Resumos
Uma lente esférica não se comporta como uma lente fina pois sua espessura não é desprezível. Neste trabalho apresentamos a dedução da equação do comprimento focal de uma lente esférica por meio da técnica de traçado de raios. Comparamos o resultado obtido com a expressão de comprimento focal de lentes grossas obtido pelo método matricial. Também aplicamos a expressão para o caso de uma esfera de água e comparamos com valores experimentais.
Palavras-chave:
comprimento focal; lentes esféricas; esfera de água; lentes grossas
A spherical lens can not be considered as a thin lens because the thickness is not negligible. In this work we present the deduction of the focal length equation for a spherical lens, developed through ray tracing technique. We compared the result with the focal length equation for thick lens obtained from matrix formalism. We also used the equation for a water sphere and compared with experimental data.
Keywords:
focal length; spherical lens; water sphere; thick lens
1. Introdução
Existem iniciativas para melhorar o ensino, tal como a instrumentalização [1[1] W.L. Almeida, F.M.M. Luz, J.B. Silva, S.L.R. Silva e A.M. Brinatti, Caderno Brasileiro Ensino de Física 30, 396 (2013).], que auxilia o educador a trazer a realidade mais perto do aluno, com a visualização dos fenômenos físicos e de suas aplicações.
Na Literatura encontramos trabalhos sobre a construção de microscópios ópticos caseiros [2[2] PIBID UFSM CAPES, Construindo Microscópios Reciclados, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=7-PwVOkfaKM, acesso em 23/4/2014.
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[3] M. Vannoni, P.K. Buah-Bassuah and G. Molesini, Physics Education 42, 385 (2007).
[4] L.M.N. Sepel, J.B.T. Rocha and E.L.S. Loreto, Genética na Escola 6, 1 (2011).-5[5] H.H. Myint, A.M. Marpaung, H. Kurniawan, H. Hattori and K. Kagawa, Physics Education 36, 97 (2001).], visando o Ensino de Ciências em sala de aula. Seguindo nesse tema, temos o trabalho de Vannoni e outros [3[3] M. Vannoni, P.K. Buah-Bassuah and G. Molesini, Physics Education 42, 385 (2007).], que apresenta um modelo de microscópio cujo formato assemelha-se ao microscópio composto apresentado em alguns livros didáticos [6[6] E. Hecht, Óptica (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).
[7] H.D. Young, Física IV : Ótica e Física Moderna / Young e Freedman (Pearson Education do Brasil, São Paulo, 2009).-8[8] J.D. Cutnell e K.W. Johnson, Física v. 2 (Editora LTC, Rio de Janeiro, 2006).]. O microscópio proposto pode ser composto por duas lentes (lentes objetiva e ocular) ou três lentes (lentes objetiva, de campo e ocular), instalados em um tubo junto a um suporte vertical. Em formato diferente, o trabalho de Sepel e outros [4[4] L.M.N. Sepel, J.B.T. Rocha and E.L.S. Loreto, Genética na Escola 6, 1 (2011).] apresenta um modelo de microscópio construído com um gargalo de garrafa plástica (PET), onde a rosca do gargalo funciona como um sistema para ajuste de foco da lente, que está fixada na tampa. Enquanto que, no trabalho de Myint e outros [5[5] H.H. Myint, A.M. Marpaung, H. Kurniawan, H. Hattori and K. Kagawa, Physics Education 36, 97 (2001).], o modelo difere mais porque utiliza uma gota de água para atuar como uma lente objetiva, e o suporte dessa lente também tem formato diferenciado.
Alguns microscópios ópticos podem conter esferas de vidro que formam a imagem de objetos. Em uma esfera de vidro de raio atuando como uma lente, sua espessura () é da mesma ordem de grandeza dos raios de curvatura da superfície da lente, tanto da interface de entrada quanto da interface de saída . Então a espessura não é desprezível, como se considera na dedução da fórmula de Gauss [6[6] E. Hecht, Óptica (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).], o que inviabiliza a utilização desta última. Algumas vezes a fórmula é chamada como “equação dos fabricantes de lentes” [9[9] R.A. Serway e J.W. Jewett Jr. Princípios de Física - Volume 4: Óptica e Física Moderna (Cengage Learning, São Paulo, 2005).,10[10] H.D. Young e R.A. Freedman, Sears & Zemansky Física IV Ótica e Física Moderna (Pearson Education do Brasil, São Paulo, 2011).], a qual é normalmente apresentada em livros textos do Ensino Médio [11[11] A. Gaspar, Física - Ondas, óptica, Termodinâmica (Editora Ática, São Paulo, 2000).]. Uma expressão para o cálculo do comprimento focal dessas esferas de vidro pode ser encontrada no sítio da Optipedia [12[12] OPTIPEDIA, Ball Lens, disponível em http://spie.org/x34513.xml?pf=true, acesso em 30/5/2014.
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], porém não há explicação sobre as hipóteses utilizadas nem as limitações dessa expressão. Apresentamos neste trabalho uma forma de dedução dessa expressão utilizando a técnica de traçado de raios [6[6] E. Hecht, Óptica (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).]. Comparamos com outros trabalhos encontrados na Literatura e apresentamos uma aplicação.
2. Comprimento focal de uma esfera
A dedução da expressão para o cálculo do comprimento focal inicia-se considerando uma esfera uniforme (figura 1), de índice de refração e raio , cujo centro é o ponto , e por este ponto passa uma reta que chamamos de eixo óptico. Esta esfera é iluminada por um raio de luz que incide na interface do lado esquerdo e sai pela interface do lado direito. O raio de luz incide na superfície da lente a um ângulo em relação a normal da superfície, mas paralelo ao eixo óptico, a uma altura em relação ao eixo óptico. Após refratar na primeira superfície da lente, o raio segue com ângulo em relação a normal da superfície, e com ângulo em relação a reta paralela ao eixo óptico. Depois o raio de luz incide na segunda interface a um ângulo em relação à normal, e com ângulo em relação a outra reta paralela ao eixo óptico e a altura em relação ao eixo óptico. Neste ponto o raio de luz refrata para o meio externo a um ângulo em relação à normal à superfície e a um ângulo em relação à reta paralela ao eixo óptico. A distância entre o centro (que na aproximação paraxial que utilizaremos está contido no plano principal da lente [6[6] E. Hecht, Óptica (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).]) e o ponto de convergência do raio de luz com o eixo óptico é chamada distância focal . Enquanto que a distância entre o ponto de intersecção entre a interface da esfera e o eixo óptico até o ponto de convergência do raio de luz com o eixo óptico é chamada de distância focal posterior () [6[6] E. Hecht, Óptica (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).].
Inicialmente, consideramos a aproximação paraxial , então o ângulo é pequeno e podemos aproximar:
Procedendo da mesma maneira para o ângulo :
Sendo o meio externo o ar, = 1, 1 (vidros comuns tem valores típicos de 1,5) e usando a Lei de Snell [6[6] E. Hecht, Óptica (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).], temos no ponto de entrada da lente:
Na interface de entrada, temos a relação entre ângulos:
pelas equações 1 e 4 obtemos:
Na figura 1, temos a relação entre as alturas e :
considerando : e de modo similar , então:
substituindo da equação 6, temos:
Na interface de saída, o ângulo é dado por:
e a relação entre os ângulos é dada por:
onde foram utilizadas as expressões 9, 6 e 1.
Agora aplicando a Lei de Snell na interface de saída da lente:
usando as aproximações e , e substituindo pela expressão 11, obtemos:
No lado externo da esfera, temos a seguinte relação entre os ângulos , e dada por:
usando as expressões 13, 10, 9 e 1, obtemos:
O ângulo (figura 1) também pode ser calculado fazendo a seguinte aproximação:
das expressões 15 e 16, obtemos a expressão do comprimento focal :
O resultado acima foi obtido considerando que a lente está imersa no ar, , que os raios de luz que atravessam a lente sejam apenas os raios próximos ao eixo óptico da lente e utilizamos a Lei de Snell nas interfaces da lente. A partir de , obtemos por:
3. Lentes espessas
Na Literatura encontramos uma expressão para o cálculo do comprimento focal de uma lente espessa [6[6] E. Hecht, Óptica (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).,13[13] N. Carlin, E.M. Szanto, F.O. Jorge, F.A. Souza, L.H. Bechtold e W.A. Seale, Revista Brasileira de Ensino de Física 29, 299 (2007).] imersa no ar:
onde é o raio de curvatura da superfície a esquerda, é o raio de curvatura da superfície a direita, é a espessura da lente e é o índice de refração da lente. Essa expressão foi deduzida por meio do método matricial [6[6] E. Hecht, Óptica (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).], onde cada elemento óptico é representado por uma matriz, e um raio de luz é transformado pela matriz que representa a lente. Para uma lente fina o valor de é desprezível, então o segundo termo é zero e resta apenas o primeiro termo, que é igual a fórmula de Gauss.
Aplicando ao caso de uma lente esférica, onde , , e espessura , obtemos:
logo:
que é igual a expressão que foi deduzida acima na equação 17, confirmando a relação entre e .
Cabe ressaltar que Helene e Helene [14[14] O. Helene e A.F. Helene, Revista Brasileira de Ensino de Física 33, 3312 (2011).] construíram um modelo de olho humano com uma esfera de vidro, e mostraram que a expressão do comprimento focal desse modelo é:
Esta expressão também foi deduzida pelo traçado de raios, mas difere da equação 17 pela ausência do fator dois no divisor. Essa diferença é justificada porque, para o modelo do olho humano, foi considerada apenas a refração na superfície de entrada da esfera, uma vez que os autores estavam interessados na projeção da imagem na segunda superfície da esfera, como ocorre no olho humano, onde a imagem é projetada sobre a retina.
Pelo exposto acima, vemos a importância da equação 17, pois a equação de Gauss não é adequada quando temos lentes espessas.
4. Esfera de água
Para ilustrar a utilidade da equação 17, apresentamos a medida de de uma bolha de vidro (figura 2), cheia de água destilada e lacrada. Considerando as paredes da bolha tão finas que podemos desprezar os seus efeitos, vamos considerá-la como uma esfera de água. Suspendemos a esfera sobre uma mesa e usamos ela para formar a imagem de uma luminária (figura 3), com quatro lâmpadas fluorescentes e está acima da esfera a cerca de 2 m de altura (assim podemos considerar que os feixes de luz vem paralelos entre si). Projetamos a imagem da luminária em um papel sobre a mesa (figura 4). O raio da esfera é (13,15 0,05) mm, o índice de refração da água é 1,333 [6[6] E. Hecht, Óptica (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).], logo: = (26,6 0,1) mm. Subtraindo o raio da esfera, o valor de é (13,2 0,1) mm.
Devido ao excesso de luminosidade da luminária, tivemos dificuldade para ajustar a distância focal com precisão, então medimos as distâncias anterior e posterior ao ponto focal onde percebemos a distorção da imagem. A distância focal estará entre esses dois valores. Calculando o valor médio dessas distâncias, obtemos o valor de e o resultado é (13 1) mm. Este valor é compatível com o valor calculado pela expressão 17.
Para montar uma esfera de água, sugerimos usar uma lâmpada de filamento e de vidro transparente, retirando a base e o filamento [15[15] Manual do Mundo, Como Fazer Fogo com Água (Experimento de Física), disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BprWYzk-AMI, acesso em 26/4/2016.
https://www.youtube.com/watch?v=BprWYzk-...
], depois preencher com água e vedar. O bulbo das lâmpadas de geladeira tem o formato mais esférico que outros tipos de lâmpadas, tornando-as mais indicadas para este experimento.
5. Conclusão
Apresentamos a dedução do comprimento focal de uma esfera imersa no ar, por meio da técnica de traçado de raios, onde consideramos apenas os raios paraxiais. Foram utilizadas aproximações de algumas funções trigonométricas. A expressão deduzida é compatível com expressões de comprimento focal de lentes grossas encontradas na Literatura. Com isto, fica evidente a limitação da fórmula de Gauss, ensinada nos cursos de Óptica. Medimos o valor de de uma esfera de água, com resultados compatíveis com o obtido pela expressão deduzida. Esse experimento pode ser implementado como uma atividade prática em cursos de Física básica, devido a sua simplicidade, e a dedução da expressão é um excelente exemplo da aplicação da Lei de Snell, com conteúdo de Trigonometria.
Agradecimentos
Os autores agradecem o auxílio técnico de Claudio Hiroyuki Furukawa (Instituto de Física da USP), pela confecção da esfera de água utilizada neste trabalho. Também agradecem a Sarah Isabel P.M.N. Alves, Isis V. de Brito e Michele H. Ueno-Guimarães, pelas sugestões na elaboração do trabalho.
Referências
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[1]W.L. Almeida, F.M.M. Luz, J.B. Silva, S.L.R. Silva e A.M. Brinatti, Caderno Brasileiro Ensino de Física 30, 396 (2013).
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[2]PIBID UFSM CAPES, Construindo Microscópios Reciclados, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=7-PwVOkfaKM, acesso em 23/4/2014.
» http://www.youtube.com/watch?v=7-PwVOkfaKM -
[3]M. Vannoni, P.K. Buah-Bassuah and G. Molesini, Physics Education 42, 385 (2007).
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[4]L.M.N. Sepel, J.B.T. Rocha and E.L.S. Loreto, Genética na Escola 6, 1 (2011).
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[5]H.H. Myint, A.M. Marpaung, H. Kurniawan, H. Hattori and K. Kagawa, Physics Education 36, 97 (2001).
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[6]E. Hecht, Óptica (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991).
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[7]H.D. Young, Física IV : Ótica e Física Moderna / Young e Freedman (Pearson Education do Brasil, São Paulo, 2009).
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[8]J.D. Cutnell e K.W. Johnson, Física v. 2 (Editora LTC, Rio de Janeiro, 2006).
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[9]R.A. Serway e J.W. Jewett Jr. Princípios de Física - Volume 4: Óptica e Física Moderna (Cengage Learning, São Paulo, 2005).
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[10]H.D. Young e R.A. Freedman, Sears & Zemansky Física IV Ótica e Física Moderna (Pearson Education do Brasil, São Paulo, 2011).
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[11]A. Gaspar, Física - Ondas, óptica, Termodinâmica (Editora Ática, São Paulo, 2000).
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[12]OPTIPEDIA, Ball Lens, disponível em http://spie.org/x34513.xml?pf=true, acesso em 30/5/2014.
» http://spie.org/x34513.xml?pf=true -
[13]N. Carlin, E.M. Szanto, F.O. Jorge, F.A. Souza, L.H. Bechtold e W.A. Seale, Revista Brasileira de Ensino de Física 29, 299 (2007).
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[14]O. Helene e A.F. Helene, Revista Brasileira de Ensino de Física 33, 3312 (2011).
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[15]Manual do Mundo, Como Fazer Fogo com Água (Experimento de Física), disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BprWYzk-AMI, acesso em 26/4/2016.
» https://www.youtube.com/watch?v=BprWYzk-AMI
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2017
Histórico
-
Recebido
04 Out 2016 -
Revisado
04 Jan 2017 -
Aceito
06 Fev 2017