Acessibilidade / Reportar erro

Lei de Gauss sem superfícies gaussianas

Gauss's law without gaussian surfaces

Resumos

O ensino da lei de Gauss como ferramenta para a resolução de problemas suficientemente simétricos é tradicionalmente feito com sua formulação integral. Nestas notas, discutimos o uso da sua formulação diferencial para os mesmos fins através da resolução de problemas com simetria esférica, cilíndrica ou planar. Verificamos que esta abordagem não traz aumento significativo de dificuldade em comparação com a tradicional. Pelo contrário, vemos que o uso da formulação diferencial evita a introdução de abstrações intermediárias, como o conceito de superfície gaussiana, o que evidencia algumas potencialidades desta abordagem para a facilitação da compreensão dos estudantes a respeito dessa lei.

Palavras-chave:
Lei de Gauss; eletrostática; superfície gaussiana


Teaching Gauss's law as a problem-solving tool for problems with enough symmetry is traditionally done by using its integral form. Here we discuss the use of its differential form by solving problems with spherical, cylindrical, or planar symmetry. We verify this approach does not lead to significant increase in difficulty compared to the traditional one. As a matter of fact, we see the differential form avoids introduction of intermediate abstractions, like the concept of gaussian surface, which shows some of the potentialities of this approach for facilitating student's understanding of this law.

Keywords:
Gauss's law; electrostatics; gaussian surface


É prática comum, em livros sobre eletrodinâmica clássica em nível de graduação ou pós-graduação, usar a forma integral da lei de Gauss, SEda=qintεo, para resolver problemas com simetria suficiente [1[1] Exemplos tradicionais incluem D.J. Griffiths, Introduction to Electrodynamics (Prentice Hall, 1999), 3a ed., e J.D. Jackson, Classical Electrodynamics (Wiley, New York, 1999), 3a ed.]. Tal abordagem exige a especificação de superfícies gaussianas e possui uma interpretação vívida em termos do fluxo de linhas de campo elétrico. Estudantes se beneficiam desta abordagem por sua simplicidade visual e, matematicamente, por lidar em grande parte com integrais e produtos escalares simples. Pouco comum na maioria das estratégias de ensino em cursos dos últimos anos da graduação ou mesmo nos de pós-graduação é o uso da forma diferencial da lei de Gauss, E=ρεo. Tradicionalmente, a equivalência das formulações integral e diferencial é apresentada de modo apenas formal, mas não através da resolução de problemas — o que, acreditamos, proveria ao estudante uma visão mais ampla das potencialidades de ambas formulações. Nestas notas, buscamos preencher essa lacuna ilustrando o uso da formulação diferencial na resolução de problemas de eletrostática com distribuições de carga suficientemente simétricas.

O uso da formulação integral, SEda=qintεo, baseia-se na resolução de uma integral do campo elétrico E sobre a área de uma superfície S e na determinação da carga qint contida no interior desta. A questão fundamental é que não conhecemos o campo elétrico de início, então como resolver esta integral? Em geral, não é possível fazê-lo. No entanto, se a distribuição de cargas exibe simetria suficiente, podemos encontrar argumentos para escrever SEda como ESda e, assim, o problema está praticamente resolvido. Tais argumentos dependem de uma escolha sábia da superfície gaussiana mas, mais importante, também dos detalhes da estrutura do vetor campo elétrico — em particular, das coordenadas das quais ele depende e das componentes vetoriais que possui. O ponto principal é que tais detalhes dependem apenas das simetrias da distribuição de cargas, sendo totalmente independentes da lei de Gauss, ainda que essenciais para o uso da mesma neste contexto.

Por que o uso bem sucedido da lei de Gauss para a determinação do campo elétrico exige conhecimento prévio de certos detalhes deste? É o conjunto de equações E=ρεo e ×E=0, junto com condições de contorno (por exemplo, como o campo se anular em pontos infinitamente distantes), que determina completamente o campo elétrico. Tendo em vista o teorema de Helmholtz, o divergente do campo fornece o que chamamos de sua componente longitudinal (irrotacional), enquanto que seu rotacional fornece as componentes transversas (de divergente nulo). Portanto, a lei de Gauss sozinha não é o bastante para se resolver um problema de eletrostática. No contexto destas notas, o primeiro pedaço de informação a respeito do campo é obtido após investigar-se suas simetrias, o que revela sua forma vetorial e de quais coordenadas depende, mas que não fornece sua expressão explícita. Esta investigação sozinha é suficiente para fornecer um conjunto de soluções para ×E=0. A solução particular do problema é, então, completamente determinada pela lei de Gauss, que aqui usaremos em sua forma diferencial, E=ρεo.

Para uma distribuição de cargas esfericamente simétrica centrada na origem de um sistema de coordenadas polares esféricas (r,θ,ϕ), a densidade volumétrica de carga satisfaz ρ(r)=ρ(r). O campo elétrico produzido deve ser consistente com o fato desta distribuição comportar-se sempre da mesma maneira independente de ser girada em torno do próprio centro ou do local de onde a olhamos quando estamos a uma mesma distância do seu centro. Portanto, pontos a uma mesma distância do centro da distribuição são equivalentes, de modo que o valor do campo medido nestes deve ser sempre o mesmo, não podendo depender de qualquer coordenada angular. Logo, deve satisfazer |E(r)|=E(r). A respeito da direção do campo, E possui apenas a componente radial Er. Componentes angulares devem ser nulas, pois, ainda que a fonte do campo não se altere após ser girada, tais componentes mudariam de direção.

A conclusão da discussão acima é que qualquer distribuição de cargas esfericamente simétrica deve gerar campos elétricos com estrutura do tipo E(r)=E(r)r^. Essa exigência pode ser vista como uma condição de contorno imposta sobre o campo e motivada pela simetria da distribuição de cargas. Tal estrutura de campo consiste em um conjunto de soluções para ×E=0. Agora, utilizaremos a lei de Gauss para determinar soluções particulares. Em coordenadas polares esféricas, obtemos

(1) E = 1 r 2 d d r r 2 E ( r ) = ρ ( r ) ε o .

No caso da carga puntiforme, a densidade volumétrica é ρ(r)=qδ3(r) e a solução para o campo é facilmente obtida comparando-se a expressão acima com a definição da função delta de Dirac, r^r2=4πδ3(r), de onde concluimos que E(r)=q4πεor2, que é a lei de Coulomb para uma carga puntiforme na origem, naturalmente. No caso de distribuições extensas, ρ(r) pode ser superficial ou volumétrico. Para ambos casos, a Equação (1) pode ser integrada como

(2) d r 2 E ( r ) = 1 ε o ρ ( r ) r 2 d r .

Quais são os limites de integração? Existem duas regiões a se considerar: uma no interior da distribuição (r<R) e outra no exterior (r>R). Não existindo cargas puntiformes no interior, o campo elétrico é regular nesta região e deve ser finito na origem (r=0). Uma boa escolha, portanto, é integrar-se da origem até um ponto em alguma destas regiões a uma distância r do centro. Após esta integração, o lado esquerdo da equação anterior resulta, para ambas regiões, em

(3) r 2 E ( r ) r 2 E ( r ) r = 0 = r 2 E ( r ) .

Como resultado, o campo produzido é

(4) E ( r ) = 1 ε o r 2 0 r ρ ( r ) r 2 d r , se r < R , 1 ε o r 2 0 R ρ ( r ) r 2 d r , se r > R .

Note que a expressão para r>R também foi inicialmente integrada de 0 a r, mas como a distribuição de cargas se estende somente até r=R, a integração de R a r se anula. Note que essas expressões também são válidas na interface r=R caso não exista uma densidade superficial de carga nesta, como esperado devido a continuidade do campo elétrico quando na ausência de tais distribuições de cargas.

A solução para o campo na Equação (4), na verdade é a mais geral para qualquer distribuição esfericamente simétrica, pois, além de densidades superficiais e volumétricas, também inclui o caso do campo da carga puntiforme na origem, que é obtido usando-se ρ(r)=qδ3(r) e a identidade δ3(r)dτ=1 (integração sobre todo espaço). Outro caso particular que vale ser mencionado é o de uma casca esférica de raio R uniformemente carregada com densidade superficial σ=Q4πR2, por exemplo, que é obtido usando-se ρ(r)=σδ(rR), resultando no campo Q4πεor2 fora da casca e zero dentro, como esperado.

Por fim, a distribuição de cargas esfericamente simétrica mais geral possível envolve uma carga puntiforme, distribuições uniformes em cascas esfericas e esferas sólidas, sendo dada por ρ(r)=qδ3(r)+σnδ(rRn)+ρvol(r), onde σn é a densidade superficial uniforme de uma casca carregada de raio Rn e ρvol é alguma densidade volumétrica que não inclui cargas puntiformes ou superficiais.

Em problemas com simetria cilíndrica, uma distribuição de cargas com tal simetria possui seu eixo longitudinal coincidindo com o eixo z e satisfaz ρ(r)=ρ(s), considerando-se um sistema de coordenadas cilíndricas (s, ϕ, z). Tal distribuição permanece inalterada mesmo após ser girada em torno da direção axial, deslocada ao longo desta, ou ter o sentido desta invertido. Isto implica que todos pontos a uma mesma distância do eixo z são equivalentes, de modo que magnitude do campo satisfaz |E(r)|=E(s), não dependendo de ϕ ou z. A respeito das componentes vetoriais, notemos que a distribuição de cargas não se alteraria caso a orientação axial fosse invertida, mas componentes axiais ou longitudinais do campo mudariam de sinal. Logo, estas devem ser nulas e o campo deve possuir apenas a componente radial Es.

Exigir simetria cilíndrica como uma condição de contorno para o campo elétrico impõe que sua estrutura seja do tipo E(r)=E(s)ŝ, a qual também satisfaz ×E=0. Semelhante ao caso esférico, agora usaremos a lei de Gauss para obter soluções particulares. Em coordenadas cilindricas, temos

(5) E = 1 s d d s s E ( s ) = ρ ( s ) ε o .

O caso de uma linha de cargas, ρ(s)=λδ2(s), sendo λ uma densidade linear uniforme, merece atenção distinta, pois deve ser comparada à definição da função delta de Dirac bidimensional, ŝs=2πδ2(s), de onde podemos concluir que E(s)=λ2πs, como esperado para uma linha de cargas uniformemente espalhadas ao longo de todo o eixo z. A distribuição ρ(s) também pode ser superficial ou volumétrica, de modo que para ambos casos a Equação (5) pode ser integrada em duas regiões distintas: uma interior à distribuição de cargas (s<R) e outra exterior a esta (s>R). Integração desde a origem até uma distância s resulta em

(6) E ( s ) = 1 ε o s 0 s ρ ( s ) s d s , se s < R , 1 ε o s 0 R ρ ( s ) s d s , se s > R .

Naturalmente, essa é a solução geral para qualquer distribuição de cargas cilindricamente simétrica, pois também engloba distribuições lineares. Por exemplo, o caso da linha reta carregada é obtido usando-se ρ(r)=λδ2(s) e δ2(s)sdsdϕ=1 (integração em todo o espaço). Análogo ao caso esférico, a distribuição com simetria cilíndrica mais geral possível é dada por ρ(r)=λδ2(s)+σnδ(sRn)+ρvol(r), envolvendo uma linha de cargas e distribuições uniformes em cascas e cilindros sólidos.

Por fim, distribuições de carga com simetria planar centradas na origem de um sistema Cartesiano (x, y, z), são infinitas em extensão e, por exemplo, paralelas ao plano xy, satisfazendo ρ(r)=ρ(z). Como tais distribuições não são afetadas por deslocamentos paralelos ao plano xy, todos pontos a uma mesma distância deste plano são equivalentes. Logo, a magnitude do campo depende apenas de z e tem-se |E(r)|=E(z). Para a estrutura vetorial do campo, apenas a componente Ez não é nula, pois as linhas de campo não podem mudar se girarmos a distribuição de cargas em torno do eixo z. Finalmente, como o campo em um determinado ponto não deve mudar se invertermos o plano carregado de cabeça para baixo, ele deve satisfazer E(z)=E(z). Incidentalmente, isso também implica que E=0 em z=0 caso não exista uma distribuição superficial de cargas no plano xy. Logo, distribuições com simetria planar produzem campos da forma E(r)=E(z), apontando para fora da distribuição se ρ>0 ou para dentro desta se ρ<0. Neste caso, a lei de Gauss assume uma forma bastante simples, E=dE(z)dz=ρ(z)εo. Como E(z)=E(z), um bom intervalo de integração na variável z é de z a z, resultando em

(7) E ( z ) = 1 2 ε o z z ρ ( z ) d z , se | z | < d , 1 2 ε o d d ρ ( z ) d z , se | z | > d .

Esta solução é a mais geral para o campo produzido por qualquer distribuição com simetria planar. Casos particulares comuns são o do plano infinito, descrito por ρ(z)=σδ(z), cujo campo vemos que vale σ2εo, e o de uma placa de espessura 2d com densidade uniforme ρ, onde encontramos que o campo vale ρzεo dentro da placa e ρdεo fora dela (notando-se que seu valor é nulo em z=0, como exigido por argumentos de simetria). Superposições podem ser tratadas analogamente aos casos anteriores — por exemplo, o caso de uma distribuição uniforme σ em z=0, envolta por planos de cargas iguais localizados simetricamente acima e abaixo, possui densidade de carga dada por ρ(z)=σδ(z)+σn[δ(zdn)+δ(z+dn)], onde dn é a distância entre o plano xy e cada membro do n-ésimo par de planos com densidade de carga σn.

Como exemplos de soluções alternativas para problemas tradicionais de livros-texto, os apresentados nestas notas servem para mostrar a equivalência, na prática, das duas formulações da lei de Gauss e também para expandir o catálogo de técnicas matemáticas que os estudantes constroem durante o curso de Física. Incidentalmente, notamos que a resolução por meio da forma diferencial contém menos passos e conceitos intermediários em comparação com o equivalente via formulação integral. Isso nos motiva a fazer o seguinte questionamento: será que exemplos resolvidos por meio da formulação diferencial também poderiam ser utilizados para melhorar a compreensão dos estudantes a respeito do uso da lei de Gauss?

Ao que aparenta, estudantes em cursos introdutórios ou avançados de eletricidade e magnetismo compartilham praticamente as mesmas dificuldades conceituais a respeito da lei de Gauss, como indicado pelos estudos das Refs. [2[2] C. Singh, Am. J. Phys. 74, 923 (2006).,3[3] R.E. Pepper, S.V. Chasteen, S.J. Pollock and K.K. Perkins, Phys. Rev. ST Phys. Educ. Res. 8, 010111 (2012).]. Os autores destes identificaram equívocos, provavelmente interligados, que incluem relacionar a simetria do campo à carga englobada pela superfície gaussiana ou ao formato do objeto onde a carga está, ao invés de relacioná-la à densidade de carga; usar atalhos matemáticos, como SEda=EA, mesmo quando estes não são aplicáveis; e relacionar o campo, ao invés do fluxo, diretamente a qint. Ainda que estes estudos tenham sido realizados fora do Brasil, acreditamos que nossa realidade não apresente diferenças significativas.

Motivados por tais estudos, gostaríamos de expor aos professores de disciplinas de eletricidade e magnetismo avançado a possibilidade, que julgamos merecer ser explorada em sala de aula, de se amenizar tais dificuldades dos estudantes pela exposição, também, do uso da formulação diferencial no ensino da lei de Gauss. Em particular, esperamos que ensinar a forma diferencial antes da integral ajude a amenizar alguns dos equívocos mencionados anteriormente, pois o uso da primeira torna menos propenso o surgimento de atalhos matemáticos e também evita conceitos intermediários à resolução, como os de fluxo elétrico, superfícies gaussianas e o de cargas englobadas por gaussianas.

Dificuldades análogas às que mencionamos também são observadas no contexto da lei de Ampère [4[4] J. Guisasola, J.M. Almudí, K. Zuzae and M. Ceberio, Eur. J. Phys. 29, 1005 (2008).,5[5] C.S. Wallace and S.V. Chasteen, Phys. Rev. ST Phys. Educ. Res. 6, 020115 (2010).]. Caso observadas melhoras significativas na compreensão dos estudantes à respeito da lei de Gauss após uso maior da sua formulação diferencial, e como o conteúdo exposto nestas notas pode ser imediatamente traduzido para o contexto da lei de Ampère, abre-se a perspectiva de buscar-se a mesma melhoria na compreensão desta lei, já que ambas leis compartilham abstrações conceituais de naturezas semelhantes.

Referências

  • [1]
    Exemplos tradicionais incluem D.J. Griffiths, Introduction to Electrodynamics (Prentice Hall, 1999), 3a ed., e J.D. Jackson, Classical Electrodynamics (Wiley, New York, 1999), 3a ed.
  • [2]
    C. Singh, Am. J. Phys. 74, 923 (2006).
  • [3]
    R.E. Pepper, S.V. Chasteen, S.J. Pollock and K.K. Perkins, Phys. Rev. ST Phys. Educ. Res. 8, 010111 (2012).
  • [4]
    J. Guisasola, J.M. Almudí, K. Zuzae and M. Ceberio, Eur. J. Phys. 29, 1005 (2008).
  • [5]
    C.S. Wallace and S.V. Chasteen, Phys. Rev. ST Phys. Educ. Res. 6, 020115 (2010).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2017
  • Aceito
    24 Maio 2017
Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: marcio@sbfisica.org.br