Resumo
Os tiros de comemoração referem-se aos tiros dados para o alto por ocasião de celebrações festivas. Este é um hábito em países como o Afeganistão, Paquistão e algumas regiões da América Latina. Neste artigo, resolvemos o problema de projéteis com velocidade subsônica atirados para alto, considerando a resistência do ar. Com fins didáticos, traçamos um paralelo entre esse caso e aquele em que a resistência do ar é desprezada. Concluímos que mesmo projéteis de pequeno calibre podem ser letais na queda, apesar da diminuição da velocidade e da energia cinética.
Palavras-chave:
projéteis; letalidade; força de arrasto; resistência do ar
Abstract
Celebratory gunfire is the shooting of a firearm into the air in celebration. This is common in countries as Afghanistan, Pakistan and regions of Latin American. In this article, we have solved the problem of a projectile with subsonic speed shooted upward, considering the air resistance. For didactic purposes, we draw a parallel between the case with and without air resistance. We conclude that even small-caliber projectile can be lethal when falling, a despite the decrease in speed and kinetics energy.
Keywords:
bullet; lethality; drag; air resistance
1. Introdução
Ocasionalmente vemos celebrações em filmes ou noticiários que envolvem pessoas atirando para o alto. Esse é um hábito culturamente aceito em diversas regiões do mundo como o Afeganistão, Paquistão, Índia e algumas partes da América Latina [1][1] S.A. Ali, S. M. Tahir, A. Makhdoom, A. R. Shaikh e A. R. Siddique, Iran. Red Crescent Med. J. 17, e26179 (2015).. Apesar da sua associação com situações festivas, como celebrações do Ano Novo, Natal, casamentos, e etc., seria essa uma prática segura para as pessoas presentes nessas comemorações ou próximas das mesmas?
Se nos esquecermos por um momento da expressão “despreze a resistência do ar", tão utilizada nos exercícios de mecânica básica, a resposta será óbvia; a velocidade da bala na descida será a mesma que na subida e, consequentemente, as pessoas atingidas podem morrer. Contudo, como a resistência do ar aumenta com a velocidade e projéteis de armas movidos a expansão de gases possuem velocidades elevadas, a resistência do ar não pode ser desprezada nessas circunstâncias nem mesmo como aproximação.
Nesse artigo, resolvemos o problema de projéteis subsônicos atirados na vertical considerando a resistência do ar e analisamos a questão da possível letalidade desse projétil nessa situação. Essa discussão também possui um forte apelo didático, uma vez que a resistência do ar é geralmente negligenciada nos cursos de mecânica básica. Por esse motivo, traçamos alguns paralelos entre os resultados apresentados ao se considerar e ao se desprezar a resistência do ar.
O trabalho está estruturado da seguinte forma: na seção II apresentamos os aspectos essenciais da força de arrasto para a nossa analise. A seção III é dedicada à análise do movimento vertical, tanto ascendente quanto descendente, do projétil. Os resultados e discussões são apresentados na seção IV. Na seção V apresentamos a conclusão.
2. A força de arrasto
A força de arrasto sobre um corpo imerso em um fluido e que se movimenta com uma velocidade v em relação a esse fluido, pode ser descrita pela equação 1.
em que v é a velocidade do corpo em relação ao fluido, é a densidade do fluido, é o coeficiente de arrasto, e A é a área de seção transversal do corpo. Essa forma funcional é adequada apenas para velocidades situadas entre alguns poucos metros por segundo e próximas à velocidade do som.
A equação 1 admite como hipótese que o coeficiente de arrasto é constante. Essa é uma aproximação razoável em duas condições: quando o projétil se movimenta com uma velocidade abaixo da velocidade do som no meio e para projéteis que se movimentam em velocidades supersônicas, maiores que Mach 2 [3[3] C. I. Farrar e D. W. Leeming, Military Ballistics a Basic Manual, Battlefield Weapons Systems and Technology, vol.10 (Royal Military College of Science, Shrivenham, UK, 1983). [4] D. G. Figueredo and A. F. Neves, “Equações Diferenciais Aplicadas,” (IMPA, Rio de Janeiro, 2007)-5[5] M. S. D. Cattani, “Elementos de mecânica dos fluidos,” (Blucher LTDA, São Paulo, 2005 2ª ed.]. Naturalmente, nosso tratamento não pode se aplicar a projéteis supersônicos, uma vez que nessa faixa de velocidades há grande variação no coeficiente de arrasto , conforme podemos ver na (Figura 1). Portanto, nos limitaremos a projéteis subsônicos.
Coeficiente de arrasto em função do número de Mach para o modelo padrão de projétil do tipo G1. Figura produzida a partir de dados obtidos em [2][2] R. L. McCoy, Modern Exterior Ballistics (Schiffer Publishing, Atglen, 2001)..
Projéteis trafegando a velocidades subsônicas tipicamente são aqueles atirados por revólveres e pistolas. Na Tabela 1, apresentamos a velocidade inicial , ou seja, a velocidade de saída do cano da arma, para alguns calibres tipicamente utilizados em revólveres e pistolas. Também é apresentado a massa m desses projéteis.
Massa m e velocidade inicial de uma seleção de projéteis de pistolas e revólveres [6][6] B. Madea, Handbook of Forensic Medicine, (Wiley-Blackwell, New Jersey, 2014)..
O coeficiente de arrasto é função da forma do projétil. Os projéteis da Tabela 1 possuem uma forma similar àquela do modelo padrão G1 (Figura 1). Como podemos ver da Figura 1, na região subsônica destacada, o coeficiente de arrasto médio é de 0,24. Adotaremos esse valor para o coeficiente de arrasto de todos os projéteis apresentados na Tabela 1. A título de comparação, observe a Figura 2 onde observamos resultados para o comportamento do coeficiente de arrasto de um projétil calibre .22 long rifle como função do número de Mach. Note que os valores do coeficiente de arrasto e o formato do projétil estão em um acordo razoável com o do modelo G1.
Coeficiente de arrasto em função do número de Mach para um calibre .22 long rifle. Observe que próximo de Mach 1 ocorre um grande aumento no coeficiente de arrasto. Figura retirada de [7][7] R. L. McCoy, Aerodynamic Characteristics of Caliber. 22 Long Rifle Match Ammunition (No. BRL-MR-3877), Army Ballistic Research Lab Aberdeen Proving Ground MD (1990)..
3. Movimento de projéteis na vertical
No intuito de estudar o movimento de projéteis atirados para cima, na vertical, vamos dividi-lo em duas partes: a subida (vertical ascendente) e a descida (vertical descendente).
Adotamos a localização de onde o projétil sai do cano da arma como sendo a origem do nosso sistema de coordenadas e adotamos o tempo em que o projétil é atirado como .
3.1. Vertical ascendente
No caso do movimento ascendente, a segunda lei de Newton nos permite escrever (em uma dimensão)
onde m é a massa do projétil, P é o peso do mesmo e g é a aceleração da gravidade.
A equação (2) é separável e pode ser integrada de forma trivial. A posição e velocidade do projétil em função do tempo (tomando os outros parâmetros como constantes) no movimento ascendente do projétil são dadas, respectivamente, por:
e
onde é a velocidade inicial do projétil ao sair da boca do cano da arma e é a velocidade atingida pelo projétil quando o peso e a força de arrasto se igualam, conhecida como velocidade terminal. A velocidade terminal pode ser obtida facilmente fazendo , o que nos dá , em que . Além disso, é o tempo que o projétil leva para atingir o ponto mais alto de sua trajetória. Esse tempo pode ser obtido fazendo na equação (4). Com isso, obtemos
A altura máxima atingida pelo projétil corresponde à posição . A expressão é dada por:
O balanço de energia para esse caso também é bem simples de se fazer, uma vez que a energia (cinética) do projétil ao sair da boca do cano da arma é e ao atingir o ponto mais alto de sua trajetória sua energia (potencial gravitacional) será 1 1 Estamos considerando o nível da boca do cano da arma como um referencial onde adotamos a energia potencial gravitacional como sendo nula. Salientamos que no ponto mais alto da trajetória a velocidade do projétil será nula, portanto a energia cinética e a força de arrasto também serão. Esses resultados nos permitem calcular facilmente a energia mecânica dissipada pela força não conservativa (a força de arrasto) durante a subida Contudo, mais interessante para o nosso caso é a energia mecânica dissipada durante todo o trajeto. Que pode ser obtida através de , em que é a energia cinética do projétil quando chega ao solo.
3.2. Vertical descendente
No caso do movimento descendente, a segunda lei de Newton pode ser escrita na forma
de onde podemos obter a posição e velocidade do projétil em função do tempo. Fazendo a integração em (7), obtemos:
e
O tempo de descida é obtido por meio da equação 8 impondo a condição . A expressão para o tempo de descida é:
4. Resultados e Discussões
4.1. Tempos de subida e descida, altura máxima e velocidades terminais e de queda
Desconsiderando a resistência do ar, os tempos de subida e queda para um mesmo projétil são iguais (na Tabela 2, ). Contudo, a situação com resistência do ar é bem diferente. Observe na Tabela 2, por exemplo, que o tempo de queda para um projétil .22 long rifle é aproximadamente 1,67 vezes maior do que o tempo de subida . De fato, isso ocorre porque na subida as forças de resistência do ar e o peso estão no mesmo sentido, enquanto na descida estão em sentidos contrários.
É interessante compararmos os tempos para o caso com e sem a resistência do ar (Tabela 2). Por exemplo, para o calibre 7.65mm Browning, desconsiderando a resistência do ar, o tempo de subida ou descida é de 30,6 s, o que nos dá um tempo total de 61,2 s. Quando a resistência do ar é levada em consideração, observamos que o tempo total é de apenas 27,2 s, ou seja, o famoso despreze a resistência do ar seria tão inadequado nesse caso que ainda estaríamos esperando a bala chegar ao ponto mais alto da trajetória com base nessa aproximação quando, na verdade, ela já estaria no chão!
Tempos de subida , descida , total e a razão para diversos projéteis considerando a resistência do ar. O tempo corresponde ao tempo de subida ou descida para o caso em que a resistência do ar é ignorada.
Como podemos ver da Tabela 3, considerando a resistência do ar, a altura máxima atingida por todos os projéteis é da ordem de um 1 km. Observe que os valores da altura máxima são entre 3 e 7 vezes menores do que aqueles previstos nos casos em que a resistência do ar é desprezada .
Altura máxima considerando a resistência do ar e sem consider á-la . A raz atilde;o entre as alturas eacute; apresentada.
Os projéteis não ficam tempo o bastante em queda para atingirem a velocidade terminal . Da Tabela 4, observamos que as velocidades de queda estão entre 91% e 98% do valor das velocidades terminais correspondentes.
Velocidade inicial , de queda e terminal para diferentes projéteis. A razão e / são apresentadas.
Se no caso sem a resistência do ar, a energia mecânica é conservada, no caso em que a mesma é levada em conta, a situação é completamente distinta. A razão calculada para os projéteis nos informa que entre 82% e 96% da energia inicial do projétil é dissipada durante o trajeto (Tabela 4).
4.2. A letalidade
Comparando apenas as velocidades de saída e de queda dos projéteis (Tabela 4), poderíamos ser levados à conclusão de que é pouco provável a morte por projéteis que caem do céu. Ao observamos que o projétil quando chega ao solo pode ter apenas 4% da energia cinética inicial (.22 long rifle), essa conclusão pareceria ainda mais fortalecida. Contudo, essa é uma análise que ignora um ponto fundamental: a cabeça é o principal alvo de projéteis que caem.
Os projéteis atirados diretamente contra uma pessoa podem acertar uma grande área, o que inclui regiões vitais e não-vitais. A área que um projétil em queda vertical pode acertar uma pessoa é significativamente menor, mas possui a cabeça, uma região extremamente vital, como alvo mais provável (Fig. 3). De fato, em um estudo com 118 pacientes vítimas de projéteis em queda, verificou-se que 77% deles foram atingidos na cabeça. A taxa de mortalidade foi de 32%, significativamente maior do que para todos os outros casos de ferimento por tiros em geral [8][8] G. J. Ordog, P. Dornhoffer, G. Ackroyd, J. Wasserberger, M. Bishop, W. Shoemaker, e S. Balasubramanium, The Journal of trauma 37, 1003 (1994)..
(a) Disparos em geral podem acertar regiões vitais ou não-vitais. (b) Quando em queda, a cabeça, região extremamente vital, torna-se o alvo mais provável.
A velocidade em que um projétil é capaz de penetrar a pele encontra-se por volta de 45m/s a 60m/s. Dessa forma, todos os projéteis analisados irão provocar esse efeito. Mais drástico do que isso é que projéteis com velocidade próximas de 60m/s já são capazes de fraturar ossos e mesmo penetrar no crânio [9][9] A. N. Incorvaia, D. M. Poulos, R. N. Jones e J. M. Tschirhart, Ann. Thorac. Surg. 83, 283 (2007).. Portanto, mesmo as armas de pequeno calibre analisadas podem ser letais para disparos verticais.
5. Conclusão
Determinamos as expressões para a posição , a velocidade , a altura máxima e o tempo de subida para o caso em que a resistência do ar é considerada. Os resultados obtidos são interessantes para se mostrar a diferença entre a situação com e sem a resistência do ar. As expressões obtidas podem ser utilizadas para se mostrar em sala de aula, por exemplo, até que ponto a aproximação feita ao desprezar a resistência do ar é razoável.
A forma funcional consideravelmente mais complexa dessas expressões ilustra que, embora saibamos resolver o problema com a resistência do ar, o preço matemático que se paga é mais alto. Portanto, nas situações em que a aproximação de ignorarmos a resistência do ar for razoável, a facilidade de obtenção das soluções e análise das mesmas justifica o seu uso.
Para o nosso problema em específico, os resultados obtidos deixam claro que ignorar a resistência do ar não é uma opção; o valor das grandezas obtidas para os diversos projéteis destoam muito nos dois casos. Por exemplo, a energia dissipada que seria nula para o caso sem resistência do ar, chega a ser de 96% para o caso com a resistência do ar (.22 long rifle, Tabela 4).
Apesar da expressiva diminuição da velocidade dos projéteis analisados durante a queda, concluímos que a velocidade final ainda é suficiente para colocar em risco a vida das pessoas atingidas. Dessa forma, os nossos resultados justificam a Portaria Interministerial 4.226, de 31 de dezembro de 2010, que proibe os tiros de advertência pela Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Departamento Penitenciário Nacional e Força Nacional de Segurança Pública em razão da imprevisibilidade de seus efeitos. Não fosse o tiro para o alto potencialmente letal, mesmo aqueles de armas de pequeno calibre, tiros na vertical poderiam ser colocados como norma para tiros de advertência.
Agradecimentos
Os autores agradecem à Oficial da Força Aérea Brasileira Ana Lúcia Bezerra Cordeiro por ter chamado e, principalmente, despertado nossa atenção para este problema.
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Estamos considerando o nível da boca do cano da arma como um referencial onde adotamos a energia potencial gravitacional como sendo nula. Salientamos que no ponto mais alto da trajetória a velocidade do projétil será nula, portanto a energia cinética e a força de arrasto também serão.
Referências
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[1]S.A. Ali, S. M. Tahir, A. Makhdoom, A. R. Shaikh e A. R. Siddique, Iran. Red Crescent Med. J. 17, e26179 (2015).
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[2]R. L. McCoy, Modern Exterior Ballistics (Schiffer Publishing, Atglen, 2001).
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[3]C. I. Farrar e D. W. Leeming, Military Ballistics a Basic Manual, Battlefield Weapons Systems and Technology, vol.10 (Royal Military College of Science, Shrivenham, UK, 1983).
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[4]D. G. Figueredo and A. F. Neves, “Equações Diferenciais Aplicadas,” (IMPA, Rio de Janeiro, 2007)
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[5]M. S. D. Cattani, “Elementos de mecânica dos fluidos,” (Blucher LTDA, São Paulo, 2005 2ª ed.
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[6]B. Madea, Handbook of Forensic Medicine, (Wiley-Blackwell, New Jersey, 2014).
-
[7]R. L. McCoy, Aerodynamic Characteristics of Caliber. 22 Long Rifle Match Ammunition (No. BRL-MR-3877), Army Ballistic Research Lab Aberdeen Proving Ground MD (1990).
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[8]G. J. Ordog, P. Dornhoffer, G. Ackroyd, J. Wasserberger, M. Bishop, W. Shoemaker, e S. Balasubramanium, The Journal of trauma 37, 1003 (1994).
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[9]A. N. Incorvaia, D. M. Poulos, R. N. Jones e J. M. Tschirhart, Ann. Thorac. Surg. 83, 283 (2007).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2019
Histórico
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Recebido
13 Set 2018 -
Revisado
13 Nov 2018 -
Aceito
15 Nov 2018