e M.C. Caderno Brasileiro de Ensino de Física 33, 142 (2016).], Chaib e Aguiar afirmam que muitas vezes a primeira lei é chamada erroneamente de "Princípio da Inércia" (grifo nosso).

No contexto desse trabalho, a massa será considerada "[…] uma medida quantitativa da inércia […]" [25[25] R.P. Feynman, R.B. Leighton e M. Sands, Lições de Física de Feynman (Bookman, Porto Alegre 2008), v. 1.]. Então, é de se esperar que "demonstrações" da inércia apresentem claramente as "forças impressas" (para usar os termos de Newton), e também levem em conta as massas (inerciais) envolvidas. Considerando a manipulação sugerida acima, de fato, as garrafas "preservam seu estado de repouso", e a "prova"eloquente dessa afirmação seria a de que a garrafa superior não cai.

Analisemos então as forças envolvidas no sistema da Fig 1. A garrafa superior está submetida à força peso, e a garrafa inferior exerce uma força de reação sobre o conjunto papel - garrafa superior. (Trataremos predominantemente da garrafa superior, pois é a que tem a maior tendência a cair; a garrafa sobre a mesa é bem mais estável, por estar apoiada numa base maior.) Esse conjunto força peso - força de reação, na direção vertical, não configura nenhuma "força impressa" que altere o estado de repouso ou movimento das garrafas (a menos que a garrafa superior caia). A força que poderia produzir movimento é a força de atrito, na direção horizontal, entre a garrafa e o papel, quando esse é puxado. Essa é a força que poderia alterar o estado (de repouso) das garrafas, especialmente a garrafa superior, o que a faria facilmente cair, dado seu equilíbrio precário. Analisemos duas situações extremas, do ponto de vista das forças que poderia mover a garrafa: o papel é puxado lentamente (a garrafa cai) e o papel é puxado rapidamente (e a garrafa não cai, e nem se move de forma perceptível).

Se a tira de papel for puxada lentamente, não há movimento relativo entre a tira de papel e a garrafa (superior); ela sai para fora de sua base de apoio (o bico da garrafa inferior) e então, cai. A força que é responsável pelo movimento (lento) de translação da garrafa superior, até que ela perca sua base de apoio, é a força de atrito estático entre ela e o papel. Mas não é essa a situação explorada nas demonstrações mencionadas, e nem seria de esperar nenhum grande dividendo didático ao explorar essa situação (trivial).

Na segunda situação, a tira de papel é puxada tão rapidamente que a garrafa superior nem mesmo se move. Dessa vez a força presente entre a tira de papel e a garrafa superior é a de atrito cinético (o papel "escorrega" e sai). Essa é uma descrição (resumida) da demonstração, e deve então ser avaliada do ponto de vista da questão que move esse trabalho: a inércia aparece explicitamente em primeiro plano aqui? A resposta imediata é: não. Essa negativa vem do fato que é bastante razoável afirmar que o trabalho realizado pela força de atrito cinético resultou - nesse caso - predominantemente em um aumento da energia térmica do sistema. E então, não há força resultante; e a evidência disso é a ausência de movimento da garrafa superior. O estado inicial da garrafa é de repouso, o final, também, e não apareceram forças impressas capazes de mover a garrafa. Invocar a inércia aqui, apenas torna a exploração (didática) da "demonstração" menos clara.

Por fim, a situação intermediária: dependendo de como o procedimento é executado a garrafa superior balança, de forma suave mas visível, estabiliza depois de um certo tempo, e não cai. Nesse caso, uma parte do trabalho realizado pelas forças de atrito resultou num pequeno aumento da energia cinética, e não parece haver aqui nada de muito eloquente acerca da inércia: uma força impressa (pequena) resultou num movimento (proporcionalmente pequeno) da garrafa.

3. Análise do experimento: variando a massa

O que se poderia esperar de uma "boa" "demonstração" da inércia? Um movimento que se mantém (você está de pé no corredor de um ônibus em movimento, e esse freia bruscamente, por exemplo), ou a dificuldade para pôr em movimento uma grande massa, quando comparada a uma massa menor (é mais fácil colocar em movimento um balanço sobre o qual está uma criança de 10 kg do que outro, no qual está sentado um adulto de 90 kg). Ou alguma outra coisa do gênero, envolvendo movimento, ou a ausência dele, ou massas diferentes associadas a resultados também diferentes.

Nessa linha, e para explorar como a massa das garrafas poderia afetar a "demonstração", sugerimos uma variante do procedimento esquematizado na Fig 1, em duas versões: a primeira, com garrafas de massa maior, garrafas PET de 500 ml de capacidade, cheias de água, por exemplo. As mesmas garrafas PET, na segunda versão do procedimento, seriam empregadas quase vazias, o que implica numa massa muito menor (o ensaio poderia ser feito com a garrafa completamente vazia, mas nesse caso o equilíbrio é bastante precário, e é difícil até mesmo equilibrar as garrafas; a adição de uns 20 ou 30 ml de água na garrafa superior torna a tarefa de equilibralas pelos seus gargalos bem mais simples de executar, e é igualmente convincente). São apresentados a seguir (apenas em caráter indicativo) os valores das massas empregadas em um dos testes efetuados em ambiente de sala de aula: garrafa PET de 500 ml, vazia, com tampa, 25,5 g; com uma pequena quantidade de água acrescida, para facilitar o equilíbrio: 45,2 g. A massa de outra garrafa idêntica, porém cheia de água, (o máximo possível), foi de 554 g. A razão entre as massas, 554 g / 45,2 g, é então maior que 12. Outro detalhe deve ser considerado: as tampas das garrafas devem ser planas. Alguns fabricantes usam tampas ligeiramente convexas, o que torna o equilíbrio praticamente impossível. Veja também os vídeos em https://youtu.be/DRZRlkwJK4Q e https://youtu.be/zw4VNyJKHB4.

A expectativa, então, é a de que a garrafa cheia, por conta de sua massa maior, apresente uma inércia proporcionalmente maior, e a "demonstração" seja mais efetiva com ela e menos (muito menos!), com a garrafa quase vazia, de massa muito menor.

Isso é falso, e é fácil proceder a uma verificação empírica: ao executar a manipulação com garrafas cheias, e depois com garrafas quase vazias, a sensação é a de que a dificuldade para retirar o papel sem que as garrafas caiam é aproximadamente a mesma: é necessário puxar igualmente rápido o papel nos dois casos. O fato de a garrafa cheia possuir uma massa uma dezena de vezes maior que a da quase vazia não introduz nenhuma facilidade perceptível na retirada do papel, o que leva a afirmar que o sucesso da "demonstração" não depende (ou depende muito pouco) de a massa ser maior ou menor. A argumentação do item anterior ajuda a explicar esse fato: se não há movimento da garrafa, o trabalho da força de atrito (maior na garrafa mais massiva, e menor na menos massiva) resulta de forma predominante em um aumento da energia térmica. Também como já foi argumentado acima, se for observada uma pequena oscilação da garrafa, ela dever-se-á a uma força resultante, igualmente pequena. Novamente, não há nada muito eloquente a dizer acerca da inércia.

4. Análise do experimento: intervalo de tempo durante o qual a força impressa age

Examinemos então o intervalo de tempo durante o qual a força de atrito age, e verifiquemos sua relação com a inércia. Se a garrafa superior não se move, pode-se afirmar que esse tempo é, de fato, muito pequeno, tanto que - como foi ressaltado acima - o papel deve ser retirado muito rapidamente, do contrário ela cai. Uma análise quadro a quadro do vídeo desse movimento sugere que o intervalo de tempo para a fita sair do espaço entre as garrafas é de fato pequeno, menor que 1/60 s (os vídeos https://youtu.be/N0AwKiVS6VU, https://youtu.be/DRZRlkwJK4Q e https://youtu.be/zw4VNyJKHB4 foram produzidos com uma taxa de 60 quadros por segundo).

Há um bom número de programas de análise de imagens de vídeo que permite a reprodução quadro a quadro. Um deles, especialmente interessante no campo da didática da física, é o Tracker (http://www.opensourcephysics.org/items/detail.cfm?ID=7365). Se o leitor quiser transformar um desses quadros em imagem (foto) com a mesma resolução do vídeo original, sugerimos o programa de acesso livre "Reprodutor de Mídias VLC" (http://vlc-media-player.br.uptodown.com/). As imagens das garrafas PET, na Fig 3, foram retiradas do vídeo original por meio desse programa.

Figura 3
O quadro superior esquerdo foi retirado de um vídeo realizado com um pêndulo onde a massa é uma garrafa PET vazia (https://youtu.be/5SxpyhEV26o); a tira de papel está prestes a se romper. À direita, acima, foi selecionado o quadro onde a garrafa está na sua posição mais afastada do equilíbrio; é fácil perceber seu movimento por comparação com as duas réguas verticais. Os dois quadros inferiores retratam o mesmo procedimento, salvo que, dessa vez, a garrafa PET está cheia d'água (https://youtu.be/8sszBjX0FoA). Note que no segundo quadro (abaixo, à direita) a garrafa pouco se moveu. A foto vertical, à direita, mostra várias fitas de papel, prontas para serem usadas.

Intervalos de tempo de aplicação da força pequenos sugerem a exploração do teorema do impulso e variação da quantidade de movimento, teorema esse que deriva diretamente da segunda lei de Newton (ver próxima sessão). Novamente, o conceito de inércia não se faz necessário.

Se o papel é retirado lentamente, como já ressaltado, o intervalo de tempo de aplicação da força é maior e a garrafa superior se move (e cai). Outra forma de aumentar o tempo de aplicação da força de atrito do papel sobre a garrafa consiste em montar o sistema de modo que a sobra de papel (do lado direito das garrafas, na Fig 2) seja maior. Com isso, há um comprimento maior de papel para "sair" do espaço entre as garrafas, e a probabilidade de a garrafa superior cair aumenta, como seria de esperar. Esses resultados são triviais: há uma força resultante aplicada à garrafa, e ela se move. E, além de triviais, os resultados põem em primeiro plano a segunda lei de Newton, e não a inércia. Convenhamos que o caminho para chegar à inércia através dessa "demonstração" é um tanto tortuoso; a explicação funcionaria igualmente bem sem nenhuma alusão a ela.

5. Um procedimento onde a força resultante, a massa e o intervalo de tempo são (aproximadamente) controlados

A seguir, é sugerido um procedimento no qual a magnitude das forças impressas seja (aproximadamente) a mesma, a diferença nas massas empregadas seja um elemento central da explicação e o intervalo de tempo durante o qual a força é aplicada à tira de papel seja (também aproximadamente) o mesmo, e pequeno. Já que no item 2 foi sugerido o uso de garrafas PET e tiras de papel, é sugerida aqui uma variação dessa "demonstração": um pêndulo longo (1,5 m de comprimento é suficiente) no qual a massa suspensa é inicialmente uma garrafa PET vazia, e depois, uma garrafa PET idêntica, dessa vez, cheia de água. O uso de um pêndulo elimina para todos os efeitos práticos o atrito ao movimentar a garrafa.

Passemos então à descrição do procedimento. A partir de uma folha A4, recorte algumas tiras de papel, de aproximadamente 1,5 cm de largura e de uns 30 cm de comprimento. O tipo de papel e as dimensões são, evidentemente, apenas indicativos. Faça o corte com cuidado, de modo que as tiras não fiquem "dentadas", o que poderia provocar o rasgamento do papel nesses pontos, e assim tornar o procedimento menos convincente. Cortes precisos podem ser feitos com uma régua de aço e um estilete; veja a imagem à direita na Fig 3. Com o auxílio de fita adesiva, faça um laço em uma das extremidades da tira, no qual o gargalo da garrafa possa ser encaixado (quadro à direita, Fig 3); inicie - por exemplo - com a garrafa vazia. Encaixe esse laço no corpo da garrafa PET; deixe o pêndulo assim formado em sua posição de repouso. Se você puxar a outra extremidade da tira de papel (lentamente), o pêndulo sairá de sua posição de equilíbrio, o que é o resultado esperado.

Agora, segure firmemente a extremidade livre da tira de papel e puxe, o mais rapidamente que você puder. A tira de papel rompe, e a garrafa vazia move-se, bastante, em relação à sua posição de equilíbrio; veja as duas imagens superiores, na Fig 3 (veja também os vídeos em https://youtu.be/8sszBjX0FoA e https://youtu.be/5SxpyhEV26o). Em seguida, a massa é aumentada drasticamente; para isso, encha completamente a garrafa PET com água. Reponha uma nova tira de papel, e partindo da posição de repouso, puxe, rápido. A tira, mais uma vez, rompe, só que dessa vez a garrafa (cheia) praticamente não sai de sua posição de equilíbrio. Veja as duas imagens inferiores da Fig 3.

Como a tira de papel rompe nos dois casos, tanto com a garrafa vazia, quanto com a garrafa cheia, pode-se afirmar que as "forças impressas"às garrafas nos dois casos têm a mesma ordem de grandeza (mesmo que as forças difiram em intensidade, a diferença não é significativa a ponto de invalidar as argumentações feitas a seguir). O rompimento da tira de papel também sugere que o tempo de aplicação da força também não é muito diferente nos dois casos. O leitor interessado poderá visualizar esses dois procedimentos em https://youtu.be/5SxpyhEV26o e https://youtu.be/8sszBjX0FoA. Uma análise quadro a quadro desses vídeos mostra que a tira de papel rompe no momento em que a garrafa inicia seu movimento, esteja ela vazia, esteja ela cheia de água. Então, a hipótese de que o intervalo de tempo entre o início do "puxão" e o rompimento da tira de papel nos dois casos é comparável, novamente, parece razoável.

Por fim, o atrito ao mover as garrafas é muito pequeno, e de toda a forma, não é ele que poderia faze-las se mover, como nos experimentos anteriores. Então, uma alternativa plausível (e imediata) para explicar porque a garrafa vazia move-se bastante, e a garrafa cheia praticamente não se move, é a diferença de massa entre uma e outra. Convém lembrar aos estudantes: trata-se de uma diferença (de massa) por um fator de dez, ou mais. Enfatizando, a diferença entre as forças aplicadas, e a diferença nos intervalos de tempo de aplicação dessas forças, nos dois casos, é pequena, seguramente bem menor que o fator dez mencionado.

Dessa vez, para avaliar o resultado desse procedimento, a segunda lei será evocada, por conta do intervalo de tempo de aplicação da força, que é pequeno. A expressão original da segunda lei é: "A mudança do movimento é proporcional à força motriz impressa e ocorre segundo a linha reta ao longo da qual aquela força se imprime"2 2 Tradução dos autores. O texto na versão espanhola consultada é: "El cambio de movimiento es proporcional a la fuerza motriz impressa y ocurre según la línea recta a lo largo de la qual aquella fuerza se imprime". [16[16] I. Newton, Princípios Matemáticos de la Filosofia Natural (Alianza Editorial, Madri 1987), v. 1.]. Numa versão moderna, simbólica, quando a massa é constante, (o leitor deverá levar em conta que Newton nunca escreveu a segunda lei usando essa simbologia) têm-se que Fres= ma. Ou, sabendo que a =Δv/Δt é possível rearranjar e escrever

(1) F r e s Δ t = m Δ v ,

onde Fres é a força impressa, m, a massa, e Δv é a variação da velocidade. Ou seja, o impulso (FresΔt) é igual à variação da quantidade de movimento (mΔv). Então, o impulso produzido provocará uma variação da quantidade de movimento da garrafa suspensa. Como o impulso depende das dimensões das tiras de papel (iguais) e de seu rompimento, ele pode ser considerado (aproximadamente) o mesmo, tanto na versão da garrafa vazia quanto na da garrafa cheia (desde que o atrito seja desprezível, o que é o caso). Por consequência, a quantidade de movimento mΔv nos dois casos (garrafa vazia e garrafa cheia) é aproximadamente a mesma; se a massa m é pequena, Δv será grande. Inversamente, se m for grande, Δv será pequeno. E isso é o que se verifica, qualitativamente, na Fig 3.

6. Concluindo

A intenção nesse trabalho não foi a de encontrar erros nos trabalhos que apresentam demonstrações como algumas das aqui referidas, acusando-os de destacar a inércia lá onde ela não existe. Ela existe, sim; como referenciado anteriormente, se há massa, há inércia. Mas, e essa é a conclusão principal desse trabalho, não é ela, a inércia, que tem papel preponderante nessas "demonstrações", conforme foi argumentado. Partir do princípio de inércia e, em seguida, apresentar uma "demonstração" como a das garrafas equilibradas nos seus gargalos, dará ao estudante atento uma sensação de promessa não cumprida. Ou, o que é pior, a argumentação, por ser longa e intrincada (isso se ela for feita, e em geral, não é) o confundirá, se ele se der ao trabalho de retornar ao enunciado da primeira lei. A questão, como se pode perceber, é de cunho iminentemente didático. Ou seja, o desafio que se põe é o de criar condições para que os estudantes maximizem seu aprendizado.

Nesse ponto, o leitor talvez conjecture que não vale de fato a pena levar para o ambiente escolar esse tipo de experimento (o das garrafas apoiadas por seus gargalos). Não é essa a posição dos autores. O primeiro argumento em favor do uso dessas manipulações "espetaculares" no ambiente escolar é o de que os estudantes ficam motivados quando suas habilidades de execução e de compreensão são desafiadas ("você consegue tirar esse papel, sem tocar nas garrafas?" Ou, após ter tirado o papel: "porque elas não caem?")

O segundo argumento vai na direção do proveito didático que se pode tirar de tais situações. Para construí-lo, apresentamos uma descrição sumária de como poderia ser encaminhada uma sessão de questionamento. Após ter apresentado aos estudantes a manipulação das garrafas equilibradas por seus gargalos (Fig 1) o professor não evocaria, já de partida, o princípio de inércia, pondo sobre ele o foco das atenções. A discussão poderia iniciar (por exemplo) com a pergunta: há movimento das garrafas? As respostas, em princípio, serão negativas: a garrafa de cima nem mesmo cai! A pergunta seguinte poderia ser: qual é a força que poderia provocar a queda da garrafa? Se os estudantes se confundirem com a pergunta, puxe o papel, dessa vez, lentamente. A garrafa cai! Isso os levará a conjecturar, cedo ou tarde, que é a tira de papel que "puxa" a garrafa no sentido de seu movimento, e isso ocorre por conta da força de atrito entre ela e o papel. Terceira pergunta: qual das três leis de Newton estaria envolvida aqui? Talvez os estudantes tenham, inicialmente, alguma dificuldade em responder, mas se eles forem perguntados acerca do fato de existirem (ou não) forças "impressas", é bem provável que eles apontem o atrito entre o papel e a garrafa como sendo a força impressa, e por isso, a segunda lei seria a mais indicada para iniciar a análise. E assim por diante.

A conclusão estabelecida a seguir parte então de um pressuposto: não é o uso de um ou outro experimento "demonstrativo" que fará o estudante aprender, ou, inversamente, o confundirá. E, menos ainda, se trata aqui de desestimular o uso em ambiente didático de manipulações tais como as aqui descritas. É a própria palavra "demonstração" que configura o problema (didático) maior (por isso colocamos ao longo de todo o texto "demonstração" entre aspas). Num ambiente "demonstrativo", há um fluxo de ideias do professor na direção dos alunos; o fluxo inverso, dos alunos para o professor, em geral é menor, ou mesmo inexistente. O contraponto a essa situação é a promoção de um ambiente exploratório. Nele, os estudantes são instigados a serem críticos e questionadores. Ao professor ainda caberia (por certo!) fazer perguntas, mas, em igual proporção, ele procuraria ouvir e encaminhar as perguntas que os estudantes fazem. Assim, o ambiente de "experimento demonstrativo", se tornaria predominantemente "argumentativo". Se esses aspectos forem considerados, é bem possível que detalhes, tais como os apontados nesse trabalho, não escapem da atenção dos professores e dos estudantes. Não se correria o risco de denominar "demonstração" a uma atividade na qual o elemento que afirmamos ser o principal (a inércia) fica sempre em segundo plano. Num ambiente de argumentação, outros conceitos de física aparecerão, e é isso mesmo que é procurado na sessão 5. Novas possibilidades de investigações didáticas surgirão. O próprio termo "experimento" passa a ter um significado concreto, já que as manipulações são feitas com o objetivo explícito de provocar (e responder, quando possível) perguntas, perguntas essas especialmente autênticas quando formuladas espontaneamente pelos estudantes. As perguntas sempre são mais importantes do que as respostas, em especial quando as respostas vêm "prontas", quer dizer, não passam por um processo reflexivo por parte de quem as recebe. O conjunto de situações apresentadas nesse trabalho autorizam, acreditamos, a recomendar: em vez de "demonstrações", organize "argumentações"!

  • 1
    Tradução dos autores. O texto original (da versão espanhola consultada [16[16] I. Newton, Princípios Matemáticos de la Filosofia Natural (Alianza Editorial, Madri 1987), v. 1.]) é "todo cuerpo persevera em su estado de reposo o movimiento uniforme y rectilíneo a no ser en tanto que sea obligado por fuerzas impressas a cambiar su estado"
  • 2
    Tradução dos autores. O texto na versão espanhola consultada é: "El cambio de movimiento es proporcional a la fuerza motriz impressa y ocurre según la línea recta a lo largo de la qual aquella fuerza se imprime".

Referências

  • [1]
    https://www.youtube.com/watch?v=txfKsEEZNI8, acesso em 23/5/2016.
    » https://www.youtube.com/watch?v=txfKsEEZNI8
  • [2]
    https://www.youtube.com/watch?v=AyVRL9EPQj8, acesso em 3/5/2016.
    » https://www.youtube.com/watch?v=AyVRL9EPQj8
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    https://www.youtube.com/watch?v=CIJyS2gS8Lw, acesso em 3/5/2016.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2016
  • Revisado
    26 Jul 2016
  • Aceito
    26 Jul 2016
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