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Há mais história lá embaixo - um convite para rever uma palestra

There is plenty of history at the bottom – an invitation to revisit a talk

Resumo

Nesse artigo discute-se o papel de Richard Feynman na nanotecnologia a partir de um dos seus textos mais citados, a palestra There is plenty of room at the bottom – an invitation for a new Field of Physics. É discutido o contexto histórico da época de sua concepção, as possíveis inspirações nas quais o autor se baseou e a influência décadas depois, quando a palestra foi redescoberta e necessária no estabelecimento da nanotecnologia como campo do conhecimento.

Palavras-chave:
Richard Feynman; história da nanotecnologia

Abstract

We discuss in this article Richard Feynman's role in nanotechnology from the point of view of one of his most cited texts, namely the speech There is plenty of room at the bottom – an invitation for a new Field of Physics. We discuss the historical context of the time it was conceived, possible inspirations for the author and the influence decades later, when the speech was rediscovered and necessary in establishing nanotechnology as a new field of knowledge.

Keywords:
Richard Feynmann; history of nanotechnology

1. Introdução

No final de 1959, Richard Feynman já era um dos físicos mais importantes da época, tão conhecido pelos diagramas que levam o seu nome e com fama estabelecida de excelente palestrante, que cativava e divertia a plateia. Era perfeitamente esperado, portanto, que fosse convidado para o prestigioso after-dinner speech do encontro da Sociedade Americana de Física, ainda mais que este seria realizado ali mesmo em Pasadena, onde ficava seu local de trabalho. O que não poderia ser previsto era a enorme repercussão que a palestra que ele pensou e preparou durante seis semanas e ministrada no dia 29 de dezembro daquele ano teria, não tanto na época, mas décadas depois.

There is plenty of room down there – an invitation for a new field of Physics” acabou sendo publicada, reproduzida e traduzida em diversas línguas [1][1] Uma tradução para o português pode ser acessada na edição da revista eletrônica Comciência sobre “Nanociência e Nanotecnologia”:http://www.comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/nanotecnologia/nano19.htm
http://www.comciencia.br/dossies-1-72/re...
.

Tornou-se um dos textos mais citados de Feynman, perdendo só para sua “Lectures on Physics” (projeto iniciado no ano seguinte à palestra), seu livro sobre mecânica quântica e integrais de caminho, outra palestra publicada – “Simulando física em computadores”-, o artigo com sua prova do teorema que leva o nome de Hellmann-Feynman e o artigo com a formulação de integrais de caminho na mecânica quântica. A palestra do ano de 1959 é “considerada como a primeira palestra sobre a tecnologia e a engenharia na escala atômica”, segundo a linha do tempo da nanotecnologia no sítio nano.gov. Em outros sítios, digamos mais sensacionalistas, como o do Instituto Foresight, a nanotecnologia teria começado exatamente com essa palestra. Por que a relativa discrição em uma das fontes e a exaltação na outra? Essa pergunta é o ponto de partida desse artigo para entender melhor o real papel de Feynman como “pai” da nanotecnologia, o contexto histórico em que, primeiro, a palestra foi concebida e, segundo, em que se tornou famosa. Nessa perspectiva, mesmo entendendo que Feynman não tinha pretensões de ser o oráculo de um “novo campo”, ao reler sua palestra não é possível deixar de vê-lo como visionário, antecipando de fato vários aspectos do que hoje chamamos de nanotecnologia. A concepção da palestra, no entanto, está inserida em um contexto de preocupações, descobertas e desenvolvimentos, que ele conseguiu catalisar em uma proposta de um “Zeitgeist” que acabou ocorrendo apenas décadas após sua morte, fortemente influenciado pela própria palestra. Nesse percurso todo, “There is plenty...” acabou se tornando o artigo mais conhecido na história da nanotecnologia e um dos mais discutidos[2][2] A. Junk e F. Riess, Am. J. Phys. 74(9), 825 (2006).,[3][3] Chris Toumey, Nature Nanotecnology 4, 783 (2009)., obscurecendo a contribuição de vários precursores [4][4] Peter A. Schulz, Ciência Hoje, vol. 308, 23 de outubro de 2013..

O presente artigo começa pela descrição de alguns trechos, buscando identificar a influência de alguns desses precursores e das ideias que circulavam na época em que a palestra foi preparada. Em seguida, a partir de um olhar atual, o conjunto de ideias alinhavadas por Feynman, a redescoberta da palestra e sua influência na própria definição de nanotecnologia contemporânea são discutidas.

2. There is plenty of room: especulando sobre sua concepção e influências

O convite recebido por Feynman era para uma palestra geral, para ser proferida após o jantar em um encontro da Sociedade Americana de Física. A escolha do tema teria que ser, tentando imaginar o que se passava pela cabeça do eminente físico, ao mesmo tempo provocador e desafiador, mas vinculada às preocupações e objetivos científicos e tecnológicos de sua época. Uma dessas preocupações era justamente a miniaturização, desencadeada pelo objetivo de diminuir o tamanho de todos os instrumentos e componentes, mecânicos e eletrônicos, para a construção de satélites artificiais[2][2] A. Junk e F. Riess, Am. J. Phys. 74(9), 825 (2006).. Feynman acabou dedicando sua palestra a esse tema, mas com um viés específico: a miniaturização da informação codificada ou não. Isso parece estar corroborado por dois parágrafos, de uma frase cada, no início de sua palestra:

“O que eu quero falar é sobre o problema de manipular e controlar coisas em escala atômica”.

“Por que não podemos escrever os 24 volumes inteiros da Enciclopédia Britânica na cabeça de um alfinete?”

Miniaturização, mas em escalas inimagináveis na época, é a provocação na primeira frase. O desafio, focado na informação, aparece indicado na segunda. As duas frases-parágrafo estão separados por outro parágrafo em que o palestrante menciona o estado da arte da época, mas que esses seriam passos primitivos ao que estaria por vir (hoje qualquer estudante de física sabe que isso já é possível, como veremos mais abaixo).

Uma vez colocados o tema sobre o qual iria falar e a pergunta guia do que poderia ser obtido dentro do tema, como desenvolvê-los? A partir do panorama científico da época, que Feynman não cita explicitamente na palestra, afinal em palestras gerais sem recursos audiovisuais não cabem citações, pode-se tentar identificar possíveis influências que permitem entender melhor aquele final dos anos 1950. Feynman era certamente um homem bem informado e provavelmente lia a Science. Nessa revista, três anos antes da palestra apareceu o artigo “Molecular Engineering[5][5] A. Von Hippel, Science 123, 315 (1956). de Arthur von Hippel (1898-2003), que lança exatamente a proposta do título, que seria “um novo modo de pensar sobre problemas de engenharia. Em vez de partir de materiais pré-existentes [...] poderíamos construir materiais a partir dos átomos e moléculas”. A ideia de “manipular e controlar coisas em escala atômica” já estava, portanto, no ar. Von Hippel também é organizador do livro “Molecular Science and Molecular Engineering” de 1959 e passou a ser lembrado em algumas linhas do tempo da nanotecnologia apenas recentemente. No artigo de 1956 von Hippel não faz a conexão com miniaturização da informação, mas no livro apareçam artigos sobre memórias de computadores e engenharia molecular em veículos aéreos do futuro, lembrando a motivação de miniaturização para a corrida espacial.

Em outro trecho de sua palestra, ao fim da seção “Miniaturizando o computador”, Feynman se pergunta: “Não há nada que eu possa ver nas leis físicas que diga que os elementos dos computadores não possam ser feitos extremamente menores do que são atualmente”. No começo da seção seguinte Feynman afirma que essa miniaturização poderia ser um processo em que “você simplesmente evapora até que você tenha um bloco que contenha os elementos - bobinas e condensadores, transistores, etc. - com dimensões extraordinariamente minúsculas”. Em fevereiro daquele ano de 1959, Jack Kilby (1923-2005) depositou a patente de número US 3.138.743 [6][6] https://www.google.com/patents/US3138743
https://www.google.com/patents/US3138743...
, intitulada “circuitos eletrônicos miniaturizados”, nascia assim o circuito integrado. No texto da patente podemos ler

“é, portanto, o objetivo principal dessa invenção prover um novo circuito eletrônico miniaturizado fabricado de um bloco de material semicondutor [...] no qual todos os componentes do circuito eletrônico estão completamente integrados no bloco do material”.

Evaporar é um dos processos mencionados seis vezes no texto da patente. Não foi possível verificar se Feynman conhecia essa ideia para inspirar parte da sua palestra, porém, Kilby, que recebeu metade do Nobel de Física de Física de 2000 pela invenção do circuito integrado, relata que Robert Noyce, coinventor do circuito integrado (a patente de Noyce foi depositada poucos meses depois da de Kilby), discutia publicamente a ideia [7][7] Kilby, J. St. C. (2001), Turning Potential into Realities: The Invention of the Integrated Circuit (Nobel Lecture). ChemPhysChem, 2: 482--489. De qualquer modo era mais uma ideia que estava no ar.

Mais perto do final da palestra está a seção “rearranjando átomos” em que se lê “Mas não tenho medo de considerar a questão final em relação a se, em última análise - no futuro longínquo -, poderemos arranjar os átomos da maneira que queremos; os próprios átomos, no último nível de miniaturização!”. Isso não é na verdade o que hoje chamamos de miniaturização no mesmo sentido do circuito integrado, que é um processo “top-down”. Arranjar os átomos, hoje possível, por exemplo, com um microscópio de força atômica, é conhecido como um processo “bottom-up”. Feynman não dá pistas de como isso poderia ser feito, como na “miniaturização e evaporação”, mas discorre sobre as possibilidades e consequências e novas semelhanças com as ideias de von Hippel aparecem. Feynman fala de materiais encontrados na natureza e ressalva que

“temos sempre de aceitar alguns arranjos atômicos que a natureza nos dá. Não temos nada como, digamos, um arranjo do tipo "tabuleiro de damas", com os átomos de impureza dispostos exatamente 1.000 angstroms uns dos outros, ou em algum outro padrão específico.”

“O que poderíamos fazer com estruturas em camadas se tivéssemos exatamente as camadas corretas? Quais seriam as propriedades dos materiais se pudéssemos realmente arranjar os átomos como bem entendêssemos? Elas seriam muito interessantes de se investigar teoricamente. Não posso ver exatamente o que aconteceria, mas dificilmente posso duvidar que, quando tivermos algum controle sobre a disposição das coisas na escala pequena, teremos um leque enormemente maior de propriedades possíveis para as substâncias, e de diferentes coisas que poderíamos fazer.”

No artigo de von Hippel [5][5] A. Von Hippel, Science 123, 315 (1956). podemos ler que na engenharia molecular o “engenheiro pode jogar xadrez com partículas elementares (os átomos) de acordo com regras estabelecidas até que novas soluções de engenharia aparecessem. Ele pode ser seletivo, prever limitações inerentes dos materiais e fazer uso de suas capacidades reais.” Von Hippel era um físico experimental o que está marcado no seu discurso, assim como a marca do físico teórico aparece no discurso de Feynman, mas as imagens de jogos de tabuleiro são compartilhadas.

No seu artigo na Science, von Hippel também menciona que a engenharia molecular poderia envolver físicos, químicos, engenheiros de materiais e biólogos, desenvolvendo a ideia de como seria um arranjo institucional interdisciplinar. Feynman, por outro lado, em sua palestra esboça como nesse “novo campo” seria o envolvimento da química e da biologia na exploração do 'espaço lá embaixo'. Vale a pena destacar o seguinte trecho:

“Mas é interessante que seria possível, em princípio (eu acho), para um físico, sintetizar qualquer substância química que o químico escreva. Dê as ordens e o físico sintetiza. Como? Coloque os átomos ali onde o químico diz; assim, você faz a substância. Os problemas de química e biologia poderão ser bastante reduzidos se nossa habilidade de ver o que estamos fazendo, e de fazer as coisas em nível atômico, for finalmente desenvolvida - um avanço que, penso, não pode ser evitado.”

Em certo sentido, apesar do interesse na palestra ser do ponto de vista da nanotecnologia, aqui Feynman deixa uma mensagem bem mais abrangente, lembrando que a referência à redução dos problemas seja no sentido de reduzir os problemas para aumentar as possibilidades de atacar novos problemas.

Feynman cita em sua palestra três cientistas: Kamerlingh Onnes (1853-1926), Percy Bridgman (1882-1961) e Albert R. Hibbs (1924-2003). Os dois primeiros foram citados na abertura como exemplo de inauguradores de novos campos na física, afinal a palestra era exatamente isso: a sugestão de um novo campo. Albert Hibbs, matemático e amigo de Feynman (foi o coautor do livro sobre mecânica quântica e integrais de caminho), recebe no meio da palestra o crédito pela ideia de uma possível aplicação da ideia de uma “pequena máquina”.

“Um amigo meu (Albert R. Hibbs) sugere uma possibilidade muito interessante para máquinas relativamente pequenas. Ele diz que, embora seja uma ideia bastante selvagem, seria interessante se, numa cirurgia, você pudesse engolir o cirurgião. Você coloca o cirurgião mecânico dentro da veia, e ele vai até o coração e "dá uma olhada" em torno [...] Outras máquinas pequenas poderiam ser permanentemente incorporadas ao organismo para assistir algum órgão deficiente.”

Feynman segue adiante dizendo que deixa para o futuro a maneira de fazer uma máquina dessas. A ideia de “engolir o cirurgião” é o tema de um filme de ficção científica de 1966, “Viagem fantástica”, que ainda é referência frequente em textos de divulgação de nanociência e nanotecnologia e não faltam textos que colocam a palestra de Feynman como uma das inspirações do filme. Mas quem teria inspirado Hibbs e Feynman? Feynman e Hibbs leram o romance de ficção científica Waldo&Inc de Robert Heinlein sobre maquinas miniaturizadas para a cura de doenças [2][2] A. Junk e F. Riess, Am. J. Phys. 74(9), 825 (2006).. Na palestra, o cirurgião que pode ser engolido aparece no contexto da discussão sobre máquinas pequenas e embora ele não mencione explicitamente “máquinas moleculares”, algumas peças do cirurgião teriam que ter essas dimensões. O mesmo aconteceria com os parafusos e engrenagens dos “tornos bebês” com os quais ele ilustra o argumento. É tentador hoje em dia lembrar o demônio de Maxwell, que nas palavras do próprio seria “um ser cujas capacidades seriam tão refinadas que poderia seguir cada molécula em seu curso, tal ser [...] seria capaz de fazer o que presentemente é impossível para nós”. [8][8] Andrew Rex, Entropy 19, 240 (2007). Feynman apresenta sua versão do demônio de Maxwell alguns anos depois da palestra no capítulo 46 do “Lectures on Physics”, publicadas em 1963, intitulado “Ratchet and pawl”, no qual ele explicitamente descreve seu demônio como uma máquina.

3. Visão geral da proposta de ocupação do espaço lá embaixo

A seção anterior contempla a necessária tarefa de desconstruir a percepção de que a nanotecnologia é algo que surgiu de repente em uma palestra de final de ano há apenas 50 e poucos anos. A história da nanotecnologia é muito mais complexa [4][4] Peter A. Schulz, Ciência Hoje, vol. 308, 23 de outubro de 2013., com vários precursores, alguns dos quais poderiam ter influenciado Feynman em algumas partes da palestra. No entanto, o quadro geral de possibilidades articuladas é impressionante e, para avaliar o impacto que teria no futuro, o fio condutor desse quadro geral precisa ser brevemente abordado.

Após a introdução e colocação do problema, na seção “como escrevemos pequeno?”, Feynman apresenta exercícios para a miniaturização da gravação de informações para anunciar que teria muito mais espaço lá embaixo. Um dos exercícios propostos nada mais é do que viria a ser a litografia por feixe de elétrons. Na seção seguinte, “informação em escala pequena”, o autor anuncia uma meta de cerca de 100 átomos para cada bit, comparando pela primeira vez a sistemas biológicos: um bit de informação no DNA teria o tamanho de 50 átomos. Como ler essa informação em letras tão minúsculas? “Melhores microscópios eletrônicos”, nome da seção seguinte e que também é um resumo da resposta ao problema. Feynman chega ao computador passando pelo “maravilhoso sistema biológico”, que não escreve apenas a informação, mas faz algo com ela. Um computador faz isso e precisaria ser miniaturizado e na sequencia apresenta uma forma de miniaturizá-lo (“miniaturização e evaporação”). Feynman segue com “problemas da lubrificação”, onde aparecem as máquinas pequenas e a ideia de Hibbs comentada acima. As máquinas pequenas se desdobram no trecho “mil pequenas mãos”: a imagem da necessidade de um conjunto grande dessas pequenas máquinas. Na sequência final a parte sobre “rearranjando átomos” comentada acima. É na penúltima seção que algo inteiramente inesperado acontece. Em “átomos no mundo pequeno”, Feynman anuncia que:

“Quando vamos ao mundo muito, muito pequeno - digamos, circuitos de sete átomos -, acontecem uma série de coisas novas que significam oportunidades completamente novas para design. Átomos na escala pequena não se comportam como nada na escala grande, pois eles seguem as leis da mecânica quântica. Assim, à medida em que descemos de escala e brincamos com os átomos, estaremos trabalhando com leis diferentes, e poderemos esperar fazer coisas diferentes. Podemos produzir de formas diferentes. Podemos usar não apenas circuitos, mas algum sistema envolvendo os níveis quantizados de energia, ou as interações entre spins quantizados, etc.”

É quase imediato, do ponto de vista do desenvolvimento da Física nas últimas décadas, bem como do de seus principais desafios atuais, associar esse parágrafo à percepção de que seria a primeira menção à computação quântica, tema de interesse intenso de Feynman ao final de sua vida. A palestra de 1959 termina com a proposta de desafios para estudantes: “competição escolar”. Um dos desafios voltava-se à miniaturização de motores elétricos (o objetivo seria apresentar um motor com o volume de 1/64 de polegada cúbica) e a outra à miniaturização da escrita: reduzir em tamanho o conteúdo de uma página em 25 mil vezes. Esse prêmio era original, mas o dos motores era inspirado em uma competição já lançada em 1957 [2][2] A. Junk e F. Riess, Am. J. Phys. 74(9), 825 (2006)..

A palestra de 1959, vista hoje, embora contendo elementos e propostas sobre nanotecnologia que já existiam, é uma impressionante organização de vários dos principais aspectos da área que passou a ser chamada nanociência e nanotecnologia: a definição da escala, maneiras de manipular a matéria nessa escala (ainda que muitas vezes vagas), a relação com as tecnologias de informação então emergentes, a abordagem “bottom-up” e “top-down[9][9] P. Schulz, Encruzilhada da nanotecnologia -- tecnologia, inovação e riscos, Editora Vieira & Lent, Rio de janeiro, 2009., possíveis conexões interdisciplinares (física, química e biologia), engenharia molecular e computação quântica. No entanto, a palestra pouco contribui para o desenvolvimento de cada um desses itens em si.

4. O legado da palestra de Feynman

O texto da palestra foi reproduzido total ou parcialmente algumas vezes no começo dos anos 1960 [2][2] A. Junk e F. Riess, Am. J. Phys. 74(9), 825 (2006)., merecendo destaque sua inclusão como capítulo final do livro Miniaturization, organizado por Horace Gilbert em 1961. Mesmo assim foi muito pouco citada nos primeiros 20 anos seguintes. É o próprio Feynman que retoma o tema na palestra “Infinitesimal Machinery[10][10] R. Feynman, J. Microelectromechanical Systems 2, 4 (1993)., proferida em 1983 e publicada só em 1993, que ele descreveu como uma revisão da palestra de 1959. Na época da palestra de revisão, o primeiro instrumento de visualização da matéria em escala atômica acabara de ser inventado: o microscópio de tunelamento com varredura. Alguns anos antes da publicação dessa palestra esse microscópio havia sido usado por primeira vez para manipular a matéria em escala atômica.[3][3] Chris Toumey, Nature Nanotecnology 4, 783 (2009). A palestra de Feynman não é citada nos artigos técnico-científicos que levaram a esses e a outros desenvolvimentos da nanotecnologia. Alguns autores contestam, portanto, a crença propagada de que a palestra proferida por Feynman em 1959 seria o começo da nanotecnologia. Junk e Ries [2][2] A. Junk e F. Riess, Am. J. Phys. 74(9), 825 (2006). e Toumey [3][3] Chris Toumey, Nature Nanotecnology 4, 783 (2009). apontam na direção de que a ela teria sido redescoberta quando a nanotecnologia precisava de uma história simples e coerente.

Um dos responsáveis por essa redescoberta é Conrad Schneiker, que antecipou em 1985 que o microscópio de tunelamento seria “a máquina de Feynman” para manipular diretamente átomos e moléculas [11][11] Chris Toumey, Nature Nanotechnology 2,9 (2007).. Conrad Schneiker conheceu e conversou com Feynman sobre nanotecnologia. Parte dessas conversas foi apresentada na palestra no “The Feynman anniversary symposium” em 2010 na Universidade da Carolina do Sul [12][12] Os slides da palestra podem ser acessados no sítio: http://www.athenalab.com/My_conversations_with_Richard_Feynman_regarding_nanotechnology.pdf
http://www.athenalab.com/My_conversation...
. Nos slides são enumerados outros precursores das ideias contidas em “Plenty of room...”, alguns que estão no presente artigo, outros que eu conhecia, mas não incluídos aqui, e outros mais que merecem estudos futuros. Um detalhe curioso é que Schneiker reproduz um dos diálogos com Feynman em que pergunta sobre as origens do tema da palestra e a resposta inicial de Feynman foi de que ele pensou sobre miniaturização pela primeira vez andando numa praia no Brasil.

Assim, a palestra proferida em Pasadena há 59 anos não impactou diretamente no desenvolvimento de nenhuma das questões levantadas nela, mas foi um instrumento importante, ainda que retroativamente, na construção da identidade de um novo campo de pesquisa. Algumas de suas previsões se realizaram, outras não (em especial os nanorobôs). O auto-arranjo (self-assembling) [8][8] Andrew Rex, Entropy 19, 240 (2007)., um dos processos mais importantes da nanotecnologia não chegou a ser esboçado por Feynman. Por isso alguns puristas não consideram esse processo como fazendo parte do acervo do que chamamos nanotecnologia, pois são processos nos quais só se controlam parâmetros externos e não os átomos e as moléculas em si [2][2] A. Junk e F. Riess, Am. J. Phys. 74(9), 825 (2006)..

“Existe muito espaço lá embaixo” pode ser vista como a proposta de uma agenda de pesquisa para “um novo campo”, mesmo que não tenha sido usada na época. Décadas depois essa agenda acabou sendo executada, acrescida de outros itens. A palestra foi redescoberta exatamente quando foi necessária. O fato de ser visionária e de que o autor era Richard Feynman talvez tenha sido fundamental no estabelecimento e afirmação dessa área do conhecimento.

Referências

  • [1]
    Uma tradução para o português pode ser acessada na edição da revista eletrônica Comciência sobre “Nanociência e Nanotecnologia”:http://www.comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/nanotecnologia/nano19.htm
    » http://www.comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/nanotecnologia/nano19.htm
  • [2]
    A. Junk e F. Riess, Am. J. Phys. 74(9), 825 (2006).
  • [3]
    Chris Toumey, Nature Nanotecnology 4, 783 (2009).
  • [4]
    Peter A. Schulz, Ciência Hoje, vol. 308, 23 de outubro de 2013.
  • [5]
    A. Von Hippel, Science 123, 315 (1956).
  • [6]
    https://www.google.com/patents/US3138743
    » https://www.google.com/patents/US3138743
  • [7]
    Kilby, J. St. C. (2001), Turning Potential into Realities: The Invention of the Integrated Circuit (Nobel Lecture). ChemPhysChem, 2: 482--489
  • [8]
    Andrew Rex, Entropy 19, 240 (2007).
  • [9]
    P. Schulz, Encruzilhada da nanotecnologia -- tecnologia, inovação e riscos, Editora Vieira & Lent, Rio de janeiro, 2009.
  • [10]
    R. Feynman, J. Microelectromechanical Systems 2, 4 (1993).
  • [11]
    Chris Toumey, Nature Nanotechnology 2,9 (2007).
  • [12]
    Os slides da palestra podem ser acessados no sítio: http://www.athenalab.com/My_conversations_with_Richard_Feynman_regarding_nanotechnology.pdf
    » http://www.athenalab.com/My_conversations_with_Richard_Feynman_regarding_nanotechnology.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2017
  • Aceito
    15 Fev 2018
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