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Uma introdução ao cálculo fracionário e suas aplicações em circuitos elétricos

An introduction to fractional calculus and its Applications in Electric Circuits

Resumo

A extensão natural do cálculo diferencial, proposta inicialmente em uma troca de correspondências entre l'Hôpital e Leibniz, levou ao conceito de derivada de ordem fracionária. A aplicação da derivada fracionária permite uma melhor descrição da dinâmica de muitos sistemas reais, indo desde biossistemas até mercados financeiros, que apresentam efeitos de memória, dissipação e dimensionalidade fractal. No presente trabalho, os objetivos principais são a apresentação conceitual da derivada fracionária, algumas de suas definições tanto na forma de diferenças finitas de Grünwald-Letnikov quanto nas formas integrais de Riemann-Liouville, para posteriormente aplicá-las a problemas usuais da teoria de circuitos elétricos em circuitos do tipo RC e RL de ordem fracionária.

Palavras-chave:
derivada fracionária; derivada de Grünwald-Letnikov; integrais de Riemann-Liouville; circuitos elétricos

Abstract

A natural extension of differential calculus, initially proposed by l'Hôpital in a letter to Leibniz, leaded to the concept of fractional order derivatives. The application of fractional derivatives allows one to correctly describe the dynamics of many real systems, from biosystems to financial markets, where memory effects, dissipation and fractal dimensionality are present. This paper aims to present an overview of fractional derivatives and its representations, both in the form of Grünwald-Letnikov finite differences as well as in the form of Riemann-Liouville integrals, and to apply it in describing RC and RL electrical circuits of fractional order.

Keywords:
fractional derivatives; Grünwald-Letnikov derivatives; Riemann-Liouville integrals; electric circuits

1. Introdução

A maioria dos sistemas dinâmicos reais apresentam complexidade suficiente para produzir efeitos de memória, dissipação e dimensionalidade efetiva de ordem fracionária. Alguns desses problemas levam a funções de natureza fractal, apresentando a propriedade de auto-similaridade, ou seja, os padrões que aparecem em uma determinada escala se repetem em escalas maiores e menores. Essas funções não são diferenciáveis no sentido convencional e muitas das leis que regem os processos difusivos e/ou transições de fase são melhor descritas por leis de potências fracionárias. Todos esses aspectos podem ser melhor compreendidos através do uso do chamado cálculo fracionário e da geometria fractal [1Bruce J. West, Rev. Mod. Phys. 86, 1169 (2014). K.S. Miller and B. Ross, An Introduction to the Fractional Calculus and Fractional Differential Equations (John Wiley & Sons, New York, 1993). K.B. Oldham and J. Spanier, The Fractional Calculus: Theory and Aplications, Differentiation and Integration to Arbitrary Order (Academic, New York, 1974). I. Podlubny, Fractional Differential Equations: An Introduction to Fractional Derivatives, Fractional Differential Equations, Some Methods of Their Solutions and Some of Their Applications (Academic, San Diego, 1999).-5]A. Kilbas, H. Srivastava and J. Trujillo, Theory and Applications of Fractional Differential Equations (Elsevier, Amsterdam, 2006)..

As origens do cálculo fracionário remontam ao ano de 1695, quando o matemático Guillaume François de l'Hôpital enviou uma carta para o matemático Gottfried Leibniz, conhecido por ser o pai da notação moderna do cálculo diferencial, onde discutia o possível significado de uma derivada de ordem n = 1/2. A resposta de Leibniz a l'Hôpital, levou às primeiras definições de derivadas e integrais de ordens não-inteira [2]K.S. Miller and B. Ross, An Introduction to the Fractional Calculus and Fractional Differential Equations (John Wiley & Sons, New York, 1993)., [4]I. Podlubny, Fractional Differential Equations: An Introduction to Fractional Derivatives, Fractional Differential Equations, Some Methods of Their Solutions and Some of Their Applications (Academic, San Diego, 1999).. Desde então, grandes matemáticos, como Leonhard Euler e Joseph Louis Lagrange [6]R. Figueiredo Camargo, Cálculo Fracionário e Aplicações. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (2009)., dedicaram esforços ao problema do cálculo fracionário. Embora Pierre Simon Laplace tenha definido a derivada fracionária em termos de uma fórmula integral já em 1812, a terminologia derivada fracionária foi criada somente em 1819 por Sylvestre François Lacroix em um artigo que visava obter a derivada de ordem fracionária de um polinômio, tendo obtido resultado coincidente com o obtido pelos métodos atuais utilizando integrais de Riemann-Liouville [6]R. Figueiredo Camargo, Cálculo Fracionário e Aplicações. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (2009).. As representações da derivada fracionária a partir dos métodos de transformada foram introduzidas já em 1822 por Jean Baptiste Joseph Fourier. Essas são conhecidas como representação integral de Fourier [7]R. Figueiredo Camargo, Do Teorema de Cauchy ao Método de Cagniard. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (2005)..

Após esforços de notáveis matemáticos no desenvolvimento da teoria do cálculo fracionário, a primeira aplicação concreta foi realizada em 1823 por Niels Henrik Abel [8]N.H. Abel, Mag. Natur. 1, 1 (1823).,[9]Ryan M. Evans, Udita N. Katugampola and David A. Edwards, Computers and Mathematics with Applications 73, 1346 (2017)., para solucionar o problema da curva tautócrana, para a qual o tempo de descida de um corpo abandonado sobre ela e sujeito à ação apenas da gravidade seja o mesmo independentemente do ponto inicial onde o corpo é abandonado. Os resultados obtidos por Fourier e Abel motivaram Joseph Liouville a produzir o primeiro grande estudo do cálculo fracionário [6]R. Figueiredo Camargo, Cálculo Fracionário e Aplicações. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (2009).. Generalizações das séries de Taylor foram propostas por Benhard Riemann e publicadas postumamente em 1892 [6]R. Figueiredo Camargo, Cálculo Fracionário e Aplicações. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (2009).. O trabalho pioneiro de Michele Caputo no campo da viscoelasticidade [10]M. Caputo, Elasticità e Dissipazione (Zanichelli, Bologna, 1969). em 1969 permitiu uma nova definição para as derivadas fracionárias. Caputo também utilizou sua definição na descrição de problemas de sismologia [11]M. Caputo, Lectures on Seismology and Rheological Tectonics (Univ. degli Studi di Roma, La Sapienza, 1992)..

A partir das definições de Caputo e Grünwald-Letnikov, diversos autores, nas últimas décadas, mostraram que modelagens realizadas a partir do cálculo fracionário oferecem uma melhor descrição dos fenômenos naturais do que as realizadas com o cálculo usual. Isso se dá devido as derivadas fracionárias proporcionarem uma excelente descrição para efeitos de memória e propriedades hereditárias de diversos materiais. Nos últimos anos houve um grande aumento de pesquisas nessa área, nos mais diversos ramos da ciência, como a física da difusão, controle de sistemas, finanças, economia, processos estocásticos e em diversas áreas das ciências aplicadas e engenharia [12]V. Cordeiro Friesen, Modelagem da Sorção de Metais Pesados Utilizando Cálculo Fracionário. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Paraná, Paraná (2013).. Desde que surgiu o cálculo fracionário, a vicoelasticidade é o campo de maior aplicação, devido ao seu fenômeno de tratar efeitos de memória [13]F. Mainardi, Fractional Calculus and Waves in Linear Viscoelasticity. An Introduction to Mathematical Models (Imperial College Press, London, 2010).. Uma grande variedade de problemas, que vão desde o fenômeno da difusão anômala e o movimento browniano fracionário [14R. Metzler and J. Klafter, Phys. Rep. 339, 1 (2000). L.F. Richardson, Proc. R. Soc. A 110, 709 (1926). E.W. Montroll and G.H. Weiss, J. Math. Phys. 6, 167 (1965). A. Caspi, R. Granek and M. Elbaum, Phys. Rev. Lett. 85, 5655 (2000). E. Sousa, Int. J. Bifurcation Chaos Appl. Sci. Eng. 23, 1350166 (2013). Eirik G. Flekkoy, Phys. Rev. E 95, 012139 (2017).-20V. Pandey and S. Holm, Phys. Rev. E 94, 032606 (2016).], até os ecossistemas e mercados financeiros [21M. Turalska, M. Lukovic, B.J. West and P. Grigolini, Phys. Rev. E 80, 021110 (2009). R.N. Mantegna and H.E. Stanley, An Introduction to Econophysics (Cambridge University Press, Cambridge, 2000). V. Plerou, P. Gopikrishnan, L.A.N. Amaral, X. Gabaix and H. Stanley, Phys. Rev. E 62, R3023 (2000). B.J. West and P. Grigolini, Physica 389A, 5706 (2010). K.C. Leptos, J.S. Guasto, J.P. Gollub, A.I. Pesei and R.E. Goldstein, Phys. Rev. Lett. 103, 198103 (2009). I.W. Zaid, J. Dunkel and J.M. Yeomans, J.R. Soc. Interface 8, 1314 (2011).-27H. Kleinert, Path Integrals in Quantum Mechanics, Statistics and Polymer Physics, and Financial Markets (World Scientific, Singapore, 2002), 3rd. ed.], podem ser descritos por equações diferenciais fracionárias. Os princípios do cálculo fracionário também têm sido introduzidos no estudo de fluídos quânticos [12A.C. White, C.F. Barenghi, N.P. Proukakis, A.J. Youd and D.H. Wacks, Phys. Rev. Lett. 104, 075301 (2010)., 29A.W. Baggaley and C.F. Barenghi, Phys. Rev. A 84, 020504 (2011).] e em processos de relaxação de spin em imageamento por ressonância nuclear magnética, onde equações de Bloch de ordem fracionária foram introduzidas [30K.M. Bennett, J.S. Hyde and K.M. Schmainda, Magn. Reson. Med. 56, 235 (2006). K.M. Bennett, K.M. Schmainda, R.T. Bennett, D.B. Rowe, H. Lu and J.S. Hyde, Magn. Reson. Med. 50, 727 (2003).-32R.L. Magin, O. Abdullah, D. Baleanu and X.J. Zhou, J. Magn. Reson. 190, 255 (2008).]. Tem sido demonstrado ainda que fenômenos de relaxação em materiais complexos usualmente envolvem uma equação de taxa fracionária, uma vez que o comportamento dinâmico apresenta auto-similaridade, o que é uma possível manifestação do grupo de renormalização [1Bruce J. West, Rev. Mod. Phys. 86, 1169 (2014)., 33W.G. Glöcke and T.F. Nonnenmacher, Macromolecules 24, 6426 (1991)., 34W.G. Glöcke and T.F. Nonnenmacher, Biophys. J. 68, 46 (1995).]. Em polímeros, por exemplo, a relação entre a tensão aplicada e a deformação produzida no material não satisfaz a lei de Hooke, sendo mais corretamente modelada por meio de equações diferenciais fracionárias [33]W.G. Glöcke and T.F. Nonnenmacher, Macromolecules 24, 6426 (1991).. Uma bela demonstração de como as formulações lagrangiana e hamiltoniana tradicionais não conseguem acomodar de maneira simples os efeitos de dissipação e fricção, mas uma generalização através do uso de derivadas de ordem fracionária podem solucionar o problema de modo natural, pode ser encontrada no artigo de F. Riewe [35]Fred Riewe, Phys. Rev. E 53, 1890 (1996).. A própria mecânica quântica tem sido generalizada, através do desenvolvimento de versões fracionárias da equação de Schrödinger [36N. Laskin, Phys. Rev. E 66, 056108 (2002). N. Laskin, Phys. Lett. A 268, 298 (2000).-38N. Laskin, Phys. Rev. E 62, 3135 (2000).], utilizando o conceito de vôos de Levy [39]V. Zaburdaev, S. Denisov and J. Klafter, Rev. Mod. Phys. 87, 483 (2015)..

É possível notar o impacto do cálculo fracionário também na descrição de diversos problemas na área da Engenharia Elétrica, indo desde os fundamentos da teoria de circuitos [40A.G. Radwan, A.S. Elwakil and A.M. Soliman, IEEE Trans. Circuits Syst. I 55, 2051 (2008). A.G. Radwan and K.N. Salama, IEEE Trans. Circuits Syst. I 58, 2388 (2011).-42A.G. Radwan and K.N. Salama, J. Circuits Syst. Signal Process. 31, 1901 (2012).], passando pela modelagem biomédica [43K. Moaddy, A.G. Radwan, K.N. Salama, S. Momani and I. Hashim, Comput. Math. Appl. 64, 3329 (2012).,44R.L. Magin, Fractional Calculus in Bioengineering (Begell House, Redding, 2006).], estabilidade e controle de sistemas [45A.G. Radwan, A.M. Soliman, A.S. Elwakil and A. Sedeek, Chaos, Solitons Fractals 40, 2317 (2009). A.G. Radwan, J. Fract. Calculus Appl. 3, 1 (2012). Y.Q. Chen and K.L. Moore, IEEE Trans. Circuits Syst. I 49, 363 (2002).-48S. Mukhopadhyay, C. Coopmans and Y.Q. Chen, in: Proc. Int. Design Eng. Tech. Conf. Comput. Inf. Eng. Conf., San Diego, 2009, pp. 1-8.], modelagem de memristores [49]M.E. Fouda and A.G. Radwan, J. Fract. Calculus Appl. 4, 1 (2013). e indutores de radiofrequência [50]I. Podlubny, IEEE Trans. Autom. Control 44, 208 (1999). e teoria eletromagnética [51A. Shamim, A.G. Radwan and K.N. Salama, IEEE Microwave Wireless Compon. Lett. 21, 117 (2011)., 52A.G. Radwan, A. Shamim and K.N. Salama, IEEE Microwave Wireless Compon. Lett. 21, 120 (2011).].

No presente trabalho, os conceitos fundamentais das derivadas de ordem fracionária serão apresentados, utilizando primeiro a noção familiar de diferenças finitas, proposta independentemente por Anton K. Grünwald e Aleksey V. Letnikov [2K.S. Miller and B. Ross, An Introduction to the Fractional Calculus and Fractional Differential Equations (John Wiley & Sons, New York, 1993). K.B. Oldham and J. Spanier, The Fractional Calculus: Theory and Aplications, Differentiation and Integration to Arbitrary Order (Academic, New York, 1974). I. Podlubny, Fractional Differential Equations: An Introduction to Fractional Derivatives, Fractional Differential Equations, Some Methods of Their Solutions and Some of Their Applications (Academic, San Diego, 1999).-5A. Kilbas, H. Srivastava and J. Trujillo, Theory and Applications of Fractional Differential Equations (Elsevier, Amsterdam, 2006).], para depois apresentar algumas versões integrais da integral de Riemann-Liouville. Tendo adquirido algum conhecimento a respeito das derivadas fracionárias, o método será aplicado a circuitos elétricos do tipo RC e RL fracionários, e uma breve discussão da motivação física para a proposta de relações fracionárias será apresentada. Um artigo recente aborda as derivadas fracionárias na Revista Brasileira de Ensino de Física, apresentando em maior profundidade os aspectos matemáticos e teóricos do assunto [53]G. Sales Teodoro, D.S. Oliveira e E. Capelas de Oliveira, Rev. Bras. de Ensino de Física 40, e2307 (2018)., enquanto neste trabalho procuraremos apresentar, além de uma certa ênfase nas definições baseadas em transformadas, as possíveis motivações físicas para o aparecimento da ordem fracionária em circuitos elétricos.

2. A derivada de ordem fracionária

O tópico das derivadas fracionárias está longe de ser amplamente conhecido e por este motivo uma introdução conceitual se faz necessária. Todavia, a definição de operadores de derivada de ordem fracionária não é única [54]E.Capelas de Oliveira and J.A. Tenreiro Machado, Math. Prob. Ing. 2014, 238459 (2014).. Portanto, é preferível iniciar pelo uso de uma ideia familiar, amparada no uso de diferenças finitas para o cálculo de derivadas de ordem inteira n:

(1) d n d x n f ( x ) = lim h 0 1 h n k = 0 n ( 1 ) k n k f ( x k h ) ,

onde o símbolo nk=n!/[(nk)!k!] denota os coeficientes da expansão binomial de Newton e h denota o deslocamento infinitesimal ao longo do eixo x e cujo limite será levado para zero ao final. De forma independente, Anton Karl Grünwald e Aleksey Vasilievich Letnikov, por volta de 1868, propuseram a seguinte expressão generalizada [2K.S. Miller and B. Ross, An Introduction to the Fractional Calculus and Fractional Differential Equations (John Wiley & Sons, New York, 1993). K.B. Oldham and J. Spanier, The Fractional Calculus: Theory and Aplications, Differentiation and Integration to Arbitrary Order (Academic, New York, 1974). I. Podlubny, Fractional Differential Equations: An Introduction to Fractional Derivatives, Fractional Differential Equations, Some Methods of Their Solutions and Some of Their Applications (Academic, San Diego, 1999).-5A. Kilbas, H. Srivastava and J. Trujillo, Theory and Applications of Fractional Differential Equations (Elsevier, Amsterdam, 2006).]:

(2) d α d x α f ( x ) = lim h 0 1 h α k = 0 ( 1 ) k Γ ( α + 1 ) Γ ( α k + 1 ) k ! f ( x k h ) ,

onde agora pode assumir valores complexos, ou seja, αC, enquanto hR. A função gama, denotada por Γ(.) e definida abaixo:

(3) Γ ( α + 1 ) = 0 x α e x d x ,

com αC{1,2,3...}, generaliza a definição de fatorial para qualquer número não inteiro. Para Re (α)<0 a equação (2) define a integração fracionária. Para valores negativos inteiros, ou seja, α{1,2,3...} a função gama não é convergente, mas é possível calcular um limite para o resultado do coeficiente (1)kΓ(α+1)Γ(αk+1)k!, cujo efeito é a integração de ordem inteira. O operador dα/dxα conforme definido acima é também denominado operador diferintegral de Grünwald-Letnikov. Para valores positivos inteiros de α=n=1,2,3... têm-se que n!=Γ(n+1) e Γ(α+1)Γ(αk+1)k! reduz-se à expressão para os coeficientes binomiais de Newton, permitindo recuperar a definição de derivadas de ordem inteira dada em (1).

A expressão (2) permite determinar a derivada fracionária de ordem α para qualquer função f(x) e pode ser implementada numericamente de forma relativamente simples. Note que a somatória aparecendo na definição de Grünwald-Letnikov é levada até o limite k → ∞, pois a ideia de estender a derivada para números não inteiros segue a ideia da expansão binomial de ordem não inteira, dada por

(4) ( A + B ) α = k = 0 Γ ( α + 1 ) Γ ( α k + 1 ) k ! A α k B k ,

para |A|>|B| e Re (α)>0, mas pode-se adotar um ponto de referência a e truncar a somatória até um N=(xa)/h, onde q é a função teto (do inglês ceiling), que faz o arredondamento para o número inteiro mais próximo e maior do que q. Se o ponto de referência ou de base é tomado em a= recupera-se a somatória até o infinito.

Tendo em conta a expansão binomial para potências podemos obter a generalização da derivada inteira dn/dxn(xm)=m!/(mn)!xmn para ordens fracionárias, produzindo o seguinte resultado:

(5) d α d x α x β = Γ ( β + 1 ) Γ ( β α + 1 ) x β α ,

αC and β0. Um resultado marcante da definição de derivada (5) ocorre para β=0 e estamos calculando a derivada fracionária de ordem α de uma constante. É notável que para α αZ a derivada fracionária não se anula, produzindo dαdxα1=1Γ(1α)xα. Esse aparente paradoxo produz, para o caso α=1/2, d1/2dx1/21=2πx.

A Figura 1 ilustra a derivada fracionária de ordem α no intervalo -1≤ α ≤ 1 para a função f(x) = x. Curvas numéricas utilizando a definição de Grünwald-Letnikov (2) com 150 pontos no intervalo do eixo x considerado, produzindo h =6,8 × 10-3 unidades, foram comparadas ao cálculo da derivada fracionária analiticamente através da definição (5). Observa-se nesse caso uma excelente concordância entre o cálculo numérico e o resultado analítico. Além disso, a derivada fracionária interpola entre a integral de f(x) quando α = -1 e a derivada de ordem inteira quando α = 1.

Figura 1
Derivada fracionária de ordem α da função f(x)=x para o intervalo 1α1. Note que para α=1 o resultado é a integral x2/2, para α=0 obtém-se a própria função f(x)=x e para α=1 a derivada de ordem 1 que nesse caso resulta no valor 1. As curvas pontilhadas representam o cálculo numérico utilizando a definição de Grünwald-Letnikov (2) com 150 pontos no intervalo considerado, enquanto as curvas contínuas indicam as funções exatas calculadas utilizando (5).

Seria possível ainda definir um operador de derivada fracionária baseado no comportamento esperado para uma função exponencial, que no caso da ordem inteira produz dn/dxneax=aneax. Desse modo, deve-se esperar que para um valor α qualquer

(6) d α d x α e a x = a α e a x .

A equação (6) é compatível com a equação (5) desde que se tome uma certa referência inicial para a variável x, caso contrário, utilizando a definição (5), pode-se mostrar que:

(7) d α d x α e a x = a α e a x + . . . .

Uma consequência importante da expressão (5) é que a derivada fracionária de funções periódicas produz como resultado funções não periódicas, como se pode ver calculando a derivada fracionária das funções cos(ax) e sin(ax) expandidas em séries de Taylor. Todavia, num certo limite assintótico podemos admitir a validade do resultado (1). Fazendo a=iθ, podemos mostrar que

(8) d α d x α cos ( a x ) = a α cos ( a x + α π / 2 ) ,

(9) d α d x α sen ( a x ) = a α sen ( a x + α π / 2 ) ,

resultado que reproduz as expressões conhecidas quando α = 1.

A Figura 2 ilustra a derivada fracionária de ordem α da função f(x)= sen (x), tanto calculada numericamente através da definição de Grünwald-Letnikov (2), quanto analiticamente através da expressão (9). Para o cálculo numérico, o resultado depende do valor de referência de x (valor mínimo do domínio considerado), tomado como 10π, bem como do número de pontos e de h. Aqui foram considerados 500 pontos no domínio 10πx2π. Note que a figura ilustra o intervalo 0x2π, pois é nesse domínio, ou para x>2π que a definição Grünwald-Letnikov (2) e a expressão analítica (9) coincidem. É importante lembrar que a derivada de ordem fracionária calculada no ponto x depende de infinitos pontos anteriores, o que pode representar grosseiramente o efeito de memória. Do ponto de vista numérico, se faz necessário realizar um truncamento, pois não é possível considerar um domínio computacional com a referência inicial x. O valor inicial do domínio afeta o resultado da derivada.

Figura 2
Derivada fracionária de ordem α da função f(x)= sen x. As curvas pontilhadas representam o cálculo numérico utilizando a definição de Grünwald-Letnikov (2) com 500 pontos no domínio considerado, enquanto as curvas contínuas indicam as funções calculadas utilizando (9).

Tendo em vista o efeito do ponto inicial sobre o resultado da derivada fracionária, é usual mudar a notação de dα/dxα para a+Dxα, significando que a derivada está sendo calculada em relação à variável x, com o domínio iniciando-se em xa. O valor de a não tem nenhum efeito quando α assume um número inteiro, mas produz resultados distintos no caso de α não inteiro. Esse fenômeno é inteiramente conhecido para as derivadas fracionárias e reflete a não-localidade e o efeito de memória da derivada de ordem não inteira. Se por um lado a derivada inteira de ordem m depende de m+1 pontos no entorno do ponto x onde está sendo calculada, para qualquer ordem fracionária a derivada dependerá de infinitos outros pontos. Diz-se que a derivada inteira é local, enquanto a derivada não inteira é não-local.

Supõe-se que as teorias físicas mais fundamentais devam ser construídas utilizando apenas derivadas inteiras, assumindo-se que devam respeitar o princípio da localidade. No entanto, sistemas complexos de muitos graus de liberdade e vínculos podem manifestar, ao menos fenomenologicamente, efeitos de não-localidade, o que torna o uso das derivadas de ordem não inteira bastante atrativo.

2.1. A função de Mittag-Leffler

Uma das funções mais importantes no cálculo fracionário deve-se a Magnus G. Mittag-Leffler [55]G.M. Mittag-Leffler, Comptes Rendus de l'Academie des Sciences II, n. 137, 554 (1903). e recebe o seu nome. A função de Mittag-Leffler de um único parâmetro, Eα(x), generaliza a função exponencial, cuja série de Taylor tem a seguinte forma:

(10) e x = k = 0 x k k ! .

Para uma exponencial de ordem fracionária, propõe-se a substituição de k! por sua versão Γ(αk+1), tal que:

(11) E α ( x ) = k = 0 x k Γ ( α k + 1 ) ,

αC e Re (α)>0.

Naturalmente fazendo α=1 recuperamos a exponencial ex=E1(x). Agora vamos calcular a derivada de ordem β da função de Mittag-Leffler Eα(xα). Utilizando o resultado (5) obtém-se a seguinte série:

(12) β x β E α ( x α ) = k = 0 x α k β Γ ( α k β + 1 ) .

Esta função claramente difere da função original, a menos que β = α e nesse caso tem-se:

(13) α x α E α ( x α ) = k = 0 x α ( k 1 ) Γ ( α ( k 1 ) + 1 ) = x α Γ ( 1 α ) + E α ( x α ) .

A equação acima é uma versão fracionária da equação df/dx=f, mas note que agora a igualdade é verificada na presença de um termo adicional independente e proporcional a xα.

A função de Mittag-Leffler generalizada de dois parâmetros α e β tem a seguinte forma:

(14) E α , β ( x ) = k = 0 x k Γ ( α k + β ) ,

α,βC, Re(α)>0 e Re (β)>0

Abaixo são explicitadas as funções de Mittag-Leffler para alguns parâmetros inteiros de grande relevância:

(15) E 0 , 1 ( x ) = k = 0 x k = 1 1 x ,

(16) E 1 , 1 ( x ) = k = 0 x k k ! = e x

(17) E 2 , 1 ( x 2 ) = k = 0 ( 1 ) k x 2 k ( 2 k ) ! = cos ( x ) ,

(18) E 2 , 1 ( x 2 ) = k = 0 x 2 k ( 2 k ) ! = cosh ( x ) ,

(19) E 2 , 2 ( x 2 ) = k = 0 ( 1 ) k x 2 k ( 2 k + 1 ) ! = sin ( x ) x .

2.2. Propriedades Desejáveis de Operadores de Derivadas Fracionárias

É desejável que operadores de derivadas fracionárias compartilhem propriedades comuns às derivadas de ordem inteira, como a comutatividade e associatividade, a linearidade e a regra de Leibniz, explicitadas abaixo:

(20) α x α β x β f ( x ) = β x β α x α f ( x ) = α + β x α + β f ( x ) ,

(21) α x α [ f ( x ) + g ( x ) ] = α x α f ( x ) + α x α g ( x ) ,

(22) α x α [ f ( x ) · g ( x ) ] = k = 0 Γ ( α + 1 ) Γ ( α k + 1 ) k ! α k x α k f ( x ) · k x k g ( x ) .

Se a associatividade é satisfeita, diz-se que a operação respeita a propriedade de semigrupo, mas a depender da definição utilizada para o operador fracionário esta regra nem sempre é respeitada, bem como a associatividade [56]V.E. Tarasov, Commun. Nonl. Sci. Num. simulat. 18, 2945 (2013).. Aqui vamos assumir que sejam satisfeitas todas as propriedades de operadores diferenciais desejáveis em aplicações práticas.

A Derivada Fracionária a partir da Transformada de Fourier

Depois da definição de diferenças finitas de Grünwald-Letnikov, a generalização do cálculo diferencial para derivadas de ordem fracionária através do cálculo das transformadas é provavelmente a maneira mais natural de fazê-la, principalmente para aqueles leitores familiarizados com o cálculo de transformadas de Laplace e Fourier, que são amplamente utilizadas na Física e na Engenharia. Por conveniência vamos considerar aqui a transformada de Fourier, embora a demonstração a partir da transformada de Laplace siga essencialmente os mesmos passos.

Consideremos a seguinte definição para a transformada de Fourier de uma função integrável f(t):RC e sua inversa F˜(ω):CC, conectando os espaços duais tR e ωC:

(23) F ˜ ( ω ) = F [ f ( t ) ] = f ( t ) e i ω t d t ,

(24) f ( t ) = F 1 [ F ˜ ( ω ) ] = 1 2 π F ˜ ( ω ) e i ω t d ω ,

bem como a integral de convolução:

(25) f ( t ) g ( t ) = f ( t t ) g ( t ) d t .

Não é difícil demonstrar as seguintes propriedades para funções de suporte compacto (aquelas que tendem para zero nos limites ± do domínio considerado):

(26) F [ f ( t ) g ( t ) ] = F ˜ ( ω ) G ˜ ( ω ) ,

(27) F d n f ( t ) d t n = ( i ω ) n F ˜ ( ω ) ,

onde n = 0,1,2,3... é um número inteiro. Sabendo-se que a derivada dn/dtn no espaço de t corresponde a um fator (iω)n no espaço dual ω, podemos propor uma generalização natural para esta propriedade, fazendo com que exista um operador denominado de derivada fracionária dα/dtα, com α qualquer número complexo, no espaço de t que corresponda ao fator (iω)α no espaço dual ω. Desse modo, Fdαf(t)dtα=(iω)αF˜(ω). Conectando este último resultado à propriedade da convolução dada em (26), propomos que o operador de derivada fracionária produz a convolução entre a função f(t) sobre a qual este operador age e um kernel no domínio t, correspondente à função (iω)α no domínio dual ω. Portanto, resta descobrir qual é a transformada inversa de (iω)α. Tem-se então:

(28) F 1 [ ( i ω ) α ] = 1 2 π ( i ω ) α e i ω t d ω .

Agora podemos fazer uma mudança de variáveis iωt=x, permitindo reescrever a equação acima na forma que segue:

(29) F 1 [ ( i ω ) α ] = i 2 π t ( α + 1 ) i i ( x ) α e x d x .

Na expressão (29) podemos ver que F1[(iω)α] é proporcional à função 1/t(α+1). Para obter a constante de proporcionalidade, devemos estender os limites de integração, de tal forma a obter um contorno fechado, denominado de contorno de Hankel, cujo resultado é uma função gama recíproca, cuja representação é a seguinte:

(30) 1 Γ ( α ) = i 2 π H ( x ) α e x d x .

O contorno de Hankel envolve todo o eixo real até a origem no sentido anti-horário, sem cruzá o eixo real para x > 0, vindo de + ∞ até a origem e então retornando para + ∞. Finalmente obtemos a representação do kernel para o operador de derivada fracionária que satisfaz a regra da transformada de Fourier da derivada desejada:

(31) F 1 [ ( i ω ) α ] = 1 Γ ( α ) t α + 1 ,

onde αC com Re (α)>0, de maneira que a derivada fracionária fique representada na forma que segue:

(32) d α f ( t ) d t α = 1 Γ ( α ) 1 ( t t ) α + 1 f ( t ) d t .

Sem compromisso com o rigor matemático, aqui podemos diretamente conectar a expressão acima com a forma do operador de derivada fracionária de Riemann-Liouville, assumindo que f(t) seja nula para t > 0. Sabendo que d(t)α/dt=αtα1 e que Γ(1+z)=zΓ(z) podemos reescrever a equação acima na seguinte forma:

(33) d α d t α f ( x ) = 1 Γ ( 1 α ) d d t 0 t f ( t ) ( t t ) α d t ,

para 0<α<1 [1]Bruce J. West, Rev. Mod. Phys. 86, 1169 (2014).. Conforme já mencionado o operador de derivada fracionária é, na realidade, um tipo de integral de convolução, intrinsecamente não-local e pode apresentar efeitos de memória, o que é interessante na descrição de muitos problemas físicos.

Definição de Riemann-Liouville

O operador de integral fracionária de Riemann-Liouville é uma generalização da fórmula integral de Cauchy de ordem inteira n, apresentada a seguir:

(34) a x d x 1 a x 1 d x 2 . . . a x n 1 f ( x n ) d x n = 1 ( n 1 ) ! a x f ( τ ) ( x τ ) 1 n d τ .

Riemann percebeu que o lado direito da equação (34) pode ter significado mesmo quando n possui valores não inteiros, bastando generalizar a expressão acima substituindo o fatorial (n1)! por Γ(α):

(35) I a + α f ( x ) = 1 Γ ( α ) a x f ( τ ) ( x τ ) 1 α d τ ,

onde αR+ é a ordem da integral fracionária de Riemann-Liouville.

A definição da derivada fracionária de Riemann-Liouville de ordem α está baseada no conceito de que a derivada é a operação inversa da integração e, também, na lei dos expoentes. Ela estabelece que a derivada de ordem fracionária é a derivada de ordem inteira de uma determinada integral de ordem fracionária [6]R. Figueiredo Camargo, Cálculo Fracionário e Aplicações. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (2009)., conforme explicitado abaixo:

(36) D a + α f ( x ) = 1 Γ ( 1 α ) d d x a x f ( τ ) ( x τ ) α d τ ,

sendo x>a, 0<α<1 f(x)Lp(a,), 1p, é uma integrável no domínio a<x.

3. Circuitos RC e RL Fracionários

Nos fundamentos da teoria de circuitos elétricos, quando apresentados pela primeira vez para os estudantes de Física e Engenharia Elétrica, assume-se a existência de três elementos passivos básicos, a saber: i) resistores (R), ii) capacitores (C) e iii) indutores (L). Para todos eles estabelece-se uma lei de resposta instantânea, ou seja, aplicado o estímulo, a resposta àquele estímulo aparece instantaneamente e sem efeitos de memória, na forma como segue:

(37) I R ( t ) = 1 R V R ( t ) ,

(38) Q C ( t ) = C V C ( t ) ,

(39) Φ L ( t ) = L I L ( t ) ,

sendo IR(t) a corrente, em ampères, que atravessa o resistor de resistência R, medida em ohms, VR(t) o estímulo de tensão aplicada aos seus terminais, em volts, QC(t) representa a carga, em coulombs, armazenada em um capacitor de capacitância C, medida em farads e VC(t) o estímulo de tensão aplicada aos seus terminais, ΦL(t) representa o fluxo magnético, medido em webers, armazenado no indutor e L é a indutância, em henries, IL(t) é o estímulo de corrente elétrica aplicada ao indutor.

No mundo real, todavia, os efeitos não aparecem instantaneamente à aplicação dos estímulos e as leis mais gerais que descrevem os fenômenos causais são melhor descritas por relações de convolução entre o estímulo e a função resposta do elemento ou sistema físico em estudo [57]A.L. Soubhia, F. Figueiredo Camargo, E. Capelas de Oliveira and J. Vaz Jr., Frac. Cal. & Appl. Anal. 13, 9 (2010).. A função resposta é comumente denominada na Engenharia de função de transferência, enquanto na matemática ela é tipicamente denominada função de Green. Tomemos a capacitância como exemplo e vamos expressar a relação entre a carga no capacitor e a tensão aplicada aos seus terminais na forma de uma convolução:

(40) Q C ( t ) = C 0 ɛ ( t t ) V C ( t ) d t ,

onde C0 é uma constante de capacitância, medida em farads, e ɛ(tt) é uma função que aqui será denominada permissividade dielétrica, representada no domínio do tempo e medida em unidades de s1, sendo necessariamente uma função causal, tal que ɛ(tt)=0 para t<t. A relação (40) explicita o fato de que a carga QC(t) armazenada no capacitor no instante de tempo t pode depender de todos os valores de tensão aplicada VC(t) em instantes de tempo t anteriores ao instante atual t, ou seja, permite introduzir efeitos de memória no problema. De forma similar podemos descrever a lei para um indutor real:

(41) Φ L ( t ) = L 0 μ ( t t ) I L ( t ) d t ,

onde L0 é uma constante de indutância em henries e μ(tt) é uma função de permeabilidade magnética causal, representada no domínio do tempo, em unidades de s1.

Geralmente é possível, por simplicidade, assumir a aproximação de resposta instantânea como válida em uma ampla gama de materiais dielétricos empregados na indústria eletrônica para a construção de capacitores. Esses materiais incluem cerâmicas (em geral óxidos isolantes) e polímeros (como o polietileno). No entanto, para citar um exemplo onde esse cenário de resposta instantânea é claramente violado, mencionamos os supercapacitores, considerados excelentes substitutos para baterias, pois têm capacitâncias na ordem de vários farads e empregam materiais poliméricos e nanotubos de carbono. Nesses casos os mecanismos de armazenamento de carga estão associados a processos eletroquímicos mais complexos e efeitos de memória são bastante importantes.

Vamos considerar especificamente que a função resposta de um material dielétrico satisfaça uma lei de potência, na forma que segue:

(42) ɛ ( t t ) = A Γ ( 1 α ) ( t t ) α ,

onde A é uma constante e o parâmetro 0<α1 definirá a ordem da derivada fracionária. Substituindo a expressão (42) em (40) e lembrando que IC=dQC/dt, fica fácil demonstrar com o auxílio da definição de derivada fracionária de Riemann-Liouville, a seguinte lei para o capacitor:

(43) I C ( t ) = C α d α V C ( t ) d t α ,

em que Cα=C0A/Γ(1α) é o valor de capacitância fracionária, medida em unidades de F/s1-α e VC(t) é a tensão medida nos terminais desse capacitor.

A Figura 3 apresenta o circuito RC série fracionário. Uma fonte ν(t) é aplicada ao circuito que apresenta um resistor R em série com um capacitor fracionário . A corrente IC(t) que circula pelo circuito obedece a equação (43).

Figura 3
O Circuito RC Fracionário: o capacitor tem uma capacitância fracionária Cα. Uma fonte ν(t) é aplicada à associação em série entre um resistor R e o capacitor Cα. A corrente ICt circula no circuito.

Aplicando a lei das malhas ao circuito apresentado na Figura 3 temos ν(t)=RIC(t)+VC(t), resultando na seguinte equação diferencial fracionária:

(44) d α V C ( t ) d t α + 1 τ α V C ( t ) = ν ( t ) τ α ,

onde τ=(RCα)1/α é a constante de tempo do circuito. A forma mais direta de solução para uma equação dessa forma é a aplicação do método da transformada de Fourier, assumindo que dαf(t)/dtα possa ser mapeada em (iω)αF˜(ω) no domínio ω, conforme a propriedade (27). Desse modo obtém-se a função de transferência no domínio ω:

(45) G ( ω ) = V ˜ C ( ω ) ν ˜ ( ω ) = 1 ( i ω τ ) α + 1 .

A Figura 4 apresenta o comportamento do módulo e da fase da função de transferência G(ω) em função da frequência normalizada ω τ, para alguns valores da ordem da derivada fracionária entre α tendendo a zero, onde o circuito é puramente resistivo para α = 0, e α = 1, onde obtém-se o comportamento usual do capacitor.

Figura 4
(a) Módulo e (b) Fase da função de transferência G(ω) para alguns valores de α.

Agora podemos facilmente inverter a equação a partir da definição ((24)):

(46) V C ( t ) = 1 2 π ν ˜ ( ω ) ( i ω τ ) α + 1 e i ω t d ω ,

e observar a resposta a uma tensão em impulso delta de Dirac, v(t)=V0δ(t), para alguns valores de α, no domínio do tempo. A Figura 5 ilustra a resposta ao impulso obtida a partir da integração numérica da expressão (46). Para α = 1 temos a resposta usual de um circuito RC de ordem inteira. Para valores de α menores observa-se que, após a carga do capacitor em t = 0 pela fonte impulsiva, o descarregamento é mais rápido, enquanto para α > 1 há um atraso maior na resposta do carregamento do capacitor.

Figura 5
Resposta ao impulso da tensão VC(t) sobre o capacitor do circuito da Figura 3 para alguns valores de α.

Um circuito RL fracionário admite uma equação diferencial similar a do RC fracionário com a mudança de VC para IL. A relação entre o fluxo magnético ΦL e a corrente IL aplicada ao indutor tem a forma que segue:

(47) Φ L ( t ) = L α A Γ ( 1 α ) 0 t I L ( t ) ( t t ) α d t ,

em que Lα é a indutância fracionária e A uma constante. A expressão (47) pode emular o efeito de histerese em indutores para valores de corrente aplicada não muito elevados, de modo que a saturação do material magnético não seja atingida. A Figura 6 ilustra a relação entre a corrente aplicada ao indutor, que é proporcional à intensidade de campo magnético H, e o fluxo magnético proporcional à densidade de fluxo magnético B.

Figura 6
Relação entre a corrente aplicada IL e o fluxo magnético ΦL para um indutor fracionário de ordem α = 1/2, emulando uma curva de histerese a pequenos sinais.

A corrente aplicada a este indutor é uma função IL(t) = I0 sin(2π t) e o fluxo é calculado a partir da equação (47) numericamente, para o valor de α = 1/2. Foi considerado que Lα A = 1 em unidades apropriadas. Observe que o fluxo magnético tem valor inicial nulo, mas à medida que a corrente é aplicada o fluxo varia e não retorna para o ponto original, com a curva em formato de elipsóide se deslocando para baixo, de tal forma que o fluxo magnético remanente, após desligada a fonte, não seja mais nulo. Embora não possa capturar toda a riqueza de um sistema verdadeiramente não linear, essa aproximação fracionária é geralmente mais simples de implementar em modelagem de sistemas com histerese, podendo ser suficientemente precisa, a depender das exigências quantitativas do modelo.

4. Conclusões

Neste trabalho foi apresentada de forma introdutória a extensão natural do cálculo diferencial, denominado de cálculo fracionário, cujas origens remontam a uma troca de correspondências entre l'Hôpital e Leibniz ainda em 1695. A derivada de ordem fracionária foi abordada através do conceito mais intuitivo das diferenças finitas de Grünwald-Letnikov, para posteriormente fazermos uma apresentação através das formas integrais de Riemann-Liouville. Uma abordagem que traz um apelo direto para a Física e a Engenharia, certamente é a da transformada de Fourier, onde se generaliza a propriedade das derivadas de ordem inteira. Se a transformada de Fourier da derivada dn/dtn, nZ, de uma função f(t) no domínio t corresponde à multiplicação por (iω)n da função transformada F˜(ω) no domínio dual, então a generalização natural é imaginar que a ordem n possa ser estendida para qualquer αC com Re (α)>0, mantendo-se a propriedade fundamental da transformada. Como foi mostrado, essa ideia leva a uma definição similar à de Riemann-Liouville. Uma vez introduzidos os conceitos fundamentais, discutiu-se a aplicação dos operadores de derivada fracionária de Riemann-Liouville à teoria de circuitos elétricos. Os circuitos do tipo RC e RL de ordem fracionária foram discutidos, bem como a descrição simplificada da histerese de um indutor utilizando a derivada de ordem 1/2.

Agradecimentos

C.A. Dartora agradece ao CNPq, pelo suporte financeiro parcial, através de Bolsa de Produtividade em Pesquisa Projeto número 301894/2014-0.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2018
  • Revisado
    22 Fev 2018
  • Aceito
    26 Fev 2018
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