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O estudo do movimento browniano com material de baixo custo

The study of Brownian motion with low cost material

Resumos

O estudo do movimento browniano é visto em disciplinas de física moderna de cursos de graduação em física, seguindo uma abordagem teórica ou de laboratório, neste caso geralmente envolvendo equipamentos de razoável sofisticação. Neste trabalho é descrita uma proposta de implementação do experimento no ensino médio, pensada e desenvolvida por estudantes do último semestre do curso noturno de licenciatura em Física da Universidade Federal do Pará, como parte das atividades de uma disciplina de Física Estatística. A facilidade da montagem do experimento, aliada ao uso de tecnologias computacionais para a análise dos resultados, faz com que a técnica possa ser facilmente implementada no ensino médio, possibilitando ao estudante discutir aspectos históricos do desenvolvimento dos modelos atômicos, bem como realizar a medição experimental do número de Avogrado, visto usualmente em Química, de forma mecanizada.

Palavras-chave:
teoria atomística; número de Avogadro; técnicas experimentais; uso de softwares educacionais


The study of Brownian motion is seen in modern physics disciplines of undergraduate courses in physics, following a theoretical or laboratory approach, in this case usually involving reasonably sophisticated equipment. This work describes a proposal for the implementation of the experiment in high school, designed and developed by students of the last semester of the night course of licentiate in Physics of the Federal University of Para, as part of the activities of a discipline of Statistical Physics. The ease of assembly of the experiment, combined with the use of computational technologies to analyze the results, makes the technique easily implemented in high school, enabling the student to discuss historical aspects of the development of atomic models, as well as to perform the experimental measurement of the number of Avogrado, usually seen in Chemistry, in a mechanized way.

Keywords:
atomistic theory; Avogadro number; experimental techniques; use of educational softwares


1. Introdução

É comum encontrarmos em livros didáticos, tanto de educação básica quanto superior, uma visão linear da ciência, deixando a impressão no estudante de que descobertas científicas ocorrem sem conflitos dentro da comunidade e de maneira organizada cronologicamente. Moreira [1[1] M.A. Moreira, Cad. Cat. Ens. Fis. 10, 108 (1993).] aponta que a forma como o método científico é apresentado na maioria dos textos utilizados pelos docentes induz nos estudantes uma concepção epistemologicamente equivocada, que não reflete a realidade de como o conhecimento científico é produzido. Whitaker [2[2] M.A.B. Whitaker, Phys. Educ. 14, 108 (1979).,3[3] M.A.B. Whitaker, Phys. Educ. 14, 239 (1979).] define o conceito de ”quase-história”, argumentando que no intuito de apresentar didaticamente os conteúdos, muitas vezes os autores dos livros alteram a ordem dos fatos, omitem polêmicas, entre outras posturas, que contribuem para uma visão ingênua da construção do conhecimento.

Um exemplo onde os comportamentos acima levantados pode ser encontrado é o desenvolvimento da teoria atomística. De tão familiarizados estamos com esse conceito, nos parece bastante improvável que no início do século XX o modelo atômico não estivesse amplamente aceito na comunidade científica. De fato, muito embora a teoria atomística tenha sido proposta pelos gregos a milênios, por volta de 1900, parte da comunidade científica ainda resistia em aceitar sua validade. Os trabalhos de Maxwell, Boltzmann e o próprio Einstein, com o movimento browniano, entre outros, vieram a fortalecer a hipótese atômica e contribuíram para o fim desse debate a respeito da constituição da matéria.

Nessa perspectiva, entendemos a importância do estudo do movimento browniano, tanto a nível universitário quanto na educação básica. É importante que o estudante, além de medir experimentalmente a constante de Avogadro, entenda o ambiente científico em que Einstein estava inserido e por meio desse exemplo possa refletir sobre como acontece a construção do conhecimento.

A abordagem tradicional para o estudo do movimento browniano, vista usualmente em disciplinas de laboratório de física moderna de cursos de graduação em física, propõe o uso do aparato de Millikan, constituído de uma pequena gota de óleo que se mantém equilibrada entre as placas de um condensador. A construção deste aparato dificulta o seu uso na educação básica.

Recentemente, propostas de uso de ferramentas computacionais facilitaram a tomada de dados e posterior análise do fenômeno. Um exemplo dessa abordagem é apresentada por Figueira [4[4] J.S. Figueira, Rev. Bras. Ens. Fis. 33, 4403 (2011).]. No trabalho, o autor propõe utilizar o sofware educacional ”Tracker”, desenvolvido por Douglas Brown [5[5] D. Brown, Tracker: Free Video Analysis and Modeling Tool for Physics Education, disponível em http://physlets.org/tracker (2016).
http://physlets.org/tracker...
], para analisar vídeos disponíveis na internet. Dois são os vídeos analisados, um onde partículas de poliestireno estão imersas em água, e outro com uma mistura de água com leite.

A proposta é bastante interessante e apresenta resultados para o número de Avogadro bem razoáveis. Porém, de certa forma afasta o estudante da observação do movimento aleatório em situações de seu cotidiano, uma vez que utiliza vídeos já existentes e em inglês. O trabalho também apresenta uma discussão teórica sobre a relação entre o deslocamento quadrático médio e o número de Avogadro, usando o conceito de caminhos aleatórios em uma linguagem acessível a estudantes dos anos iniciais do ensino superior.

Neste artigo, relatamos o resultado de uma atividade pensada e desenvolvida por estudantes do curso de licenciatura em Física - noturno - da Universidade Federal do Pará (UFPA) no segundo semestre de 2015. O trabalho foi parte da disciplina Física Estatística ministrada por um dos autores do texto, Perez.

A disciplina em questão faz parte do último semestre da grade curricular do curso. Como parte da avaliação contínua, aos estudantes foi proposto o estudo do movimento browniano, desde a observação do fenômeno experimentalmente, passando pelo entendimento do modelo teórico, desenvolvimento de um aparato experimental e relatório final. A atividade ocorreu durante um semestre letivo, no qual periodicamente os avanços do estudo eram apresentados a toda a turma. Não houve um direcionamento do professor e o estudo aconteceu sem um roteiro preestabelecido. Os estudantes foram questionados a respeito do fenômeno e buscaram livremente os caminhos para o seu entendimento. Com essa metodologia, Perez buscou aproximá-los da realidade da pesquisa científica.

Como aparato experimental, os integrantes do grupo propuseram unir as ideias apresentadas por Figueira [4[4] J.S. Figueira, Rev. Bras. Ens. Fis. 33, 4403 (2011).] e Planinsic [6[6] G. Planinsic, The Physics Teacher 39, 18 (2001).] de construção de um microscópio artesanal, de forma a, por meio de um método simples e de razoável baixo custo, reproduzir os resultados de Einstein sobre o estudo do movimento browniano.

Mais especificamente, a proposta substitui os vídeos utilizados por Figueira pela imagem do movimento aleatório de impurezas contidas na água de torneira observadas em um microscópio artesanal, chamado por Planinsic de water-drop microscopic, no qual uma pequena gota de água faz o papel de uma lente esférica. Vale salientar que no processo, vários outros testes foram feitos com diferentes aparatos experimentais, porém as dificuldades de manuseio dos equipamentos e o alto custo inviabilizaram a proposta. O método apresentado é de baixo custo e pode ser facilmente implementado em labo-ratórios didáticos, inclusive de ensino médio. Por esse motivo, os resultados encontrados não são precisos, e servem apenas para calcular a ordem de grandeza do número de Avogadro, como discutiremos a seguir.

Iniciaremos a apresentação do trabalho com uma discussão sobre a hipótese atômica bem como o movimento browniano na sec. 2. A seguir, apresentaremos a descrição do aparato experimental proposto na sec. 3 e a análise dos resultados será feita na sec. 4. Finalizaremos com as conclusões na sec. 5.

2. A evolução da teoria atômica

A busca pelo constituinte fundamental da matéria sempre esteve na mente dos grandes filósofos da humanidade, desde a antiguidade até os dias de hoje. Os gregos Demócrito e Leucipo, por volta de 500 a.C., buscando interpretações da natureza racionais e que não fossem embasadas em explicações místicas, mas que também não estivessem necessariamente relacionadas com comprovação experimental, postularam a primeira teoria atômica.

Já nessa época não existia um consenso sobre o assunto e Aristóteles, que viveu aproximadamente um século depois, não acreditava no modelo atômico, entendendo que a matéria era representada por quatro elementos: água, ar, fogo e terra [7[7] L.A. Pinheiro, S.S.C. Costa e M.A. Moreira, Do Átomo Grego ao Modelo Padrão: Os Indivisíveis de Hoje (Textos de Apoio ao Professor de Física 22, 6, 2011).].

Durante os próximos séculos não houve muito avanço na discussão, porém durante a idade média as ideias aristotélicas foram mais valorizadas, pois se ajustavam com razoável conforto aos dogmas da igreja católica.

Com as mudanças sociais do século XVII que proporcionaram avanços em várias áreas do conhecimento, o modelo atômico ganhou novo fôlego e passou a fazer parte dos debates existentes na comunidade científica da época. Galileu e Newton foram dois dos cientistas que retomaram esse conceito, cada um deles com sua interpretação do que seria o átomo.

Em contrapartida, Descartes, contemporâneo de Galileu, embora tenha dado grandes contribuições para o desenvolvimento da ciência, negava a existência do átomo. Segundo Pinheiro e colaboradores [7[7] L.A. Pinheiro, S.S.C. Costa e M.A. Moreira, Do Átomo Grego ao Modelo Padrão: Os Indivisíveis de Hoje (Textos de Apoio ao Professor de Física 22, 6, 2011).], essa negação provavelmente acontecia porque a filosofia de Descartes ”…exigia uma evidência concreta como prova da verdade o que não era possível até aquele momento.”Esse embate sobre a existência do átomo independentemente de sua comprovação experimental esteve no cerne das discussões e foi um dos principais argumentos contra a teoria atômica até o início do século XX.

Durante o século XVIII conceitos paralelos foram sendo incorporados à discussão da constituição da matéria. Por exemplo, para o estudo de fenômenos associados com condução e indução elétrica, dos trabalhos de Gray e posteriormente de du Fay surgiu o conceito de carga elétrica. A termodinâmica avançava e a teoria cinética do ar, proposta por Euler, buscava uma relação entre sistemas macroscópicos e microscópicos. Inspirado nas ideias de Euler, Bernoulli estudou gases ideais, incorporando modelos mecânicos na explicação microscópica de temperatura e pressão.

Chegamos assim ao século XIX. No campo da química, no início desse século, muitas leis de proporção existiam. Por exemplo, ao realizar a hidrólise da água décadas antes, Lavosier observou as proporções entre os gases resultantes. Seguindo a mesma ideia, várias leis de proporção entre massas ou volumes de reações químicas eram conhecidas. Para explicar essas observações, na primeira década do século, Dalton aprimorou a teoria atômica dos gregos, incorporando aos átomos propriedades químicas. Segundo Pais [8[8] A. Pais, Sutil é o Senhor… (Ed. Nova Fronteira, RJ, Brasil, 1982).] ”este acontecimento marca o nascimento da química moderna”.

Gay-Lussac, estudando combinações entre os gases, entendeu que a água era formada por duas partes de hidrogênio e uma de oxigênio. Observou as proporções entre os volumes nas reações químicas estabelecendo a lei dos volumes em 1809 e Avogadro, estudando essa lei percebeu que a união dos átomos formava as moléculas. Além disso, em 1811 apresentou a sua hipótese de que em temperatura e pressões estáveis, volumes iguais de gases deveriam conter o mesmo número de moléculas.

Porém, para muitos químicos da primeira metade do século XIX, esses átomos usados por Dalton e Avogadro nada mais eram que um artifício matemático para explicar as leis de proporção entre equivalentes, e que portanto não seriam uma representação real da natureza. Em particular, eles argumentavam que as leis de proporção não eram suficientes para identificar os diferentes elementos que compunham os compostos químicos e com quais razões essses elementos apareciam [9[9] W.H. Brock and D.M. Knight, in: In the Atomic Debates (Leicester University Press, 1967).].

Baseado no modelo positivista da ciência, Mach já na metade do século argumentava que só se pode fazer ciência com o que se vê e portanto a termodinâmica seria suficiente para explicar a natureza, não sendo necessário o conceito de átomo, não observável na época.

Entre os físicos a discussão girava em torno da termodinâmica e a teoria cinética dos gases. Os estudos iniciados por Euler e Bernoulli implicavam na teoria atomística e durante o século XIX foram aprimorados por Maxwell. Medidas experimentais do tamanho de moléculas eram feitas e já existia uma estimativa do número de Avogadro, que estaria entre 1022 e 1024.

Finalmente por volta 1870, Boltzmann propôs uma explicação corpuscular para o conceito de entropia, utilizado anos antes por Clausis para explicar termodinamicamente o ciclo de Carnot. Usando a teoria cinética e conceitos de probabilidade ele interpretou microscopicamente a função entropia e abriu as portas para uma nova física.

Contra a teoria atômica em geral, e a proposta de Boltzman mais especificamente, Ostwald argumentava que ”num universo estritamente mecânico não pode existir um antes e um depois, como observamos em nosso universo […]. A irreversibilidade factual do fenômenos naturais prova, pois, a existência de fenômenos que não podem ser descritos pelas equações mecânicas.” [8[8] A. Pais, Sutil é o Senhor… (Ed. Nova Fronteira, RJ, Brasil, 1982).]. A polêmica se arrastou até o século XX e em 1910 Mach ainda afirmava que ”o átomo deve permanecer uma ferramenta […] como uma função matemática [8[8] A. Pais, Sutil é o Senhor… (Ed. Nova Fronteira, RJ, Brasil, 1982).].

Ainda havia a questão da indivisibilidade do átomo. A descoberta do elétron por Thomson em 1897 colocava mais um elemento na discussão. Nem bem o átomo estava conceitualmente aceito, partículas subatômicas surgiam, dificultando a sua aceitação. A confusão entre átomo e molécula só era mais um ingrediente a contribuir com o debate, que se arrastou durante quase todo o século XIX.

A polêmica sobre a realidade física dos átomos só encontrou o seu final com os estudos de Einstein e Smoluchowski sobre o movimento browniano [10[10] J. Mehra and H. Rechenberg, The Historical Development of Quantum Theory (Springer, New York, 1982), Volume 1, parte I.].

O fenômeno analisado pelos dois físicos consiste no movimento aleatório de partículas suspensas em um fluido e foi registrado pela primeira vez por Robert Brown em 1828 ao estudar partículas de pólen em suspensão na água [11[11] R. Brown, Phil. Mag. 4, 161 (1828).]. Inicialmente o cientista acreditou que o movimento observado era devido a seres vivos contidos no pólen, porém novos experimentos refutaram essa teoria, bem como explicações relacionadas com correntes de ar acima do grão.

Outros experimentos foram feitos, porém a explicação do fenômeno só veio com os trabalhos independentes de Einstein de 1905 [12[12] J.J. Medeiros, Movimento Browniano em um Curso de Termodinâmica para o Ensino Médio: Uma Proposta Inspirada na Perspectiva Ausubeliana de Aprendizagem Significativa. Dissertação de Mestrado, CEFET, Rio de Janeiro (2014).] e de Smoluchowski de 1906 [10[10] J. Mehra and H. Rechenberg, The Historical Development of Quantum Theory (Springer, New York, 1982), Volume 1, parte I.].

A hipótese utilizada era de que seria possível ver o ziguezague realizado por partículas suspensas em um fluido e que este movimento era devido ao seu choque com as moléculas do fluido.

Finalmente, no ano de 1908 o físico francês Jean Perrin, utilizando técnicas de ultramicroscopia, realizou as medidas experimentais sobre o tamanho da molécula de água, obtendo o valor de 6,8×1023 para o número de Avogadro. Seu livro Les atomes, publicado em 1913, reuniu toda essa discussão de forma a provar a realidade física dos átomos. As explicações de Einstein e Smoluchowski, bem como a medição de Perrin tornaram o átomo visível e acabaram com uma polêmica que se arrastou na humanidade por milênios.

Toda essa dinâmica mostra como a construção e aceitação de um conceito na ciência envolve um processo complexo, onde toda a comunidade científica participa e várias peças desse imenso quebra cabeças são utilizadas, montadas e remontadas de forma a construir a grande imagem do conceito final.

É importante que o estudante da educação básica, mais do que memorizar fórmulas descontextualizadas, seja inserido nesse ambiente e entenda criticamente como acontece a construção do conhecimento, por exemplo, entendendo a importância da lei dos volumes e da hipótese de Avogadro, bem como o estudo do movimento browniano na aceitação do modelo atômico.

Não iremos aqui entrar em detalhes das contas apresentadas por Einstein e Smoluchowski no estudo do fenômeno. Os interessados podem consultar a litera-tura, em particular os trabalhos de Salinas [13[13] S.R.A. Salinas, Rev. Bras. Ens. Fis. 27, 263 (2005).], Silva [14[14] J.M. Silva e J.A.S. Lima, Rev. Bras. Ens. Fis. 29, 25 (2007).] e Figueira [4[4] J.S. Figueira, Rev. Bras. Ens. Fis. 33, 4403 (2011).]. Para a determinação experimental do número de Avogadro, vamos utilizar a fórmula que relaciona o deslocamento quadrático médio, (rr)2, com o número de Avogadro, dada por:

(1) ( r r ) 2 = 4 R T 6 π N A η * a t ,

onde R=8,31J/(mol K) é a constante dos gases, T e a são respectivamente a temperatura e o raio da partícula browniana, NA é o número de Avogadro, a ser obtido do experimento e t é o tempo de observação do movimento. Além disso, η* é a viscosidade efetiva do fluido, que considera a influência da presença de partículas brownianas, sendo dada por:

(2) η * = η ( 1 + ϕ )

onde agora η é a viscosidade do fluido puro e ϕ depende da geometria das partículas.

3. Descrição Experimental

Conforme já dissemos na introdução, nesse trabalho apresentamos um método experimental desenvolvido por alunos de graduação do curso de Física da UFPA, que possibilita explorar quantitativamente o movimento browniano com um aparato simples de fazer e de baixo custo, e que pode ser reproduzido em ambiente escolar sem grandes dificuldades. Com ele, torna-se possível observar o efeito do choque das partículas brownianas em impurezas contidas em uma gota d’água, bem como mensurar o seu tamanho e deslocamento médios.

A técnica usada foi desenvolvida por Planinsic em 2001 [6[6] G. Planinsic, The Physics Teacher 39, 18 (2001).], com o objetivo de observar seres que vivem na água, em particular na água do mar, quando projetados em um anteparo após a passagem de um laser através da gota.

Para a construção do microscópio de Planinsic, utilizamos lasers de comprimento de onda de 633 nm (cor vermelha) e de 445 nm (cor azul), uma seringa plástica comum contendo água e alguns suportes para estabilizar e facilitar o alinhamento dos componentes do experimento. A Figura (1) ilustra como os mesmos foram dispostos.

Figura 1
Microscópio de Planinsic utilizado no experimento

Cabe ressaltar que, apesar da aparente simplicidade na montagem do experimento, o mesmo requer atenção quanto ao alinhamento do laser em relação à gota. Deve-se posicionar o laser perpendicularmente à gota de forma que o raio saia horizontalmente, e passe o mais próximo possível do centro da circunferência, garantindo assim uma ampliação máxima e que os ângulos envolvidos sejam pequenos.

Dada a abundância de minerais no solo da região amazônica, local onde foi obtida a água utilizada no estudo que apresentamos, as imagens projetadas (sombras menores escuras observadas na Figura (2)) devem corresponder a resíduos desses materiais remanescentes do processo de purificação da água, realizado pela empresa fornecedora. Essas são as impurezas consideradas no trabalho, uma vez que não foram observados seres vivos nas projeções, conforme descritos por Planinsic.

Figura 2
Imagem projetada da região iluminada da gota no anteparo, onde as pontos mais escuros correspondem às sombras das impurezas presentes na água.

A magnificação do microscópio é definida como sendo quantas vezes ele amplifica a imagem original. Para o cálculo do seu valor, vamos reproduzir a análise apresentada por Planinsic [6[6] G. Planinsic, The Physics Teacher 39, 18 (2001).]. Assim, consideramos que a gota possui formato aproximadamente esférico com raio r e que uma partícula de impureza A de comprimento 2x se encontra imersa a uma distância de um raio do centro da gota, conforme representado na Figura (3). O feixe de luz que chega na gota, sofre duas refrações. Em particular se ele chega exatamente na extremidade superior da impureza em questão, da geometria da imagem (3), temos que:

(3) c = a e , e = 2 b a , sin a = x r ,
Figura 3
Representação da geometria do experimento, adaptado de (Planinsic, 2001). Na imagem, x representa metade do comprimento da impureza, a e b são respectivamente os ângulos de incidência e refração originais do feixe e c é o ângulo que o feixe transmitido após a segunda refração faz com a horizontal.

onde a e b são respectivamente os ângulos de incidência e refração originais do feixe e c é o ângulo que o feixe transmitido após a segunda refração faz com a horizontal.

Assim, podemos escrever que:

(4) c = 2 arcsin x r b .

Para obter uma relação entre o ângulo b e os parâmetros mensuráveis, consideramos a Lei de Snell,

(5) n 1 sin a = n 2 sin b ,

onde n1 e n2 são os índices de refração do ar e da água respectivamente. Logo, o ângulo c pode ser escrito como:

(6) c = 2 sin 1 x r sin 1 x n 2 r

Considerando a aproximação de pequenos ângulos, temos que:

(7) c 2 x r 1 1 n 2

Evidentemente, a imagem projetada no anteparo está ampliada devido a gota d’água funcionar como uma lente convexa. Nesse caso, a magnificação M é definida como sendo

(8) M = y x = d tan c x d c x = 2 d r 1 1 n 2 .

No experimento em questão foram considerados os seguintes parâmetros:

n 2 = 1 , 33 , d 2 , 80 m , y 0 , 05 m , r 0 , 002 m .

Com esses valores, a magnetização foi da ordem de 1400 vezes e o valor de x obtido foi de 3,6×105m, que vamos considerar como sendo aproximadamente o raio da partícula browniana.

4. Análise do Vídeo e comportamentos observados

Para a análise dos dados, consideramos a temperatura ambiente de 24 graus Celsius e um tempo de 14,7 segundos. Com um celular com boa resolução, em geral acessível a estudantes de ensino médio, gravamos durante esse intervalo de tempo um vídeo da projeção no anteparo do movimento das impurezas.

A seguir, escolhemos do vídeo uma das sombras escuras aleatoriamente para ser a partícula browniana e com o uso do aplicativo Tracker construímos uma tabela com as suas coordenadas nas direções horizontal (eixo x) e vertical (eixo y) ao longo do tempo. Cabe ressaltar que utilizamos aqui por simplicidade x e y, que naturalmente representam as direções horizontal e vertical e essas varáveis não tem relação alguma com as variáveis x e y utilizadas na seção anterior para descrever o comprimento da impureza e sua amplificação no anteparo.

Foi possível obter 439 pontos, que geraram o gráfico da Figura (4), considerada para o laser vermelho. Para o cálculo do número de Avogadro utilizamos a Equação (1), considerando a3,6×105m e η*=1,003×103Pas. O cálculo do desvio quadrático médio é facilmente obtido da tabela fornecida pelo Tracker, usando a fórmula:

(9) ( r r ) 2 = ( x x ) 2 + ( y y ) 2
Figura 4
Deslocamento da partícula browniana no anteparo. Os eixos x e y representam as direções horizontal e vertical respectivamente.

onde x e y são os valores médios de x e y, respectivamente.

Pudemos observar da filmagem obtida dois movimentos sobrepostos: o movimento browniano propriamente dito e um movimento devido provavelmente a correntes de ar. A escala do segundo movimento é muito maior do que a do movimento browniano e portanto, se considerarmos o tempo total de 14,7 s na análise dos dados (correspondendo aos 439 pontos e um único valor para o desvio quadrático médio) temos apenas um valor grosseiro do número de Avogadro, da ordem de 1020.

O resultado melhora à medida que isolamos a região onde as correntes não se manifestam, ou seu efeito é reduzido. Como a proposta dessa atividade é apresentar o fenômeno ao estudante de ensino médio e discutir de um lado sua importância em se tratando dos aspectos históricos referentes à construção do modelo atômico e a polêmica que ainda existia no início do século XX sobre a existência do átomo; e de outro propor a esse mesmo estudante uma maneira, mesmo que indireta, de observar a olho nú um efeito molecular, obtendo aproximadamente o número de Avogadro, não é proposta no artigo uma maneira experimental de isolar a região de correntes de ar.

O aparato experimental proposto é sugerido para ser usado na própria sala de aula do estudante do ensino médio, com um único equipamento trazido pelo professor. Nesse sentido, uma tentativa de isolar correntes de ar no próprio aparato experimental poderia comprometer o seu uso simples em sala de aula, ou até tornar o experimento inviável nessa proposta.

Aos estudantes cabe fazer o vídeo em seu celular e analisá-lo no Tracker. A maneira encontrada para lidar com as correntes de ar é nessa análise. Podemos fazer isso considerando na tabela original somente regiões com maior densidade de pontos. Por exemplo, analisando a Figura (4), podemos considerar uma dessas regiões como sendo a com coordenadas 170μm<x<140μm e 40μm<y<90μm. Considerando somente essa região, foi possível construir uma nova tabela, com um número menor de pontos, que forneceu a Figura (5), e considerando somente esses pontos obtivemos o número de Avogadro da ordem de 1022.

Figura 5
Detalhe do deslocamento da partícula browniana na região com coordenadas 170μm<x<140μm e 40μm<y<90μm

Não houve preocupação com obtenção de um resultado exato, com cálculo de incertezas, que em uma abordagem de ensino médio poderia dificultar o entendimento das questões fundamentais envolvidas no processo.

Ao invés disso, somente das estimativas encontradas, podemos concluir que o valor do número de Avogadro é extremamente sensível à região considerada para a tomada de dados. A escolha da região no vídeo para análise é deixada ao próprio estudante, que sozinho, pode perceber como o valor encontrado depende da escolha da região, e como as correntes de ar podem interferir no resultado. Essa liberdade de ação deixada ao estudante contribui para o desenvolvimento de sua criatividade científica.

Vale salientar que mesmo os vídeos considerados na análise de Figueira também apresentam esse comportamento. Por exemplo, consideramos uma única partícula do vídeo de leite com água durante aproximadamente dois segundos e obtivemos um número de Avogadro da ordem de 1025.

Apesar dos resultados encontrados nessa proposta ainda diferirem de uma ordem do valor hoje considerado para o número de Avogadro, ainda é impressionante que apenas com um laser, uma seringa e água seja possível fazer medidas dessa ordem de grandeza. Considerando que o objetivo da proposta não foi obter um resultado preciso, e sim proporcionar ao estudante (tanto de ensino superior quanto médio), um contacto direto com uma técnica muito próxima de seu cotidiano para a análise de um fenômeno de dimensões microscópicas, entendemos que os resultados apresentados são extremamente relevantes.

5. Considerações Finais

Neste artigo relatamos uma proposta apresentada e desenvolvida por estudantes do último ano do curso de licenciatura em Física - noturno - da UFPA, para o estudo do movimento browniano, que utiliza um microscópio artesanal e um software educacional para observar o movimento aleatório de impurezas existentes na água de torneira, bem como obter um valor aproximado para o número de Avogadro.

Os resultados foram satisfatórios, se considerarmos que o objetivo do estudo foi aproximar o estudante de graduação do ambiente de pesquisa científica, neste caso ao propor uma metodogia de ensino para a disciplina Física Estatística na qual o estudante buscou sozinho a melhor técnica experimental com base no custo financeiro disponível para o estudo. Além disso, esse estudante teve que entender o ambiente histórico no qual o fenômeno estava inserido e pôde discutir e se questionar sobre como o conhecimento científico acontece.

A proposta de estudo apresentada pelos licenciandos é tão simples que pode ser implementada facilmente por professores da educação básica (tanto no ensino fundamental, somente observando o fenômeno quanto no médio, com um aprofundamento maior), sem sequer ser preciso usar um ambiente de laboratório, sendo possível reproduzir o aparato experimental na própria sala de aula.

Somente para finalizar, após a apresentação da pesquisa pelo grupo de estudantes na disciplina Física Estatística no segundo semestre de 2015 e finalização do semestre letivo, quando a equipe estava terminando a escrita do trabalho para submissão nessa revista, ficamos sabendo do trabalho de Dorta e colaboradores [15[15] M.P. Dorta, E.C.P. Sousa e M. Muramatsu, Rev. Bras. Ens. Fis. 38, e4503 (2016).], sobre o microscópio de gota d'agua, onde é sugerido o uso do microscópio de gota para estudo do movimento browniano.

Referências

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    M.A. Moreira, Cad. Cat. Ens. Fis. 10, 108 (1993).
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    M.A.B. Whitaker, Phys. Educ. 14, 108 (1979).
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    M.A.B. Whitaker, Phys. Educ. 14, 239 (1979).
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    J.S. Figueira, Rev. Bras. Ens. Fis. 33, 4403 (2011).
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    D. Brown, Tracker: Free Video Analysis and Modeling Tool for Physics Education, disponível em http://physlets.org/tracker (2016).
    » http://physlets.org/tracker
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    L.A. Pinheiro, S.S.C. Costa e M.A. Moreira, Do Átomo Grego ao Modelo Padrão: Os Indivisíveis de Hoje (Textos de Apoio ao Professor de Física 22, 6, 2011).
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    A. Pais, Sutil é o Senhor… (Ed. Nova Fronteira, RJ, Brasil, 1982).
  • [9]
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  • [10]
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  • [12]
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  • [13]
    S.R.A. Salinas, Rev. Bras. Ens. Fis. 27, 263 (2005).
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  • [15]
    M.P. Dorta, E.C.P. Sousa e M. Muramatsu, Rev. Bras. Ens. Fis. 38, e4503 (2016).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2016
  • Revisado
    05 Jun 2017
  • Aceito
    22 Jun 2017
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