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Física de Partículas no ensino médio Parte I: Eletrodinâmica Quântica

Particle Physics in high school Part I: Quantum Electrodynamics

Resumos

O presente trabalho é o primeiro de uma série de artigos cuja proposta principal é apresentar uma nova sequência didática para o ensino de Física de Partículas no ensino médio. Propomos uma discussão sistematizada dessa temática, englobando não só a compreensão de seus conceitos-chave, mas também da própria natureza da Ciência, dos fatores que circundam sua prática e sua relação com tecnologia, sociedade e meio-ambiente, em uma perspectiva voltada à alfabetização científica. Neste trabalho apresentamos a primeira parte dessa sequência didática, com foco na teoria quântica do eletromagnetismo: a Eletrodinâmica Quântica. Analisamos as potencialidades do material aqui proposto, aliado a uma postura dialógica docente, avaliando a presença de indicadores de alfabetização científica e de engajamento dos estudantes ao longo de intervenções aplicadas em uma escola pública estadual em tempo integral do Espírito Santo.

Palavras-chave:
Física de partículas; ensino médio; alfabetização científica; engajamento


This is the first paper of a series aiming to present a new teaching sequence for Particle Physics in high school. We propose a systematic discussion of the subject, covering not only the understanding of its key concepts, but also of the very nature of Science, of the factors that surround its practice and of its relations to technology, society and the environment, in a framework towards scientific literacy. In this work we present the first part of this teaching sequence, focused on the quantum theory of electromagnetism: Quantum Electrodynamics. We analyze the potentialities of the material proposed here, when applied in a dialogic manner by the teacher, by evaluating the presence of scientific literacy and engagement indicators throughout interventions at a full-time public school in Espírito Santo, Brazil.

Keywords
Particle physics; high school; scientific literacy; engagement


1. Introdução

Em um estudo recente realizado no contexto do projeto internacional ROSE (The Relevance of Science Education) [11. C. Schreiner e S. Sjøberg, Acta Didactica 4, 5 (2004)., 22. https://roseproject.no/network/countries/norway/eng/nor-Sjoberg-Schreiner-overview-2010.pdf, acessado em 05/03/2021.
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] foram consultados, entre os anos de 2010 e 2011, 2365 estudantes da 1a série do ensino médio de 84 escolas de todo o Brasil, perguntados sobre os tópicos científicos que mais teriam interesse em aprender nas aulas [33. A.M.S. Gouw, As opiniões, interesses e atitudes dos jovens brasileiros frente à ciência: uma avaliação em âmbito nacional. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2013).]. Dentre 108 itens propostos no questionário, alguns dos mais favoravelmente votados pelos(as) estudantes dizem respeito diretamente à Física de Altas Energias e/ou Física de Partículas, tais como “Como funciona a bomba atômica?” (29° mais bem votado no geral, 5° na escolha entre meninos), “Como funciona uma usina nuclear?” (43° na lista geral, 15° entre meninos), enquanto outros convidam a Física de Partículas a uma discussão multidisciplinar, como “O câncer, o que sabemos e como podemos tratá-lo?” (2° mais bem votado no geral e também 2° na escolha entre meninas), “Fenômenos que os cientistas ainda não conseguem explicar” (19° na lista geral, 11° entre meninos), “Como os telefones celulares enviam e recebem mensagens?” (25° geral, 28° entre meninos e 27° entre meninas), “Invenções e descobrimentos que transformaram o mundo” (30° geral, 20° entre meninos), “Como o raio-X, o ultrassom, etc. são usados na medicina?” (36° geral, 29° entre meninas), entre outros.

Também os professores e pesquisadores atuantes em diversas áreas da Física sugerem a Física de Partículas como um dos principais tópicos da Física Moderna e Contemporânea (FMC) a ser inserido no ensino médio, segundo estudo baseado em entrevistas com 54 físicos teóricos e experimentais de várias especialidades e instituições brasileiras, 22 pesquisadores em ensino de Física de diversas Universidades, e 22 professores de Física do ensino médio das regiões Sul, Sudeste e Nordeste [44. F. Ostermann, Tópicos de Física Contemporânea em escolas de nível médio e na formação de professores de Física. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (2000).].

Existe uma rica literatura discutindo a importância de se abordar temáticas de FMC já no ensino médio [55. F. Ostermann e M.A. Moreira, Investigações em Ensino de Ciências 5, 23 (2000).]. Muito além de simplesmente transmitir um aglomerado de conhecimentos factuais, é essencial que o ensino de ciências nas escolas fomente uma alfabetização científica, educando os(as) discentes para que compreendam o funcionamento da ciência, os fatores que circundam sua prática, sua relação com tecnologia, sociedade e meio-ambiente, o método empírico, entre outros aspectos [66. L.H. Sasseron e A.M.P. Carvalho, Investigações em Ensino de Ciências 13, 333 (2008)., 77. A. Chassot, Alfabetização científica: questões e desafios para a educação (Editora UNIJUÍ, Ijuí, 2000)., 88. A. Chassot, Revista Brasileira de Educação 2, 89 (2003)., 99. D. Gil e A. Vilches, Revista Investigación en la Escuela 43, 27 (2001)., 1010. L.H. Sasseron e A.M. Carvalho, Investigações em Ensino de Ciências 16, 59 (2011).]. No caso especial da Física de Partículas, por se tratar de uma área ainda em pleno desenvolvimento1 1 A teoria vigente que rege as interações fundamentais entre as partículas elementares, o chamado “Modelo Padrão da Física de Partículas”, tem se consolidando há décadas após passar por vários testes experimentais, dentre eles a recente descoberta do bóson de Higgs em 2012, predito pela teoria. Entretanto, já é sabido que o Modelo precisa ser estendido, pois falha em prever corretamente diversas observações empíricas, como o excesso de matéria sobre antimatéria no Universo, a existência de matéria escura e a massa dos neutrinos, além de não conter uma descrição quântica da interação gravitacional nem ser capaz de explicar as hierarquias de escalas de massa que aparecem na teoria. Tratam-se de diversos problemas em aberto e tópicos de pesquisa ativa na área, e, por isso mesmo, excelentes para serem abordados em sala de aula como tópicos de leitura e discussão. , com abundante atividade em pesquisa, e contendo muitos problemas ainda em aberto, essa temática promove um solo fértil para discussões sobre o caráter da ciência enquanto construção histórico-social humana e os processos de evolução do conhecimento científico, demonstrando concretamente que a ciência não é um conjunto fechado de verdades estáticas, mas um processo em constante aprimoramento [55. F. Ostermann e M.A. Moreira, Investigações em Ensino de Ciências 5, 23 (2000)., 1111. F. Ostermann e M.A. Moreira, Caderno Catarinense de Ensino de Física 18, 135 (2001)., 1212. F. Ostermann e M.A. Moreira, Enseñanza de las ciencias: revista de investigación y experiencias didácticas 18, 391 (2000)., 1313. E.A. Terrazzan, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 9, 209 (1992).]. Mais ainda, uma abordagem de alfabetização científica apoiada em uma temática contemporânea é capaz de motivar o(a) estudante a se enxergar como potencial agente desse desenvolvimento científico, ao invés de passivo(a) espectador(a) das glórias atingidas por “gênios” do passado. O combate ao negacionismo científico passa crucialmente por essa compreensão da ciência enquanto atividade coletiva, atual e dinâmica. Qualquer tentativa de substituir ideologias negacionistas por apenas um conjunto de “verdades científicas” que devem ser aceitas autoritativamente estaria apenas lubrificando as engrenagens que movem o dogmatismo e a pseudociência. É o dinamismo da ciência, a sua constante autonegação e autoreconstrução, que garantem a atualidade e relevância de seus resultados diante das constantes transformações do objeto de estudo e de nossa organização social, onde esse conhecimento é produzido e será aplicado. “Verdades eternas” envelhecem mal.

Ademais, ressalta-se que a apropriação dos conhecimentos científicos e de suas dimensões epistemológicas é direito de todo cidadão [1414. A.M.T.L. Marques e M. Marandino, Educação e Pesquisa 44, e170831 (2018).], e proporcionar os meios para esse fim é dever do Estado. A não inclusão da FMC no ensino médio priva diversos estudantes do acesso aos recentes desenvolvimentos da Física, visto que a escola é, para muitos, a única oportunidade de terem contato com essas temáticas [1313. E.A. Terrazzan, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 9, 209 (1992).]. É justamente um currículo escolar antiquado que favorece a mistificação de diversos temas relacionados à FMC, tais como a mecânica quântica e a teoria da relatividade, e torna os cidadãos vulneráveis a charlatanices.

A exposição dos(as) estudantes a temas atuais de pesquisa em Física é também essencial para que aqueles(as) inclinados(as) a optar por essa carreira possam tomar uma decisão informada sobre seu futuro, o que potencialmente reduziria o alto índice de abandono em cursos de graduação em Física [1515. M.F. Barroso e E.B.M. Falcão, em IX Encontro Nacional de pesquisa em Ensino de Física (Jaboticatubas, 2004).].

Apesar de tudo isso, embora haja consenso, pelo menos desde a década de 90, quanto à importância de se incorporar o ensino de Física de Partículas já no ensino médio [1111. F. Ostermann e M.A. Moreira, Caderno Catarinense de Ensino de Física 18, 135 (2001)., 1616. M.R. da Siqueira, Do Visível ao Indivisível: uma proposta de Física de Partículas Elementares para o Ensino Médio. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2006)., 1717. E. Swibank, Physics Education 27, 87 (1992).], são escassas as propostas concretas e detalhadas de introdução dessa temática em sala de aula. Os trabalhos existentes na literatura incluem sequências tópicas [1818. M. Siqueira e M. Pietrocola, in XI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física (Curitiba, 2008).] e/ou voltadas à classificação das partículas elementares [1919. L.O. Silva, Revista Eletrônica Ludus Scientiae 3, 46 (2019)., 2020. M.F.S. Alves e L.G. Costa, in II Simpósio Nacional de Ensino de Ciência e Tecnologia (Ponta Grossa, 2010).], materiais resumidos com orientações gerais voltadas à formação de professores nessa temática [2121. F. Ostermann, Rev. Bras. Ens. Fís. 21, 415 (1999).] e propostas de ensino investigativo, incluindo um livreto administrável aos estudantes [2222. J. Bakalarczyk, Proposta didática investigativa para desenvolvimento do tema de Física de Partículas e interações fundamentais. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis (2017).]. Um material interessante, traduzido e comentado a partir de [2323. https://lss.fnal.gov/archive/other/print-93-0553.pdf, acessado em 05/03/2021.
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], e baseado em imagens de interações, criações e aniquilações de partículas em câmaras de bolhas, pode ser encontrado em [2424. D. Schäffer, F.K. Schumacker e G. Orengo, Rev. Bras. Ens. Fís. 42, e20200018 (2020).]. Uma proposta que se assemelha à nossa perspectiva de apresentação da Física de Partículas também enquanto construção histórico-social pode ser encontrada na ref. [2525. R. Milnitsky, Epistemologia e Currículo: reflexões sobre a Ciência Contemporânea em busca de um outro olhar para a Física de Partículas Elementares. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2018).]. No entanto, o assunto é tão rico e abrangente que proporciona uma fonte praticamente inesgotável de abordagens pedagógicas. Além disso, são ainda mais raros os estudos acompanhados de uma avaliação de indicadores de engajamento e aprendizado consequentes de aplicações de sequências de ensino proposta sobre Física de Partículas.

O presente trabalho é o primeiro de uma série de artigos com o objetivo de apresentar uma nova sequência didática para o ensino de Física de Partículas no ensino médio. A sequência aborda a Física de Partículas com ênfase na alfabetização científica, e frequentemente explorando a integração entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente (CTSA). É bem sabido que a promoção de debates a respeito das implicações sociais do saber científico, e da ética que perpassa o uso social das forças naturais, fomenta o desenvolvimento de valores vinculados aos interesses coletivos [2626. W.L.P. dos Santos e E.F. Mortimer, Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências 2, 110 (2002)., 2727. R.W. Bybee, Science Education 71, 667 (1987).], e a formação de cidadãos conscientes de seu papel na sociedade [2828. G.S. Aikenhead, Educación Química 16, 384 (2005).]. Mais ainda, a sequência se propõe a apresentar a Física de Partículas não apenas como um aglomerado de curiosidades sobre partículas com nomes estranhos, mas com uma discussão sistematizada sobre o assunto, englobando a compreensão de conceitos-chave, o amadurecimento do pensamento científico dos(as) educandos(as), e principalmente explorando a Física de Partículas como via de desenvolvimento de sua intuição física e capacidade argumentativa.

À primeira vista essa última afirmação pode parecer contraditória: como desenvolver intuição discutindo partículas microscópicas e fenômenos que parecem tão distantes da vivência cotidiana dos estudantes? Comparativamente, outras áreas da Física, como a mecânica Newtoniana, parecem se oferecer como muito mais intuitivas, como se permitissem uma relação imediata entre a abstração de conceitos, formulações matemáticas, e o senso comum. Mas essa impressão é questionável. Em primeiro lugar, a formulação da mecânica também envolve conceitos contraintuitivos [2929. R.L. Coelho, Science & Education 19, 91 (2010).], como os de força, massa e o princípio da inércia, que causam dificuldades a estudantes em seus primeiros contatos com a disciplina (Barojas (1988) apud [55. F. Ostermann e M.A. Moreira, Investigações em Ensino de Ciências 5, 23 (2000).], p. 24). Ainda mais, no contexto da mecânica, em que vigoram as “ações à distância”, o comportamento da força gravitacional, variando com o inverso do quadrado da distância, é apresentado como um fato, de maneira pouco ou nada elucidativa. É somente em uma formulação em termos de campos que se torna possível relacionar esse comportamento à geometria do espaço, e a Física de Partículas lança ainda outra luz à questão, associando-a ainda à maneira como as partículas mediadoras da força interagem entre si. Em suma, pode-se compreender o comportamento ∼1/r2 como oriundo de uma interação mediada por partículas não-massivas e que não interagem consigo próprias, de modo que não há criação e aniquilação de novos mediadores na região entre a fonte e o observador, fazendo com que o fluxo do campo caia com a área de uma esfera, como sumariza a lei de Gauss. A discussão do caso oposto, em que as partículas mediadores possuem autointeração, leva a uma compreensão intuitiva do fenômeno de confinamento dos quarks em hádrons, que será discutida em mais detalhes em publicação posterior. Esse é apenas um exemplo de como uma rica intuição heurística pode, sim, ser elaborada e explorada em um contexto de Física de Partículas, resultando em uma maior compreensão da natureza da matéria e suas interações.

Com esse viés em mente, um dos objetivos do presente trabalho é mostrar que a Física de Partículas não é um terreno árido no qual se é proibido enveredar sem um ferramental matemático absurdamente elaborado, mas que pode, sim, ser acessível a estudantes de nível médio – embora, inegavelmente, ferramentas e técnicas apropriadas possibilitam avanços mais aprofundados e mais rápidos.

Neste artigo, o foco será voltado à primeira parte da sequência didática elaborada sobre Física de Partículas. Em termos de conteúdo, ela se relaciona à Eletrodinâmica Quântica (QED2 2 Da sigla em inglês para Quantum Electrodynamics. ), a teoria quântica da interação eletromagnética. Essa parte da sequência didática, apresentada na seção 2 2. Propostas de momentos didáticos Mencionamos a seguir alguns momentos didáticos que podem ser explorados em sala de aula contendo a temática de Eletrodinâmica Quântica no contexto da Física de Partículas. O material foi elaborado com intuito de servir como referência sugestiva ao docente, ficando este livre para adequá-lo a seus propósitos, ao invés de ter que segui-lo como receita impositiva. Dessa forma, há várias possibilidades de se adotar a proposta deste trabalho em sala de aula. Por suposto, uma opção seria a inserção de uma sequência de aulas sobre Física de Partículas ao final do terceiro ano letivo do ensino médio, após se ter discutido extensivamente eletromagnetismo e aspectos da teoria quântica. A Física de Partículas seria, assim, um apêndice ao conteúdo de física moderna. A desvantagem dessa abordagem é privar o(a) aluno(a), durante todo o decurso do ensino médio, do contato com aspectos fascinantes da física contemporânea, exceto por poucas aulas ministradas em um momento em que ele(a) possivelmente já tenha formalizado a escolha do curso que pretende seguir em nível superior. Uma segunda possibilidade seria ministrar essas aulas a grupos de alunos(as) que manifestem interesse prévio em seguir carreira científica. Pode-se, ainda, discutir a temática em disciplinas eletivas em escolas de tempo integral. Note que esse foi o caso da prática dos presentes autores. Ainda uma outra abordagem possível consiste na inserção de discussões conectadas à Física de Partículas em aulas que versam sobre outras grandes temáticas mais tradicionais do ensino médio. Por exemplo, pode-se complementar uma sequência didática sobre eletromagnetismo mencionando a interpretação dessa interação sob a perspectiva da Eletrodinâmica Quântica, ou introduzir tal discussão em uma aula sobre o fóton, o efeito fotoelétrico e/ou outros elementos de física moderna. De fato, o presente trabalho já está estruturado de maneira propícia a essa abordagem, por estar dividido em propostas de momentos didáticos maleáveis, adaptáveis aos propósitos do(a) docente. Antecipa-se, assim, uma resposta à previsível crítica de que a restrita carga horária de Física no ensino médio impossibilita a introdução de temáticas para além das necessárias à preparação dos(as) estudantes para exames qualificatórios, como ENEM e vestibulares. Por fim, há ainda uma outra possibilidade de leitura deste trabalho, ainda mais ousada e mais abrangente, qual seja: utilizar a Física de Altas Energias não apenas como um conteúdo particular, mas como um dos panos de fundo para o ensino de todo o conteúdo de Física do ensino médio. O conteúdo das seções 2.1 à 2.6 é parte da ementa usual do ensino médio, com a qual os(as) docentes certamente estão familiarizados. Nessas seções, apenas sugerimos uma possível abordagem desses tópicos com ênfase na temática relacionada à Física de Partículas. Já as seções 2.7, 2.8 e 2.9 versam sobre elementos de Eletrodinâmica Quântica, que provavelmente serão menos familiares a docentes de ensino médio. Por isso, essa parte do texto passa a ser direcionada também à formação desses professores nos principais elementos desse paradigma teórico, mas com uma linguagem acessível também a estudantes. Pode-se julgar que o conteúdo dessas seções é mais extenso do que se desejaria discutir em sala de aula. Em conformidade com a proposta neste trabalho, deixamos a critério do(a) docente decidir quais tópicos poderiam ser abordados com os(as) estudantes dentro do contexto das salas de aula em que lecionam. 2.1. Introdução ao tema O primeiro momento da sequência propicia a oportunidade de diálogo com os(as) estudantes a fim de averiguar sua familiaridade com a grande temática de Física de Partículas, que aparece frequentemente em livros de divulgação científica ou mesmo em seriados televisivos, canais de plataformas de compartilhamento de vídeos e sítios que discutem ciência. Os(as) estudantes conseguem imaginar o quê (e quais) são essas partículas a que a temática se refere? Já tiveram contato com alguma literatura que falasse sobre quarks, neutrinos, bóson de Higgs, etc.? Já ouviram falar sobre o LHC (Grande Colisor de Hádrons), ou outros aceleradores de partículas e colisores? Interessam-se pelo tema? Por que é relevante estudá-lo? É um momento de deixar os(as) alunos(as) se expressarem, seja publicamente ou em pequenos grupos com os(as) colegas, de modo a se divertirem ao se envolverem com a temática. Após essa discussão, convém apresentar, a título de motivação, alguns fenômenos que se pode explicar graças à nossa compreensão da estrutura da matéria em diversas escalas, incluindo aplicações tecnológicas que envolvem Física de Partículas. Por exemplo, a descrição atômica da matéria nos permite explicar a origem das forças normais de resistência dos materiais enquanto forças eletromagnéticas repulsivas entre orbitais moleculares. Ou seja, explica-se fenômenos simples e cotidianos, como o fato de não atravessarmos uma cadeira quando nela sentamos;a Eletrodinâmica Quântica (QED) nos dá uma descrição muito acurada do comportamento da luz, possibilitando-nos manipulá-la para o desenvolvimento de lasers desde os mais simples, vendidos comercialmente, aos mais potentes, utilizados em escala industrial para diversos fins;a mesma QED prevê a existência de partículas chamadas pósitrons, que têm aplicação medicinal nos chamados PET scans3 ;o brilho do Sol é devido a reações relacionadas às interações nucleares fraca e forte, que também estão relacionadas a decaimentos radioativos, com aplicações na datação de fósseis ou rochas, e em inúmeros aparatos cotidianos, como detectores de fumaça;o poder preditivo da física nuclear é ilustrado de modo estarrecedor pela capacidade destrutiva dos armamentos nucleares, ou pela capacidade de geração de energia a partir de poucos quilogramas de matéria em usinas nucleares. Todos esses fenômenos e aplicações tecnológicas poderão ser explicados em maiores detalhes em momentos posteriores da sequência didática, quando o assunto relevante for discutido em maior detalhe. 2.2. Estrutura atômica da matéria O objeto de estudo da Física de Partículas é a matéria em seu nível mais elementar, precedendo a formação de estruturas compostas mais complexas. Ou seja, é o estudo dos constituintes fundamentais da matéria e de suas interações mútuas. A temática é convidativa, portanto, a uma discussão que desemboque na teoria atômica e na natureza discreta da matéria. Em um primeiro momento, mais importante do que explicar as nuances dos diversos modelos atômicos, é preciso que fique claro aos(às) discentes a gênese do conceito de átomo, a diferença entre as concepções grega, moderna e contemporânea desse termo, e, principalmente, as evidências empíricas em favor do atomismo. Não basta que a ideia de átomo seja aceita, é preciso que o(a) estudante saiba convencer outrem de que a hipótese atomista resulta em uma excelente descrição do comportamento da matéria. Ademais, mesmo que os(as) alunos(as) saibam sobre atomismo, discutir as evidências que corroboram essa hipótese leva a um debate salutar sobre epistemologia e ciência, sobre as condições para que uma hipótese seja “validada” pela comunidade científica. No caso da teoria atômica, há o fator explicativo e o poder preditivo da hipótese, ilustrado em evidências como: As Leis Ponderais da Química: sob uma perspectiva plenista/continuista da matéria, é difícil explicar por que reações químicas ocorrem sempre na mesma proporção fixa de massa ou de moles dos reagentes, e por que qualquer excedente além dessa proporção fixa permanece sem reagir. Por outro lado, a hipótese atomista explica prontamente esse comportamento, bem como a lei de conservação de massas de Lavoisier, ao postular que reações químicas são simplesmente um rearranjo de átomos. Um experimento ilustrativo, que pode ser invocado durante a aula e até mesmo realizado ao vivo devido à sua simplicidade, é a eletrólise da água, em que o volume de gás hidrogênio gerado é sempre o dobro do volume de oxigênio. Um vídeo ilustrativo desse experimento pode ser encontrado em [30]. Teoria Cinética dos Gases: admitindo-se a hipótese atômica, é possível deduzir a equação de estado dos gases ideais a partir das leis da mecânica de Newton. Mais ainda, é possível aprimorar a descrição dos gases reais levando-se em conta, por exemplo, o tamanho das moléculas e suas interações mútuas, obtendo uma descrição ainda mais precisa de sistemas gasosos. Em última instância, a hipótese atomista dá origem à unificação da mecânica e da termodinâmica na mecânica estatística. O Movimento Browniano é o movimento aleatório de micropartículas suspensas em um líquido. O(a) docente pode mostrar um vídeo ou animação ilustrando o fenômeno como visto em um microscópio. Em 1905, Einstein foi capaz de explicar esse movimento como devido à constante colisão das moléculas do líquido com as micropartículas, e, com essa descrição, foi capaz de prever corretamente que a distância média percorrida por uma partícula é proporcional à raiz quadrada do tempo decorrido, d∼t, um comportamento típico do caráter estatístico do fenômeno. Outros exemplos podem ser apresentados. O importante é enfatizar que não é necessário enxergarmos os átomos para saber que existem (embora isso já seja possível com microscópios eletrônicos). Ao supormos que a matéria é assim constituída, podemos deduzir suas propriedades e prever corretamente seu comportamento, cumprindo, assim, uma das funções da Ciência enquanto atividade humana: nosso empoderamento diante das forças naturais. 2.3. Elétrons Uma vez que se tenha consolidado a concepção de estrutura atômica da matéria, pode-se partir para o rompimento da ideia de que o átomo é indivisível. Aqui começa a Física de Partículas de fato, introduzindo a primeira partícula elementar, protagonista da Eletrodinâmica Quântica: o elétron. Uma maneira natural de se introduzir partículas subatômicas é discutir o experimento de J. J. Thomson com tubos de raios catódicos, ilustrado na Figura 1. Para uma sequência didática investigativa explorando essa temática vide ref. [31]. Tais tubos são os elementos constitutivos básicos de televisores antigos (as chamadas “TVs de tubo”), e o(a) docente pode usar isso como motivação inicial à aula, propondo uma discussão sobre como esses aparelhos funcionam. A discussão sobre esses tubos é também propícia ao conteúdo da sequência, pois constituem exemplos simples de aceleradores de partículas. Essencialmente, dois filamentos metálicos são inseridos em um tubo a vácuo e conectados a uma fonte de energia (uma bateria, no caso do experimento de Thomson, ou a tomada doméstica no caso de um televisor), gerando os pólos − e + na figura. Ao fazê-lo, elétrons são acelerados do cátodo ao ânodo e colidem com o bulbo à direita da figura, causando o aparecimento de um ponto luminoso, que gera a imagem em aparelhos televisores. Figura 1 Tubo de raios catódicos usado no experimento de Thomson [32]. Um feixe de partículas é emitido do filamento metálico conectado ao pólo negativo da bateria (à esquerda da Figura), e se propaga em um tubo a vácuo até colidir com a outra extremidade, no bulbo à direita. O feixe é desviado por um campo elétrico inserido no meio do tubo (região amarela entre as placas horizontais), indicando que as partículas emitidas possuem carga. Com auxílio de um campo magnético (não simbolizado na imagem), pode-se calcular a razão entre a carga e a massa dessas partículas. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Púbico. Quando realizou seu experimento, Thomson não sabia sobre a existência de elétrons, e seu propósito era justamente desvendar a natureza desses raios que geravam o ponto luminoso. Submetendo esse feixe a campos elétricos e magnéticos, chegou a duas conclusões principais, que merecem ênfase no contexto dessa sequência didática: O feixe é constituído de partículas cujas massas são cerca de 2000 vezes menor do que a massa do átomo mais leve (o hidrogênio)4. Ou seja, essas partículas não poderiam ser constituídas de quaisquer átomos conhecidos até então. Após repetir o experimento com cátodos de vários materiais (alumínio, chumbo, estanho, cobre e ferro) e obter sempre os mesmos resultados, Thomson concluiu que essas partículas devem estar contidas no interior de todos os átomos. Thomson descobriu, assim, o elétron: a primeira partícula subatômica a ser identificada. Outra discussão interessante a se explorar, no contexto dessa aula, é o uso de tubo de raios catódicos em televisores e monitores como um dos muitos exemplos de uma pesquisa a princípio puramente acadêmica, mas que deu origem a uma aplicação tecnológica que, poucas décadas depois, veio a se tornar parte da vida cotidiana em nossa sociedade. Outro exemplo famoso é o nascimento da World Wide Web no CERN5, rede criada inicialmente para compartilhar dados entre os cientistas trabalhando no laboratório e os espalhados no mundo, e que hoje faz parte da experiência cotidiana de todos que navegam na internet. 2.4. A interação eletromagnética A Física de Partículas versa não somente sobre os constituintes fundamentais da matéria, mas também sobre o modo como essas partículas interagem entre si, e como essas interações microscópicas dão origem à física macroscópica que observamos cotidianamente. Dentre as interações fundamentais da matéria, a interação eletromagnética se destaca por ser a mais simples de todas (veremos a justificativa para essa afirmação na seção 2.4.1), e também pela sua ubiquidade em nosso cotidiano: além das inúmeras aplicações tecnológicas, todas as “forças de contato” que experimentamos têm origem eletromagnética. O eletromagnetismo já é um tópico pertencente ao currículo usual de Física no ensino médio, de modo que a discussão apresentada aqui não foge à temática que já seria tratada em algum momento pelo(a) docente em sala de aula. Entretanto, a apresentação do tópico sob uma perspectiva motivada pela Física de Partículas tem certas vantagens, por possibilitar uma melhor compreensão sobre o comportamento dessa interação, além de induzir uma conexão natural entre física clássica e moderna. 2.4.1. Semelhanças e diferenças entre eletromagnetismo e gravitação A lei de força da interação entre duas partículas estáticas eletricamente carregadas (Lei de Coulomb) tem importantes semelhanças e diferenças frente à lei de atração gravitacional de Newton (vide Figura 2), e uma discussão aprofundada sobre as causas dessas (dis)similitudes abre inúmeras possibilidades de discussões em sala de aula, todas ricas em conteúdo físico, algumas propícias ao desenvolvimento da intuição dos estudantes, e ainda outras que levam a questões profundas que continuam em aberto na Física de Partículas. Figura 2 Dois elétrons sob a ação da atração gravitacional F→g, devido a suas massas me, e da repulsão eletrostática F→e⁢l devido a suas cargas −e. A semelhança é óbvia: ambas leis de força seguem o padrão (1) força = constante × (produto de cargas) (distância) 2 . Por que isso ocorre? O produto das cargas tem que aparecer para que a terceira lei de Newton seja satisfeita6: a força agindo sobre A devido a B deve ser proporcional7 à carga de A, e deve ter mesma magnitude que a força em B devido a A, que por sua vez é proporcional à carga de B. A constante aparece devido à escolha de unidades. Por exemplo, em unidades Gaussianas, a constante da Lei de Coulomb é igual a 1. A física mais interessante está no comportamento ∼1/r2 dessas forças, que merece uma discussão mais aprofundada e cuidadosa com os(as) alunos(as). Em última instância, a Lei de Coulomb tem essa forma porque o campo eletromagnético/o fóton/a luz não possui carga nem massa. Para explicar essa afirmação, deve-se primeiramente introduzir o conceito de campo elétrico, incluindo sua manifestação visual em termos de linhas de campo e como as cargas elétricas constituem fontes e sumidouros dessas linhas8. A partir daí, segue-se que: Como o próprio campo não carrega a carga com a qual ele interage (i.e. o campo eletromagnético não é autointeragente), a única fonte de linhas de campo é a matéria, que é o enunciado da Lei de Gauss, (2) ∇ ⋅ E → ⏟ fonte de campo ∼ ρ ⏟ carga , expressa ilustrativamente na Figura 3(a). Por isso, o fluxo de linhas de campo através de uma superfície fechada englobando a carga é sempre constante, pois não há novas linhas de campo surgindo no espaço entre a carga e a superfície. Aqui, uma analogia com um fluido pode ser evocada: se interpretarmos a carga central na Figura 3(a) como uma fonte de água em um chafariz, Figura 3(b), o fluxo de água atravessando as circunferências pontilhadas em um determinado instante é sempre igual ao fluxo de água jorrando da fonte, contanto que não haja novas fontes ou sumidouros de água no meio do percurso. Portanto a quantidade de água que atravessa as circunferências pontilhadas, por unidade de comprimento dessa circunferência, decresce com a distância à fonte como ∼1/2πr. Ou seja, se temos em nossas mãos um copo, e queremos enchê-lo com a água escorrendo através da borda do chafariz, o tempo necessário para encher o copo variará com o inverso da distância da borda à fonte. Retornando ao caso eletromagnético de interesse, em que as linhas de campo se espalham por todo o espaço tridimensional, o fluxo dessas linhas de campo é constante sobre qualquer esfera de raio r, de modo que a densidade de linhas de campo (que corresponde à intensidade do campo) decai com a área dessa esfera, E∼1/4πr2. Pelo mesmo argumento, podemos identificar como seria a Lei de Coulomb em espaços de d-dimensões: E∼1/rd−1 (o volume de uma esfera d-dimensional é ∼rd, e sua área é ∼rd−1). Figura 3 (a) Linhas de campo elétrico geradas por uma carga pontual. O número de linhas atravessando uma superfície fechada é sempre constante, o que significa que a densidade de linhas diminui com a distância. Para um espaço tridimensional, a redução é ∼1/r2. (b) Toda a água que emana da fonte escorre através da borda do chafariz. A quantidade de água que atravessa uma unidade de comprimento desse perímetro varia com o inverso da distância da borda à fonte, ∼1/r. Fonte: Domínio Público. Caso o campo eletromagnético portasse carga elétrica, as próprias linhas de campo seriam fonte de novas linhas de campo, e o fluxo não seria constante, invalidando o argumento acima. Mais ainda: o fato de o campo eletromagnético não ser autointeragente é também a causa da linearidade das equações de Maxwell, e do princípio da superposição em particular. É fácil entender por que: os campos produzidos por duas cargas se propagam no espaço sem interagirem entre si e, portanto, sem que a informação que carregavam inicialmente seja modificada durante o percurso. O campo resultante é, portanto, simplesmente a soma dos campos produzidos por cada carga. Note que, com essa discussão, o(a) estudante de ensino médio é apresentado, de maneira muito clara e intuitiva, a uma das leis de Maxwell do eletromagnetismo e suas implicações. Expande-se, assim, o entendimento do(a) estudante sobre fenômenos eletromagnéticos para além de meras memorizações de leis de forças e atividades operacionais puramente mecânicas. A dependência da lei de força com a massa do campo é menos trivial, por se tratar de um aspecto quântico, mas possivelmente interessante mencionar (principalmente para aulas posteriores, quando se discutir interações nucleares forte e fraca). Caso os fótons tivessem massa m, o potencial eletrostático teria a forma de um potencial de Yukawa, (3)VYukawa ∼e-m⁢rr, correspondendo a uma força que decai muito mais rapidamente do que 1/r2, tendo um curto alcance efetivo, ref∼1/m. O fato de o fóton ser não-massivo é responsável pelo longo alcance da interação eletromagnética, bem como pelo fato de se propagar à máxima velocidade permitida para a troca de informações na Natureza: a velocidade da luz no vácuo. E a gravitação? O campo gravitacional também não possui massa – quer dizer, o gráviton9, que é a partícula associada à propagação do campo gravitacional, tem massa nula –, o que explica por que essa interação é de longo alcance, efetiva a distâncias em escala cosmológica (e também se propaga no vácuo à velocidade da luz). Mais ainda, na gravitação de Newton apenas as massas agem como fonte de gravitação, e portanto o campo gravitacional newtoniano não interage gravitacionalmente (i.e. não é autointeragente), o que implica no comportamento ∼1/r2, como vimos acima. Entretanto, hoje se sabe que a teoria newtoniana não descreve corretamente todos os fenômenos gravitacionais, e é, em última instância, suplantada pela teoria da relatividade geral de Einstein. Nessa teoria, não só a massa dos corpos é fonte de campo gravitacional, mas toda e qualquer forma de energia e momento. Logo, a energia contida no campo gravitacional também gravita. Por isso as equações da relatividade geral são altamente não-lineares. Assim, a gravitação Newtoniana está contida na relatividade geral no limite em que se negligencia a autointeração dos grávitons. Segue-se, dessas discussões, que a interação eletromagnética é a interação mais simples da Natureza , pois é a única linear. Há, ainda, outras diferenças entre gravitação e eletromagnetismo. A interação gravitacional é muito mais fraca que a eletromagnética. De fato, comparando-se a razão entre as magnitudes das forças eletrostática e gravitacional agindo sobre dois elétrons, vem que (4)|F→e⁢lF→g|=k⁢e2G⁢me2∼1042. Esse fato é facilmente comprovado notando-se que a força eletrostática entre um balão de festa e os cabelos de uma pessoa é suficiente para superar a atração gravitacional do planeta inteiro, como se vê na Figura 4. Outra maneira de formular essa discrepância entre as duas interações é notar que, em um sistema de unidades com k = G = 1, a equação (4) nos diz que a carga elétrica e a massa de uma partícula possuem as mesmas unidades, mas para o elétron a carga é ∼1021 vezes maior que a massa. Discrepâncias similares se aplicam a todas as outras partículas carregadas que conhecemos, e é uma manifestação de que a gravidade é a interação mais fraca da natureza. Figura 4A força eletrostática devido a um balão de festa é suficiente para superar a atração gravitacional de todo o planeta e fazer o cabelo levantar. Fonte: adaptado de SWNS/Splash News. A razão para a existência dessa hierarquia entre essas interações é um dos maiores mistérios abertos da Física de Altas Energias, denominado o problema da hierarquia . Uma proposta de solução consiste em supor que existem dimensões espaciais extras (além das três usuais com as quais estamos familiarizados), e que em última instância todas as interações têm a mesma intensidade, mas que a geometria das dimensões extras faz com que a gravitação efetiva em três dimensões se torne muito mais fraca [35]. A interação eletromagnética pode ser atrativa ou repulsiva, enquanto a gravitação é sempre atrativa. Em um sistema de partículas carregadas, as forças eletromagnéticas dominam e fazem com que elas estejam em constante movimento, sempre se repelindo e se atraindo, até o momento em que a velocidade média das partículas (i.e. a temperatura do sistema) seja suficientemente baixa para que a atração entre cargas opostas seja capaz de prendê-las em órbita, formando um sistema ligado neutro. Esse processo ocorreu no Universo primordial, cerca de 380.000 anos após o Big Bang, numa transição de fase em que os prótons e elétrons do plasma primordial se combinaram em átomos – um processo chamado na literatura de Recombinação , e que dá origem à Radiação Cósmica de Fundo [36, 37, 38]. Importante se ressaltar esse argumento à turma, pois ilustra como a efetiva neutralidade do Universo não é simplesmente uma condição inicial arbitrária, mas decorre de um processo físico no Universo primordial. Apesar de a interação eletromagnética ser muito mais forte que a gravitacional, seus efeitos de atração e repulsão tendem a se cancelar em grandes escalas, enquanto os efeitos gravitacionais são sempre cumulativos. Assim, para sistemas formados de grandes quantidades de matéria (formando corpos celestes, galáxias, conglomerados e demais estruturas cósmicas), a gravitação se torna a interação mais relevante. De fato, um dos princípios básicos da Cosmologia moderna é que, em escalas cosmológicas, é necessário levar em conta apenas a interação gravitacional entre as estruturas interagentes. 2.4.2. Eletromagnetismo e forças de contato Outro ponto de importante menção é a ubiquidade da interação eletromagnética em fenômenos onde não se os reconhece a princípio. De seu curso de mecânica, o(a) estudante está familiarizado(a) com o conceito de gravitação e força peso atuando sobre um corpo, assim como outras formas de força que emergem do contato entre corpos (Figura 5), como a força normal, força de atrito, tensão em uma corda, forças atuantes em uma colisão, etc. Figura 5 Forças de contato. Em última instância, todas têm origem na repulsão eletromagnética. Fontes: os autores e adaptações de [39] e [40], respectivamente. Entretanto, em sentido estrito, forças de contato inexistem: todas essas forças têm origem eletromagnética, advindas da repulsão entre os elétrons dos átomos que constituem os corpos, como ilustrado na Figura 6. Apesar de a magnitude da força de repulsão entre elétrons ser tipicamente muito menor do que a força peso de um corpo macroscópico, a repulsão aumenta drasticamente à medida que as distâncias entre as superfícies diminuem, existindo uma distância não-nula para a qual a força peso e a repulsão eletrostática se equilibram. Figura 6 A força normal de uma mesa sobre um bloco é devida à repulsão entre os elétrons dos átomos das superfícies. A revelação de que nenhum objeto está em contato com outro, e que estamos sempre ‘‘flutuando’’ sobre as superfícies onde nos apoiamos, usualmente causa fascinação e entusiasmo em estudantes. Mas mais do que isso, é importante enfatizar esse ponto porque mostra que todas as forças que vivenciamos em nosso cotidiano -- atrito, forças normais, empuxo, etc. -- têm origem eletromagnética ou gravitacional, o que abre caminho à asserção futura de que existem poucas10 interações elementares na natureza. 2.5. Ondas eletromagnéticas e a natureza da luz O fato de o eletromagnetismo ser uma interação à distância [41] suscita uma questão importante: como partículas distantes sabem do comportamento das demais para reagirem de maneira a satisfazer as leis da eletrodinâmica? Como um elétron no receptor de um celular sabe que existem elétrons se movendo na antena emissora do sinal? Essa problemática tem relação direta com aplicações tecnológicas que permeiam o cotidiano dos(as) estudantes, que podem (e devem) ser usadas como motivação para essa aula. Perguntas do tipo “Como os telefones celulares enviam e recebem mensagens?”, ou “Como funcionam tecnologias wireless?” podem servir como problema inicial em uma aula investigativa. A discussão pode ser então guiada a uma ênfase no papel do campo eletromagnético enquanto mediador da interação e, mais importante, enquanto ente físico com dinâmica própria. As conclusões centrais que devem ser atingidas pelos(as) estudantes são: (i) a existência de uma carga elétrica gera um campo eletromagnético; (ii) caso o estado de movimento da carga seja alterado, o campo é modificado em seu entorno imediato, e essa modificação se propaga como uma onda; (iii) quando a onda atinge uma outra carga, transfere-lhe energia e momento, alterando seu estado de movimento, i.e. comunicando-lhe o movimento apropriado. Algumas simulações interativas visando auxiliar a compreensão desses efeitos podem ser encontradas em [42, 43] (ver Figuras 7 e 8). A conclusão final da investigação é que a existência de radiação eletromagnética garante que a causalidade seja preservada pela interação. Figura 7 Simulação interativa PhET Colorado: Irradiando Carga. Na imagem da esquerda, a carga está em repouso e as linhas de campo são radiais. À direita, a carga foi posta em movimento e as linhas se deformam para acompanhá-la. Essa deformação se propaga, constituindo a onda eletromagnética. Fonte: [42]. Figura 8 Simulação interativa PhET Colorado: Ondas de Rádio e Campos Eletromagnéticos. A simulação ilustra como a oscilação dos elétrons em uma antena transmissora gera uma onda eletromagnética, que se propaga até outra antena receptora, fazendo seus elétrons oscilarem à mesma frequência que os da fonte. Assim, o sinal é transmitido de um ponto a outro sem intermédio de fios. Nessa simulação o(a) estudante pode interagir movendo o elétron da antena com o mouse e produzindo seu próprio sinal. Fonte: [43]. O processo de emissão e recepção de ondas eletromagnéticas engloba, em uma só temática, todos os aspectos centrais da teoria eletromagnética. A etapa (i) oferece a oportunidade de se discutir a Lei de Gauss, a etapa (ii) possibilita discutir o fenômeno de indução de campos elétricos pela variação de campos magnéticos (e vice-versa), enquanto (iii) está associado à força de Lorentz sobre uma carga. Mais especificamente, pode-se apresentar as equações de Maxwell de maneira intuitiva e acessível a estudantes de ensino médio, substituindo-se as expressões matemáticas, envolvendo derivadas e integrais, por suas interpretações físicas em forma de sentenças enunciativas (cf. ref. [44], Vol. II, Cap. 1). Por exemplo, a Lei de Gauss, que rege a maneira como o campo elétrico é gerado por uma carga, foi apresentada na seção 2.4.1 em termos do fluxo das linhas de campo e como elas se originam e terminam em cargas elétricas. Especificamente, o fluxo do campo elétrico E→ sobre uma superfície é constante, proporcional à carga contida em seu interior, (5) fluxo de E → através de superfície fechada = carga contida no interior da superfície A partir daí, o docente pode estimular os(as) próprios(as) alunos(as) a enunciar a lei análoga para campos magnéticos, bastando dizer-lhes que nunca foram observadas cargas magnéticas (i.e. monopolos magnéticos). O lado direito deve ser, então, igualado a zero, concluindo-se que o fluxo de campo magnético B→ se anula sobre superfícies fechadas. “Qual é, então, a fonte de campos magnéticos?”. A questão gera a ocasião para apresentar as outras duas equações de Maxwell, (6) circulação de B → em torno de C = corrente elétrica através de S + variação temporal do fluxo de E → através de S (7) circulação de E → em torno de C = variação temporal do fluxo de ( – B → ) , através de S onde S é uma superfície arbitrária e C seu contorno, como ilustrado na Figura 9. Figura 9 Uma superfície arbitrária S delimitada por uma curva fechada C. Assim, a variação de um campo elétrico no tempo (por ex., devido à aceleração da partícula fonte desse campo) gera um campo magnético variável, que gera um campo elétrico variável, e assim sucessivamente. Com essa argumentação, pode-se mostrar aos estudantes o princípio básico por trás da propagação das ondas eletromagnéticas. A Figura 10 mostra um esquema simplificado do processo, mais intuitivo e de mais fácil apreensão. Figura 10 (a) Esquema do ciclo retroalimentativo que sustenta a propagação da onda eletromagnética. (b) Uma onda eletromagnética propagando-se na direção x consiste em oscilações dos campos elétrico e magnético no plano yz. No vácuo esses campos são sempre mutuamente perpendiculares. Note que não há componentes dos campos na direção de propagação: diz-se que a onda eletromagnética é uma onda transversal. Fonte: Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0. A introdução do conceito de ondas eletromagnéticas abre um leque de possibilidades ao docente, que pode abordar temáticas consideradas pelos(as) próprios(as) estudantes como altamente interessantes [3], tais como: o funcionamento de antenas de emissão e recepção, e como ondas eletromagnéticas estão presentes em tecnologias atuais de telecomunicação (celulares, transmissão de sinal wifi, etc.); propriedades fundamentais de ondas gerais, e de ondas eletromagnéticas em particular (frequência, comprimento de onda, amplitude); o espectro eletromagnético e aplicações tecnológicas e medicinais de cada uma de suas bandas (ondas de TV e rádio, microondas, infravermelho, raios solares ultravioleta, raios-X, etc.), ilustradas na Figura 11. O(A) docente pode, por exemplo, discutir como o microondas funciona enquanto uma cavidade ressonante: a onda eletromagnética faz as moléculas de água dos alimentos vibrarem, aumentando sua temperatura. Note que as regiões que se localizam nos nós da onda eletromagnética do aparelho não serão aquecidas. Por isso, o alimento deve ser posto a girar para que nenhum ponto fique parado no mesmo lugar da cavidade durante todo o período do processo de aquecimento do alimento. Pode-se usar a pipoca de microondas como um exemplo divertido para os(as) estudantes; Figura 11Algumas aplicações de diversas bandas do espectro eletromagnético, que podem ser exploradas em sala em um contexto CTSA. Fonte: Domínio Público. como atividade, o(a) docente pode pedir que os(as) estudantes pesquisem a banda de frequência em que funcionam os roteadores wifi a que têm acesso, e computem o comprimento de onda associado, localizando-o no espectro eletromagnético. Que outros aparelhos domésticos funcionam nessa mesma banda do espectro? O funcionamento de roteadores oferece uma interessante aplicação tecnológica cotidiana da teoria eletromagnética, e tem grande potencial de ser um tópico atraente para muitos(as) estudantes interessados nessa área de informática e/ou tecnologia da informação; interessante destacar, também, a natureza da luz enquanto onda eletromagnética, e alguns aspectos históricos a respeito dessa descoberta. A possibilidade de existência de tais ondas foi estabelecida por Maxwell em 1864, que também calculou a velocidade de propagação, encontrando um valor muito próximo à velocidade da luz (cujo valor já era conhecido na época), concluindo, então, que a luz é uma onda eletromagnética. Esse resultado tem um valor histórico inestimável: a partir de grandezas medidas em laboratório com o uso de circuitos elétricos, fios, voltímetros etc., Maxwell pôde extrair uma conclusão sobre a natureza da luz, um fenômeno que não parece ter qualquer relação com aqueles experimentos! A natureza ondulatória da luz já era conhecida desde que Young realizou seu experimento de fenda dupla em 1801. No entanto, não se conhecia ainda o substrato oscilante nessas ondas, cabendo a Maxwell tal identificação; pode-se, ainda, mencionar o espectro de corpo negro, ou, mais geralmente, o fato de que todo corpo emite radiação eletromagnética devido à sua temperatura. Esse espectro contém um pico, e a frequência no pico de emitância é proporcional à temperatura do corpo, o que significa que quanto mais quente for o corpo, mais “azulada” é a radiação emitida por ele. O(a) docente pode propor aos(às) estudantes interagirem com a simulação encontrada na ref. [45], que mostra como o espectro de emitância de um corpo varia com a temperatura, como na Figura 12. Essa dependência do pico de emitância com a temperatura é utilizada, por exemplo, para medir a temperatura de estrelas a partir do espectro de luz que elas emitem. A superfície do Sol está a uma temperatura de aproximadamente 5500 K, e seu espectro de emissão tem um pico justamente na região da luz visível, i.e. a maior parte da radiação emitida pelo Sol encontra-se na faixa que nós conseguimos enxergar. Isso não é uma coincidência, mas produto da seleção natural. O apêndice A.1 contém uma proposta de atividade interdisciplinar, a ser realizada com os(as) estudantes e potencialmente em conjunto com o(a) professor(a) da área de Biologia, explorando esse fato. A Figura 30 encontrada naquela seção ilustra o espectro de emitância solar sobreposto ao de um corpo negro ideal à temperatura 5500 K. Figura 12Imagem da simulação interativa PhET Colorado: Espectro de Corpo Negro. Fonte: [45]. A Figura 13 ilustra diversos aspectos do espectro eletromagnético, e pode ser extremamente útil ao(à) docente na elaboração de sua aula e das atividades a serem propostas relativas a essa temática. Figura 13 Diversos tipos de radiação eletromagnética, caracterizados por uma banda específica de frequência e comprimento de onda do espectro completo. A cada banda, atribui-se também um objeto cujo tamanho típico é da mesma ordem de magnitude do comprimento da onda correspondente: tratam-se dos menores objetos que podem ser distinguidos por meio dessas ondas. Por exemplo, microorganismos podem ser vistos sob um microscópio usual, funcionando à base de luz visível, mas para distinguir moléculas ou átomos é preciso fazer incidir radiação muito mais energética, de menor comprimento de onda. As frequências de cada banda são associadas, também, às cores da radiação correspondente, divididas em três regiões: o infravermelho, o espectro contínuo da luz visível, e o ultravioleta. Por fim, ilustra-se também a temperatura de um corpo cujo espectro de emissão termal é predominante na banda em questão. Fonte: Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0. 2.6. Dualidade onda-partícula A discussão da temática de ondas eletromagnéticas abre a possibilidade de se adentrar em temas de física moderna, como a teoria da relatividade restrita ou a dualidade onda-partícula em mecânica quântica. Embora ambos sejam de suma importância para a Física de Partículas, nesta sequência didática focamos no aspecto quântico visando a introdução do conceito de fóton. Para propostas didáticas visando o ensino de relatividade no ensino médio vide refs. [46, 47, 48]. A dualidade onda-partícula da luz pode ser introduzida de diversas maneiras. Invocando-se o experimento de Young da fenda dupla, pode-se, em um primeiro momento da aula, discutir as expectativas dos(as) alunos(as) quanto à imagem formada no aparato de incidência, quando o objeto incidente for uma partícula clássica (Figura 14) e quando for uma onda (para esse caso pode-se explorar, junto aos(às) alunos(as), a simulação interativa disponível em [49]). Em um segundo momento da aula, discute-se (ou realiza-se em sala) o experimento de Young, que detectou franjas de interferência para a luz, mostrando tratar-se de um fenômeno de natureza ondulatória. Posteriormente, discute-se o que ocorre quando se reduz suficientemente a intensidade do feixe luminoso, resultando nos padrões mostrados na Figura 15. As franjas são reveladas aos poucos, a partir de detecções de partículas pontuais, revelando assim o caráter corpuscular da luz (para imagens e vídeo ilustrativo que podem ser usados em sala de aula, consultar ref. [50]). Figura 14 Padrão esperado para um feixe de partículas clássicas lançadas contra uma tela com duas fendas. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Figura 15 Para partículas quânticas, o padrão de interferência é inicialmente imperceptível, mas emerge paulatinamente à medida que mais estatística é coletada pelo experimento. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio público. A discussão do experimento da fenda dupla em sala de aula cria, também, uma excelente oportunidade de desmistificar a mecânica quântica, o que é especialmente importante levando-se em conta a quantidade de charlatães que usam os resultados não-intuitivos desse experimento para propor que a Física corrobora suas interpretações esotéricas do mundo. Mais especificamente, o surgimento de um padrão de interferência para um feixe de partículas pode ser explorado para se discutir a necessidade de se abandonar o conceito de trajetórias bem definidas (que deveria levar ao padrão dado pela Figura 14), e, consequentemente, a necessidade de se reformular a mecânica. Pode-se usar esse gancho para discutir o princípio da incerteza de Heisenberg, e como esse princípio explica o fenômeno de destruição do padrão de interferência quando um observador detecta por qual fenda a partícula passou (cf. ref. [44], Vol. III, Seção 1.8). Também é essencial esclarecer aos estudantes que não se deve pensar em partículas quânticas como “bolinhas” movendo-se classicamente. A propósito, fazer uso de analogias com a mecânica clássica geralmente leva a uma confusão de conceitos [51]. Os fótons devem ser vistos como pacotes de energia e momento. O mesmo vale para todas as partículas elementares. Isso ficará mais claro quando se apresentar a definição de partícula no paradigma de Teorias Quânticas de Campos, como a Eletrodinâmica Quântica, que será apresentada na seção seguinte. Outra evidência em favor do caráter corpuscular da luz é o efeito fotoelétrico/fotovoltaico. Por constituir o princípio básico do funcionamento de células fotovoltaicas, essa temática pode ser abordada em um contexto de aula investigativa [52] ou, ainda, em diálogo mais amplo com outras disciplinas escolares em contexto CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) [53]. Uma proposta de tal atividade encontra-se delineada no apêndice A.2. Ademais, a discussão do efeito fotoelétrico permite a apresentação da relação de Einstein para a energia dos “pacotes de onda eletromagnética”, (8) ( energia da partícula ) = ( constante ) × ( frequência da onda associada ) , relação que quantifica a dualidade ao associar uma grandeza tipicamente ligada a partículas a uma propriedade ondulatória. Seja qual for o caminho escolhido, o objetivo a se atingir é introduzir o conceito de fótons enquanto partículas da radiação eletromagnética. 2.7. Eletrodinâmica Quântica 2.7.1. O campo eletromagnético quântico A introdução do conceito de fóton implica, em um primeiro momento, em uma ambiguidade na descrição da radiação eletromagnética, que passa a ser ao mesmo tempo tratada como oscilação de um campo clássico e como ente com propriedades quânticas11. Como o caráter quântico dos fótons poderia emergir da propagação de um campo clássico? Essa inconsistência aponta para a necessidade de se quantizar o campo eletromagnético, i.e. descrevê-lo inteiramente de acordo com o paradigma quântico. A teoria quântica que descreve a interação entre partículas carregadas (por ex. elétrons) e o campo eletromagnético quantizado é chamada de Eletrodinâmica Quântica (Quantum Electrodynamics ou QED em inglês). Na QED, o campo eletromagnético passa a ser visto como uma ‘‘superfície’’ tridimensional12 vibratória que preenche todo o volume do espaço, análoga à superfície de um instrumento musical de percussão, como a pele de um tambor. À parte da dimensionalidade -- o campo preenche todo o espaço, enquanto a pele percussiva é plana, bidimensional --, a única (e crucial) distinção se deve ao caráter clássico das vibrações do instrumento musical e ao caráter quântico do campo quantizado13. A partir dessa analogia, e da compreensão de suas limitações, pode-se entender conceitos fundamentais da QED (e de Teorias Quânticas de Campos em geral). Primeiramente, assim como a superfície percussiva possui um estado em que não há quaisquer vibrações e nenhum som é emitido, também o campo quântico possui um estado fundamental, que é chamado de estado de vácuo (a motivação para essa nomenclatura ficará clara a seguir). No entanto, note que, por se tratar de um objeto quântico, não é possível afirmar que o campo no estado fundamental está em repouso. O princípio da incerteza garante que, mesmo no estado fundamental, há vibrações do campo, associadas à chamada “energia de ponto-zero”. Isso significa que o vácuo quântico tem energia, fato que tem consequências observáveis e aplicações práticas/tecnológicas, tais como: o efeito Casimir, que consiste na atração de duas placas metálicas, eletricamente neutras, imersas no vácuo. A atração se deve à modificação da energia do vácuo quântico na presença das placas. Mais especificamente, quanto mais próximas as placas, menor a energia do vácuo na região por elas limitadas; o processo de emissão espontânea de um fóton por um átomo no estado excitado, que dá origem aos espectros atômicos. No formalismo de Schrödinger da mecânica quântica, todas as camadas eletrônicas do átomo correspondem a estados estacionários, e a probabilidade de transição entre eles é nula. A transição do elétron entre camadas, e a consequente emissão de um fóton, só ocorre devido à interação do elétron com o vácuo eletromagnético quântico; por possuir energia, a relatividade geral de Einstein garante que o vácuo quântico gravita . Essa energia do vácuo age como uma constante cosmológica, contribuindo para a expansão acelerada do Universo. Entretanto, quando se compara a previsão teórica para a energia do vácuo quântico com o valor da constante cosmológica medido com base em observações da expansão do Universo, há uma discrepância de 120 ordens de magnitude! Ou seja, trata-se da pior previsão da história da Física! Esse é o chamado problema da constante cosmológica, ainda sem solução [54, 55]. Além do estado fundamental, uma superfície vibratória pode, obviamente, oscilar de diversas maneiras. Dentre elas, destacam-se os chamados modos normais de vibração, associados a ondas estacionárias, em que todos os pontos da superfície oscilam com a mesma frequência, como exemplificado ilustrativamente na Figura 16. Em um instrumento musical, um modo normal está associado a uma nota musical específica: quando se ataca a pele de um tambor, ela vibra em um modo normal e emite som da frequência para a qual o instrumento foi previamente afinado. No caso de um campo quântico, um modo normal de vibração corresponde a uma partícula de energia e momento definidos. Note o caráter explicitamente dual dessa descrição, que traça paralelos diretos entre partículas com energia definida e modos de oscilação de determinada frequência. O fato de a vibração não estar localizada em nenhuma região, mas ocorrer em todo o espaço ocupado pelo campo, como ilustrado na Figura 16, está de acordo com o esperado pelo princípio da incerteza de Heisenberg quando aplicado a uma partícula cujo momento linear é conhecido precisamente. Figura 16 Momentos distintos de um ciclo oscilatório associado a um modo normal de vibração para uma superfície bidimensional. No caso de um instrumento de percussão, esse padrão corresponderia a uma nota musical (i.e. uma frequência sonora) específica. Para um campo quântico, corresponde a uma partícula com energia e momento específicos. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Essa interpretação de partículas como excitações do campo em modos normais de vibração justifica, ainda, a nomenclatura de vácuo para o estado fundamental, por corresponder ao caso em que o número de partículas se anula. Por fim, enfatiza-se que a mesma interpretação se aplica a partículas materiais: o elétron também é um modo normal de vibração de um campo fundamental, que podemos chamar de campo eletrônico ou campo do elétron. Isso explica, aliás, por que todos elétrons do Universo são idênticos: todos são vibrações de um único campo fundamental. O Modelo Padrão da Física de Partículas, embasado no formalismo de Teoria Quântica de Campos, é ao mesmo tempo uma teoria de partículas e uma teoria de interação entre campos. 2.7.2. Fótons virtuais como mediadoresda interação eletromagnética Em discussões anteriores (vide seções 2.4.2 e 2.5), foi apresentada a ideia de que a matéria não interage por contato direto entre seus constituintes, mas à distância, mediada por campos de interação, como o campo eletromagnético. Sob a perspectiva da QED, isso se traduz como a ausência de autointeração do campo de elétrons. Ao invés disso, a interação direta do campo eletrônico se dá com outro(s) campo(s), e a repulsão entre dois elétrons nada mais é do que um efeito colateral da interação de ambos com um campo intermediário. Esse processo de interação na QED está representado esquematicamente na Figura 17. Os dois picos mais protuberantes, de cor laranja, representam elétrons, i.e. excitações do campo eletrônico14, e o campo de fundo, de cor verde, corresponde ao campo eletromagnético. Devido à interação entre os dois campos, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz uma “nuvem” de excitações do campo eletromagnético ao seu redor, como na Figura 17(a). À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético (b), causando a mútua repulsão (c). Figura 17 (a) Dois elétrons (picos mais protuberantes, de cor laranja) afastados um do outro. Devido à interação entre o campo de elétrons e o campo eletromagnético, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz excitações do campo fotônico ao seu redor. (b) À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético, causando a mútua repulsão. (c) Elétrons novamente distantes após a interação. Dá-se o nome de fóton virtual a qualquer excitação do campo eletromagnético que não corresponde a um modo normal de vibração, tais como as excitações do campo eletromagnético ilustradas na Figura 17. Um fóton virtual é, portanto, um estado não-estacionário, não necessariamente associado à propagação de uma onda, e portanto bastante diferente de um fóton real, como ficará ainda mais claro a seguir. Entretanto, justifica-se chamá-la de fóton por se tratar de uma vibração do campo eletromagnético, e, para distinguí-la de um fóton observável, usa-se essa adjetivação de virtual15. Note que há fótons virtuais sendo trocados em todas as três etapas da interação, representados pelas pequenas perturbações do campo eletromagnético entre os dois elétrons nas Figuras 17(a), (b) e (c). Mas a contribuição do fóton virtual ao espalhamento é mais significativa quando os elétrons estão mais próximos um do outro, como representado na Figura 17(b). Essa discussão será retomada em mais detalhes na seção 2.7.3 a seguir. Cabe ressaltar que, apesar de termos definido anteriormente um elétron como uma excitação do campo eletrônico, o que realmente se observa é o conjunto de excitações do campo eletrônico e do campo eletromagnético ao seu redor: diz-se que o elétron nunca é visto “nu”, mas está sempre “vestido” de uma nuvem de partículas virtuais. Esse fato será novamente discutido e melhor explorado na seção 2.9 a seguir. Ressalta-se, ainda, que a Figura 17 é apenas uma representação esquemática da interação, uma alusão semiclássica a um processo que é fundamentalmente quântico. O simples fato de desenhar as oscilações do campo pressupõe que saibamos a posição de cada ponto dessa superfície no espaço, em desacordo com o princípio da incerteza. Entretanto, ilustrar um campo quântico é impossível, e a representação acima, apesar de incompleta, fornece uma boa intuição sobre o processo de interação entre (excitações de) campos. Ainda relacionado às limitações da figura, note que, assim como a presença do elétron causa excitações do campo eletromagnético, estes fótons virtuais também induzem excitações do campo eletrônico, que induzem outras oscilações fotônicas, e assim sucessivamente. Ou seja, em torno das oscilações do campo eletromagnético dever-se-ia também ilustrar oscilações do campo eletrônico, e em torno dessas ilustrar outras excitações do campo eletromagnético, etc. A Figura 17 representa, portanto, apenas a primeira ordem de uma série de outros processos que poderiam ocorrer na presença de dois elétrons. Como se trata de um sistema quântico, não é possível dizer qual desses processos realmente ocorre: o resultado da interação é uma superposição quântica de todas essas possibilidades. Aqui o(a) docente pode fazer uma alusão direta ao experimento da fenda dupla, em que não é possível afirmar por qual fenda a partícula passa: a interferência é resultado da superposição das duas possibilidades de trajetórias, cada uma passando por uma fenda. 2.7.3. Diagramas de Feynman Outra maneira de representar a interação entre elétrons é através de um diagrama de Feynman, como na Figura 18. Aqui, o eixo vertical representa a dimensão espacial, e o eixo horizontal é a passagem do tempo. Representa-se, aqui, o mesmo processo ilustrado na Figura 17 anterior: dois elétrons interagindo pela troca de um fóton virtual. Entretanto, não é correto ler esse diagrama como se um dos elétrons (digamos, o elétron da parte superior da figura) tivesse emitido o fóton, e o outro (da parte inferior) o tivesse absorvido. Pois o processo oposto, em que o elétron inferior emitiu e o superior absorveu o fóton, é igualmente possível. E, se há dois processos intermediários possíveis, a mecânica quântica garante que a contribuição total aos processos físicos é a soma das contribuições dos processos intermediários. A Figura 19 mostra que o diagrama de Feynman da Figura 18 representa a soma (i.e. a superposição quântica) das duas ordenações temporais possíveis para a emissão e absorção do fóton intermediário [57, 58, 59]. Ou seja, a Figura 18 ilustra apenas que, em primeira ordem, esse processo ocorre mediante a troca de um fóton virtual, sem representar como esse processo de fato ocorre no espaço-tempo. Figura 18 Diagrama de Feynman ilustrando a interação entre dois elétrons mediada pela troca de um fóton virtual. Os pontos que conectam os elétrons ao fóton são chamados de vértices do diagrama. Figura 19 A interação entre elétrons pela troca de um fóton virtual deve levar em conta as duas possibilidades de ordenamento temporal, em que um elétron emite e o outro absorve o fóton trocado. Para compreender melhor a diferença entre fótons reais e virtuais, consideremos o balanço de energia-momento em um ponto de “emissão/absorção” do fóton no diagrama, i.e. em um de seus vértices. Sejam (E,p→) e (E′,p→′) a energia e momento linear de um elétron da Figura 18 (por ex., o elétron da parte superior do diagrama) antes e depois da interação (i.e. à esquerda e à direita do vértice, respectivamente), e sejam (Eγ,p→γ) a energia e momento do fóton virtual. A conservação de energia e momento na absorção/emissão do fóton impõe que (9) E = E γ + E ′ , (10) p → = p → γ + p → ′ , logo (11) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = ( E - E ′ ) 2 - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 . Como um fóton tem massa mγ = 0, esperar-se-ia, da relação relativística de energia-momento16, que (12) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = m γ 2 ⁢ c 4 = 0 ⁢ ? No entanto, em um espalhamento de elétrons não há nada que vincule E a E′ ou p→ a p→′ a priori17 (tratam-se de variáveis livres do problema), de maneira que, em geral, o lado direito da equação (11) não se anula. Isso significa que um fóton virtual em geral não satisfaz a relação relativística de energia-momento. Ou, dito de outra forma, é como se a partícula virtual pudesse ter massa diferente da massa observada para excitações normais do campo em questão. Essa é outra importante distinção entre partículas reais e virtuais. Essa violação da equação (12) não é um problema, contanto que esteja dentro da margem de incerteza associada à energia e ao momento do fóton virtual. Pelo princípio da incerteza, a precisão com que se pode determinar a energia de um sistema (ΔE) é limitada pelo tempo disponível para ele interagir com um possível aparato medidor (Δt), assim como a incerteza em seu momento (Δp) cresce à medida que se reduz a região do espaço a que ele esteja restrito (Δx). Isso pode ser expresso matematicamente por meio das famosas relações de incerteza (13) Δ ⁢ E ⁢ Δ ⁢ t ≥ ℏ 2 , Δ ⁢ p ⁢ Δ ⁢ x ≥ ℏ 2 , com ℏ ≈ 1.05×10−34 kg m2/s a constante de Planck reduzida18. Assim, quanto menor for o tempo de vida de uma excitação de um campo, e/ou quanto menor for seu alcance espacial, maior será a incerteza associada à sua energia-momento, e portanto maior será a margem para uma aparente violação da equação (12). Mais especificamente, o espalhamento descrito pelo diagrama da Figura 18 é mediado por fótons de todas as possíveis virtualidades, e a interação final resulta da soma de todas as contribuições. Entretanto, para grandes distâncias entre as partículas interagentes, a sobreposição dos fótons virtuais resulta em uma interferência destrutiva (exatamente no sentido de interferência de ondas), de modo que quanto maior a virtualidade dos fótons mediadores, menores serão seus impactos no resultado final da interação. Assim, a grandes distâncias, apenas fótons de baixa virtualidade contribuem significativamente. Reciprocamente, a menores distâncias, a contribuição dos fótons de maior virtualidade também se torna relevante. Uma discussão muito detalhada desse efeito, ao mesmo tempo em que é acessível ao público geral, pode ser encontrada na ref. [57], cuja leitura é fortemente recomendada para uma maior compreensão da QED e um complemento da discussão aqui apresentada. O argumento exposto acima nos fornece uma maneira de compreender o comportamento da Lei de Coulomb sob uma perspectiva microscópica da interação eletromagnética. Consideremos o caso de um elétron espalhado elasticamente por uma carga muito mais pesada, e que portanto permanece aproximadamente estática, como esquematizado na Figura 20. Um exemplo é um experimento de difração de elétrons, ao estilo dos experimentos de Rutherford-Geiger-Marsden que levaram à descoberta do núcleo atômico19. Nesse caso, a energia cinética do elétron não varia (por se tratar de espalhamento elástico) e a equação (11) fica (14) virtualidade ≡ E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 = - 4 ⁢ | p → | 2 ⁢ c 2 ⁢ sin 2 ⁡ θ 2 , que define o “grau de virtualidade” do fóton através da medida de violação da relação relativística de energia-momento. Nessa equação, θ é o ângulo entre o feixe espalhado e a direção do feixe incidente (vide legenda da Figura 20), que varia entre θ = 0 (quando não há desvio) e θ = π (quando o feixe volta na mesma direção e sentido oposto ao incidente). Figura 20 Diagrama de Feynman para um espalhamento elástico por uma carga estática. Define-se o ângulo θ como o ângulo entre o momento final (p→′) e inicial do elétron (p→), medindo o desvio relativamente à direção do feixe incidente. Ele não aparece na figura, pois um diagrama de Feynman representa apenas uma esquematização do processo que contribui para a interação, e não ilustra como o espalhamento ocorre, de fato, no espaço-tempo. Veja comentário no início da seção 2.7.3, bem como a Figura 19. Nota-se que, quanto maior o ângulo θ de espalhamento relativo ao feixe incidente (i.e. quanto maior for a alteração do estado de movimento do elétron devido à interação), maior é a virtualidade, e portanto, pelo argumento anterior, menor deve ser o alcance dessa interação. Ou seja, o elétron só é desviado significativamente de sua trajetória incidente se ele se aproximar muito da outra carga. Por outro lado, um espalhamento em que o momento linear do elétron pouco varia, p→≈p→′ e θ ≈ 0, está associado a fótons que satisfazem a relação energia-momento em boa aproximação, e portanto podem mediar interações a longas distâncias. Posto de outra forma: quanto mais o elétron se aproxima de outra carga, maior poderá ser a virtualidade dos fótons trocados entre elas, e maior será o desvio da trajetória do elétron; ao passo que, se as cargas estão distantes, os fótons devem satisfazer a equação (12) em boa aproximação, o que corresponde, pela equação (14), a um desvio pequeno de trajetória. Esse é justamente o comportamento clássico da interação eletrostática: quanto mais distantes as cargas, menor é a força e, consequentemente, menor a variação do momento linear da partícula teste. O argumento acima apresenta uma explicação para esse fenômeno em nível microscópico. É possível mostrar que a relação de virtualidade dada pela equação (14) dá origem a uma energia potencial de interação do tipo V(r)∼1/r, que é justamente a energia potencial associada à lei de Coulomb. Note, ainda, que todos os fótons que contribuem para a Lei de Coulomb são virtuais. Uma outra maneira de refrasear a argumentação acima é a seguinte. Um fóton real, não massivo, contém apenas duas possíveis polarizações, que são transversais à direção de propagação20. Por outro lado, a violação da equação (12) implica que um fóton virtual possui uma terceira polarização, dita longitudinal, que não está associada a um grau de liberdade que se propaga. De fato, é possível mostrar que esse grau de liberdade longitudinal atua como mensageiro da Lei de Coulomb [59]. Segue-se que quanto maior for a virtualidade do fóton, maior é a contribuição da polarização longitudinal, e mais intensa a interação Coulombiana, como concluímos acima. 2.8. Pósitrons: os antielétrons Na seção 2.7.1 acima vimos que, em uma teoria quântica relativística, o elétron é interpretado como uma excitação de um campo fundamental, que chamamos de “campo do elétron” ou “campo eletrônico”. Contudo, é possível mostrar que os postulados da relatividade restrita só são satisfeitos quando se considera que o campo eletrônico possui também um outro tipo de excitação, com a mesma massa do elétron mas carga oposta. Em outras palavras, uma teoria quântica relativística do elétron prevê, também, a existência de um antielétron! Como a carga dessa partícula é positiva, ela é chamada de pósitron. Figura 21 Representação esquemática do movimento de um pósitron, interpretado como o movimento de um elétron movendo-se “para trás no tempo”. O pósitron pode ser visto como uma “ausência de elétron” ou como um buraco nesta página em branco: à medida que o “buraco” se move para a direita, o espaço que ele antes ocupava passa a ser novamente branco, como o restante da página. Reduzir a ausência de carga negativa em uma determinada posição é equivalente a acrescentar uma carga negativa nesse ponto. Isso porque −(+ e) = −e. Assim, o pósitron movendo-se de 1 para 2 em t1→t2 corresponde a um elétron movendo-se de 2 para 1. Em t2→t3 o elétron se desloca de 3 para 2. Note que o elétron que saiu de 2 para 1 precisou, primeiro, sair de 3 para 2. Assim, efetivamente, o movimento do pósitron de 1→2→3 em t1→t2→t3 corresponde ao movimento de um elétron de 3→2→1 em t3→t2→t1. Pode-se entender a afirmação acima da seguinte maneira. Considere dois eventos que ocorrem nos pontos x=(t,x→) e x+Δ⁢x=(t+Δ⁢t,x→+Δ⁢x→) do espaço-tempo, e suponhamos que |Δ⁢x→|>c⁢Δ⁢t, ou seja, a distância espacial Δ⁢x→ é maior do que a distância que a luz pode percorrer no intervalo Δt. Isso significa que esses dois eventos são causalmente desconexos, pois só poderiam ser relacionados por um sinal superluminal, o que violaria os postulados da relatividade restrita. No entanto, quando calculamos a probabilidade de que um elétron se propague de x até x + Δx, constata-se que essa probabilidade não se anula! Assim, se o campo eletrônico propagasse informação somente via elétrons, haveria violação da causalidade: veríamos efeitos precedendo suas causas, o que é absurdo! Para preservar a causalidade, o campo eletrônico deve possuir, também, um segundo tipo de excitação, que são os chamados “pósitrons”: as antipartículas dos elétrons. A transmissão de informação entre dois pontos espaço-temporais envolve a propagação de um elétron de x a x + Δx bem como a propagação de um pósitron de x + Δx a x e, quando essas duas partículas têm exatamente a mesma massa, esses dois processos interferem destrutivamente21, garantindo a causalidade em nível quântico. Note que, nesse caso, a propagação de um elétron é exatamente cancelada pela de um pósitron se propagando no sentido oposto no espaço e no tempo. Esse é um dos aspectos da interpretação de Feynman-Stückelberg para as antipartículas, que garante que, sob todos os aspectos, as antipartículas se comportam como partículas viajando para trás no tempo. Isso explica porque partículas e antipartículas possuem a mesma massa: são, no fundo, a mesma partícula, ou, dito de outra forma, são excitações de um mesmo campo fundamental. Essa interpretação de antipartículas pode ser visualizada da seguinte maneira. Imagine um pósitron se propagando da esquerda para a direita, como ilustrado na Figura 21. Vamos denominar as três posições que o pósitron ocupa na figura como posições 1, 2 e 3, respectivamente. No instante t1 há uma carga elétrica positiva ocupando a posição 1, mais à esquerda da figura, enquanto as posições vizinhas correspondem a espaços vazios, portanto com carga nula. Na passagem do instante t1 para um instante t2 posterior, a carga + e é subtraída da posição 1 e acrescida na posição 2. Mas esse processo é totalmente análogo a subtrairmos uma carga −e de 2 (pois 0−(−e) = + e) e adicionarmos −e em 1 (pois −e + e = 0). Dito de outra forma, é como se a existência de um pósitron pudesse ser vista como a “ausência de um elétron”, ou como um “buraco”: à medida que o pósitron se move da esquerda para a direita, os espaços mais à direita vão se movendo para a esquerda, para preencher a lacuna do pósitron. A Figura 21 mostra, assim, como o movimento do pósitron da esquerda para a direita ao longo de t1→t2→t3 corresponde ao movimento de um elétron da direita para a esquerda ao longo de t3→t2→t1, portanto andando “para trás no tempo”. Esse mesmo argumento se aplica a qualquer campo quântico, de modo que toda partícula elementar possui uma antipartícula associada, e ambas partícula e antipartícula possuem a mesma massa, mas cargas opostas22. Refraseando em poucas palavras: antipartículas emergem inevitavelmente dos postulados da mecânica quântica e da relatividade restrita. Ou, ainda de outra forma: é impossível formular uma teoria quântica relativística de apenas uma partícula. Isso não é inesperado, visto que a relação relativística E = mc2 já aponta para a possibilidade de se converter energia em massa e, portanto, criar novas partículas a partir de uma energia inicial ou, reciprocamente, converter massa em energia através da aniquilação de partículas. Na QED, em que elétrons e pósitrons interagem com o campo eletromagnético, essa energia que cria partículas ou resulta de suas aniquilações está na forma de fótons. Ou seja, um par elétron-pósitron pode se aniquilar mutuamente, resultando em (dois ou mais) fótons no produto final, ou, reciprocamente, fótons podem produzir um par elétron-pósitron23. Esse processo está representado diagramaticamente pela Figura 22. Figura 22 Diagrama representando a aniquilação de um par elétron-pósitron em dois fótons. Note como a partícula mediadora é uma excitação do campo eletrônico. Esse caso ilustra como todas as partículas podem ser virtuais, e não apenas as mediadoras das interações. Historicamente, a existência dos pósitrons foi prevista por Dirac em 1928, mesmo antes de essas partículas terem sido observadas. Após ter formulado sua equação relativística para o elétron, Dirac notou que as soluções inevitavelmente continham, também, elétrons de energia negativa. O que parecia um problema foi transformado em um triunfo da teoria quando Dirac interpretou essas soluções como fenomenologicamente equivalentes a antielétrons, ou ‘‘elétrons’’ de carga positiva24. A corroboração experimental dessa predição foi feita por Anderson em 1932, ao observar partículas que, sob um campo magnético, curvavam-se como se tivessem a mesma massa do elétron, porém carga oposta. A história do pósitron é, portanto, um dos muitos exemplos de partículas preditas teoricamente antes de serem detectadas experimentalmente, o que ilustra o caráter altamente preditivo dessas teorias. A Figura 23 ilustra a criação de um par elétron-pósitron observada em uma câmara de bolhas. O experimento é desenhado para detectar o rastro de partículas carregadas. Por isso, o rastro do fóton não aparece, embora possa ser deduzido pelo vértice de criação do par. As partículas estão submetidas a um campo magnético perpendicular ao plano da figura, e, por possuírem mesma massa e cargas opostas, são curvadas em direções opostas, mas com trajetórias de aproximadamente mesmo raio. Figura 23 Criação de um par elétron-pósitron visualizado em uma câmara de bolhas. Fonte: CERN. Esse fenômeno de aniquilação de pares resultando em radiação eletromagnética tem aplicação prática na medicina, nos chamados PET scans (PET é a sigla em inglês para Tomografia por Emissão de Pósitrons). Trata-se de uma modalidade de obtenção de imagens e dados sobre o funcionamento metabólico do organismo, que funciona da seguinte maneira [60]. Primeiramente, modifica-se uma molécula usualmente metabolizada pelo organismo (por exemplo, glucose) substituindo-se um de seus átomos por um elemento radioativo que decai por emissão de pósitrons (usualmente 18F). Essa substância é inserida intravenosamente no paciente, e o organismo, confundindo-a com glucose, redireciona-a a órgão vitais, onde será metabolizada. Ali, o elemento radioativo emitirá um pósitron, que se aniquilará com um elétron do corpo do paciente, emitindo dois fótons de radiação γ que serão observados pelo aparelho detector, como na Figura 24. Por conservação de momento, os fótons sempre são emitidos em direções opostas. O aparelho calcula o intervalo de tempo entre a detecção de cada fóton, e determina, assim, o local de onde o pósitron foi emitido. Faz-se, assim, um mapeamento da atividade metabólica do organismo, podendo-se determinar a integridade do tecido cerebral, a existência de tumores, o funcionamento cardiovascular, dentre outras aplicações. Figura 24 Esquema de funcionamento de um aparelho de Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET scan). Fonte: adaptado de [61]. 2.9. A carga efetiva do elétron Outra consequência da conversão de fótons em pares elétron-pósitron (e vice-versa) é a chamada “polarização do vácuo”, que tem uma importante consequência fenomenológica: a constatação de que a carga elétrica do elétron não é constante! Para entender melhor essa afirmação, considere o diagrama ilustrado na Figura 25, em que a propagação de um fóton é temporariamente interrompida pela criação de um par elétron-pósitron, que posteriormente se aniquila e dá origem novamente a um fóton que continua a se propagar. Esse processo ilustra que, devido à interação com o campo eletrônico, um fóton não pode ser visto apenas como uma excitação do campo eletromagnético. Sua propagação é afetada por sua interação com elétrons e pósitrons. E isso, por sua vez, tem impacto sobre a maneira como esse fóton intermedeia a interação eletromagnética entre cargas elétricas. Figura 25 Diagrama de Feynman ilustrando um possível processo ocorrendo durante a propagação de um fóton, temporariamente interrompida pela criação e posterior aniquilação de um par elétron-pósitron. Este é um exemplo de um diagrama com um laço. De fato, considere a interação entre uma carga q incidindo contra uma carga Q, que por simplicidade suporemos ser muito mais pesada, de modo que ela permanece essencialmente imóvel ao longo do processo. O eletromagnetismo clássico diz que essa interação é regida pela lei de Coulomb, ou seja, a energia potencial de interação é (15) V Coulomb ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r , com k ≈ 9×109N m2/C2 a constante de Coulomb. Esse comportamento é exatamente o que se obtém na eletrodinâmica quântica a partir do diagrama da Figura 26(a), como já discutido na seção 2.7.3. Ou seja, a teoria eletromagnética clássica está contida na QED como primeira aproximação, ao ignorarmos todos diagramas que contenham laços. Mas há vários outros processos também presentes na QED, como o ilustrado na Figura 26(b), que contribuem para a mediação da interação entre as cargas, e que portanto fornecem “correções quânticas” à predição da teoria clássica. Esses processos estão sempre presentes, independentemente de a interação ser macroscópica ou não. Quer dizer, é impossível “desligarmos” esses processos tipicamente quânticos e observarmos apenas os processos clássicos. Sendo assim, por que esses efeitos quânticos não são comumente observados em nosso dia a dia? Por que a lei de Coulomb é uma boa aproximação para interações macroscópicas? E, ainda mais importante: o quão pequenas têm que ser as distâncias envolvidas para que esses efeitos quânticos se manifestem mais perceptivelmente? Podemos responder essa questão recorrendo novamente ao conceito de virtualidade das partículas intermediárias, elaborado na seção 2.7.3. Naquela ocasião, definimos o “grau de virtualidade” de uma partícula de energia E, momento p→ e massa m como uma medida do quanto ela viola a relação relativística de massa-energia-momento, i.e. (16) virtualidade ≡ E 2 - | p → | 2 ⁢ c 2 - m 2 ⁢ c 4 . Assim, tudo se passa como se a partícula virtual tivesse uma massa diferente da correspondente partícula real. Por exemplo, é como se um elétron virtual tivesse massa diferente de me ≈ 9.1×10−31 kg. Uma partícula real é aquela para a qual o lado direito da equação (16) se anula. Figura 26 Dois processos possíveis de mediação da interação entre as cargas q e Q. (a) Diagrama responsável pela interação descrita no eletromagnetismo clássico. (b) Uma correção quântica oriunda da interação mútua entre o fóton e as excitações do campo eletrônico, que altera a propagação do fóton. Por incluir uma modificação na propagação do fóton, esse diagrama induz uma modificação da lei de Coulomb para a interação entre partículas carregadas. Isso também pode ser interpretado como uma alteração na “carga elétrica efetiva” das partículas interagentes. Interações de longa distância são mediadas predominantemente por fótons de baixa virtualidade, o que por sua vez implica em uma alta virtualidade para o par elétron-pósitron da Figura 26(b)25. Isso faz com que os efeitos desse diagrama sejam atenuados em comparação com o da Figura 26(a). Assim, para grandes distâncias, a interação é regida essencialmente pela lei de Coulomb, como esperado. A que distâncias a contribuição do diagrama com laço se torna relevante? Ora, só existe uma escala de energia característica desse processo, que é a energia de repouso do par elétron-pósitron, 2mec2. Essa energia está naturalmente associada, na teoria quântica, a uma escala de distância da ordem26 (17) r ˜ = ℏ c 2 m e c 2 = ( constante de Planck ) × ( velocidade da luz ) ( energia de repouso do par e + e - ) ∼ 2 × 10 − 13 m . O fato de essa escala de distância, característica do processo da Figura 26(b), envolver a constante de Planck e a velocidade da luz mostra que se trata de um efeito caracteristicamente quântico e relativístico. Como já poderíamos antecipar, trata-se de uma escala de distância associada ao comprimento de onda de um fóton com energia 2mec2. Nota-se que r~ é cerca de duas ordens de magnitude menor do que o típico raio atômico, portanto as partículas interagentes devem estar de fato muito próximas para que a modificação na propagação do fóton pela criação de pares intermediários seja perceptível. Essas previsões são confirmadas quando computamos as correções quânticas ao potencial de Coulomb para r≳r~ devido ao diagrama da Figura 26(b), resultando no chamado potencial de Uehling, (18) V ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r ⁢ ( 1 + α 2 ⁢ π ⁢ ( r ~ r ) 3 / 2 ⁢ e - r / r ~ + … ) . Aqui, α ≈ 1/137 é uma constante que dita a intensidade da interação eletromagnética27, e r~ é a distância característica ao processo quântico da Figura 26(b) que dá origem a essa correção. É fácil ver que, para distâncias muito maiores do que essa escala característica, r≫r~, o potencial de Uehling da equação (18) reduz-se ao potencial de Coulomb, como esperado. As reticências indicam que existem ainda outras correções advindas de processos ainda mais complicados, e que só serão notáveis a distâncias ainda menores. Essas correções quânticas devido à criação de pares elétron-pósitron virtuais em torno de uma carga elétrica podem ser interpretadas fisicamente como oriundas de uma blindagem da carga devido a um efeito de polarização do vácuo, como ilustrado na Figura 27. Suponhamos, por exemplo, que a partícula ao centro da figura seja um elétron. Devido a processos como os da Figura 26(b), em torno desse elétron existe uma multitude de pares elétron-pósitron virtuais que atuam como minúsculos dipolos, efetivamente reduzindo a densidade de carga do elétron e, portanto, a intensidade de sua interação eletromagnética com outras cargas. Diz-se que o elétron está sempre “vestido”, de modo que, quando dois elétrons interagem, a densidade de carga efetiva da interação é a da nuvem ilustrada na Figura 27, e não do elétron “nu” (ilustrado no centro da figura). Porém, à medida que os elétrons são lançados um contra o outro a mais altas energias, a interação se dá a distâncias cada vez menores, até que eventualmente (quando a energia do centro de massa for Ec.m.≳2mec2) um elétron começa a penetrar a nuvem de polarização do outro e enxerga uma maior carga efetiva, o que faz com que o comportamento da interação seja diferente do Coulombiano. O “raio efetivo” dessa nuvem de polarização em torno do elétron é a escala característica r~ associada ao diagrama 26(b), como já discutido anteriormente. Figura 27 Efeito de blindagem da carga do elétron devido aos pares elétron-pósitron virtuais. Fonte: cortesia de © INFN, Laboratori Nazionali di Frascati [62]. Essa variação da carga efetiva do elétron com a distância é, de fato, observada. Em processos que envolvem interações entre elétrons a altas energias, tudo se passa como se a carga do elétron fosse de fato maior do que a que observamos em nosso mundo de baixas energias. Uma pergunta plausível, neste momento, seria: e qual é, então, a carga do elétron “nu”? A resposta é que a carga do elétron tende a infinito à medida que a distância entre as cargas interagentes diminui. É claro que uma carga infinita não faz sentido fisicamente, e esse comportamento já nos indica que, a partir de uma certa escala de energia, essa descrição do elétron e suas interações em termos de partículas e campos já não é mais aplicável. Isso é análogo ao caso em que a descrição contínua de um sólido ou fluido deixa de ser válida a partir de certas escalas de distância, quando a estrutura atômico-molecular da matéria se torna relevante, e novos graus de liberdade precisam ser incluídos na descrição do sistema. Questões sobre o que é e quais são as propriedades de um elétron ‘‘nu’’ não podem ainda ser resolvidas conclusivamente, e é mais provável que, a partir de uma determinada escala de energia, a pergunta sequer faça sentido, pois o próprio conceito de ‘‘elétron’’ como hoje o entendemos deve ser modificado28. Uma importante consequência desse efeito de polarização do vácuo é o deslocamento de Lamb entre os níveis de energia dos orbitais 2S1/2 e 2P1/2 do átomo de hidrogênio. Se a interação elétron-núcleo ocorresse apenas via diagrama da Figura 26(a), esses orbitais seriam degenerados (i.e. possuiriam a mesma energia). No entanto, experimentos cuidadosos mostraram que há uma transição entre eles, correspondendo à emissão de um fóton de frequência ∼1057 MHz. Na QED, esse valor é predito corretamente com grande precisão levando-se em conta que o elétron no orbital S é capaz de penetrar o núcleo atômico29 e, com isso, sentir os efeitos do termo anômalo do potencial de Uehling. Isso não ocorre no orbital P, para o qual o potencial eletromagnético é simplesmente o potencial de Coulomb. Portanto, o nível de energia do orbital S fica ligeiramente deslocado do orbital P, dando origem a uma possível transição eletrônica que é, de fato, observada. A obtenção do valor correto para o deslocamento Lamb por meio do formalismo da QED constitui ainda um dos maiores triunfos dessa teoria, e um forte indicativo de seu poder preditivo. , é construída de maneira tal que percorre um caminho acessível aos estudantes, e com muitas interseções com o conteúdo usualmente ministrado no ensino médio, de modo que a Física de Partículas pode ser incluída na ementa sem sacrificar a aprendizagem de elementos de física clássica. Especificamente, nesta primeira parte partiremos da estrutura atômica da matéria, passando pela descoberta dos elétrons (protagonistas da QED), a interação eletromagnética (comparando-a com a interação gravitacional, mais familiar a estudantes que já tenham feito um curso de mecânica), ondas eletromagnéticas (e aplicações interdisciplinares), a dualidade onda-partícula e os fótons, culminando na descrição fundamental da QED em que a interação entre cargas elétricas é mediada pela troca de fótons. Na seção 3 3. Análise das intervenções 3.1. O contexto: o local e os sujeitos O Núcleo Cosmo-ufes, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), iniciou, no ano de 2017, um projeto de extensão chamado “Universo na Escola” [63], em que professores e pesquisadores da Universidade são convidados a ministrar palestras a estudantes do ensino médio da rede pública do estado do Espírito Santo. As palestras versam sobre tópicos atuais de pesquisa em Física, visando complementar a formação dos estudantes e despertar-lhes o interesse pelas Ciências em geral e, em particular, pela Física. Elas são elaboradas como atividade complementar eletiva a estudantes nas escolas participantes e realizadas após o período regular de aulas. Os autores elaboraram uma sequência sobre Física de Partículas para ser inserida no contexto desse projeto e foi ministrada por um dos autores a um grupo de, no máximo, quatorze estudantes do Centro Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral (CEEMTI) Profa Maura Abaurre, no município de Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Os(as) estudantes compunham uma turma mista contemplando as 1a, 2a e 3a séries do ensino médio. Alguns participantes já integravam um grupo com interesse prévio em Física, que vinha sendo acompanhado e orientado durante o ano pelo professor-coordenador. No entanto, no decorrer da sequência outros(as) estudantes se juntaram ao grupo, frequentemente a convite dos demais. A organização local foi realizada pelo professor-coordenador da área de Física na escola. Os encontros da sequência como um todo tiveram duração aproximada de uma hora em aulas extra-classe durante os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro de 2019, totalizando uma carga horária de 10 horas de atividades de Física de Partículas desenvolvidas com os(as) discentes. Cabe ressaltar que os(as) estudantes não tinham qualquer obrigação curricular de frequentar as aulas das intervenções, que constituíam atividade voluntária. Ainda ressaltamos que a sequência didática foi elaborada em formato de aulas e não se deu no formato usual de palestras, como geralmente ocorre na perspectiva do projeto de extensão mencionado. 3.2. Das aulas Na seção 2 apresentamos propostas de momentos didáticos para introduzir a temática de Física de Partículas e da Eletrodinâmica Quântica em particular, organizados de maneira tal que promoveram o engajamento dos(as) estudantes desde o primeiro instante da intervenção e de modo que os conceitos relevantes à Física de Partículas eram construídos conjuntamente com os(as) discentes, conectando-se a seus conhecimentos prévios. Em nossa intervenção na CEEMTI Profa Maura Abaurre, o conteúdo apresentado neste trabalho, com foco na Eletrodinâmica Quântica, serviu como base para a primeira parte da sequência didática elaborada sobre Física de Partículas. Por sua vez, tal parte foi dividida em três aulas, ministradas nos dias 16, 26 e 30 de setembro do ano de 2019, cada uma com duração entre 55 e 65 minutos. Os principais tópicos abordados em sala, e as respectivas subseções discutidas mais detalhadamente acima, encontram-se listadas nas Tabelas 1, 2 e 3. Tabela 1 Os momentos da primeira aula da sequência. Aula 1: Introdução à Física de Partículas Seção Momento 2.1 Busca por conhecimentos prévios 1 Nós “enxergamos” as partículas? Debate sobre o funcionamento da Ciência 2 Apresentação do Modelo Padrão da Física de Partículas 3 Alguns fenômenos e aplicações da Física de Partículas 4 2.2 O contínuo e o vácuo: embate sobre a estrutura da matéria 5 Os “quatro elementos” de Empédocles e Aristóteles 6 Atomismo de Demócrito, Leucipo e Epicuro 7 Sucessos da hipótese atomista: – a eletrólise da água e as leis ponderais 8 – a lei dos gases ideais 9 – o movimento browniano 10 Ciência como ferramenta de empoderamento 11 2.3 A divisibilidade do “indivisível” 13 O experimento de Thomson e a descoberta do elétron 14 2.4.1 Atração e repulsão entre elétrons 15 Lei de Coulomb e Gravitação de Newton: semelhanças e diferenças 16 Por que percebemos mais a força gravitacional do que a força elétrica? 17 Tabela 2 Os momentos da segunda aula da sequência. Aula 2: A natureza da luz – Parte I Seção Momento 2.4.2 Breve revisão da aula anterior 1 Ubiquidade da interação eletromagnética 2 Gravitação e eletromagnetismo predominam no nosso dia a dia 3 2.5 Conhecimentos prévios sobre o conceito de campo 4 O campo elétrico e a lei de Coulomb 5 Linhas de campo elétrico, lei de Gauss e o comportamento 1/r2 6 Analogia com fluxo de água de um chafariz (seção 2.4.1 revisitada) 7 A inexistência de monopolos magnéticos 8 As equações de Maxwell e a unificaçãoequações de Maxwell do eletromagnetismo 9 Ondas eletromagnéticas 10 Simulações: geração e recepção de ondas eletromagnéticas 11 Aplicações: ondas de rádio, wifi e telecomunicações em geral 12 A luz é uma onda eletromagnética 13 O espectro eletromagnético 14 Fazendo pipoca no microondas 15 A.1 Espectro de emitância solar: evolução da visão humana 16 por que as plantas são verdes? 17 Tabela 3 Os momentos da terceira aula da sequência. Aula 3: A natureza da luz – Parte II Seção Momento 2.6 Breve revisão das aulas anteriores 1 O que são partículas? O que são ondas? 2 A dualidade onda-partícula e o fóton 3 O fóton não tem massa 4 O elétron também é onda-partícula 5 O microscópio eletrônico 6 Trajetórias em Mecânica Quântica 7 A relação de de Broglie e a constante de Planck 8 Constantes fundamentais da Natureza 9 2.7.3 Interação eletromagnética: troca de fótons e diagramas de Feynman 10 2.8 O pósitron: a antipartícula do elétron prevista por Dirac 11 O poder preditivo de uma teoria científica 12 Aniquilação matéria-antimatéria 13 Antipartículas como partículas se movendo para trás no tempo 14 A criação de um par elétron-pósitron 15 A relação massa-energia de Einstein 16 Raios-X e tomografia PET–scan: são perigosos? 17 É muito importante ressaltar que as aulas não foram meramente expositivas mas o professor adotou uma postura amplamente dialógica com os(as) alunos(as), a partir da qual diversos momentos citados nas tabelas emergiram organicamente da discussão com os(as) estudantes e das respostas às interrogações e propostas de debates. Por exemplo, durante o primeiro momento, em que os(as) estudantes se expressaram sobre seus conhecimentos prévios da temática, foram citadas “partículas subatômicas”, ao que o professor rebateu com a pergunta “E como sabemos que a matéria é composta por átomos?”. Essa questão suscitou uma breve discussão sobre como o conhecimento científico consiste de modelos, que devem fazer previsões testáveis e, mais importante, promover um empoderamento daqueles que portam tal conhecimento. Modelos são acatados ou suplantados de acordo com o nível de empoderamento que promovem. Essa situação foi, então, ilustrada na discussão dos sucessos empíricos da teoria atômica, enfatizando-se que não precisamos “enxergar” um átomo para saber que existem, bastando testar alguns “efeitos colaterais” preditos pelo modelo. No caso, as leis ponderais constituem forte evidência de que as reações químicas são meros rearranjos de átomos, e não metamorfoses de um contínuo. Outro exemplo são os momentos 8 e 9 da aula 2. Aqui, ao invés de simplesmente expor as equações de Maxwell, o professor perguntou aos alunos onde se encaixaria o magnetismo, que ainda não havia se manifestado a não ser no nome da interação eletromagnética. Já tendo discutido a lei de Gauss para campos elétricos, o professor propôs aos(às) alunos(as) formularem a lei análoga para campos magnéticos, informando-lhes apenas que monopolos magnéticos não existem. Isso estimulou uma interessante discussão sobre como equações matemáticas são expressões de fatos físicos em uma outra forma de linguagem. Houve certa dificuldade por parte dos(as) estudantes em construir essa formulação matemática da lei de Gauss para campos magnéticos, mas, guiados pelo professor, foi possível obter o resultado desejado. Seguiu-se, então, uma discussão subsequente sobre as outras leis de Maxwell, mas dessa vez expressas verbalmente de maneira qualitativa, conforme discutido na seção 2.4. Por fim, outro exemplo é o momento sobre “Trajetórias em Mecânica Quântica” na aula 3. Essa discussão emergiu de uma pergunta sobre a aparente contradição entre a inexistência de trajetórias na descrição quântica das partículas, e a observação de “trajetórias” no mundo clássico ou mesmo em experimentos de elétrons se movendo em câmaras de bolhas. O questionamento tornou-se uma oportunidade para discutir mais aprofundadamente o princípio da incerteza de Heisenberg nesse contexto, mostrando como a aparente trajetória do elétron não consiste em uma linha, mas em um tubo com espessura finita correspondendo à incerteza em sua localização. Uma análise detalhada das narrativas presentes em sala de aula, considerando as participações dos estudantes, as trocas com o professor e colegas, e diversas outras observações sobre todas as aulas da sequência didática será publicada em trabalho futuro dos autores. 3.3. Metodologia e coleta de dados O percurso metodológico adotado em nossa análise possui cunho qualitativo e caráter de estudo de caso. A pesquisa qualitativa considera relevante todos os sujeitos envolvidos, os significados e os pontos de vista atribuídos às situações a partir de dados coletados diretamente no ambiente natural de ação [64]. Obtivemos autorização da Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo e da diretoria da escola para tomar notas durante as intervenções sobre as interações entre os(as) discentes, seus níveis de interesse e de atenção, as perguntas realizadas, e demais reações. A coleta de dados ocorreu a partir de observações registradas durante as aulas em um diário de campo, contemplando aspectos descritivos e reflexivos dos sujeitos envolvidos, dos objetos, do espaço, das atividades e dos acontecimentos [64, 65], bem como reflexões posteriores às intervenções sobre relações entre tais aspectos, sobre atividades para casa e interações imediatamente antes e após as intervenções. A vivência com o local onde as ações se desenvolveram favoreceu uma metodologia de estudo de caso, ideal quando se pretende conhecer as perspectivas de significados dos sujeitos e a identificação de relações causais e padrões em contextos complexos que não permitem a utilização de levantamentos e experimentos [66]. Em nosso caso focamos na compreensão de conceitos-chave e suas relações com tecnologia, sociedade e meio-ambiente, avaliando o surgimento de indicadores de alfabetização científica e de engajamento ao longo das aulas, bem como relações entre esses indicadores. A fim de manter o sigilo e preservar as identidades dos participantes, adotamos nomes fictícios para os estudantes, fazendo referência a cientistas que atuaram na área da Física de Partículas e/ou contribuíram para o seu desenvolvimento. 3.4. Os indicadores de alfabetização científicae de engajamento As observações realizadas durante as intervenções incluíram a análise dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento demonstrados pelos estudantes para avaliar a viabilidade, a efetividade e as potencialidades da inclusão da temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio. Novamente ressaltamos que, para além do conteúdo abordado em sala de aula, as intervenções incorporaram uma postura amplamente dialógica do professor e acreditamos que essa combinação favoreceu a viabilidade e a efetividade de nossa proposta. 3.4.1. Indicadores de alfabetização científica Os indicadores de alfabetização científica utilizados se alicerçam na perspectiva freireana de alfabetização científica [67, 68], que destaca o(a) alfabetizado(a) cientificamente como aquele(a) que: compreende as relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente; compreende a natureza da Ciência; compreende a ética que envolve o trabalho de um(a) cientista; e possui conhecimentos básicos sobre as ciências para atuar no mundo. Em qualquer processo de ensino-aprendizagem que busca incorporar a alfabetização científica identificam-se indicadores que demonstram o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos associados ao trabalho de cientistas que, de acordo com a ref. [6], podem ser divididos em três blocos de ações: ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação; ações que estruturam o pensamento científico; ações que buscam o entendimento da situação analisada. No primeiro bloco de ações podem ser identificados os seguintes elementos: a seriação de informações, a organização de informações e a classificação de informações. O primeiro busca estabelecer as bases para uma pesquisa, um conjunto de dados, por exemplo. O segundo elemento aparece quando se discute a metodologia de uma pesquisa, um arranjo das informações. Já o terceiro elemento aparece quando se pretende hierarquizar as informações, estabelecendo relações entre elas. O segundo bloco de ações envolve as formas de organizar o pensamento, seja através do raciocínio lógico (relacionando a forma das ideias) e/ou do raciocínio proporcional (ideias e variáveis são relacionadas). Já o terceiro bloco contempla o maior número de elementos: o levantamento de hipóteses, o teste de hipóteses, a justificativa, a previsão e a explicação. O levantamento de hipóteses ocorre nos momentos em que suposições sobre determinada ideia ou assunto surgem, e o teste de hipóteses ocorre quando essas hipóteses são colocadas em xeque. Já a justificativa aparece quando ideias são incorporadas a uma linha de raciocínio que fortalecem uma determinada afirmação. A etapa da previsão ocorre quando se sugere que algum evento seja proveniente de alguma ideia e/ou fenômeno em análise. O último elemento nesse bloco de ações, a explicação, propõe reunir e relacionar todos os elementos anteriores: informações, ideias, hipóteses, previsões. Tais elementos do fazer científico foram considerados em nossa análise como indicadores de alfabetização científica e são resumidos na Tabela 4. Ressaltamos que cada um desses indicadores pode se manifestar independentemente dos outros em sala de aula. Além de serem independentes entre si podem, inclusive, aparecer concomitantemente. Tabela 4 Os indicadores de alfabetização científica a partir de elementos do fazer científico. Ação do fazer científico Indicadores de alfabetização científica (Elementos do fazer científico) Trabalho com os dados obtidos em umainvestigação Seriação de informaçõesOrganização de informaçõesClassificação de informações Estruturação dopensamento científico Raciocínio lógicoRaciocínio proporcional Entendimento dasituação analisada Levantamento de hipótesesTeste de hipótesesJustificativaPrevisãoExplicação 3.4.2. Indicadores de engajamento O engajamento escolar possui natureza multifacetada e é fruto da complexa interação social do sujeito com o ambiente escolar no qual está inserido, as situações que presencia e os outros sujeitos desse espaço. Além disso, engloba todo um processamento psicológico do sujeito com relação aos estímulos e quaisquer modificações que alterem esse ambiente e suas experiências. Dessa maneira, um engajamento positivo por parte dos estudantes está diretamente ligado à existência de estímulos e situações de aprendizagem favoráveis ao seu desenvolvimento. Considerar a incidência de indicadores referentes ao engajamento dos estudantes auxilia na compreensão das experiências no ambiente escolar, na preparação de atividades, e na compreensão da efetividade e das potencialidades do processo de ensino-aprendizagem adotado. A literatura sobre o assunto contempla três tipos de engajamento que se relacionam de forma dinâmica e não podem ser pensados como processos isolados: o comportamental, o emocional e o cognitivo [69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82]. Listamos na Tabela 5 os indicadores de engajamento que consideramos abaixo na apresentação de nossos resultados quanto à viabilidade, à efetividade e às potencialidades da inserção da temática de Física de Partículas em sala de aula do ensino médio. Tabela 5 Os indicadores de engajamento. Indicadores de engajamento Comportamental Emocional Cognitivo Participação nas aulas Emoção Investimento no aprendizado Participação/execuçãonas/das tarefas de sala Identificação coma escola e/ou colegas Autonomia Participação/execuçãonas/das tarefas de casa Identificação com o professor Desejo de ir além do básico Atribuição de valores à Físicae/ou às Ciências em geral Uso de estratégias 3.5. Resultados As incidências dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento serão apresentadas apenas para as três primeiras aulas da sequência, foco deste trabalho, relacionando-as com algumas observações da sequência como um todo. Uma elaboração detalhada e a análise aprofundada da incidência desses indicadores ao longo de toda a sequência será publicada separadamente. Os resultados referentes aos indicadores de alfabetização científica mais notáveis nas três primeiras aulas da sequência são apresentados na Figura 28. Entre as ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, a mais presente foi a de seriação de informações. Esse resultado é bastante natural considerando que o bloco de aulas em questão se refere às primeiras aulas da sequência, com diversos momentos em que os(as) alunos(as) buscavam estabelecer as informações bases, pois ou estabeleceram seus primeiros contatos com alguns dos tópicos ou relembraram conhecimentos prévios, ressignificando-os no contexto das discussões ocorridas em sala de aula. Com relação às ações que estruturam o pensamento científico, percebemos uma maior incidência do raciocínio proporcional. Isso se deu principalmente por conta do estímulo dado para o uso do raciocínio proporcional por parte dos(as) alunos(as) quando uma abordagem qualitativa sustentou a discussão sobre as semelhanças e diferenças da lei de Coulomb com a lei da gravitação universal de Newton na primeira aula. Também houve forte ocorrência desse indicador durante a discussão da segunda aula sobre a expressão da lei de Coulomb, quando foram analisados casos limites, como o de duas cargas elétricas colocadas muito próximas uma da outra. Já com relação às ações que buscam o entendimento da situação analisada, a maior incidência ficou por conta do levantamento de hipóteses, principalmente devido à primeira e à segunda aulas. Na primeira aula, esse indicador apareceu mais no momento de busca pelos conhecimentos prévios dos(as) estudantes, quando eles ficaram bem à vontade para responder algumas questões-chave propostas pelo docente, com o intuito de entender o que os(as) alunos(as) já conheciam sobre Física de Partículas, e também para discutirem entre si, complementando as falas dos(as) colegas com sugestões que avançavam a conversa inicial. Já na segunda aula, esse indicador apareceu com maior frequência nos momentos em que o professor estimulou os(as) alunos(as) a elaborarem uma lei de Gauss para o magnetismo após a discussão sobre a inexistência de monopolos magnéticos. Também houve alta incidência desse indicador no momento em que a simulação interativa com as ondas eletromagnéticas foi utilizada [43], bem como no momento em que conversaram sobre o que caracterizava uma onda. Figura 28 Indicadores de alfabetização científica observados nas intervenções realizadas. A legenda está ordenada no sentido anti-horário do gráfico a partir de “seriação de informações” (azul escuro, 20,07%). Na Figura 29 apresentamos a alta incidência dos indicadores de engajamento manifestados durante as intervenções, para cada um dos tipos de engajamento, e para os cinco estudantes mais presentes nas aulas da sequência de Física de Partículas como um todo. Estes serão denominados com os nomes fictícios Werner, Albert, Marie, Peter e Emmy, e estiveram presentes em 10, 10, 8, 7 e 6 das 10 aulas da sequência, respectivamente. Figura 29 Incidência dos indicadores de engajamento comportamental, emocional e cognitivo nas três primeiras aulas da sequência didática proposta para os cinco estudantes mais presentes nas intervenções. Note que o estudante Werner se destacou apresentando altas incidências em todos os indicadores. Optamos por reescalonar essas incidências no gráfico e, portanto, os números totais para esse estudante são obtidos a partir dos números apresentados multiplicados por um fator 3. As maiores incidências de engajamento comportamental e cognitivo partiram do estudante Werner. Marie, Peter e Emmy demonstraram incidências similares para cada um dos tipos de engajamento. Já Albert foi o que menos participou das três primeiras aulas entre os cinco alunos. No entanto, a partir da quarta aula (sobre física nuclear, que será abordada em futura publicação) este aluno revelará um enorme salto na incidência de engajamento comportamental. Além disso, a partir da quinta aula da sequência, ele também revelará um aumento significativo dos indicadores de engajamento emocional e, principalmente, de engajamento cognitivo. Considerando todas as aulas da sequência que serão abordadas em futuras publicações, observamos em Albert uma significativa evolução nas incidências de todos os tipos de engajamento e, junto a Werner, que demonstrou engajamento ao longo de todas as aulas da sequência, ele irá se configurar com um dos estudantes com maiores níveis de engajamento da sequência. Esse crescimento progressivo em seus índices de engajamento é demonstrativo do sucesso da sequência, que, aliada às intervenções dialógicas do docente, mostra-se capaz de trazer os(as) estudantes para as aulas, mesmo aqueles(as) mais inibidos, tímidos e/ou inseguros em um primeiro momento. apresentamos uma análise da viabilidade de nossa proposta, bem como sua efetividade e suas potencialidades, considerando um estudo de caso em que as atividades aqui propostas foram aplicadas em uma sala de aula de ensino médio de uma escola pública do Espírito Santo. Considerando alguns indicadores presentes na literatura para avaliar indícios de alfabetização científica e de engajamento dos estudantes, veremos que a sequência, quando aliada a uma postura dialógica por parte do(a) docente, pode proporcionar elevados índices de engajamento e indícios de alfabetização científica. A seção 4 4. Conclusões Neste trabalho apresentamos material referente à primeira parte de uma proposta de sequência didática sobre Física de Partículas para o ensino médio. A sequência didática de 10 aulas contemplou também outras temáticas da Física de Partículas: a Física Nuclear; a interação forte (QCD, da sigla em inglês Quantum Cromodynamics); e a interação fraca, o bóson de Higgs e tópicos além do Modelo Padrão da Física de Partículas. Estão em preparação outras publicações com material similar ao apresentado neste trabalho para essas outras temáticas. A primeira parte dessa sequência, foco do presente trabalho, lidou com a Eletrodinâmica Quântica. Na seção 2 apresentamos os momentos didáticos que podem ser explorados em sala de aula dentro desse contexto. Na seção 3 avaliamos a viabilidade e a efetividade de nossa proposta a partir de aplicação própria deste material a um grupo misto de 14 alunos das três séries do ensino médio de uma escola pública estadual do Espírito Santo. O material apresentado neste trabalho serviu como base para três aulas com duração aproximada de uma hora cada, e foi utilizado em sala de aula aliado a uma postura dialógica do docente e a uma perspectiva de ensino-aprendizagem que contemplou a alfabetização científica dos estudantes. As aulas incorporaram elementos para fomentar uma discussão sistematizada sobre o assunto e seus conceitos-chave, sobre a natureza e a ética das ciências e os fatores recorrentes na prática científica, bem como sobre as relações da temática com Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente. Percebemos um bom entendimento dos conceitos-chave referentes ao material aqui apresentado ao avaliarmos as interações em sala de aula, que serão publicadas à parte. Os resultados da seção 3 revelam a presença de diversos indicadores de alfabetização científica bem como de engajamento dos estudantes. Tais resultados indicam a viabilidade de se incorporar temáticas da física moderna e contemporânea no ensino médio, satisfazendo um longo desejo dos próprios estudantes que, curiosos, acabam se envolvendo em um processo de ensino-aprendizagem que os empodera para participarem do processo coletivo de construção histórico-social da Ciência e os insere em discussões relevantes à realidade concreta do mundo contemporâneo. Acreditamos que a efetividade das aulas foi fruto da combinação da postura dialógica do docente aliada à perspectiva voltada à alfabetização científica dos estudantes. Nota-se que o material apresentado neste artigo é um pouco mais extenso do que aquele que ministramos em sala de aula. Isso se deve a dois fatores. Por um lado, nossas aulas ocorreram em um contexto de um projeto de extensão, envolvendo um grupo heterogêneo de estudantes, com o propósito de servir-lhes como introdução à Física de Partículas. Nesse formato, não julgamos cabível aprofundar discussões sobre o eletromagnetismo clássico, mas tampouco se poderia pressupor que o grupo já estivesse familiarizado com esse conteúdo. Ao mesmo tempo, por limitações de tempo disponível, julgamos inadequado discutir a QED enquanto teoria de campo (seção 2.7.1) ou aprofundar a discussão sobre o conceito de fóton virtual, apesar de tal discussão fornecer uma rica ferramenta para compreensão da interação eletromagnética em termos de microfísica. Em suma, foi necessário encontrar um meio termo, de acordo com nossas circunstâncias concretas. Por outro lado, a outros(as) docentes, trabalhando em situações diferentes, pode ser mais conveniente expandir a discussão sobre algumas seções, e por isso disponibilizamos material que auxilie nesse propósito. Estamos, com isso, aderindo ao princípio norteador deste trabalho, que é elaborar um material que sirva não como receita a ser seguida linear e mecanicamente, mas como fonte auxiliar ao planejamento de aulas sobre esse assunto, um produto orgânico que sirva de matéria prima a ser trabalhada pelo(a) docente, ao invés de fórmulas rígidas, engessadas. Uma valiosa sugestão de material complementar sobre a QED voltada ao público leigo, extremamente instrutivo e educativo, pode ser lido no livro de um dos pioneiros dessa teoria: Richard Feynman, “A estranha teoria da luz e da matéria” [57]. Além do material e dos resultados exploratórios relativos aos indicadores de alfabetização científica e de engajamento apresentados neste trabalho, incluímos um apêndice com propostas de atividades que podem ser incorporadas em sala de aula dentro da temática de Eletrodinâmica Quântica. Nossos resultados mostram conclusivamente que, aliando-se a utilização (e adaptação) do presente material a uma postura dialógica por parte do(a) docente, é possível engajar os(as) estudantes no processo de ensino-aprendizagem e promover a alfabetização científica em seu sentido pleno. é dedicada às nossas conclusões. No apêndice, apresentamos propostas de atividades relacionadas ao conteúdo sugerido e que envolvem e desenvolvem múltiplas competências do(a) estudante.

2. Propostas de momentos didáticos

Mencionamos a seguir alguns momentos didáticos que podem ser explorados em sala de aula contendo a temática de Eletrodinâmica Quântica no contexto da Física de Partículas. O material foi elaborado com intuito de servir como referência sugestiva ao docente, ficando este livre para adequá-lo a seus propósitos, ao invés de ter que segui-lo como receita impositiva.

Dessa forma, há várias possibilidades de se adotar a proposta deste trabalho em sala de aula. Por suposto, uma opção seria a inserção de uma sequência de aulas sobre Física de Partículas ao final do terceiro ano letivo do ensino médio, após se ter discutido extensivamente eletromagnetismo e aspectos da teoria quântica. A Física de Partículas seria, assim, um apêndice ao conteúdo de física moderna. A desvantagem dessa abordagem é privar o(a) aluno(a), durante todo o decurso do ensino médio, do contato com aspectos fascinantes da física contemporânea, exceto por poucas aulas ministradas em um momento em que ele(a) possivelmente já tenha formalizado a escolha do curso que pretende seguir em nível superior. Uma segunda possibilidade seria ministrar essas aulas a grupos de alunos(as) que manifestem interesse prévio em seguir carreira científica. Pode-se, ainda, discutir a temática em disciplinas eletivas em escolas de tempo integral. Note que esse foi o caso da prática dos presentes autores. Ainda uma outra abordagem possível consiste na inserção de discussões conectadas à Física de Partículas em aulas que versam sobre outras grandes temáticas mais tradicionais do ensino médio. Por exemplo, pode-se complementar uma sequência didática sobre eletromagnetismo mencionando a interpretação dessa interação sob a perspectiva da Eletrodinâmica Quântica, ou introduzir tal discussão em uma aula sobre o fóton, o efeito fotoelétrico e/ou outros elementos de física moderna. De fato, o presente trabalho já está estruturado de maneira propícia a essa abordagem, por estar dividido em propostas de momentos didáticos maleáveis, adaptáveis aos propósitos do(a) docente. Antecipa-se, assim, uma resposta à previsível crítica de que a restrita carga horária de Física no ensino médio impossibilita a introdução de temáticas para além das necessárias à preparação dos(as) estudantes para exames qualificatórios, como ENEM e vestibulares. Por fim, há ainda uma outra possibilidade de leitura deste trabalho, ainda mais ousada e mais abrangente, qual seja: utilizar a Física de Altas Energias não apenas como um conteúdo particular, mas como um dos panos de fundo para o ensino de todo o conteúdo de Física do ensino médio.

O conteúdo das seções 2.1 2.1. Introdução ao tema O primeiro momento da sequência propicia a oportunidade de diálogo com os(as) estudantes a fim de averiguar sua familiaridade com a grande temática de Física de Partículas, que aparece frequentemente em livros de divulgação científica ou mesmo em seriados televisivos, canais de plataformas de compartilhamento de vídeos e sítios que discutem ciência. Os(as) estudantes conseguem imaginar o quê (e quais) são essas partículas a que a temática se refere? Já tiveram contato com alguma literatura que falasse sobre quarks, neutrinos, bóson de Higgs, etc.? Já ouviram falar sobre o LHC (Grande Colisor de Hádrons), ou outros aceleradores de partículas e colisores? Interessam-se pelo tema? Por que é relevante estudá-lo? É um momento de deixar os(as) alunos(as) se expressarem, seja publicamente ou em pequenos grupos com os(as) colegas, de modo a se divertirem ao se envolverem com a temática. Após essa discussão, convém apresentar, a título de motivação, alguns fenômenos que se pode explicar graças à nossa compreensão da estrutura da matéria em diversas escalas, incluindo aplicações tecnológicas que envolvem Física de Partículas. Por exemplo, a descrição atômica da matéria nos permite explicar a origem das forças normais de resistência dos materiais enquanto forças eletromagnéticas repulsivas entre orbitais moleculares. Ou seja, explica-se fenômenos simples e cotidianos, como o fato de não atravessarmos uma cadeira quando nela sentamos;a Eletrodinâmica Quântica (QED) nos dá uma descrição muito acurada do comportamento da luz, possibilitando-nos manipulá-la para o desenvolvimento de lasers desde os mais simples, vendidos comercialmente, aos mais potentes, utilizados em escala industrial para diversos fins;a mesma QED prevê a existência de partículas chamadas pósitrons, que têm aplicação medicinal nos chamados PET scans3 ;o brilho do Sol é devido a reações relacionadas às interações nucleares fraca e forte, que também estão relacionadas a decaimentos radioativos, com aplicações na datação de fósseis ou rochas, e em inúmeros aparatos cotidianos, como detectores de fumaça;o poder preditivo da física nuclear é ilustrado de modo estarrecedor pela capacidade destrutiva dos armamentos nucleares, ou pela capacidade de geração de energia a partir de poucos quilogramas de matéria em usinas nucleares. Todos esses fenômenos e aplicações tecnológicas poderão ser explicados em maiores detalhes em momentos posteriores da sequência didática, quando o assunto relevante for discutido em maior detalhe. à 2.6 2.6. Dualidade onda-partícula A discussão da temática de ondas eletromagnéticas abre a possibilidade de se adentrar em temas de física moderna, como a teoria da relatividade restrita ou a dualidade onda-partícula em mecânica quântica. Embora ambos sejam de suma importância para a Física de Partículas, nesta sequência didática focamos no aspecto quântico visando a introdução do conceito de fóton. Para propostas didáticas visando o ensino de relatividade no ensino médio vide refs. [46, 47, 48]. A dualidade onda-partícula da luz pode ser introduzida de diversas maneiras. Invocando-se o experimento de Young da fenda dupla, pode-se, em um primeiro momento da aula, discutir as expectativas dos(as) alunos(as) quanto à imagem formada no aparato de incidência, quando o objeto incidente for uma partícula clássica (Figura 14) e quando for uma onda (para esse caso pode-se explorar, junto aos(às) alunos(as), a simulação interativa disponível em [49]). Em um segundo momento da aula, discute-se (ou realiza-se em sala) o experimento de Young, que detectou franjas de interferência para a luz, mostrando tratar-se de um fenômeno de natureza ondulatória. Posteriormente, discute-se o que ocorre quando se reduz suficientemente a intensidade do feixe luminoso, resultando nos padrões mostrados na Figura 15. As franjas são reveladas aos poucos, a partir de detecções de partículas pontuais, revelando assim o caráter corpuscular da luz (para imagens e vídeo ilustrativo que podem ser usados em sala de aula, consultar ref. [50]). Figura 14 Padrão esperado para um feixe de partículas clássicas lançadas contra uma tela com duas fendas. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Figura 15 Para partículas quânticas, o padrão de interferência é inicialmente imperceptível, mas emerge paulatinamente à medida que mais estatística é coletada pelo experimento. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio público. A discussão do experimento da fenda dupla em sala de aula cria, também, uma excelente oportunidade de desmistificar a mecânica quântica, o que é especialmente importante levando-se em conta a quantidade de charlatães que usam os resultados não-intuitivos desse experimento para propor que a Física corrobora suas interpretações esotéricas do mundo. Mais especificamente, o surgimento de um padrão de interferência para um feixe de partículas pode ser explorado para se discutir a necessidade de se abandonar o conceito de trajetórias bem definidas (que deveria levar ao padrão dado pela Figura 14), e, consequentemente, a necessidade de se reformular a mecânica. Pode-se usar esse gancho para discutir o princípio da incerteza de Heisenberg, e como esse princípio explica o fenômeno de destruição do padrão de interferência quando um observador detecta por qual fenda a partícula passou (cf. ref. [44], Vol. III, Seção 1.8). Também é essencial esclarecer aos estudantes que não se deve pensar em partículas quânticas como “bolinhas” movendo-se classicamente. A propósito, fazer uso de analogias com a mecânica clássica geralmente leva a uma confusão de conceitos [51]. Os fótons devem ser vistos como pacotes de energia e momento. O mesmo vale para todas as partículas elementares. Isso ficará mais claro quando se apresentar a definição de partícula no paradigma de Teorias Quânticas de Campos, como a Eletrodinâmica Quântica, que será apresentada na seção seguinte. Outra evidência em favor do caráter corpuscular da luz é o efeito fotoelétrico/fotovoltaico. Por constituir o princípio básico do funcionamento de células fotovoltaicas, essa temática pode ser abordada em um contexto de aula investigativa [52] ou, ainda, em diálogo mais amplo com outras disciplinas escolares em contexto CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) [53]. Uma proposta de tal atividade encontra-se delineada no apêndice A.2. Ademais, a discussão do efeito fotoelétrico permite a apresentação da relação de Einstein para a energia dos “pacotes de onda eletromagnética”, (8) ( energia da partícula ) = ( constante ) × ( frequência da onda associada ) , relação que quantifica a dualidade ao associar uma grandeza tipicamente ligada a partículas a uma propriedade ondulatória. Seja qual for o caminho escolhido, o objetivo a se atingir é introduzir o conceito de fótons enquanto partículas da radiação eletromagnética. é parte da ementa usual do ensino médio, com a qual os(as) docentes certamente estão familiarizados. Nessas seções, apenas sugerimos uma possível abordagem desses tópicos com ênfase na temática relacionada à Física de Partículas. Já as seções 2.7 2.7. Eletrodinâmica Quântica 2.7.1. O campo eletromagnético quântico A introdução do conceito de fóton implica, em um primeiro momento, em uma ambiguidade na descrição da radiação eletromagnética, que passa a ser ao mesmo tempo tratada como oscilação de um campo clássico e como ente com propriedades quânticas11. Como o caráter quântico dos fótons poderia emergir da propagação de um campo clássico? Essa inconsistência aponta para a necessidade de se quantizar o campo eletromagnético, i.e. descrevê-lo inteiramente de acordo com o paradigma quântico. A teoria quântica que descreve a interação entre partículas carregadas (por ex. elétrons) e o campo eletromagnético quantizado é chamada de Eletrodinâmica Quântica (Quantum Electrodynamics ou QED em inglês). Na QED, o campo eletromagnético passa a ser visto como uma ‘‘superfície’’ tridimensional12 vibratória que preenche todo o volume do espaço, análoga à superfície de um instrumento musical de percussão, como a pele de um tambor. À parte da dimensionalidade -- o campo preenche todo o espaço, enquanto a pele percussiva é plana, bidimensional --, a única (e crucial) distinção se deve ao caráter clássico das vibrações do instrumento musical e ao caráter quântico do campo quantizado13. A partir dessa analogia, e da compreensão de suas limitações, pode-se entender conceitos fundamentais da QED (e de Teorias Quânticas de Campos em geral). Primeiramente, assim como a superfície percussiva possui um estado em que não há quaisquer vibrações e nenhum som é emitido, também o campo quântico possui um estado fundamental, que é chamado de estado de vácuo (a motivação para essa nomenclatura ficará clara a seguir). No entanto, note que, por se tratar de um objeto quântico, não é possível afirmar que o campo no estado fundamental está em repouso. O princípio da incerteza garante que, mesmo no estado fundamental, há vibrações do campo, associadas à chamada “energia de ponto-zero”. Isso significa que o vácuo quântico tem energia, fato que tem consequências observáveis e aplicações práticas/tecnológicas, tais como: o efeito Casimir, que consiste na atração de duas placas metálicas, eletricamente neutras, imersas no vácuo. A atração se deve à modificação da energia do vácuo quântico na presença das placas. Mais especificamente, quanto mais próximas as placas, menor a energia do vácuo na região por elas limitadas; o processo de emissão espontânea de um fóton por um átomo no estado excitado, que dá origem aos espectros atômicos. No formalismo de Schrödinger da mecânica quântica, todas as camadas eletrônicas do átomo correspondem a estados estacionários, e a probabilidade de transição entre eles é nula. A transição do elétron entre camadas, e a consequente emissão de um fóton, só ocorre devido à interação do elétron com o vácuo eletromagnético quântico; por possuir energia, a relatividade geral de Einstein garante que o vácuo quântico gravita . Essa energia do vácuo age como uma constante cosmológica, contribuindo para a expansão acelerada do Universo. Entretanto, quando se compara a previsão teórica para a energia do vácuo quântico com o valor da constante cosmológica medido com base em observações da expansão do Universo, há uma discrepância de 120 ordens de magnitude! Ou seja, trata-se da pior previsão da história da Física! Esse é o chamado problema da constante cosmológica, ainda sem solução [54, 55]. Além do estado fundamental, uma superfície vibratória pode, obviamente, oscilar de diversas maneiras. Dentre elas, destacam-se os chamados modos normais de vibração, associados a ondas estacionárias, em que todos os pontos da superfície oscilam com a mesma frequência, como exemplificado ilustrativamente na Figura 16. Em um instrumento musical, um modo normal está associado a uma nota musical específica: quando se ataca a pele de um tambor, ela vibra em um modo normal e emite som da frequência para a qual o instrumento foi previamente afinado. No caso de um campo quântico, um modo normal de vibração corresponde a uma partícula de energia e momento definidos. Note o caráter explicitamente dual dessa descrição, que traça paralelos diretos entre partículas com energia definida e modos de oscilação de determinada frequência. O fato de a vibração não estar localizada em nenhuma região, mas ocorrer em todo o espaço ocupado pelo campo, como ilustrado na Figura 16, está de acordo com o esperado pelo princípio da incerteza de Heisenberg quando aplicado a uma partícula cujo momento linear é conhecido precisamente. Figura 16 Momentos distintos de um ciclo oscilatório associado a um modo normal de vibração para uma superfície bidimensional. No caso de um instrumento de percussão, esse padrão corresponderia a uma nota musical (i.e. uma frequência sonora) específica. Para um campo quântico, corresponde a uma partícula com energia e momento específicos. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Essa interpretação de partículas como excitações do campo em modos normais de vibração justifica, ainda, a nomenclatura de vácuo para o estado fundamental, por corresponder ao caso em que o número de partículas se anula. Por fim, enfatiza-se que a mesma interpretação se aplica a partículas materiais: o elétron também é um modo normal de vibração de um campo fundamental, que podemos chamar de campo eletrônico ou campo do elétron. Isso explica, aliás, por que todos elétrons do Universo são idênticos: todos são vibrações de um único campo fundamental. O Modelo Padrão da Física de Partículas, embasado no formalismo de Teoria Quântica de Campos, é ao mesmo tempo uma teoria de partículas e uma teoria de interação entre campos. 2.7.2. Fótons virtuais como mediadoresda interação eletromagnética Em discussões anteriores (vide seções 2.4.2 e 2.5), foi apresentada a ideia de que a matéria não interage por contato direto entre seus constituintes, mas à distância, mediada por campos de interação, como o campo eletromagnético. Sob a perspectiva da QED, isso se traduz como a ausência de autointeração do campo de elétrons. Ao invés disso, a interação direta do campo eletrônico se dá com outro(s) campo(s), e a repulsão entre dois elétrons nada mais é do que um efeito colateral da interação de ambos com um campo intermediário. Esse processo de interação na QED está representado esquematicamente na Figura 17. Os dois picos mais protuberantes, de cor laranja, representam elétrons, i.e. excitações do campo eletrônico14, e o campo de fundo, de cor verde, corresponde ao campo eletromagnético. Devido à interação entre os dois campos, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz uma “nuvem” de excitações do campo eletromagnético ao seu redor, como na Figura 17(a). À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético (b), causando a mútua repulsão (c). Figura 17 (a) Dois elétrons (picos mais protuberantes, de cor laranja) afastados um do outro. Devido à interação entre o campo de elétrons e o campo eletromagnético, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz excitações do campo fotônico ao seu redor. (b) À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético, causando a mútua repulsão. (c) Elétrons novamente distantes após a interação. Dá-se o nome de fóton virtual a qualquer excitação do campo eletromagnético que não corresponde a um modo normal de vibração, tais como as excitações do campo eletromagnético ilustradas na Figura 17. Um fóton virtual é, portanto, um estado não-estacionário, não necessariamente associado à propagação de uma onda, e portanto bastante diferente de um fóton real, como ficará ainda mais claro a seguir. Entretanto, justifica-se chamá-la de fóton por se tratar de uma vibração do campo eletromagnético, e, para distinguí-la de um fóton observável, usa-se essa adjetivação de virtual15. Note que há fótons virtuais sendo trocados em todas as três etapas da interação, representados pelas pequenas perturbações do campo eletromagnético entre os dois elétrons nas Figuras 17(a), (b) e (c). Mas a contribuição do fóton virtual ao espalhamento é mais significativa quando os elétrons estão mais próximos um do outro, como representado na Figura 17(b). Essa discussão será retomada em mais detalhes na seção 2.7.3 a seguir. Cabe ressaltar que, apesar de termos definido anteriormente um elétron como uma excitação do campo eletrônico, o que realmente se observa é o conjunto de excitações do campo eletrônico e do campo eletromagnético ao seu redor: diz-se que o elétron nunca é visto “nu”, mas está sempre “vestido” de uma nuvem de partículas virtuais. Esse fato será novamente discutido e melhor explorado na seção 2.9 a seguir. Ressalta-se, ainda, que a Figura 17 é apenas uma representação esquemática da interação, uma alusão semiclássica a um processo que é fundamentalmente quântico. O simples fato de desenhar as oscilações do campo pressupõe que saibamos a posição de cada ponto dessa superfície no espaço, em desacordo com o princípio da incerteza. Entretanto, ilustrar um campo quântico é impossível, e a representação acima, apesar de incompleta, fornece uma boa intuição sobre o processo de interação entre (excitações de) campos. Ainda relacionado às limitações da figura, note que, assim como a presença do elétron causa excitações do campo eletromagnético, estes fótons virtuais também induzem excitações do campo eletrônico, que induzem outras oscilações fotônicas, e assim sucessivamente. Ou seja, em torno das oscilações do campo eletromagnético dever-se-ia também ilustrar oscilações do campo eletrônico, e em torno dessas ilustrar outras excitações do campo eletromagnético, etc. A Figura 17 representa, portanto, apenas a primeira ordem de uma série de outros processos que poderiam ocorrer na presença de dois elétrons. Como se trata de um sistema quântico, não é possível dizer qual desses processos realmente ocorre: o resultado da interação é uma superposição quântica de todas essas possibilidades. Aqui o(a) docente pode fazer uma alusão direta ao experimento da fenda dupla, em que não é possível afirmar por qual fenda a partícula passa: a interferência é resultado da superposição das duas possibilidades de trajetórias, cada uma passando por uma fenda. 2.7.3. Diagramas de Feynman Outra maneira de representar a interação entre elétrons é através de um diagrama de Feynman, como na Figura 18. Aqui, o eixo vertical representa a dimensão espacial, e o eixo horizontal é a passagem do tempo. Representa-se, aqui, o mesmo processo ilustrado na Figura 17 anterior: dois elétrons interagindo pela troca de um fóton virtual. Entretanto, não é correto ler esse diagrama como se um dos elétrons (digamos, o elétron da parte superior da figura) tivesse emitido o fóton, e o outro (da parte inferior) o tivesse absorvido. Pois o processo oposto, em que o elétron inferior emitiu e o superior absorveu o fóton, é igualmente possível. E, se há dois processos intermediários possíveis, a mecânica quântica garante que a contribuição total aos processos físicos é a soma das contribuições dos processos intermediários. A Figura 19 mostra que o diagrama de Feynman da Figura 18 representa a soma (i.e. a superposição quântica) das duas ordenações temporais possíveis para a emissão e absorção do fóton intermediário [57, 58, 59]. Ou seja, a Figura 18 ilustra apenas que, em primeira ordem, esse processo ocorre mediante a troca de um fóton virtual, sem representar como esse processo de fato ocorre no espaço-tempo. Figura 18 Diagrama de Feynman ilustrando a interação entre dois elétrons mediada pela troca de um fóton virtual. Os pontos que conectam os elétrons ao fóton são chamados de vértices do diagrama. Figura 19 A interação entre elétrons pela troca de um fóton virtual deve levar em conta as duas possibilidades de ordenamento temporal, em que um elétron emite e o outro absorve o fóton trocado. Para compreender melhor a diferença entre fótons reais e virtuais, consideremos o balanço de energia-momento em um ponto de “emissão/absorção” do fóton no diagrama, i.e. em um de seus vértices. Sejam (E,p→) e (E′,p→′) a energia e momento linear de um elétron da Figura 18 (por ex., o elétron da parte superior do diagrama) antes e depois da interação (i.e. à esquerda e à direita do vértice, respectivamente), e sejam (Eγ,p→γ) a energia e momento do fóton virtual. A conservação de energia e momento na absorção/emissão do fóton impõe que (9) E = E γ + E ′ , (10) p → = p → γ + p → ′ , logo (11) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = ( E - E ′ ) 2 - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 . Como um fóton tem massa mγ = 0, esperar-se-ia, da relação relativística de energia-momento16, que (12) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = m γ 2 ⁢ c 4 = 0 ⁢ ? No entanto, em um espalhamento de elétrons não há nada que vincule E a E′ ou p→ a p→′ a priori17 (tratam-se de variáveis livres do problema), de maneira que, em geral, o lado direito da equação (11) não se anula. Isso significa que um fóton virtual em geral não satisfaz a relação relativística de energia-momento. Ou, dito de outra forma, é como se a partícula virtual pudesse ter massa diferente da massa observada para excitações normais do campo em questão. Essa é outra importante distinção entre partículas reais e virtuais. Essa violação da equação (12) não é um problema, contanto que esteja dentro da margem de incerteza associada à energia e ao momento do fóton virtual. Pelo princípio da incerteza, a precisão com que se pode determinar a energia de um sistema (ΔE) é limitada pelo tempo disponível para ele interagir com um possível aparato medidor (Δt), assim como a incerteza em seu momento (Δp) cresce à medida que se reduz a região do espaço a que ele esteja restrito (Δx). Isso pode ser expresso matematicamente por meio das famosas relações de incerteza (13) Δ ⁢ E ⁢ Δ ⁢ t ≥ ℏ 2 , Δ ⁢ p ⁢ Δ ⁢ x ≥ ℏ 2 , com ℏ ≈ 1.05×10−34 kg m2/s a constante de Planck reduzida18. Assim, quanto menor for o tempo de vida de uma excitação de um campo, e/ou quanto menor for seu alcance espacial, maior será a incerteza associada à sua energia-momento, e portanto maior será a margem para uma aparente violação da equação (12). Mais especificamente, o espalhamento descrito pelo diagrama da Figura 18 é mediado por fótons de todas as possíveis virtualidades, e a interação final resulta da soma de todas as contribuições. Entretanto, para grandes distâncias entre as partículas interagentes, a sobreposição dos fótons virtuais resulta em uma interferência destrutiva (exatamente no sentido de interferência de ondas), de modo que quanto maior a virtualidade dos fótons mediadores, menores serão seus impactos no resultado final da interação. Assim, a grandes distâncias, apenas fótons de baixa virtualidade contribuem significativamente. Reciprocamente, a menores distâncias, a contribuição dos fótons de maior virtualidade também se torna relevante. Uma discussão muito detalhada desse efeito, ao mesmo tempo em que é acessível ao público geral, pode ser encontrada na ref. [57], cuja leitura é fortemente recomendada para uma maior compreensão da QED e um complemento da discussão aqui apresentada. O argumento exposto acima nos fornece uma maneira de compreender o comportamento da Lei de Coulomb sob uma perspectiva microscópica da interação eletromagnética. Consideremos o caso de um elétron espalhado elasticamente por uma carga muito mais pesada, e que portanto permanece aproximadamente estática, como esquematizado na Figura 20. Um exemplo é um experimento de difração de elétrons, ao estilo dos experimentos de Rutherford-Geiger-Marsden que levaram à descoberta do núcleo atômico19. Nesse caso, a energia cinética do elétron não varia (por se tratar de espalhamento elástico) e a equação (11) fica (14) virtualidade ≡ E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 = - 4 ⁢ | p → | 2 ⁢ c 2 ⁢ sin 2 ⁡ θ 2 , que define o “grau de virtualidade” do fóton através da medida de violação da relação relativística de energia-momento. Nessa equação, θ é o ângulo entre o feixe espalhado e a direção do feixe incidente (vide legenda da Figura 20), que varia entre θ = 0 (quando não há desvio) e θ = π (quando o feixe volta na mesma direção e sentido oposto ao incidente). Figura 20 Diagrama de Feynman para um espalhamento elástico por uma carga estática. Define-se o ângulo θ como o ângulo entre o momento final (p→′) e inicial do elétron (p→), medindo o desvio relativamente à direção do feixe incidente. Ele não aparece na figura, pois um diagrama de Feynman representa apenas uma esquematização do processo que contribui para a interação, e não ilustra como o espalhamento ocorre, de fato, no espaço-tempo. Veja comentário no início da seção 2.7.3, bem como a Figura 19. Nota-se que, quanto maior o ângulo θ de espalhamento relativo ao feixe incidente (i.e. quanto maior for a alteração do estado de movimento do elétron devido à interação), maior é a virtualidade, e portanto, pelo argumento anterior, menor deve ser o alcance dessa interação. Ou seja, o elétron só é desviado significativamente de sua trajetória incidente se ele se aproximar muito da outra carga. Por outro lado, um espalhamento em que o momento linear do elétron pouco varia, p→≈p→′ e θ ≈ 0, está associado a fótons que satisfazem a relação energia-momento em boa aproximação, e portanto podem mediar interações a longas distâncias. Posto de outra forma: quanto mais o elétron se aproxima de outra carga, maior poderá ser a virtualidade dos fótons trocados entre elas, e maior será o desvio da trajetória do elétron; ao passo que, se as cargas estão distantes, os fótons devem satisfazer a equação (12) em boa aproximação, o que corresponde, pela equação (14), a um desvio pequeno de trajetória. Esse é justamente o comportamento clássico da interação eletrostática: quanto mais distantes as cargas, menor é a força e, consequentemente, menor a variação do momento linear da partícula teste. O argumento acima apresenta uma explicação para esse fenômeno em nível microscópico. É possível mostrar que a relação de virtualidade dada pela equação (14) dá origem a uma energia potencial de interação do tipo V(r)∼1/r, que é justamente a energia potencial associada à lei de Coulomb. Note, ainda, que todos os fótons que contribuem para a Lei de Coulomb são virtuais. Uma outra maneira de refrasear a argumentação acima é a seguinte. Um fóton real, não massivo, contém apenas duas possíveis polarizações, que são transversais à direção de propagação20. Por outro lado, a violação da equação (12) implica que um fóton virtual possui uma terceira polarização, dita longitudinal, que não está associada a um grau de liberdade que se propaga. De fato, é possível mostrar que esse grau de liberdade longitudinal atua como mensageiro da Lei de Coulomb [59]. Segue-se que quanto maior for a virtualidade do fóton, maior é a contribuição da polarização longitudinal, e mais intensa a interação Coulombiana, como concluímos acima. , 2.8 2.8. Pósitrons: os antielétrons Na seção 2.7.1 acima vimos que, em uma teoria quântica relativística, o elétron é interpretado como uma excitação de um campo fundamental, que chamamos de “campo do elétron” ou “campo eletrônico”. Contudo, é possível mostrar que os postulados da relatividade restrita só são satisfeitos quando se considera que o campo eletrônico possui também um outro tipo de excitação, com a mesma massa do elétron mas carga oposta. Em outras palavras, uma teoria quântica relativística do elétron prevê, também, a existência de um antielétron! Como a carga dessa partícula é positiva, ela é chamada de pósitron. Figura 21 Representação esquemática do movimento de um pósitron, interpretado como o movimento de um elétron movendo-se “para trás no tempo”. O pósitron pode ser visto como uma “ausência de elétron” ou como um buraco nesta página em branco: à medida que o “buraco” se move para a direita, o espaço que ele antes ocupava passa a ser novamente branco, como o restante da página. Reduzir a ausência de carga negativa em uma determinada posição é equivalente a acrescentar uma carga negativa nesse ponto. Isso porque −(+ e) = −e. Assim, o pósitron movendo-se de 1 para 2 em t1→t2 corresponde a um elétron movendo-se de 2 para 1. Em t2→t3 o elétron se desloca de 3 para 2. Note que o elétron que saiu de 2 para 1 precisou, primeiro, sair de 3 para 2. Assim, efetivamente, o movimento do pósitron de 1→2→3 em t1→t2→t3 corresponde ao movimento de um elétron de 3→2→1 em t3→t2→t1. Pode-se entender a afirmação acima da seguinte maneira. Considere dois eventos que ocorrem nos pontos x=(t,x→) e x+Δ⁢x=(t+Δ⁢t,x→+Δ⁢x→) do espaço-tempo, e suponhamos que |Δ⁢x→|>c⁢Δ⁢t, ou seja, a distância espacial Δ⁢x→ é maior do que a distância que a luz pode percorrer no intervalo Δt. Isso significa que esses dois eventos são causalmente desconexos, pois só poderiam ser relacionados por um sinal superluminal, o que violaria os postulados da relatividade restrita. No entanto, quando calculamos a probabilidade de que um elétron se propague de x até x + Δx, constata-se que essa probabilidade não se anula! Assim, se o campo eletrônico propagasse informação somente via elétrons, haveria violação da causalidade: veríamos efeitos precedendo suas causas, o que é absurdo! Para preservar a causalidade, o campo eletrônico deve possuir, também, um segundo tipo de excitação, que são os chamados “pósitrons”: as antipartículas dos elétrons. A transmissão de informação entre dois pontos espaço-temporais envolve a propagação de um elétron de x a x + Δx bem como a propagação de um pósitron de x + Δx a x e, quando essas duas partículas têm exatamente a mesma massa, esses dois processos interferem destrutivamente21, garantindo a causalidade em nível quântico. Note que, nesse caso, a propagação de um elétron é exatamente cancelada pela de um pósitron se propagando no sentido oposto no espaço e no tempo. Esse é um dos aspectos da interpretação de Feynman-Stückelberg para as antipartículas, que garante que, sob todos os aspectos, as antipartículas se comportam como partículas viajando para trás no tempo. Isso explica porque partículas e antipartículas possuem a mesma massa: são, no fundo, a mesma partícula, ou, dito de outra forma, são excitações de um mesmo campo fundamental. Essa interpretação de antipartículas pode ser visualizada da seguinte maneira. Imagine um pósitron se propagando da esquerda para a direita, como ilustrado na Figura 21. Vamos denominar as três posições que o pósitron ocupa na figura como posições 1, 2 e 3, respectivamente. No instante t1 há uma carga elétrica positiva ocupando a posição 1, mais à esquerda da figura, enquanto as posições vizinhas correspondem a espaços vazios, portanto com carga nula. Na passagem do instante t1 para um instante t2 posterior, a carga + e é subtraída da posição 1 e acrescida na posição 2. Mas esse processo é totalmente análogo a subtrairmos uma carga −e de 2 (pois 0−(−e) = + e) e adicionarmos −e em 1 (pois −e + e = 0). Dito de outra forma, é como se a existência de um pósitron pudesse ser vista como a “ausência de um elétron”, ou como um “buraco”: à medida que o pósitron se move da esquerda para a direita, os espaços mais à direita vão se movendo para a esquerda, para preencher a lacuna do pósitron. A Figura 21 mostra, assim, como o movimento do pósitron da esquerda para a direita ao longo de t1→t2→t3 corresponde ao movimento de um elétron da direita para a esquerda ao longo de t3→t2→t1, portanto andando “para trás no tempo”. Esse mesmo argumento se aplica a qualquer campo quântico, de modo que toda partícula elementar possui uma antipartícula associada, e ambas partícula e antipartícula possuem a mesma massa, mas cargas opostas22. Refraseando em poucas palavras: antipartículas emergem inevitavelmente dos postulados da mecânica quântica e da relatividade restrita. Ou, ainda de outra forma: é impossível formular uma teoria quântica relativística de apenas uma partícula. Isso não é inesperado, visto que a relação relativística E = mc2 já aponta para a possibilidade de se converter energia em massa e, portanto, criar novas partículas a partir de uma energia inicial ou, reciprocamente, converter massa em energia através da aniquilação de partículas. Na QED, em que elétrons e pósitrons interagem com o campo eletromagnético, essa energia que cria partículas ou resulta de suas aniquilações está na forma de fótons. Ou seja, um par elétron-pósitron pode se aniquilar mutuamente, resultando em (dois ou mais) fótons no produto final, ou, reciprocamente, fótons podem produzir um par elétron-pósitron23. Esse processo está representado diagramaticamente pela Figura 22. Figura 22 Diagrama representando a aniquilação de um par elétron-pósitron em dois fótons. Note como a partícula mediadora é uma excitação do campo eletrônico. Esse caso ilustra como todas as partículas podem ser virtuais, e não apenas as mediadoras das interações. Historicamente, a existência dos pósitrons foi prevista por Dirac em 1928, mesmo antes de essas partículas terem sido observadas. Após ter formulado sua equação relativística para o elétron, Dirac notou que as soluções inevitavelmente continham, também, elétrons de energia negativa. O que parecia um problema foi transformado em um triunfo da teoria quando Dirac interpretou essas soluções como fenomenologicamente equivalentes a antielétrons, ou ‘‘elétrons’’ de carga positiva24. A corroboração experimental dessa predição foi feita por Anderson em 1932, ao observar partículas que, sob um campo magnético, curvavam-se como se tivessem a mesma massa do elétron, porém carga oposta. A história do pósitron é, portanto, um dos muitos exemplos de partículas preditas teoricamente antes de serem detectadas experimentalmente, o que ilustra o caráter altamente preditivo dessas teorias. A Figura 23 ilustra a criação de um par elétron-pósitron observada em uma câmara de bolhas. O experimento é desenhado para detectar o rastro de partículas carregadas. Por isso, o rastro do fóton não aparece, embora possa ser deduzido pelo vértice de criação do par. As partículas estão submetidas a um campo magnético perpendicular ao plano da figura, e, por possuírem mesma massa e cargas opostas, são curvadas em direções opostas, mas com trajetórias de aproximadamente mesmo raio. Figura 23 Criação de um par elétron-pósitron visualizado em uma câmara de bolhas. Fonte: CERN. Esse fenômeno de aniquilação de pares resultando em radiação eletromagnética tem aplicação prática na medicina, nos chamados PET scans (PET é a sigla em inglês para Tomografia por Emissão de Pósitrons). Trata-se de uma modalidade de obtenção de imagens e dados sobre o funcionamento metabólico do organismo, que funciona da seguinte maneira [60]. Primeiramente, modifica-se uma molécula usualmente metabolizada pelo organismo (por exemplo, glucose) substituindo-se um de seus átomos por um elemento radioativo que decai por emissão de pósitrons (usualmente 18F). Essa substância é inserida intravenosamente no paciente, e o organismo, confundindo-a com glucose, redireciona-a a órgão vitais, onde será metabolizada. Ali, o elemento radioativo emitirá um pósitron, que se aniquilará com um elétron do corpo do paciente, emitindo dois fótons de radiação γ que serão observados pelo aparelho detector, como na Figura 24. Por conservação de momento, os fótons sempre são emitidos em direções opostas. O aparelho calcula o intervalo de tempo entre a detecção de cada fóton, e determina, assim, o local de onde o pósitron foi emitido. Faz-se, assim, um mapeamento da atividade metabólica do organismo, podendo-se determinar a integridade do tecido cerebral, a existência de tumores, o funcionamento cardiovascular, dentre outras aplicações. Figura 24 Esquema de funcionamento de um aparelho de Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET scan). Fonte: adaptado de [61]. e 2.9 2.9. A carga efetiva do elétron Outra consequência da conversão de fótons em pares elétron-pósitron (e vice-versa) é a chamada “polarização do vácuo”, que tem uma importante consequência fenomenológica: a constatação de que a carga elétrica do elétron não é constante! Para entender melhor essa afirmação, considere o diagrama ilustrado na Figura 25, em que a propagação de um fóton é temporariamente interrompida pela criação de um par elétron-pósitron, que posteriormente se aniquila e dá origem novamente a um fóton que continua a se propagar. Esse processo ilustra que, devido à interação com o campo eletrônico, um fóton não pode ser visto apenas como uma excitação do campo eletromagnético. Sua propagação é afetada por sua interação com elétrons e pósitrons. E isso, por sua vez, tem impacto sobre a maneira como esse fóton intermedeia a interação eletromagnética entre cargas elétricas. Figura 25 Diagrama de Feynman ilustrando um possível processo ocorrendo durante a propagação de um fóton, temporariamente interrompida pela criação e posterior aniquilação de um par elétron-pósitron. Este é um exemplo de um diagrama com um laço. De fato, considere a interação entre uma carga q incidindo contra uma carga Q, que por simplicidade suporemos ser muito mais pesada, de modo que ela permanece essencialmente imóvel ao longo do processo. O eletromagnetismo clássico diz que essa interação é regida pela lei de Coulomb, ou seja, a energia potencial de interação é (15) V Coulomb ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r , com k ≈ 9×109N m2/C2 a constante de Coulomb. Esse comportamento é exatamente o que se obtém na eletrodinâmica quântica a partir do diagrama da Figura 26(a), como já discutido na seção 2.7.3. Ou seja, a teoria eletromagnética clássica está contida na QED como primeira aproximação, ao ignorarmos todos diagramas que contenham laços. Mas há vários outros processos também presentes na QED, como o ilustrado na Figura 26(b), que contribuem para a mediação da interação entre as cargas, e que portanto fornecem “correções quânticas” à predição da teoria clássica. Esses processos estão sempre presentes, independentemente de a interação ser macroscópica ou não. Quer dizer, é impossível “desligarmos” esses processos tipicamente quânticos e observarmos apenas os processos clássicos. Sendo assim, por que esses efeitos quânticos não são comumente observados em nosso dia a dia? Por que a lei de Coulomb é uma boa aproximação para interações macroscópicas? E, ainda mais importante: o quão pequenas têm que ser as distâncias envolvidas para que esses efeitos quânticos se manifestem mais perceptivelmente? Podemos responder essa questão recorrendo novamente ao conceito de virtualidade das partículas intermediárias, elaborado na seção 2.7.3. Naquela ocasião, definimos o “grau de virtualidade” de uma partícula de energia E, momento p→ e massa m como uma medida do quanto ela viola a relação relativística de massa-energia-momento, i.e. (16) virtualidade ≡ E 2 - | p → | 2 ⁢ c 2 - m 2 ⁢ c 4 . Assim, tudo se passa como se a partícula virtual tivesse uma massa diferente da correspondente partícula real. Por exemplo, é como se um elétron virtual tivesse massa diferente de me ≈ 9.1×10−31 kg. Uma partícula real é aquela para a qual o lado direito da equação (16) se anula. Figura 26 Dois processos possíveis de mediação da interação entre as cargas q e Q. (a) Diagrama responsável pela interação descrita no eletromagnetismo clássico. (b) Uma correção quântica oriunda da interação mútua entre o fóton e as excitações do campo eletrônico, que altera a propagação do fóton. Por incluir uma modificação na propagação do fóton, esse diagrama induz uma modificação da lei de Coulomb para a interação entre partículas carregadas. Isso também pode ser interpretado como uma alteração na “carga elétrica efetiva” das partículas interagentes. Interações de longa distância são mediadas predominantemente por fótons de baixa virtualidade, o que por sua vez implica em uma alta virtualidade para o par elétron-pósitron da Figura 26(b)25. Isso faz com que os efeitos desse diagrama sejam atenuados em comparação com o da Figura 26(a). Assim, para grandes distâncias, a interação é regida essencialmente pela lei de Coulomb, como esperado. A que distâncias a contribuição do diagrama com laço se torna relevante? Ora, só existe uma escala de energia característica desse processo, que é a energia de repouso do par elétron-pósitron, 2mec2. Essa energia está naturalmente associada, na teoria quântica, a uma escala de distância da ordem26 (17) r ˜ = ℏ c 2 m e c 2 = ( constante de Planck ) × ( velocidade da luz ) ( energia de repouso do par e + e - ) ∼ 2 × 10 − 13 m . O fato de essa escala de distância, característica do processo da Figura 26(b), envolver a constante de Planck e a velocidade da luz mostra que se trata de um efeito caracteristicamente quântico e relativístico. Como já poderíamos antecipar, trata-se de uma escala de distância associada ao comprimento de onda de um fóton com energia 2mec2. Nota-se que r~ é cerca de duas ordens de magnitude menor do que o típico raio atômico, portanto as partículas interagentes devem estar de fato muito próximas para que a modificação na propagação do fóton pela criação de pares intermediários seja perceptível. Essas previsões são confirmadas quando computamos as correções quânticas ao potencial de Coulomb para r≳r~ devido ao diagrama da Figura 26(b), resultando no chamado potencial de Uehling, (18) V ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r ⁢ ( 1 + α 2 ⁢ π ⁢ ( r ~ r ) 3 / 2 ⁢ e - r / r ~ + … ) . Aqui, α ≈ 1/137 é uma constante que dita a intensidade da interação eletromagnética27, e r~ é a distância característica ao processo quântico da Figura 26(b) que dá origem a essa correção. É fácil ver que, para distâncias muito maiores do que essa escala característica, r≫r~, o potencial de Uehling da equação (18) reduz-se ao potencial de Coulomb, como esperado. As reticências indicam que existem ainda outras correções advindas de processos ainda mais complicados, e que só serão notáveis a distâncias ainda menores. Essas correções quânticas devido à criação de pares elétron-pósitron virtuais em torno de uma carga elétrica podem ser interpretadas fisicamente como oriundas de uma blindagem da carga devido a um efeito de polarização do vácuo, como ilustrado na Figura 27. Suponhamos, por exemplo, que a partícula ao centro da figura seja um elétron. Devido a processos como os da Figura 26(b), em torno desse elétron existe uma multitude de pares elétron-pósitron virtuais que atuam como minúsculos dipolos, efetivamente reduzindo a densidade de carga do elétron e, portanto, a intensidade de sua interação eletromagnética com outras cargas. Diz-se que o elétron está sempre “vestido”, de modo que, quando dois elétrons interagem, a densidade de carga efetiva da interação é a da nuvem ilustrada na Figura 27, e não do elétron “nu” (ilustrado no centro da figura). Porém, à medida que os elétrons são lançados um contra o outro a mais altas energias, a interação se dá a distâncias cada vez menores, até que eventualmente (quando a energia do centro de massa for Ec.m.≳2mec2) um elétron começa a penetrar a nuvem de polarização do outro e enxerga uma maior carga efetiva, o que faz com que o comportamento da interação seja diferente do Coulombiano. O “raio efetivo” dessa nuvem de polarização em torno do elétron é a escala característica r~ associada ao diagrama 26(b), como já discutido anteriormente. Figura 27 Efeito de blindagem da carga do elétron devido aos pares elétron-pósitron virtuais. Fonte: cortesia de © INFN, Laboratori Nazionali di Frascati [62]. Essa variação da carga efetiva do elétron com a distância é, de fato, observada. Em processos que envolvem interações entre elétrons a altas energias, tudo se passa como se a carga do elétron fosse de fato maior do que a que observamos em nosso mundo de baixas energias. Uma pergunta plausível, neste momento, seria: e qual é, então, a carga do elétron “nu”? A resposta é que a carga do elétron tende a infinito à medida que a distância entre as cargas interagentes diminui. É claro que uma carga infinita não faz sentido fisicamente, e esse comportamento já nos indica que, a partir de uma certa escala de energia, essa descrição do elétron e suas interações em termos de partículas e campos já não é mais aplicável. Isso é análogo ao caso em que a descrição contínua de um sólido ou fluido deixa de ser válida a partir de certas escalas de distância, quando a estrutura atômico-molecular da matéria se torna relevante, e novos graus de liberdade precisam ser incluídos na descrição do sistema. Questões sobre o que é e quais são as propriedades de um elétron ‘‘nu’’ não podem ainda ser resolvidas conclusivamente, e é mais provável que, a partir de uma determinada escala de energia, a pergunta sequer faça sentido, pois o próprio conceito de ‘‘elétron’’ como hoje o entendemos deve ser modificado28. Uma importante consequência desse efeito de polarização do vácuo é o deslocamento de Lamb entre os níveis de energia dos orbitais 2S1/2 e 2P1/2 do átomo de hidrogênio. Se a interação elétron-núcleo ocorresse apenas via diagrama da Figura 26(a), esses orbitais seriam degenerados (i.e. possuiriam a mesma energia). No entanto, experimentos cuidadosos mostraram que há uma transição entre eles, correspondendo à emissão de um fóton de frequência ∼1057 MHz. Na QED, esse valor é predito corretamente com grande precisão levando-se em conta que o elétron no orbital S é capaz de penetrar o núcleo atômico29 e, com isso, sentir os efeitos do termo anômalo do potencial de Uehling. Isso não ocorre no orbital P, para o qual o potencial eletromagnético é simplesmente o potencial de Coulomb. Portanto, o nível de energia do orbital S fica ligeiramente deslocado do orbital P, dando origem a uma possível transição eletrônica que é, de fato, observada. A obtenção do valor correto para o deslocamento Lamb por meio do formalismo da QED constitui ainda um dos maiores triunfos dessa teoria, e um forte indicativo de seu poder preditivo. versam sobre elementos de Eletrodinâmica Quântica, que provavelmente serão menos familiares a docentes de ensino médio. Por isso, essa parte do texto passa a ser direcionada também à formação desses professores nos principais elementos desse paradigma teórico, mas com uma linguagem acessível também a estudantes. Pode-se julgar que o conteúdo dessas seções é mais extenso do que se desejaria discutir em sala de aula. Em conformidade com a proposta neste trabalho, deixamos a critério do(a) docente decidir quais tópicos poderiam ser abordados com os(as) estudantes dentro do contexto das salas de aula em que lecionam.

2.1. Introdução ao tema

O primeiro momento da sequência propicia a oportunidade de diálogo com os(as) estudantes a fim de averiguar sua familiaridade com a grande temática de Física de Partículas, que aparece frequentemente em livros de divulgação científica ou mesmo em seriados televisivos, canais de plataformas de compartilhamento de vídeos e sítios que discutem ciência. Os(as) estudantes conseguem imaginar o quê (e quais) são essas partículas a que a temática se refere? Já tiveram contato com alguma literatura que falasse sobre quarks, neutrinos, bóson de Higgs, etc.? Já ouviram falar sobre o LHC (Grande Colisor de Hádrons), ou outros aceleradores de partículas e colisores? Interessam-se pelo tema? Por que é relevante estudá-lo? É um momento de deixar os(as) alunos(as) se expressarem, seja publicamente ou em pequenos grupos com os(as) colegas, de modo a se divertirem ao se envolverem com a temática.

Após essa discussão, convém apresentar, a título de motivação, alguns fenômenos que se pode explicar graças à nossa compreensão da estrutura da matéria em diversas escalas, incluindo aplicações tecnológicas que envolvem Física de Partículas. Por exemplo,
  • a descrição atômica da matéria nos permite explicar a origem das forças normais de resistência dos materiais enquanto forças eletromagnéticas repulsivas entre orbitais moleculares. Ou seja, explica-se fenômenos simples e cotidianos, como o fato de não atravessarmos uma cadeira quando nela sentamos;

  • a Eletrodinâmica Quântica (QED) nos dá uma descrição muito acurada do comportamento da luz, possibilitando-nos manipulá-la para o desenvolvimento de lasers desde os mais simples, vendidos comercialmente, aos mais potentes, utilizados em escala industrial para diversos fins;

  • a mesma QED prevê a existência de partículas chamadas pósitrons, que têm aplicação medicinal nos chamados PET scans3 3 PET é sigla em inglês para Tomografia por Emissão de Pósitrons. ;

  • o brilho do Sol é devido a reações relacionadas às interações nucleares fraca e forte, que também estão relacionadas a decaimentos radioativos, com aplicações na datação de fósseis ou rochas, e em inúmeros aparatos cotidianos, como detectores de fumaça;

  • o poder preditivo da física nuclear é ilustrado de modo estarrecedor pela capacidade destrutiva dos armamentos nucleares, ou pela capacidade de geração de energia a partir de poucos quilogramas de matéria em usinas nucleares.

Todos esses fenômenos e aplicações tecnológicas poderão ser explicados em maiores detalhes em momentos posteriores da sequência didática, quando o assunto relevante for discutido em maior detalhe.

2.2. Estrutura atômica da matéria

O objeto de estudo da Física de Partículas é a matéria em seu nível mais elementar, precedendo a formação de estruturas compostas mais complexas. Ou seja, é o estudo dos constituintes fundamentais da matéria e de suas interações mútuas. A temática é convidativa, portanto, a uma discussão que desemboque na teoria atômica e na natureza discreta da matéria.

Em um primeiro momento, mais importante do que explicar as nuances dos diversos modelos atômicos, é preciso que fique claro aos(às) discentes a gênese do conceito de átomo, a diferença entre as concepções grega, moderna e contemporânea desse termo, e, principalmente, as evidências empíricas em favor do atomismo. Não basta que a ideia de átomo seja aceita, é preciso que o(a) estudante saiba convencer outrem de que a hipótese atomista resulta em uma excelente descrição do comportamento da matéria. Ademais, mesmo que os(as) alunos(as) saibam sobre atomismo, discutir as evidências que corroboram essa hipótese leva a um debate salutar sobre epistemologia e ciência, sobre as condições para que uma hipótese seja “validada” pela comunidade científica. No caso da teoria atômica, há o fator explicativo e o poder preditivo da hipótese, ilustrado em evidências como:

  • As Leis Ponderais da Química: sob uma perspectiva plenista/continuista da matéria, é difícil explicar por que reações químicas ocorrem sempre na mesma proporção fixa de massa ou de moles dos reagentes, e por que qualquer excedente além dessa proporção fixa permanece sem reagir. Por outro lado, a hipótese atomista explica prontamente esse comportamento, bem como a lei de conservação de massas de Lavoisier, ao postular que reações químicas são simplesmente um rearranjo de átomos. Um experimento ilustrativo, que pode ser invocado durante a aula e até mesmo realizado ao vivo devido à sua simplicidade, é a eletrólise da água, em que o volume de gás hidrogênio gerado é sempre o dobro do volume de oxigênio. Um vídeo ilustrativo desse experimento pode ser encontrado em [3030. https://www.youtube.com/watch?v=vFR9zUGt2C4, acessado em 05/03/2021.
    https://www.youtube.com/watch?v=vFR9zUGt...
    ].

  • Teoria Cinética dos Gases: admitindo-se a hipótese atômica, é possível deduzir a equação de estado dos gases ideais a partir das leis da mecânica de Newton. Mais ainda, é possível aprimorar a descrição dos gases reais levando-se em conta, por exemplo, o tamanho das moléculas e suas interações mútuas, obtendo uma descrição ainda mais precisa de sistemas gasosos. Em última instância, a hipótese atomista dá origem à unificação da mecânica e da termodinâmica na mecânica estatística.

  • O Movimento Browniano é o movimento aleatório de micropartículas suspensas em um líquido. O(a) docente pode mostrar um vídeo ou animação ilustrando o fenômeno como visto em um microscópio. Em 1905, Einstein foi capaz de explicar esse movimento como devido à constante colisão das moléculas do líquido com as micropartículas, e, com essa descrição, foi capaz de prever corretamente que a distância média percorrida por uma partícula é proporcional à raiz quadrada do tempo decorrido, dt, um comportamento típico do caráter estatístico do fenômeno.

Outros exemplos podem ser apresentados. O importante é enfatizar que não é necessário enxergarmos os átomos para saber que existem (embora isso já seja possível com microscópios eletrônicos). Ao supormos que a matéria é assim constituída, podemos deduzir suas propriedades e prever corretamente seu comportamento, cumprindo, assim, uma das funções da Ciência enquanto atividade humana: nosso empoderamento diante das forças naturais.

2.3. Elétrons

Uma vez que se tenha consolidado a concepção de estrutura atômica da matéria, pode-se partir para o rompimento da ideia de que o átomo é indivisível. Aqui começa a Física de Partículas de fato, introduzindo a primeira partícula elementar, protagonista da Eletrodinâmica Quântica: o elétron.

Uma maneira natural de se introduzir partículas subatômicas é discutir o experimento de J. J. Thomson com tubos de raios catódicos, ilustrado na Figura 1. Para uma sequência didática investigativa explorando essa temática vide ref. [3131. D.C. Cardoso, A descoberta do elétron como tema gerador de um ensino de Física mediado por experimentação remota. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia (2016).]. Tais tubos são os elementos constitutivos básicos de televisores antigos (as chamadas “TVs de tubo”), e o(a) docente pode usar isso como motivação inicial à aula, propondo uma discussão sobre como esses aparelhos funcionam. A discussão sobre esses tubos é também propícia ao conteúdo da sequência, pois constituem exemplos simples de aceleradores de partículas. Essencialmente, dois filamentos metálicos são inseridos em um tubo a vácuo e conectados a uma fonte de energia (uma bateria, no caso do experimento de Thomson, ou a tomada doméstica no caso de um televisor), gerando os pólos − e + na figura. Ao fazê-lo, elétrons são acelerados do cátodo ao ânodo e colidem com o bulbo à direita da figura, causando o aparecimento de um ponto luminoso, que gera a imagem em aparelhos televisores.

Figura 1
Tubo de raios catódicos usado no experimento de Thomson [3232. J.J. Thomson, Philosophical Magazine Series 5, 293 (1897).]. Um feixe de partículas é emitido do filamento metálico conectado ao pólo negativo da bateria (à esquerda da Figura), e se propaga em um tubo a vácuo até colidir com a outra extremidade, no bulbo à direita. O feixe é desviado por um campo elétrico inserido no meio do tubo (região amarela entre as placas horizontais), indicando que as partículas emitidas possuem carga. Com auxílio de um campo magnético (não simbolizado na imagem), pode-se calcular a razão entre a carga e a massa dessas partículas. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Púbico.

Quando realizou seu experimento, Thomson não sabia sobre a existência de elétrons, e seu propósito era justamente desvendar a natureza desses raios que geravam o ponto luminoso. Submetendo esse feixe a campos elétricos e magnéticos, chegou a duas conclusões principais, que merecem ênfase no contexto dessa sequência didática:

  • O feixe é constituído de partículas cujas massas são cerca de 2000 vezes menor do que a massa do átomo mais leve (o hidrogênio)4 4 Mais precisamente, o experimento de Thomson de 1897 [32] propiciou a medição apenas da razão carga/massa do elétron, obtendo a mencionada diferença frente ao valor conhecido dessa razão para um íon de hidrogênio (i.e. um próton). No entanto, Thomson inferiu que a discrepância fosse devido à menor massa do elétron com base em outras propriedades dos raios catódicos, como sua maior capacidade de penetração ao propagar-se em um gás. Foi apenas em outro experimento, realizado em 1899 [33], que Thomson conseguiu mostrar que a carga do elétron é igual à do próton, e que portanto a diferença entre as razões carga/massa deve-se unicamente a uma diferença entre suas massas. . Ou seja, essas partículas não poderiam ser constituídas de quaisquer átomos conhecidos até então.

  • Após repetir o experimento com cátodos de vários materiais (alumínio, chumbo, estanho, cobre e ferro) e obter sempre os mesmos resultados, Thomson concluiu que essas partículas devem estar contidas no interior de todos os átomos.

Thomson descobriu, assim, o elétron: a primeira partícula subatômica a ser identificada.

Outra discussão interessante a se explorar, no contexto dessa aula, é o uso de tubo de raios catódicos em televisores e monitores como um dos muitos exemplos de uma pesquisa a princípio puramente acadêmica, mas que deu origem a uma aplicação tecnológica que, poucas décadas depois, veio a se tornar parte da vida cotidiana em nossa sociedade. Outro exemplo famoso é o nascimento da World Wide Web no CERN5 5 Antigo acrônimo da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire em francês), o maior laboratório de Física de Partículas do mundo, localizado em Genebra, Suíça, em sua fronteira com a França. , rede criada inicialmente para compartilhar dados entre os cientistas trabalhando no laboratório e os espalhados no mundo, e que hoje faz parte da experiência cotidiana de todos que navegam na internet.

2.4. A interação eletromagnética

A Física de Partículas versa não somente sobre os constituintes fundamentais da matéria, mas também sobre o modo como essas partículas interagem entre si, e como essas interações microscópicas dão origem à física macroscópica que observamos cotidianamente.

Dentre as interações fundamentais da matéria, a interação eletromagnética se destaca por ser a mais simples de todas (veremos a justificativa para essa afirmação na seção 2.4.1 2.4.1. Semelhanças e diferenças entre eletromagnetismo e gravitação A lei de força da interação entre duas partículas estáticas eletricamente carregadas (Lei de Coulomb) tem importantes semelhanças e diferenças frente à lei de atração gravitacional de Newton (vide Figura 2), e uma discussão aprofundada sobre as causas dessas (dis)similitudes abre inúmeras possibilidades de discussões em sala de aula, todas ricas em conteúdo físico, algumas propícias ao desenvolvimento da intuição dos estudantes, e ainda outras que levam a questões profundas que continuam em aberto na Física de Partículas. Figura 2 Dois elétrons sob a ação da atração gravitacional F→g, devido a suas massas me, e da repulsão eletrostática F→e⁢l devido a suas cargas −e. A semelhança é óbvia: ambas leis de força seguem o padrão (1) força = constante × (produto de cargas) (distância) 2 . Por que isso ocorre? O produto das cargas tem que aparecer para que a terceira lei de Newton seja satisfeita6: a força agindo sobre A devido a B deve ser proporcional7 à carga de A, e deve ter mesma magnitude que a força em B devido a A, que por sua vez é proporcional à carga de B. A constante aparece devido à escolha de unidades. Por exemplo, em unidades Gaussianas, a constante da Lei de Coulomb é igual a 1. A física mais interessante está no comportamento ∼1/r2 dessas forças, que merece uma discussão mais aprofundada e cuidadosa com os(as) alunos(as). Em última instância, a Lei de Coulomb tem essa forma porque o campo eletromagnético/o fóton/a luz não possui carga nem massa. Para explicar essa afirmação, deve-se primeiramente introduzir o conceito de campo elétrico, incluindo sua manifestação visual em termos de linhas de campo e como as cargas elétricas constituem fontes e sumidouros dessas linhas8. A partir daí, segue-se que: Como o próprio campo não carrega a carga com a qual ele interage (i.e. o campo eletromagnético não é autointeragente), a única fonte de linhas de campo é a matéria, que é o enunciado da Lei de Gauss, (2) ∇ ⋅ E → ⏟ fonte de campo ∼ ρ ⏟ carga , expressa ilustrativamente na Figura 3(a). Por isso, o fluxo de linhas de campo através de uma superfície fechada englobando a carga é sempre constante, pois não há novas linhas de campo surgindo no espaço entre a carga e a superfície. Aqui, uma analogia com um fluido pode ser evocada: se interpretarmos a carga central na Figura 3(a) como uma fonte de água em um chafariz, Figura 3(b), o fluxo de água atravessando as circunferências pontilhadas em um determinado instante é sempre igual ao fluxo de água jorrando da fonte, contanto que não haja novas fontes ou sumidouros de água no meio do percurso. Portanto a quantidade de água que atravessa as circunferências pontilhadas, por unidade de comprimento dessa circunferência, decresce com a distância à fonte como ∼1/2πr. Ou seja, se temos em nossas mãos um copo, e queremos enchê-lo com a água escorrendo através da borda do chafariz, o tempo necessário para encher o copo variará com o inverso da distância da borda à fonte. Retornando ao caso eletromagnético de interesse, em que as linhas de campo se espalham por todo o espaço tridimensional, o fluxo dessas linhas de campo é constante sobre qualquer esfera de raio r, de modo que a densidade de linhas de campo (que corresponde à intensidade do campo) decai com a área dessa esfera, E∼1/4πr2. Pelo mesmo argumento, podemos identificar como seria a Lei de Coulomb em espaços de d-dimensões: E∼1/rd−1 (o volume de uma esfera d-dimensional é ∼rd, e sua área é ∼rd−1). Figura 3 (a) Linhas de campo elétrico geradas por uma carga pontual. O número de linhas atravessando uma superfície fechada é sempre constante, o que significa que a densidade de linhas diminui com a distância. Para um espaço tridimensional, a redução é ∼1/r2. (b) Toda a água que emana da fonte escorre através da borda do chafariz. A quantidade de água que atravessa uma unidade de comprimento desse perímetro varia com o inverso da distância da borda à fonte, ∼1/r. Fonte: Domínio Público. Caso o campo eletromagnético portasse carga elétrica, as próprias linhas de campo seriam fonte de novas linhas de campo, e o fluxo não seria constante, invalidando o argumento acima. Mais ainda: o fato de o campo eletromagnético não ser autointeragente é também a causa da linearidade das equações de Maxwell, e do princípio da superposição em particular. É fácil entender por que: os campos produzidos por duas cargas se propagam no espaço sem interagirem entre si e, portanto, sem que a informação que carregavam inicialmente seja modificada durante o percurso. O campo resultante é, portanto, simplesmente a soma dos campos produzidos por cada carga. Note que, com essa discussão, o(a) estudante de ensino médio é apresentado, de maneira muito clara e intuitiva, a uma das leis de Maxwell do eletromagnetismo e suas implicações. Expande-se, assim, o entendimento do(a) estudante sobre fenômenos eletromagnéticos para além de meras memorizações de leis de forças e atividades operacionais puramente mecânicas. A dependência da lei de força com a massa do campo é menos trivial, por se tratar de um aspecto quântico, mas possivelmente interessante mencionar (principalmente para aulas posteriores, quando se discutir interações nucleares forte e fraca). Caso os fótons tivessem massa m, o potencial eletrostático teria a forma de um potencial de Yukawa, (3)VYukawa ∼e-m⁢rr, correspondendo a uma força que decai muito mais rapidamente do que 1/r2, tendo um curto alcance efetivo, ref∼1/m. O fato de o fóton ser não-massivo é responsável pelo longo alcance da interação eletromagnética, bem como pelo fato de se propagar à máxima velocidade permitida para a troca de informações na Natureza: a velocidade da luz no vácuo. E a gravitação? O campo gravitacional também não possui massa – quer dizer, o gráviton9, que é a partícula associada à propagação do campo gravitacional, tem massa nula –, o que explica por que essa interação é de longo alcance, efetiva a distâncias em escala cosmológica (e também se propaga no vácuo à velocidade da luz). Mais ainda, na gravitação de Newton apenas as massas agem como fonte de gravitação, e portanto o campo gravitacional newtoniano não interage gravitacionalmente (i.e. não é autointeragente), o que implica no comportamento ∼1/r2, como vimos acima. Entretanto, hoje se sabe que a teoria newtoniana não descreve corretamente todos os fenômenos gravitacionais, e é, em última instância, suplantada pela teoria da relatividade geral de Einstein. Nessa teoria, não só a massa dos corpos é fonte de campo gravitacional, mas toda e qualquer forma de energia e momento. Logo, a energia contida no campo gravitacional também gravita. Por isso as equações da relatividade geral são altamente não-lineares. Assim, a gravitação Newtoniana está contida na relatividade geral no limite em que se negligencia a autointeração dos grávitons. Segue-se, dessas discussões, que a interação eletromagnética é a interação mais simples da Natureza , pois é a única linear. Há, ainda, outras diferenças entre gravitação e eletromagnetismo. A interação gravitacional é muito mais fraca que a eletromagnética. De fato, comparando-se a razão entre as magnitudes das forças eletrostática e gravitacional agindo sobre dois elétrons, vem que (4)|F→e⁢lF→g|=k⁢e2G⁢me2∼1042. Esse fato é facilmente comprovado notando-se que a força eletrostática entre um balão de festa e os cabelos de uma pessoa é suficiente para superar a atração gravitacional do planeta inteiro, como se vê na Figura 4. Outra maneira de formular essa discrepância entre as duas interações é notar que, em um sistema de unidades com k = G = 1, a equação (4) nos diz que a carga elétrica e a massa de uma partícula possuem as mesmas unidades, mas para o elétron a carga é ∼1021 vezes maior que a massa. Discrepâncias similares se aplicam a todas as outras partículas carregadas que conhecemos, e é uma manifestação de que a gravidade é a interação mais fraca da natureza. Figura 4A força eletrostática devido a um balão de festa é suficiente para superar a atração gravitacional de todo o planeta e fazer o cabelo levantar. Fonte: adaptado de SWNS/Splash News. A razão para a existência dessa hierarquia entre essas interações é um dos maiores mistérios abertos da Física de Altas Energias, denominado o problema da hierarquia . Uma proposta de solução consiste em supor que existem dimensões espaciais extras (além das três usuais com as quais estamos familiarizados), e que em última instância todas as interações têm a mesma intensidade, mas que a geometria das dimensões extras faz com que a gravitação efetiva em três dimensões se torne muito mais fraca [35]. A interação eletromagnética pode ser atrativa ou repulsiva, enquanto a gravitação é sempre atrativa. Em um sistema de partículas carregadas, as forças eletromagnéticas dominam e fazem com que elas estejam em constante movimento, sempre se repelindo e se atraindo, até o momento em que a velocidade média das partículas (i.e. a temperatura do sistema) seja suficientemente baixa para que a atração entre cargas opostas seja capaz de prendê-las em órbita, formando um sistema ligado neutro. Esse processo ocorreu no Universo primordial, cerca de 380.000 anos após o Big Bang, numa transição de fase em que os prótons e elétrons do plasma primordial se combinaram em átomos – um processo chamado na literatura de Recombinação , e que dá origem à Radiação Cósmica de Fundo [36, 37, 38]. Importante se ressaltar esse argumento à turma, pois ilustra como a efetiva neutralidade do Universo não é simplesmente uma condição inicial arbitrária, mas decorre de um processo físico no Universo primordial. Apesar de a interação eletromagnética ser muito mais forte que a gravitacional, seus efeitos de atração e repulsão tendem a se cancelar em grandes escalas, enquanto os efeitos gravitacionais são sempre cumulativos. Assim, para sistemas formados de grandes quantidades de matéria (formando corpos celestes, galáxias, conglomerados e demais estruturas cósmicas), a gravitação se torna a interação mais relevante. De fato, um dos princípios básicos da Cosmologia moderna é que, em escalas cosmológicas, é necessário levar em conta apenas a interação gravitacional entre as estruturas interagentes. ), e também pela sua ubiquidade em nosso cotidiano: além das inúmeras aplicações tecnológicas, todas as “forças de contato” que experimentamos têm origem eletromagnética.

O eletromagnetismo já é um tópico pertencente ao currículo usual de Física no ensino médio, de modo que a discussão apresentada aqui não foge à temática que já seria tratada em algum momento pelo(a) docente em sala de aula. Entretanto, a apresentação do tópico sob uma perspectiva motivada pela Física de Partículas tem certas vantagens, por possibilitar uma melhor compreensão sobre o comportamento dessa interação, além de induzir uma conexão natural entre física clássica e moderna.

2.4.1. Semelhanças e diferenças entre eletromagnetismo e gravitação

A lei de força da interação entre duas partículas estáticas eletricamente carregadas (Lei de Coulomb) tem importantes semelhanças e diferenças frente à lei de atração gravitacional de Newton (vide Figura 2), e uma discussão aprofundada sobre as causas dessas (dis)similitudes abre inúmeras possibilidades de discussões em sala de aula, todas ricas em conteúdo físico, algumas propícias ao desenvolvimento da intuição dos estudantes, e ainda outras que levam a questões profundas que continuam em aberto na Física de Partículas.

Figura 2
Dois elétrons sob a ação da atração gravitacional Fg, devido a suas massas me, e da repulsão eletrostática Fel devido a suas cargas −e.

A semelhança é óbvia: ambas leis de força seguem o padrão

(1) força = constante × (produto de cargas) (distância) 2 .

Por que isso ocorre? O produto das cargas tem que aparecer para que a terceira lei de Newton seja satisfeita6 6 Note que a terceira lei de Newton deve ser válida para a lei de Coulomb, que envolve uma configuração estática de cargas, a fim de que haja conservação do momento linear total. Por outro lado, no caso da força magnética sobre uma carga se movendo, parte do momento é carregado pelo próprio campo eletromagnético, i.e. por fótons, e portanto a soma das forças que uma carga exerce sobre a outra em geral não se anula. : a força agindo sobre A devido a B deve ser proporcional7 7 No caso da gravitação, a dependência da força com a massa inercial é devido à observação da universalidade da aceleração de queda livre. No caso da Lei de Coulomb, trata-se de uma definição da carga elétrica, que é medida justamente através da força atuante sobre ela quando posta a interagir com uma carga teste. à carga de A, e deve ter mesma magnitude que a força em B devido a A, que por sua vez é proporcional à carga de B. A constante aparece devido à escolha de unidades. Por exemplo, em unidades Gaussianas, a constante da Lei de Coulomb é igual a 1.

A física mais interessante está no comportamento ∼1/r2 dessas forças, que merece uma discussão mais aprofundada e cuidadosa com os(as) alunos(as). Em última instância, a Lei de Coulomb tem essa forma porque o campo eletromagnético/o fóton/a luz não possui carga nem massa. Para explicar essa afirmação, deve-se primeiramente introduzir o conceito de campo elétrico, incluindo sua manifestação visual em termos de linhas de campo e como as cargas elétricas constituem fontes e sumidouros dessas linhas8 8 Uma simulação interativa interessante para esse propósito encontra-se na ref. [34]. . A partir daí, segue-se que:

  • Como o próprio campo não carrega a carga com a qual ele interage (i.e. o campo eletromagnético não é autointeragente), a única fonte de linhas de campo é a matéria, que é o enunciado da Lei de Gauss,

    (2) E fonte de campo ρ carga ,

    expressa ilustrativamente na Figura 3(a). Por isso, o fluxo de linhas de campo através de uma superfície fechada englobando a carga é sempre constante, pois não há novas linhas de campo surgindo no espaço entre a carga e a superfície. Aqui, uma analogia com um fluido pode ser evocada: se interpretarmos a carga central na Figura 3(a) como uma fonte de água em um chafariz, Figura 3(b), o fluxo de água atravessando as circunferências pontilhadas em um determinado instante é sempre igual ao fluxo de água jorrando da fonte, contanto que não haja novas fontes ou sumidouros de água no meio do percurso. Portanto a quantidade de água que atravessa as circunferências pontilhadas, por unidade de comprimento dessa circunferência, decresce com a distância à fonte como ∼1/2πr. Ou seja, se temos em nossas mãos um copo, e queremos enchê-lo com a água escorrendo através da borda do chafariz, o tempo necessário para encher o copo variará com o inverso da distância da borda à fonte. Retornando ao caso eletromagnético de interesse, em que as linhas de campo se espalham por todo o espaço tridimensional, o fluxo dessas linhas de campo é constante sobre qualquer esfera de raio r, de modo que a densidade de linhas de campo (que corresponde à intensidade do campo) decai com a área dessa esfera, E∼1/4πr2. Pelo mesmo argumento, podemos identificar como seria a Lei de Coulomb em espaços de d-dimensões: E∼1/rd−1 (o volume de uma esfera d-dimensional é ∼rd, e sua área é ∼rd−1).

Figura 3
(a) Linhas de campo elétrico geradas por uma carga pontual. O número de linhas atravessando uma superfície fechada é sempre constante, o que significa que a densidade de linhas diminui com a distância. Para um espaço tridimensional, a redução é ∼1/r2. (b) Toda a água que emana da fonte escorre através da borda do chafariz. A quantidade de água que atravessa uma unidade de comprimento desse perímetro varia com o inverso da distância da borda à fonte, ∼1/r. Fonte: Domínio Público.
  • Caso o campo eletromagnético portasse carga elétrica, as próprias linhas de campo seriam fonte de novas linhas de campo, e o fluxo não seria constante, invalidando o argumento acima.

    Mais ainda: o fato de o campo eletromagnético não ser autointeragente é também a causa da linearidade das equações de Maxwell, e do princípio da superposição em particular. É fácil entender por que: os campos produzidos por duas cargas se propagam no espaço sem interagirem entre si e, portanto, sem que a informação que carregavam inicialmente seja modificada durante o percurso. O campo resultante é, portanto, simplesmente a soma dos campos produzidos por cada carga.

    Note que, com essa discussão, o(a) estudante de ensino médio é apresentado, de maneira muito clara e intuitiva, a uma das leis de Maxwell do eletromagnetismo e suas implicações. Expande-se, assim, o entendimento do(a) estudante sobre fenômenos eletromagnéticos para além de meras memorizações de leis de forças e atividades operacionais puramente mecânicas.

  • A dependência da lei de força com a massa do campo é menos trivial, por se tratar de um aspecto quântico, mas possivelmente interessante mencionar (principalmente para aulas posteriores, quando se discutir interações nucleares forte e fraca). Caso os fótons tivessem massa m, o potencial eletrostático teria a forma de um potencial de Yukawa,

    (3)VYukawa e-mrr,
    correspondendo a uma força que decai muito mais rapidamente do que 1/r2, tendo um curto alcance efetivo, ref∼1/m. O fato de o fóton ser não-massivo é responsável pelo longo alcance da interação eletromagnética, bem como pelo fato de se propagar à máxima velocidade permitida para a troca de informações na Natureza: a velocidade da luz no vácuo.

E a gravitação? O campo gravitacional também não possui massa – quer dizer, o gráviton9 9 O leitor mais familiarizado com a teoria da relatividade geral já deve ter se defrontado com a afirmação de que a gravitação é consequência da geometria do espaço-tempo. Isso significa que o campo gravitacional é a métrica espaço-temporal, que, ao ser quantizada, dá origem ao gráviton enquanto partícula mediadora, do mesmo modo que o fóton advém da quantização do campo eletromagnético, como discutiremos na seção 2.7 a seguir. Muitos detalhes a respeito das propriedades dos grávitons e de suas interações ainda são desconhecidos, porque ainda não conseguimos construir uma teoria consistente da gravitação quântica, que unifique os princípios da mecânica quântica e da relatividade geral. No entanto, se a relatividade geral for, de fato, a descrição correta da gravitação macroscópica, então certamente o gráviton deve ser não-massivo. A busca por essa quantização da gravitação constitui um dos maiores problemas ainda em aberto da Física de Altas Energias. , que é a partícula associada à propagação do campo gravitacional, tem massa nula –, o que explica por que essa interação é de longo alcance, efetiva a distâncias em escala cosmológica (e também se propaga no vácuo à velocidade da luz). Mais ainda, na gravitação de Newton apenas as massas agem como fonte de gravitação, e portanto o campo gravitacional newtoniano não interage gravitacionalmente (i.e. não é autointeragente), o que implica no comportamento ∼1/r2, como vimos acima.

Entretanto, hoje se sabe que a teoria newtoniana não descreve corretamente todos os fenômenos gravitacionais, e é, em última instância, suplantada pela teoria da relatividade geral de Einstein. Nessa teoria, não só a massa dos corpos é fonte de campo gravitacional, mas toda e qualquer forma de energia e momento. Logo, a energia contida no campo gravitacional também gravita. Por isso as equações da relatividade geral são altamente não-lineares. Assim, a gravitação Newtoniana está contida na relatividade geral no limite em que se negligencia a autointeração dos grávitons.

Segue-se, dessas discussões, que a interação eletromagnética é a interação mais simples da Natureza , pois é a única linear.

Há, ainda, outras diferenças entre gravitação e eletromagnetismo.

  • A interação gravitacional é muito mais fraca que a eletromagnética. De fato, comparando-se a razão entre as magnitudes das forças eletrostática e gravitacional agindo sobre dois elétrons, vem que

    (4)|FelFg|=ke2Gme21042.

    Esse fato é facilmente comprovado notando-se que a força eletrostática entre um balão de festa e os cabelos de uma pessoa é suficiente para superar a atração gravitacional do planeta inteiro, como se vê na Figura 4. Outra maneira de formular essa discrepância entre as duas interações é notar que, em um sistema de unidades com k = G = 1, a equação (4) nos diz que a carga elétrica e a massa de uma partícula possuem as mesmas unidades, mas para o elétron a carga é ∼1021 vezes maior que a massa. Discrepâncias similares se aplicam a todas as outras partículas carregadas que conhecemos, e é uma manifestação de que a gravidade é a interação mais fraca da natureza.

    Figura 4
    A força eletrostática devido a um balão de festa é suficiente para superar a atração gravitacional de todo o planeta e fazer o cabelo levantar. Fonte: adaptado de SWNS/Splash News.

    A razão para a existência dessa hierarquia entre essas interações é um dos maiores mistérios abertos da Física de Altas Energias, denominado o problema da hierarquia . Uma proposta de solução consiste em supor que existem dimensões espaciais extras (além das três usuais com as quais estamos familiarizados), e que em última instância todas as interações têm a mesma intensidade, mas que a geometria das dimensões extras faz com que a gravitação efetiva em três dimensões se torne muito mais fraca [3535. L. Randall e R. Sundrum, Phys. Rev. Lett. 83, 9 (1999).].

  • A interação eletromagnética pode ser atrativa ou repulsiva, enquanto a gravitação é sempre atrativa. Em um sistema de partículas carregadas, as forças eletromagnéticas dominam e fazem com que elas estejam em constante movimento, sempre se repelindo e se atraindo, até o momento em que a velocidade média das partículas (i.e. a temperatura do sistema) seja suficientemente baixa para que a atração entre cargas opostas seja capaz de prendê-las em órbita, formando um sistema ligado neutro. Esse processo ocorreu no Universo primordial, cerca de 380.000 anos após o Big Bang, numa transição de fase em que os prótons e elétrons do plasma primordial se combinaram em átomos – um processo chamado na literatura de Recombinação , e que dá origem à Radiação Cósmica de Fundo [3636. V. Mukhanov, Physical Foundations of Cosmology (Cambridge University Press, New York, 2005)., 3737. S. Dodelson, Modern Cosmology (Academic Press, San Diego, 2003)., 3838. A.R. Liddle e D.H. Lyth, Cosmological Inflation and Large Scale Structure (Cambridge University Press, New York, 2000).]. Importante se ressaltar esse argumento à turma, pois ilustra como a efetiva neutralidade do Universo não é simplesmente uma condição inicial arbitrária, mas decorre de um processo físico no Universo primordial.

    Apesar de a interação eletromagnética ser muito mais forte que a gravitacional, seus efeitos de atração e repulsão tendem a se cancelar em grandes escalas, enquanto os efeitos gravitacionais são sempre cumulativos. Assim, para sistemas formados de grandes quantidades de matéria (formando corpos celestes, galáxias, conglomerados e demais estruturas cósmicas), a gravitação se torna a interação mais relevante. De fato, um dos princípios básicos da Cosmologia moderna é que, em escalas cosmológicas, é necessário levar em conta apenas a interação gravitacional entre as estruturas interagentes.

2.4.2. Eletromagnetismo e forças de contato

Outro ponto de importante menção é a ubiquidade da interação eletromagnética em fenômenos onde não se os reconhece a princípio. De seu curso de mecânica, o(a) estudante está familiarizado(a) com o conceito de gravitação e força peso atuando sobre um corpo, assim como outras formas de força que emergem do contato entre corpos (Figura 5), como a força normal, força de atrito, tensão em uma corda, forças atuantes em uma colisão, etc.

Figura 5
Forças de contato. Em última instância, todas têm origem na repulsão eletromagnética. Fontes: os autores e adaptações de [3939. https://openstax.org/books/university-physics-volume-1/pages/6-2-friction, acessado em 05/03/2021.
https://openstax.org/books/university-ph...
] e [4040. https://openstax.org/books/college-physics/pages/8-6-collisions-of-point-masses-in-two-dimensions, acessado em 05/03/2021.
https://openstax.org/books/college-physi...
], respectivamente.

Entretanto, em sentido estrito, forças de contato inexistem: todas essas forças têm origem eletromagnética, advindas da repulsão entre os elétrons dos átomos que constituem os corpos, como ilustrado na Figura 6. Apesar de a magnitude da força de repulsão entre elétrons ser tipicamente muito menor do que a força peso de um corpo macroscópico, a repulsão aumenta drasticamente à medida que as distâncias entre as superfícies diminuem, existindo uma distância não-nula para a qual a força peso e a repulsão eletrostática se equilibram.

Figura 6
A força normal de uma mesa sobre um bloco é devida à repulsão entre os elétrons dos átomos das superfícies.

A revelação de que nenhum objeto está em contato com outro, e que estamos sempre ‘‘flutuando’’ sobre as superfícies onde nos apoiamos, usualmente causa fascinação e entusiasmo em estudantes. Mas mais do que isso, é importante enfatizar esse ponto porque mostra que todas as forças que vivenciamos em nosso cotidiano -- atrito, forças normais, empuxo, etc. -- têm origem eletromagnética ou gravitacional, o que abre caminho à asserção futura de que existem poucas10 10 De acordo com nosso entendimento atual, existem somente quatro interações fundamentais: a gravitacional, a eletromagnética, e as interações nucleares fraca e forte. interações elementares na natureza.

2.5. Ondas eletromagnéticas e a natureza da luz

O fato de o eletromagnetismo ser uma interação à distância [4141. M.C. da Silva e S. Krapas, Rev. Bras. Ens. Fís. 29, 471 (2007).] suscita uma questão importante: como partículas distantes sabem do comportamento das demais para reagirem de maneira a satisfazer as leis da eletrodinâmica? Como um elétron no receptor de um celular sabe que existem elétrons se movendo na antena emissora do sinal? Essa problemática tem relação direta com aplicações tecnológicas que permeiam o cotidiano dos(as) estudantes, que podem (e devem) ser usadas como motivação para essa aula. Perguntas do tipo “Como os telefones celulares enviam e recebem mensagens?”, ou “Como funcionam tecnologias wireless?” podem servir como problema inicial em uma aula investigativa.

A discussão pode ser então guiada a uma ênfase no papel do campo eletromagnético enquanto mediador da interação e, mais importante, enquanto ente físico com dinâmica própria. As conclusões centrais que devem ser atingidas pelos(as) estudantes são: (i) a existência de uma carga elétrica gera um campo eletromagnético; (ii) caso o estado de movimento da carga seja alterado, o campo é modificado em seu entorno imediato, e essa modificação se propaga como uma onda; (iii) quando a onda atinge uma outra carga, transfere-lhe energia e momento, alterando seu estado de movimento, i.e. comunicando-lhe o movimento apropriado. Algumas simulações interativas visando auxiliar a compreensão desses efeitos podem ser encontradas em [4242. https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/radiating-charge, acessado em 05/03/2021.
https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulati...
, 4343. https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/radio-waves, acessado em 05/05/2021.
https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulati...
] (ver Figuras 7 e 8). A conclusão final da investigação é que a existência de radiação eletromagnética garante que a causalidade seja preservada pela interação.

Figura 7
Simulação interativa PhET Colorado: Irradiando Carga. Na imagem da esquerda, a carga está em repouso e as linhas de campo são radiais. À direita, a carga foi posta em movimento e as linhas se deformam para acompanhá-la. Essa deformação se propaga, constituindo a onda eletromagnética. Fonte: [4242. https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/radiating-charge, acessado em 05/03/2021.
https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulati...
].
Figura 8
Simulação interativa PhET Colorado: Ondas de Rádio e Campos Eletromagnéticos. A simulação ilustra como a oscilação dos elétrons em uma antena transmissora gera uma onda eletromagnética, que se propaga até outra antena receptora, fazendo seus elétrons oscilarem à mesma frequência que os da fonte. Assim, o sinal é transmitido de um ponto a outro sem intermédio de fios. Nessa simulação o(a) estudante pode interagir movendo o elétron da antena com o mouse e produzindo seu próprio sinal. Fonte: [4343. https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/radio-waves, acessado em 05/05/2021.
https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulati...
].

O processo de emissão e recepção de ondas eletromagnéticas engloba, em uma só temática, todos os aspectos centrais da teoria eletromagnética. A etapa (i) oferece a oportunidade de se discutir a Lei de Gauss, a etapa (ii) possibilita discutir o fenômeno de indução

de campos elétricos pela variação de campos magnéticos (e vice-versa), enquanto (iii) está associado à força de Lorentz sobre uma carga.

Mais especificamente, pode-se apresentar as equações de Maxwell de maneira intuitiva e acessível a estudantes de ensino médio, substituindo-se as expressões matemáticas, envolvendo derivadas e integrais, por suas interpretações físicas em forma de sentenças enunciativas (cf. ref. [4444. R.P. Feynman, R.B. Leighton e M. Sands, Lições de Física de Feynman (Bookman, Porto Alegre, 2008).], Vol. II, Cap. 1).

Por exemplo, a Lei de Gauss, que rege a maneira como o campo elétrico é gerado por uma carga, foi apresentada na seção 2.4.1 2.4.1. Semelhanças e diferenças entre eletromagnetismo e gravitação A lei de força da interação entre duas partículas estáticas eletricamente carregadas (Lei de Coulomb) tem importantes semelhanças e diferenças frente à lei de atração gravitacional de Newton (vide Figura 2), e uma discussão aprofundada sobre as causas dessas (dis)similitudes abre inúmeras possibilidades de discussões em sala de aula, todas ricas em conteúdo físico, algumas propícias ao desenvolvimento da intuição dos estudantes, e ainda outras que levam a questões profundas que continuam em aberto na Física de Partículas. Figura 2 Dois elétrons sob a ação da atração gravitacional F→g, devido a suas massas me, e da repulsão eletrostática F→e⁢l devido a suas cargas −e. A semelhança é óbvia: ambas leis de força seguem o padrão (1) força = constante × (produto de cargas) (distância) 2 . Por que isso ocorre? O produto das cargas tem que aparecer para que a terceira lei de Newton seja satisfeita6: a força agindo sobre A devido a B deve ser proporcional7 à carga de A, e deve ter mesma magnitude que a força em B devido a A, que por sua vez é proporcional à carga de B. A constante aparece devido à escolha de unidades. Por exemplo, em unidades Gaussianas, a constante da Lei de Coulomb é igual a 1. A física mais interessante está no comportamento ∼1/r2 dessas forças, que merece uma discussão mais aprofundada e cuidadosa com os(as) alunos(as). Em última instância, a Lei de Coulomb tem essa forma porque o campo eletromagnético/o fóton/a luz não possui carga nem massa. Para explicar essa afirmação, deve-se primeiramente introduzir o conceito de campo elétrico, incluindo sua manifestação visual em termos de linhas de campo e como as cargas elétricas constituem fontes e sumidouros dessas linhas8. A partir daí, segue-se que: Como o próprio campo não carrega a carga com a qual ele interage (i.e. o campo eletromagnético não é autointeragente), a única fonte de linhas de campo é a matéria, que é o enunciado da Lei de Gauss, (2) ∇ ⋅ E → ⏟ fonte de campo ∼ ρ ⏟ carga , expressa ilustrativamente na Figura 3(a). Por isso, o fluxo de linhas de campo através de uma superfície fechada englobando a carga é sempre constante, pois não há novas linhas de campo surgindo no espaço entre a carga e a superfície. Aqui, uma analogia com um fluido pode ser evocada: se interpretarmos a carga central na Figura 3(a) como uma fonte de água em um chafariz, Figura 3(b), o fluxo de água atravessando as circunferências pontilhadas em um determinado instante é sempre igual ao fluxo de água jorrando da fonte, contanto que não haja novas fontes ou sumidouros de água no meio do percurso. Portanto a quantidade de água que atravessa as circunferências pontilhadas, por unidade de comprimento dessa circunferência, decresce com a distância à fonte como ∼1/2πr. Ou seja, se temos em nossas mãos um copo, e queremos enchê-lo com a água escorrendo através da borda do chafariz, o tempo necessário para encher o copo variará com o inverso da distância da borda à fonte. Retornando ao caso eletromagnético de interesse, em que as linhas de campo se espalham por todo o espaço tridimensional, o fluxo dessas linhas de campo é constante sobre qualquer esfera de raio r, de modo que a densidade de linhas de campo (que corresponde à intensidade do campo) decai com a área dessa esfera, E∼1/4πr2. Pelo mesmo argumento, podemos identificar como seria a Lei de Coulomb em espaços de d-dimensões: E∼1/rd−1 (o volume de uma esfera d-dimensional é ∼rd, e sua área é ∼rd−1). Figura 3 (a) Linhas de campo elétrico geradas por uma carga pontual. O número de linhas atravessando uma superfície fechada é sempre constante, o que significa que a densidade de linhas diminui com a distância. Para um espaço tridimensional, a redução é ∼1/r2. (b) Toda a água que emana da fonte escorre através da borda do chafariz. A quantidade de água que atravessa uma unidade de comprimento desse perímetro varia com o inverso da distância da borda à fonte, ∼1/r. Fonte: Domínio Público. Caso o campo eletromagnético portasse carga elétrica, as próprias linhas de campo seriam fonte de novas linhas de campo, e o fluxo não seria constante, invalidando o argumento acima. Mais ainda: o fato de o campo eletromagnético não ser autointeragente é também a causa da linearidade das equações de Maxwell, e do princípio da superposição em particular. É fácil entender por que: os campos produzidos por duas cargas se propagam no espaço sem interagirem entre si e, portanto, sem que a informação que carregavam inicialmente seja modificada durante o percurso. O campo resultante é, portanto, simplesmente a soma dos campos produzidos por cada carga. Note que, com essa discussão, o(a) estudante de ensino médio é apresentado, de maneira muito clara e intuitiva, a uma das leis de Maxwell do eletromagnetismo e suas implicações. Expande-se, assim, o entendimento do(a) estudante sobre fenômenos eletromagnéticos para além de meras memorizações de leis de forças e atividades operacionais puramente mecânicas. A dependência da lei de força com a massa do campo é menos trivial, por se tratar de um aspecto quântico, mas possivelmente interessante mencionar (principalmente para aulas posteriores, quando se discutir interações nucleares forte e fraca). Caso os fótons tivessem massa m, o potencial eletrostático teria a forma de um potencial de Yukawa, (3)VYukawa ∼e-m⁢rr, correspondendo a uma força que decai muito mais rapidamente do que 1/r2, tendo um curto alcance efetivo, ref∼1/m. O fato de o fóton ser não-massivo é responsável pelo longo alcance da interação eletromagnética, bem como pelo fato de se propagar à máxima velocidade permitida para a troca de informações na Natureza: a velocidade da luz no vácuo. E a gravitação? O campo gravitacional também não possui massa – quer dizer, o gráviton9, que é a partícula associada à propagação do campo gravitacional, tem massa nula –, o que explica por que essa interação é de longo alcance, efetiva a distâncias em escala cosmológica (e também se propaga no vácuo à velocidade da luz). Mais ainda, na gravitação de Newton apenas as massas agem como fonte de gravitação, e portanto o campo gravitacional newtoniano não interage gravitacionalmente (i.e. não é autointeragente), o que implica no comportamento ∼1/r2, como vimos acima. Entretanto, hoje se sabe que a teoria newtoniana não descreve corretamente todos os fenômenos gravitacionais, e é, em última instância, suplantada pela teoria da relatividade geral de Einstein. Nessa teoria, não só a massa dos corpos é fonte de campo gravitacional, mas toda e qualquer forma de energia e momento. Logo, a energia contida no campo gravitacional também gravita. Por isso as equações da relatividade geral são altamente não-lineares. Assim, a gravitação Newtoniana está contida na relatividade geral no limite em que se negligencia a autointeração dos grávitons. Segue-se, dessas discussões, que a interação eletromagnética é a interação mais simples da Natureza , pois é a única linear. Há, ainda, outras diferenças entre gravitação e eletromagnetismo. A interação gravitacional é muito mais fraca que a eletromagnética. De fato, comparando-se a razão entre as magnitudes das forças eletrostática e gravitacional agindo sobre dois elétrons, vem que (4)|F→e⁢lF→g|=k⁢e2G⁢me2∼1042. Esse fato é facilmente comprovado notando-se que a força eletrostática entre um balão de festa e os cabelos de uma pessoa é suficiente para superar a atração gravitacional do planeta inteiro, como se vê na Figura 4. Outra maneira de formular essa discrepância entre as duas interações é notar que, em um sistema de unidades com k = G = 1, a equação (4) nos diz que a carga elétrica e a massa de uma partícula possuem as mesmas unidades, mas para o elétron a carga é ∼1021 vezes maior que a massa. Discrepâncias similares se aplicam a todas as outras partículas carregadas que conhecemos, e é uma manifestação de que a gravidade é a interação mais fraca da natureza. Figura 4A força eletrostática devido a um balão de festa é suficiente para superar a atração gravitacional de todo o planeta e fazer o cabelo levantar. Fonte: adaptado de SWNS/Splash News. A razão para a existência dessa hierarquia entre essas interações é um dos maiores mistérios abertos da Física de Altas Energias, denominado o problema da hierarquia . Uma proposta de solução consiste em supor que existem dimensões espaciais extras (além das três usuais com as quais estamos familiarizados), e que em última instância todas as interações têm a mesma intensidade, mas que a geometria das dimensões extras faz com que a gravitação efetiva em três dimensões se torne muito mais fraca [35]. A interação eletromagnética pode ser atrativa ou repulsiva, enquanto a gravitação é sempre atrativa. Em um sistema de partículas carregadas, as forças eletromagnéticas dominam e fazem com que elas estejam em constante movimento, sempre se repelindo e se atraindo, até o momento em que a velocidade média das partículas (i.e. a temperatura do sistema) seja suficientemente baixa para que a atração entre cargas opostas seja capaz de prendê-las em órbita, formando um sistema ligado neutro. Esse processo ocorreu no Universo primordial, cerca de 380.000 anos após o Big Bang, numa transição de fase em que os prótons e elétrons do plasma primordial se combinaram em átomos – um processo chamado na literatura de Recombinação , e que dá origem à Radiação Cósmica de Fundo [36, 37, 38]. Importante se ressaltar esse argumento à turma, pois ilustra como a efetiva neutralidade do Universo não é simplesmente uma condição inicial arbitrária, mas decorre de um processo físico no Universo primordial. Apesar de a interação eletromagnética ser muito mais forte que a gravitacional, seus efeitos de atração e repulsão tendem a se cancelar em grandes escalas, enquanto os efeitos gravitacionais são sempre cumulativos. Assim, para sistemas formados de grandes quantidades de matéria (formando corpos celestes, galáxias, conglomerados e demais estruturas cósmicas), a gravitação se torna a interação mais relevante. De fato, um dos princípios básicos da Cosmologia moderna é que, em escalas cosmológicas, é necessário levar em conta apenas a interação gravitacional entre as estruturas interagentes. em termos do fluxo das linhas de campo e como elas se originam e terminam em cargas elétricas. Especificamente, o fluxo do campo elétrico E sobre uma superfície é constante, proporcional à carga contida em seu interior,

(5) fluxo de E através de superfície fechada = carga contida no interior da superfície

A partir daí, o docente pode estimular os(as) próprios(as) alunos(as) a enunciar a lei análoga para campos magnéticos, bastando dizer-lhes que nunca foram observadas cargas magnéticas (i.e. monopolos magnéticos). O lado direito deve ser, então, igualado a zero, concluindo-se que o fluxo de campo magnético B se anula sobre superfícies fechadas.

“Qual é, então, a fonte de campos magnéticos?”. A questão gera a ocasião para apresentar as outras duas equações de Maxwell,

(6) circulação de B em torno de C = corrente elétrica através de S + variação temporal do fluxo de E através de S
(7) circulação de E em torno de C = variação temporal do fluxo de ( B ) , através de S

onde S é uma superfície arbitrária e C seu contorno, como ilustrado na Figura 9.

Figura 9
Uma superfície arbitrária S delimitada por uma curva fechada C.

Assim, a variação de um campo elétrico no tempo (por ex., devido à aceleração da partícula fonte desse campo) gera um campo magnético variável, que gera um campo elétrico variável, e assim sucessivamente. Com essa argumentação, pode-se mostrar aos estudantes o princípio básico por trás da propagação das ondas eletromagnéticas. A Figura 10 mostra um esquema simplificado do processo, mais intuitivo e de mais fácil apreensão.

Figura 10
(a) Esquema do ciclo retroalimentativo que sustenta a propagação da onda eletromagnética. (b) Uma onda eletromagnética propagando-se na direção x consiste em oscilações dos campos elétrico e magnético no plano yz. No vácuo esses campos são sempre mutuamente perpendiculares. Note que não há componentes dos campos na direção de propagação: diz-se que a onda eletromagnética é uma onda transversal. Fonte: Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0.

A introdução do conceito de ondas eletromagnéticas abre um leque de possibilidades ao docente, que pode abordar temáticas consideradas pelos(as) próprios(as) estudantes como altamente interessantes [33. A.M.S. Gouw, As opiniões, interesses e atitudes dos jovens brasileiros frente à ciência: uma avaliação em âmbito nacional. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo (2013).], tais como:

  • o funcionamento de antenas de emissão e recepção, e como ondas eletromagnéticas estão presentes em tecnologias atuais de telecomunicação (celulares, transmissão de sinal wifi, etc.);

  • propriedades fundamentais de ondas gerais, e de ondas eletromagnéticas em particular (frequência, comprimento de onda, amplitude); o espectro eletromagnético e aplicações tecnológicas e medicinais de cada uma de suas bandas (ondas de TV e rádio, microondas, infravermelho, raios solares ultravioleta, raios-X, etc.), ilustradas na Figura 11. O(A) docente pode, por exemplo, discutir como o microondas funciona enquanto uma cavidade ressonante: a onda eletromagnética faz as moléculas de água dos alimentos vibrarem, aumentando sua temperatura. Note que as regiões que se localizam nos nós da onda eletromagnética do aparelho não serão aquecidas. Por isso, o alimento deve ser posto a girar para que nenhum ponto fique parado no mesmo lugar da cavidade durante todo o período do processo de aquecimento do alimento. Pode-se usar a pipoca de microondas como um exemplo divertido para os(as) estudantes;

    Figura 11
    Algumas aplicações de diversas bandas do espectro eletromagnético, que podem ser exploradas em sala em um contexto CTSA. Fonte: Domínio Público.

  • como atividade, o(a) docente pode pedir que os(as) estudantes pesquisem a banda de frequência em que funcionam os roteadores wifi a que têm acesso, e computem o comprimento de onda associado, localizando-o no espectro eletromagnético. Que outros aparelhos domésticos funcionam nessa mesma banda do espectro? O funcionamento de roteadores oferece uma interessante aplicação tecnológica cotidiana da teoria eletromagnética, e tem grande potencial de ser um tópico atraente para muitos(as) estudantes interessados nessa área de informática e/ou tecnologia da informação;

  • interessante destacar, também, a natureza da luz enquanto onda eletromagnética, e alguns aspectos históricos a respeito dessa descoberta. A possibilidade de existência de tais ondas foi estabelecida por Maxwell em 1864, que também calculou a velocidade de propagação, encontrando um valor muito próximo à velocidade da luz (cujo valor já era conhecido na época), concluindo, então, que a luz é uma onda eletromagnética. Esse resultado tem um valor histórico inestimável: a partir de grandezas medidas em laboratório com o uso de circuitos elétricos, fios, voltímetros etc., Maxwell pôde extrair uma conclusão sobre a natureza da luz, um fenômeno que não parece ter qualquer relação com aqueles experimentos! A natureza ondulatória da luz já era conhecida desde que Young realizou seu experimento de fenda dupla em 1801. No entanto, não se conhecia ainda o substrato oscilante nessas ondas, cabendo a Maxwell tal identificação;

  • pode-se, ainda, mencionar o espectro de corpo negro, ou, mais geralmente, o fato de que todo corpo emite radiação eletromagnética devido à sua temperatura. Esse espectro contém um pico, e a frequência no pico de emitância é proporcional à temperatura do corpo, o que significa que quanto mais quente for o corpo, mais “azulada” é a radiação emitida por ele. O(a) docente pode propor aos(às) estudantes interagirem com a simulação encontrada na ref. [4545. https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/blackbody-spectrum, acessado em 05/03/2021.
    https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulati...
    ], que mostra como o espectro de emitância de um corpo varia com a temperatura, como na Figura 12. Essa dependência do pico de emitância com a temperatura é utilizada, por exemplo, para medir a temperatura de estrelas a partir do espectro de luz que elas emitem. A superfície do Sol está a uma temperatura de aproximadamente 5500 K, e seu espectro de emissão tem um pico justamente na região da luz visível, i.e. a maior parte da radiação emitida pelo Sol encontra-se na faixa que nós conseguimos enxergar. Isso não é uma coincidência, mas produto da seleção natural. O apêndice A.1 A.1. Espectro de emitância solar Uma interessante atividade em diálogo com a Biologia consiste em apresentar o espectro de emissão solar (i.e. a potência de ondas eletromagnéticas emitidas pelo Sol em função da frequência da onda), Figura 30, que tem pico de máximo precisamente na região do visível, e lançar à turma o desafio de tentar explicar a “coincidência” de o Sol ser mais luminoso justamente na faixa em que nós enxergamos o espectro eletromagnético. Pela experiência dos autores, não haverá grandes dificuldades da turma em invocar o mecanismo de seleção natural. Figura 30 Espectro de emissão de radiação pelo Sol. Note o pico exatamente na região do visível, com máximo na faixa da cor verde. Fonte: Domínio público. Ainda mais intrigante, entretanto, é que o pico do espectro solar corresponde à radiação na faixa da cor verde, que é justamente a cor das folhas das plantas. Isso significa que, embora usem absorção de luz para realizarem fotossíntese, as folhas refletem a faixa de frequência em que há mais luminosidade disponível. Como explicar esse aparente paradoxo? Também essa questão, cuja solução é bastante mais elaborada, pode ser lançada à turma, para que, individualmente ou em grupos, tentem formular hipóteses plausíveis que expliquem tal fato, exercitando assim o raciocínio e criatividade no âmbito científico. Uma proposta recente de se explicar o aparente paradoxo é a chamada “hipótese da Terra roxa” [83]. Uma discussão sobre o assunto pode ser articulada conjuntamente com o(a) professor(a) de Biologia da instituição de ensino, pois envolve, em igual medida, conhecimentos de Física (espectro eletromagnético, espectro de emissão solar, a cor dos objetos) e Biologia (mecanismos de seleção natural e especiação, fotossíntese), fornecendo uma excelente oportunidade para se superar a compartimentalização do ensino científico na escola, além de promover atividades diferenciadas com um viés de ensino investigativo. contém uma proposta de atividade interdisciplinar, a ser realizada com os(as) estudantes e potencialmente em conjunto com o(a) professor(a) da área de Biologia, explorando esse fato. A Figura 30 encontrada naquela seção ilustra o espectro de emitância solar sobreposto ao de um corpo negro ideal à temperatura 5500 K.

    Figura 12
    Imagem da simulação interativa PhET Colorado: Espectro de Corpo Negro. Fonte: [4545. https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/blackbody-spectrum, acessado em 05/03/2021.
    https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulati...
    ].

A Figura 13 ilustra diversos aspectos do espectro eletromagnético, e pode ser extremamente útil ao(à) docente na elaboração de sua aula e das atividades a serem propostas relativas a essa temática.

Figura 13
Diversos tipos de radiação eletromagnética, caracterizados por uma banda específica de frequência e comprimento de onda do espectro completo. A cada banda, atribui-se também um objeto cujo tamanho típico é da mesma ordem de magnitude do comprimento da onda correspondente: tratam-se dos menores objetos que podem ser distinguidos por meio dessas ondas. Por exemplo, microorganismos podem ser vistos sob um microscópio usual, funcionando à base de luz visível, mas para distinguir moléculas ou átomos é preciso fazer incidir radiação muito mais energética, de menor comprimento de onda. As frequências de cada banda são associadas, também, às cores da radiação correspondente, divididas em três regiões: o infravermelho, o espectro contínuo da luz visível, e o ultravioleta. Por fim, ilustra-se também a temperatura de um corpo cujo espectro de emissão termal é predominante na banda em questão. Fonte: Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0.

2.6. Dualidade onda-partícula

A discussão da temática de ondas eletromagnéticas abre a possibilidade de se adentrar em temas de física moderna, como a teoria da relatividade restrita ou a dualidade onda-partícula em mecânica quântica. Embora ambos sejam de suma importância para a Física de Partículas, nesta sequência didática focamos no aspecto quântico visando a introdução do conceito de fóton. Para propostas didáticas visando o ensino de relatividade no ensino médio vide refs. [4646. A. Guerra, M. Braga e J.C. Reis, Rev. Bras. Ens. Fís. 29, 575 (2007)., 4747. D. Capelari, Uma sequência didática para ensinar relatividade restrita no ensino médio com o uso de TIC. Dissertação de Mestrado, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba (2016)., 4848. M.R. Rabelo de Sá, Teoria da Relatividade Restrita e Geral ao longo do 1o ano do ensino médio: uma proposta de inserção. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, Brasília (2015).].

A dualidade onda-partícula da luz pode ser introduzida de diversas maneiras.

  • Invocando-se o experimento de Young da fenda dupla, pode-se, em um primeiro momento da aula, discutir as expectativas dos(as) alunos(as) quanto à imagem formada no aparato de incidência, quando o objeto incidente for uma partícula clássica (Figura 14) e quando for uma onda (para esse caso pode-se explorar, junto aos(às) alunos(as), a simulação interativa disponível em [4949. https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/wave-interference, acessado em 05/03/2021.
    https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulati...
    ]). Em um segundo momento da aula, discute-se (ou realiza-se em sala) o experimento de Young, que detectou franjas de interferência para a luz, mostrando tratar-se de um fenômeno de natureza ondulatória. Posteriormente, discute-se o que ocorre quando se reduz suficientemente a intensidade do feixe luminoso, resultando nos padrões mostrados na Figura 15. As franjas são reveladas aos poucos, a partir de detecções de partículas pontuais, revelando assim o caráter corpuscular da luz (para imagens e vídeo ilustrativo que podem ser usados em sala de aula, consultar ref. [5050. https://www.forbes.com/sites/startswithabang/2019/09/18/this-one-experiment-reveals-more-about-reality-than-any-quantum-interpretation-ever-will/, acessado em 05/03/2021.
    https://www.forbes.com/sites/startswitha...
    ]).

    Figura 14
    Padrão esperado para um feixe de partículas clássicas lançadas contra uma tela com duas fendas. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público.
    Figura 15
    Para partículas quânticas, o padrão de interferência é inicialmente imperceptível, mas emerge paulatinamente à medida que mais estatística é coletada pelo experimento. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio público.

    A discussão do experimento da fenda dupla em sala de aula cria, também, uma excelente oportunidade de desmistificar a mecânica quântica, o que é especialmente importante levando-se em conta a quantidade de charlatães que usam os resultados não-intuitivos desse experimento para propor que a Física corrobora suas interpretações esotéricas do mundo.

    Mais especificamente, o surgimento de um padrão de interferência para um feixe de partículas pode ser explorado para se discutir a necessidade de se abandonar o conceito de trajetórias bem definidas (que deveria levar ao padrão dado pela Figura 14), e, consequentemente, a necessidade de se reformular a mecânica. Pode-se usar esse gancho para discutir o princípio da incerteza de Heisenberg, e como esse princípio explica o fenômeno de destruição do padrão de interferência quando um observador detecta por qual fenda a partícula passou (cf. ref. [4444. R.P. Feynman, R.B. Leighton e M. Sands, Lições de Física de Feynman (Bookman, Porto Alegre, 2008).], Vol. III, Seção 1.8). Também é essencial esclarecer aos estudantes que não se deve pensar em partículas quânticas como “bolinhas” movendo-se classicamente. A propósito, fazer uso de analogias com a mecânica clássica geralmente leva a uma confusão de conceitos [5151. O. Passon, T. Zügge e J. Grebe-Ellis, Phys. Educ. 54, 1 (2019).]. Os fótons devem ser vistos como pacotes de energia e momento. O mesmo vale para todas as partículas elementares. Isso ficará mais claro quando se apresentar a definição de partícula no paradigma de Teorias Quânticas de Campos, como a Eletrodinâmica Quântica, que será apresentada na seção seguinte.

  • Outra evidência em favor do caráter corpuscular da luz é o efeito fotoelétrico/fotovoltaico. Por constituir o princípio básico do funcionamento de células fotovoltaicas, essa temática pode ser abordada em um contexto de aula investigativa [5252. A. Freitas, M. Ferreira e O.L. da Silva Filho, Revista do Professor de Física 3, 37 (2019).] ou, ainda, em diálogo mais amplo com outras disciplinas escolares em contexto CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) [5353. C.E. Lima, A energia fotovoltaica num contexto CTSA: uma sequência de ensino sobre as transformações de energia solar em energia elétrica. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (2018).]. Uma proposta de tal atividade encontra-se delineada no apêndice A.2 A.2. Efeito fotovoltaico e energia solar Ao invés de apresentar em aula a explicação de Einstein para o efeito fotoelétrico, o docente pode descrever brevemente o fenômeno da ejeção de elétrons de uma superfície metálica quando iluminada por uma fonte de luz, junto dos seguintes fatos experimentais: existe uma frequência mínima da luz incidente abaixo da qual nenhum elétron é ejetado. Essa frequência mínima depende do material de que é feita a superfície; a energia cinética dos elétrons ejetados aumenta com a frequência da luz incidente, mas não depende de sua intensidade; o número de elétrons ejetados não depende da frequência da luz incidente, mas aumenta com sua intensidade. Sugere-se, então, que os(as) estudantes discutam possíveis explicações para essas observações. Pode-se direcioná-los(as) a usar o conceito de fóton introduzido por outras vias, ou deixá-los(as) concluir sobre a necessidade de se tratar a luz como constituída de corpúsculos. O objetivo central é que sejam capazes de construir a relação Einsteiniana dada pela equação (8), e identificar que a intensidade da luz está relacionada ao número de fótons. Pode ser uma atividade desafiadora aos estudantes, mas o(a) docente pode e deve intervir para ajudá-los a construir o raciocínio que leva à impossibilidade de explicar esse comportamento pela teoria ondulatória da luz, e formular o conceito de fóton. Complementar à discussão do efeito fotoelétrico, pode-se propor que os(as) alunos(as) pesquisem e redijam um texto, ou apresentem curtos seminários sobre assuntos relativos a energia solar e células fotovoltaicas. Como essas células funcionam? Quais são as vantagens e desvantagens perante outras formas de geração de energia elétrica? Quais são os potenciais impactos ambientais? Qual é a eficiência típica de tais células? Onde elas são utilizadas? Pode-se indicar as refs. [84, 85, 86] (e demais referências citadas por essas) como alguns textos base à pesquisa. Caso o(a) docente queira preparar uma sequência de aulas voltada a essa temática, pode se basear na ref. [53]. .

    Ademais, a discussão do efeito fotoelétrico permite a apresentação da relação de Einstein para a energia dos “pacotes de onda eletromagnética”,

    (8) ( energia da partícula ) = ( constante ) × ( frequência da onda associada ) ,

    relação que quantifica a dualidade ao associar uma grandeza tipicamente ligada a partículas a uma propriedade ondulatória.

Seja qual for o caminho escolhido, o objetivo a se atingir é introduzir o conceito de fótons enquanto partículas da radiação eletromagnética.

2.7. Eletrodinâmica Quântica

2.7.1. O campo eletromagnético quântico

A introdução do conceito de fóton implica, em um primeiro momento, em uma ambiguidade na descrição da radiação eletromagnética, que passa a ser ao mesmo tempo tratada como oscilação de um campo clássico e como ente com propriedades quânticas11 11 Note que essa ambiguidade não está associada à dualidade onda-partícula. O problema acima exposto diz respeito à impossibilidade de um mesmo objeto possuir um caráter clássico e quântico, simultaneamente. Já a dualidade onda-partícula é introduzida justamente como superação dos conceitos clássicos de “onda” e “partícula”, que não se aplicam a objetos quânticos. . Como o caráter quântico dos fótons poderia emergir da propagação de um campo clássico? Essa inconsistência aponta para a necessidade de se quantizar o campo eletromagnético, i.e. descrevê-lo inteiramente de acordo com o paradigma quântico.

A teoria quântica que descreve a interação entre partículas carregadas (por ex. elétrons) e o campo eletromagnético quantizado é chamada de Eletrodinâmica Quântica (Quantum Electrodynamics ou QED em inglês).

Na QED, o campo eletromagnético passa a ser visto como uma ‘‘superfície’’ tridimensional12 12 Mais precisamente, uma hipersuperfície. vibratória que preenche todo o volume do espaço, análoga à superfície de um instrumento musical de percussão, como a pele de um tambor. À parte da dimensionalidade -- o campo preenche todo o espaço, enquanto a pele percussiva é plana, bidimensional --, a única (e crucial) distinção se deve ao caráter clássico das vibrações do instrumento musical e ao caráter quântico do campo quantizado13 13 Tecnicamente, tanto a superfície sonora quanto o campo da QED podem ser descritos como uma coleção de osciladores harmônicos, mas no primeiro caso os osciladores são clássicos, e no segundo são osciladores quânticos. . A partir dessa analogia, e da compreensão de suas limitações, pode-se entender conceitos fundamentais da QED (e de Teorias Quânticas de Campos em geral).

Primeiramente, assim como a superfície percussiva possui um estado em que não há quaisquer vibrações e nenhum som é emitido, também o campo quântico possui um estado fundamental, que é chamado de estado de vácuo (a motivação para essa nomenclatura ficará clara a seguir). No entanto, note que, por se tratar de um objeto quântico, não é possível afirmar que o campo no estado fundamental está em repouso. O princípio da incerteza garante que, mesmo no estado fundamental, há vibrações do campo, associadas à chamada “energia de ponto-zero”. Isso significa que o vácuo quântico tem energia, fato que tem consequências observáveis e aplicações práticas/tecnológicas, tais como:

  • o efeito Casimir, que consiste na atração de duas placas metálicas, eletricamente neutras, imersas no vácuo. A atração se deve à modificação da energia do vácuo quântico na presença das placas. Mais especificamente, quanto mais próximas as placas, menor a energia do vácuo na região por elas limitadas;

  • o processo de emissão espontânea de um fóton por um átomo no estado excitado, que dá origem aos espectros atômicos. No formalismo de Schrödinger da mecânica quântica, todas as camadas eletrônicas do átomo correspondem a estados estacionários, e a probabilidade de transição entre eles é nula. A transição do elétron entre camadas, e a consequente emissão de um fóton, só ocorre devido à interação do elétron com o vácuo eletromagnético quântico;

  • por possuir energia, a relatividade geral de Einstein garante que o vácuo quântico gravita . Essa energia do vácuo age como uma constante cosmológica, contribuindo para a expansão acelerada do Universo. Entretanto, quando se compara a previsão teórica para a energia do vácuo quântico com o valor da constante cosmológica medido com base em observações da expansão do Universo, há uma discrepância de 120 ordens de magnitude! Ou seja, trata-se da pior previsão da história da Física! Esse é o chamado problema da constante cosmológica, ainda sem solução [5454. C.P. Burgess, em Les Houches Summer School “Post-Planck Cosmology”, editado por C. Deffayet, P. Peter, B. Wandelt, M. Zaldarriaga e L.F. Cugliandolo (Oxford Scholarship Online, Oxford, 2015)., 5555. R.J. Adler, B. Casey e O.C. Jacob, Am. J. Phys. 63, 620 (1995).].

Além do estado fundamental, uma superfície vibratória pode, obviamente, oscilar de diversas maneiras. Dentre elas, destacam-se os chamados modos normais de vibração, associados a ondas estacionárias, em que todos os pontos da superfície oscilam com a mesma frequência, como exemplificado ilustrativamente na Figura 16. Em um instrumento musical, um modo normal está associado a uma nota musical específica: quando se ataca a pele de um tambor, ela vibra em um modo normal e emite som da frequência para a qual o instrumento foi previamente afinado. No caso de um campo quântico, um modo normal de vibração corresponde a uma partícula de energia e momento definidos. Note o caráter explicitamente dual dessa descrição, que traça paralelos diretos entre partículas com energia definida e modos de oscilação de determinada frequência. O fato de a vibração não estar localizada em nenhuma região, mas ocorrer em todo o espaço ocupado pelo campo, como ilustrado na Figura 16, está de acordo com o esperado pelo princípio da incerteza de Heisenberg quando aplicado a uma partícula cujo momento linear é conhecido precisamente.

Figura 16
Momentos distintos de um ciclo oscilatório associado a um modo normal de vibração para uma superfície bidimensional. No caso de um instrumento de percussão, esse padrão corresponderia a uma nota musical (i.e. uma frequência sonora) específica. Para um campo quântico, corresponde a uma partícula com energia e momento específicos. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público.

Essa interpretação de partículas como excitações do campo em modos normais de vibração justifica, ainda, a nomenclatura de vácuo para o estado fundamental, por corresponder ao caso em que o número de partículas se anula.

Por fim, enfatiza-se que a mesma interpretação se aplica a partículas materiais: o elétron também é um modo normal de vibração de um campo fundamental, que podemos chamar de campo eletrônico ou campo do elétron. Isso explica, aliás, por que todos elétrons do Universo são idênticos: todos são vibrações de um único campo fundamental. O Modelo Padrão da Física de Partículas, embasado no formalismo de Teoria Quântica de Campos, é ao mesmo tempo uma teoria de partículas e uma teoria de interação entre campos.

2.7.2. Fótons virtuais como mediadoresda interação eletromagnética

Em discussões anteriores (vide seções 2.4.2 2.4.2. Eletromagnetismo e forças de contato Outro ponto de importante menção é a ubiquidade da interação eletromagnética em fenômenos onde não se os reconhece a princípio. De seu curso de mecânica, o(a) estudante está familiarizado(a) com o conceito de gravitação e força peso atuando sobre um corpo, assim como outras formas de força que emergem do contato entre corpos (Figura 5), como a força normal, força de atrito, tensão em uma corda, forças atuantes em uma colisão, etc. Figura 5 Forças de contato. Em última instância, todas têm origem na repulsão eletromagnética. Fontes: os autores e adaptações de [39] e [40], respectivamente. Entretanto, em sentido estrito, forças de contato inexistem: todas essas forças têm origem eletromagnética, advindas da repulsão entre os elétrons dos átomos que constituem os corpos, como ilustrado na Figura 6. Apesar de a magnitude da força de repulsão entre elétrons ser tipicamente muito menor do que a força peso de um corpo macroscópico, a repulsão aumenta drasticamente à medida que as distâncias entre as superfícies diminuem, existindo uma distância não-nula para a qual a força peso e a repulsão eletrostática se equilibram. Figura 6 A força normal de uma mesa sobre um bloco é devida à repulsão entre os elétrons dos átomos das superfícies. A revelação de que nenhum objeto está em contato com outro, e que estamos sempre ‘‘flutuando’’ sobre as superfícies onde nos apoiamos, usualmente causa fascinação e entusiasmo em estudantes. Mas mais do que isso, é importante enfatizar esse ponto porque mostra que todas as forças que vivenciamos em nosso cotidiano -- atrito, forças normais, empuxo, etc. -- têm origem eletromagnética ou gravitacional, o que abre caminho à asserção futura de que existem poucas10 interações elementares na natureza. e 2.5 2.5. Ondas eletromagnéticas e a natureza da luz O fato de o eletromagnetismo ser uma interação à distância [41] suscita uma questão importante: como partículas distantes sabem do comportamento das demais para reagirem de maneira a satisfazer as leis da eletrodinâmica? Como um elétron no receptor de um celular sabe que existem elétrons se movendo na antena emissora do sinal? Essa problemática tem relação direta com aplicações tecnológicas que permeiam o cotidiano dos(as) estudantes, que podem (e devem) ser usadas como motivação para essa aula. Perguntas do tipo “Como os telefones celulares enviam e recebem mensagens?”, ou “Como funcionam tecnologias wireless?” podem servir como problema inicial em uma aula investigativa. A discussão pode ser então guiada a uma ênfase no papel do campo eletromagnético enquanto mediador da interação e, mais importante, enquanto ente físico com dinâmica própria. As conclusões centrais que devem ser atingidas pelos(as) estudantes são: (i) a existência de uma carga elétrica gera um campo eletromagnético; (ii) caso o estado de movimento da carga seja alterado, o campo é modificado em seu entorno imediato, e essa modificação se propaga como uma onda; (iii) quando a onda atinge uma outra carga, transfere-lhe energia e momento, alterando seu estado de movimento, i.e. comunicando-lhe o movimento apropriado. Algumas simulações interativas visando auxiliar a compreensão desses efeitos podem ser encontradas em [42, 43] (ver Figuras 7 e 8). A conclusão final da investigação é que a existência de radiação eletromagnética garante que a causalidade seja preservada pela interação. Figura 7 Simulação interativa PhET Colorado: Irradiando Carga. Na imagem da esquerda, a carga está em repouso e as linhas de campo são radiais. À direita, a carga foi posta em movimento e as linhas se deformam para acompanhá-la. Essa deformação se propaga, constituindo a onda eletromagnética. Fonte: [42]. Figura 8 Simulação interativa PhET Colorado: Ondas de Rádio e Campos Eletromagnéticos. A simulação ilustra como a oscilação dos elétrons em uma antena transmissora gera uma onda eletromagnética, que se propaga até outra antena receptora, fazendo seus elétrons oscilarem à mesma frequência que os da fonte. Assim, o sinal é transmitido de um ponto a outro sem intermédio de fios. Nessa simulação o(a) estudante pode interagir movendo o elétron da antena com o mouse e produzindo seu próprio sinal. Fonte: [43]. O processo de emissão e recepção de ondas eletromagnéticas engloba, em uma só temática, todos os aspectos centrais da teoria eletromagnética. A etapa (i) oferece a oportunidade de se discutir a Lei de Gauss, a etapa (ii) possibilita discutir o fenômeno de indução de campos elétricos pela variação de campos magnéticos (e vice-versa), enquanto (iii) está associado à força de Lorentz sobre uma carga. Mais especificamente, pode-se apresentar as equações de Maxwell de maneira intuitiva e acessível a estudantes de ensino médio, substituindo-se as expressões matemáticas, envolvendo derivadas e integrais, por suas interpretações físicas em forma de sentenças enunciativas (cf. ref. [44], Vol. II, Cap. 1). Por exemplo, a Lei de Gauss, que rege a maneira como o campo elétrico é gerado por uma carga, foi apresentada na seção 2.4.1 em termos do fluxo das linhas de campo e como elas se originam e terminam em cargas elétricas. Especificamente, o fluxo do campo elétrico E→ sobre uma superfície é constante, proporcional à carga contida em seu interior, (5) fluxo de E → através de superfície fechada = carga contida no interior da superfície A partir daí, o docente pode estimular os(as) próprios(as) alunos(as) a enunciar a lei análoga para campos magnéticos, bastando dizer-lhes que nunca foram observadas cargas magnéticas (i.e. monopolos magnéticos). O lado direito deve ser, então, igualado a zero, concluindo-se que o fluxo de campo magnético B→ se anula sobre superfícies fechadas. “Qual é, então, a fonte de campos magnéticos?”. A questão gera a ocasião para apresentar as outras duas equações de Maxwell, (6) circulação de B → em torno de C = corrente elétrica através de S + variação temporal do fluxo de E → através de S (7) circulação de E → em torno de C = variação temporal do fluxo de ( – B → ) , através de S onde S é uma superfície arbitrária e C seu contorno, como ilustrado na Figura 9. Figura 9 Uma superfície arbitrária S delimitada por uma curva fechada C. Assim, a variação de um campo elétrico no tempo (por ex., devido à aceleração da partícula fonte desse campo) gera um campo magnético variável, que gera um campo elétrico variável, e assim sucessivamente. Com essa argumentação, pode-se mostrar aos estudantes o princípio básico por trás da propagação das ondas eletromagnéticas. A Figura 10 mostra um esquema simplificado do processo, mais intuitivo e de mais fácil apreensão. Figura 10 (a) Esquema do ciclo retroalimentativo que sustenta a propagação da onda eletromagnética. (b) Uma onda eletromagnética propagando-se na direção x consiste em oscilações dos campos elétrico e magnético no plano yz. No vácuo esses campos são sempre mutuamente perpendiculares. Note que não há componentes dos campos na direção de propagação: diz-se que a onda eletromagnética é uma onda transversal. Fonte: Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0. A introdução do conceito de ondas eletromagnéticas abre um leque de possibilidades ao docente, que pode abordar temáticas consideradas pelos(as) próprios(as) estudantes como altamente interessantes [3], tais como: o funcionamento de antenas de emissão e recepção, e como ondas eletromagnéticas estão presentes em tecnologias atuais de telecomunicação (celulares, transmissão de sinal wifi, etc.); propriedades fundamentais de ondas gerais, e de ondas eletromagnéticas em particular (frequência, comprimento de onda, amplitude); o espectro eletromagnético e aplicações tecnológicas e medicinais de cada uma de suas bandas (ondas de TV e rádio, microondas, infravermelho, raios solares ultravioleta, raios-X, etc.), ilustradas na Figura 11. O(A) docente pode, por exemplo, discutir como o microondas funciona enquanto uma cavidade ressonante: a onda eletromagnética faz as moléculas de água dos alimentos vibrarem, aumentando sua temperatura. Note que as regiões que se localizam nos nós da onda eletromagnética do aparelho não serão aquecidas. Por isso, o alimento deve ser posto a girar para que nenhum ponto fique parado no mesmo lugar da cavidade durante todo o período do processo de aquecimento do alimento. Pode-se usar a pipoca de microondas como um exemplo divertido para os(as) estudantes; Figura 11Algumas aplicações de diversas bandas do espectro eletromagnético, que podem ser exploradas em sala em um contexto CTSA. Fonte: Domínio Público. como atividade, o(a) docente pode pedir que os(as) estudantes pesquisem a banda de frequência em que funcionam os roteadores wifi a que têm acesso, e computem o comprimento de onda associado, localizando-o no espectro eletromagnético. Que outros aparelhos domésticos funcionam nessa mesma banda do espectro? O funcionamento de roteadores oferece uma interessante aplicação tecnológica cotidiana da teoria eletromagnética, e tem grande potencial de ser um tópico atraente para muitos(as) estudantes interessados nessa área de informática e/ou tecnologia da informação; interessante destacar, também, a natureza da luz enquanto onda eletromagnética, e alguns aspectos históricos a respeito dessa descoberta. A possibilidade de existência de tais ondas foi estabelecida por Maxwell em 1864, que também calculou a velocidade de propagação, encontrando um valor muito próximo à velocidade da luz (cujo valor já era conhecido na época), concluindo, então, que a luz é uma onda eletromagnética. Esse resultado tem um valor histórico inestimável: a partir de grandezas medidas em laboratório com o uso de circuitos elétricos, fios, voltímetros etc., Maxwell pôde extrair uma conclusão sobre a natureza da luz, um fenômeno que não parece ter qualquer relação com aqueles experimentos! A natureza ondulatória da luz já era conhecida desde que Young realizou seu experimento de fenda dupla em 1801. No entanto, não se conhecia ainda o substrato oscilante nessas ondas, cabendo a Maxwell tal identificação; pode-se, ainda, mencionar o espectro de corpo negro, ou, mais geralmente, o fato de que todo corpo emite radiação eletromagnética devido à sua temperatura. Esse espectro contém um pico, e a frequência no pico de emitância é proporcional à temperatura do corpo, o que significa que quanto mais quente for o corpo, mais “azulada” é a radiação emitida por ele. O(a) docente pode propor aos(às) estudantes interagirem com a simulação encontrada na ref. [45], que mostra como o espectro de emitância de um corpo varia com a temperatura, como na Figura 12. Essa dependência do pico de emitância com a temperatura é utilizada, por exemplo, para medir a temperatura de estrelas a partir do espectro de luz que elas emitem. A superfície do Sol está a uma temperatura de aproximadamente 5500 K, e seu espectro de emissão tem um pico justamente na região da luz visível, i.e. a maior parte da radiação emitida pelo Sol encontra-se na faixa que nós conseguimos enxergar. Isso não é uma coincidência, mas produto da seleção natural. O apêndice A.1 contém uma proposta de atividade interdisciplinar, a ser realizada com os(as) estudantes e potencialmente em conjunto com o(a) professor(a) da área de Biologia, explorando esse fato. A Figura 30 encontrada naquela seção ilustra o espectro de emitância solar sobreposto ao de um corpo negro ideal à temperatura 5500 K. Figura 12Imagem da simulação interativa PhET Colorado: Espectro de Corpo Negro. Fonte: [45]. A Figura 13 ilustra diversos aspectos do espectro eletromagnético, e pode ser extremamente útil ao(à) docente na elaboração de sua aula e das atividades a serem propostas relativas a essa temática. Figura 13 Diversos tipos de radiação eletromagnética, caracterizados por uma banda específica de frequência e comprimento de onda do espectro completo. A cada banda, atribui-se também um objeto cujo tamanho típico é da mesma ordem de magnitude do comprimento da onda correspondente: tratam-se dos menores objetos que podem ser distinguidos por meio dessas ondas. Por exemplo, microorganismos podem ser vistos sob um microscópio usual, funcionando à base de luz visível, mas para distinguir moléculas ou átomos é preciso fazer incidir radiação muito mais energética, de menor comprimento de onda. As frequências de cada banda são associadas, também, às cores da radiação correspondente, divididas em três regiões: o infravermelho, o espectro contínuo da luz visível, e o ultravioleta. Por fim, ilustra-se também a temperatura de um corpo cujo espectro de emissão termal é predominante na banda em questão. Fonte: Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0. ), foi apresentada a ideia de que a matéria não interage por contato direto entre seus constituintes, mas à distância, mediada por campos de interação, como o campo eletromagnético. Sob a perspectiva da QED, isso se traduz como a ausência de autointeração do campo de elétrons. Ao invés disso, a interação direta do campo eletrônico se dá com outro(s) campo(s), e a repulsão entre dois elétrons nada mais é do que um efeito colateral da interação de ambos com um campo intermediário.

Esse processo de interação na QED está representado esquematicamente na Figura 17. Os dois picos mais protuberantes, de cor laranja, representam elétrons, i.e. excitações do campo eletrônico14 14 Caso esses elétrons possuíssem momento bem definido, essas distribuições deveriam se espalhar por todo o plano da figura. Aqui, no entanto, tratam-se de pacotes de onda localizados em uma região do espaço, o que implica em uma incerteza no momento. , e o campo de fundo, de cor verde, corresponde ao campo eletromagnético. Devido à interação entre os dois campos, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz uma “nuvem” de excitações do campo eletromagnético ao seu redor, como na Figura 17(a). À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético (b), causando a mútua repulsão (c).

Figura 17
(a) Dois elétrons (picos mais protuberantes, de cor laranja) afastados um do outro. Devido à interação entre o campo de elétrons e o campo eletromagnético, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz excitações do campo fotônico ao seu redor. (b) À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético, causando a mútua repulsão. (c) Elétrons novamente distantes após a interação.

Dá-se o nome de fóton virtual a qualquer excitação do campo eletromagnético que não corresponde a um modo normal de vibração, tais como as excitações do campo eletromagnético ilustradas na Figura 17. Um fóton virtual é, portanto, um estado não-estacionário, não necessariamente associado à propagação de uma onda, e portanto bastante diferente de um fóton real, como ficará ainda mais claro a seguir. Entretanto, justifica-se chamá-la de fóton por se tratar de uma vibração do campo eletromagnético, e, para distinguí-la de um fóton observável, usa-se essa adjetivação de virtual15 15 Existe um acalorado debate na literatura a respeito da existência ou inexistência de partículas virtuais. Para uma discussão a esse respeito, cf. ref. [56]. .

Note que há fótons virtuais sendo trocados em todas as três etapas da interação, representados pelas pequenas perturbações do campo eletromagnético entre os dois elétrons nas Figuras 17(a), (b) e (c). Mas a contribuição do fóton virtual ao espalhamento é mais significativa quando os elétrons estão mais próximos um do outro, como representado na Figura 17(b). Essa discussão será retomada em mais detalhes na seção 2.7.3 2.7.3. Diagramas de Feynman Outra maneira de representar a interação entre elétrons é através de um diagrama de Feynman, como na Figura 18. Aqui, o eixo vertical representa a dimensão espacial, e o eixo horizontal é a passagem do tempo. Representa-se, aqui, o mesmo processo ilustrado na Figura 17 anterior: dois elétrons interagindo pela troca de um fóton virtual. Entretanto, não é correto ler esse diagrama como se um dos elétrons (digamos, o elétron da parte superior da figura) tivesse emitido o fóton, e o outro (da parte inferior) o tivesse absorvido. Pois o processo oposto, em que o elétron inferior emitiu e o superior absorveu o fóton, é igualmente possível. E, se há dois processos intermediários possíveis, a mecânica quântica garante que a contribuição total aos processos físicos é a soma das contribuições dos processos intermediários. A Figura 19 mostra que o diagrama de Feynman da Figura 18 representa a soma (i.e. a superposição quântica) das duas ordenações temporais possíveis para a emissão e absorção do fóton intermediário [57, 58, 59]. Ou seja, a Figura 18 ilustra apenas que, em primeira ordem, esse processo ocorre mediante a troca de um fóton virtual, sem representar como esse processo de fato ocorre no espaço-tempo. Figura 18 Diagrama de Feynman ilustrando a interação entre dois elétrons mediada pela troca de um fóton virtual. Os pontos que conectam os elétrons ao fóton são chamados de vértices do diagrama. Figura 19 A interação entre elétrons pela troca de um fóton virtual deve levar em conta as duas possibilidades de ordenamento temporal, em que um elétron emite e o outro absorve o fóton trocado. Para compreender melhor a diferença entre fótons reais e virtuais, consideremos o balanço de energia-momento em um ponto de “emissão/absorção” do fóton no diagrama, i.e. em um de seus vértices. Sejam (E,p→) e (E′,p→′) a energia e momento linear de um elétron da Figura 18 (por ex., o elétron da parte superior do diagrama) antes e depois da interação (i.e. à esquerda e à direita do vértice, respectivamente), e sejam (Eγ,p→γ) a energia e momento do fóton virtual. A conservação de energia e momento na absorção/emissão do fóton impõe que (9) E = E γ + E ′ , (10) p → = p → γ + p → ′ , logo (11) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = ( E - E ′ ) 2 - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 . Como um fóton tem massa mγ = 0, esperar-se-ia, da relação relativística de energia-momento16, que (12) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = m γ 2 ⁢ c 4 = 0 ⁢ ? No entanto, em um espalhamento de elétrons não há nada que vincule E a E′ ou p→ a p→′ a priori17 (tratam-se de variáveis livres do problema), de maneira que, em geral, o lado direito da equação (11) não se anula. Isso significa que um fóton virtual em geral não satisfaz a relação relativística de energia-momento. Ou, dito de outra forma, é como se a partícula virtual pudesse ter massa diferente da massa observada para excitações normais do campo em questão. Essa é outra importante distinção entre partículas reais e virtuais. Essa violação da equação (12) não é um problema, contanto que esteja dentro da margem de incerteza associada à energia e ao momento do fóton virtual. Pelo princípio da incerteza, a precisão com que se pode determinar a energia de um sistema (ΔE) é limitada pelo tempo disponível para ele interagir com um possível aparato medidor (Δt), assim como a incerteza em seu momento (Δp) cresce à medida que se reduz a região do espaço a que ele esteja restrito (Δx). Isso pode ser expresso matematicamente por meio das famosas relações de incerteza (13) Δ ⁢ E ⁢ Δ ⁢ t ≥ ℏ 2 , Δ ⁢ p ⁢ Δ ⁢ x ≥ ℏ 2 , com ℏ ≈ 1.05×10−34 kg m2/s a constante de Planck reduzida18. Assim, quanto menor for o tempo de vida de uma excitação de um campo, e/ou quanto menor for seu alcance espacial, maior será a incerteza associada à sua energia-momento, e portanto maior será a margem para uma aparente violação da equação (12). Mais especificamente, o espalhamento descrito pelo diagrama da Figura 18 é mediado por fótons de todas as possíveis virtualidades, e a interação final resulta da soma de todas as contribuições. Entretanto, para grandes distâncias entre as partículas interagentes, a sobreposição dos fótons virtuais resulta em uma interferência destrutiva (exatamente no sentido de interferência de ondas), de modo que quanto maior a virtualidade dos fótons mediadores, menores serão seus impactos no resultado final da interação. Assim, a grandes distâncias, apenas fótons de baixa virtualidade contribuem significativamente. Reciprocamente, a menores distâncias, a contribuição dos fótons de maior virtualidade também se torna relevante. Uma discussão muito detalhada desse efeito, ao mesmo tempo em que é acessível ao público geral, pode ser encontrada na ref. [57], cuja leitura é fortemente recomendada para uma maior compreensão da QED e um complemento da discussão aqui apresentada. O argumento exposto acima nos fornece uma maneira de compreender o comportamento da Lei de Coulomb sob uma perspectiva microscópica da interação eletromagnética. Consideremos o caso de um elétron espalhado elasticamente por uma carga muito mais pesada, e que portanto permanece aproximadamente estática, como esquematizado na Figura 20. Um exemplo é um experimento de difração de elétrons, ao estilo dos experimentos de Rutherford-Geiger-Marsden que levaram à descoberta do núcleo atômico19. Nesse caso, a energia cinética do elétron não varia (por se tratar de espalhamento elástico) e a equação (11) fica (14) virtualidade ≡ E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 = - 4 ⁢ | p → | 2 ⁢ c 2 ⁢ sin 2 ⁡ θ 2 , que define o “grau de virtualidade” do fóton através da medida de violação da relação relativística de energia-momento. Nessa equação, θ é o ângulo entre o feixe espalhado e a direção do feixe incidente (vide legenda da Figura 20), que varia entre θ = 0 (quando não há desvio) e θ = π (quando o feixe volta na mesma direção e sentido oposto ao incidente). Figura 20 Diagrama de Feynman para um espalhamento elástico por uma carga estática. Define-se o ângulo θ como o ângulo entre o momento final (p→′) e inicial do elétron (p→), medindo o desvio relativamente à direção do feixe incidente. Ele não aparece na figura, pois um diagrama de Feynman representa apenas uma esquematização do processo que contribui para a interação, e não ilustra como o espalhamento ocorre, de fato, no espaço-tempo. Veja comentário no início da seção 2.7.3, bem como a Figura 19. Nota-se que, quanto maior o ângulo θ de espalhamento relativo ao feixe incidente (i.e. quanto maior for a alteração do estado de movimento do elétron devido à interação), maior é a virtualidade, e portanto, pelo argumento anterior, menor deve ser o alcance dessa interação. Ou seja, o elétron só é desviado significativamente de sua trajetória incidente se ele se aproximar muito da outra carga. Por outro lado, um espalhamento em que o momento linear do elétron pouco varia, p→≈p→′ e θ ≈ 0, está associado a fótons que satisfazem a relação energia-momento em boa aproximação, e portanto podem mediar interações a longas distâncias. Posto de outra forma: quanto mais o elétron se aproxima de outra carga, maior poderá ser a virtualidade dos fótons trocados entre elas, e maior será o desvio da trajetória do elétron; ao passo que, se as cargas estão distantes, os fótons devem satisfazer a equação (12) em boa aproximação, o que corresponde, pela equação (14), a um desvio pequeno de trajetória. Esse é justamente o comportamento clássico da interação eletrostática: quanto mais distantes as cargas, menor é a força e, consequentemente, menor a variação do momento linear da partícula teste. O argumento acima apresenta uma explicação para esse fenômeno em nível microscópico. É possível mostrar que a relação de virtualidade dada pela equação (14) dá origem a uma energia potencial de interação do tipo V(r)∼1/r, que é justamente a energia potencial associada à lei de Coulomb. Note, ainda, que todos os fótons que contribuem para a Lei de Coulomb são virtuais. Uma outra maneira de refrasear a argumentação acima é a seguinte. Um fóton real, não massivo, contém apenas duas possíveis polarizações, que são transversais à direção de propagação20. Por outro lado, a violação da equação (12) implica que um fóton virtual possui uma terceira polarização, dita longitudinal, que não está associada a um grau de liberdade que se propaga. De fato, é possível mostrar que esse grau de liberdade longitudinal atua como mensageiro da Lei de Coulomb [59]. Segue-se que quanto maior for a virtualidade do fóton, maior é a contribuição da polarização longitudinal, e mais intensa a interação Coulombiana, como concluímos acima. a seguir.

Cabe ressaltar que, apesar de termos definido anteriormente um elétron como uma excitação do campo eletrônico, o que realmente se observa é o conjunto de excitações do campo eletrônico e do campo eletromagnético ao seu redor: diz-se que o elétron nunca é visto “nu”, mas está sempre “vestido” de uma nuvem de partículas virtuais. Esse fato será novamente discutido e melhor explorado na seção 2.9 2.9. A carga efetiva do elétron Outra consequência da conversão de fótons em pares elétron-pósitron (e vice-versa) é a chamada “polarização do vácuo”, que tem uma importante consequência fenomenológica: a constatação de que a carga elétrica do elétron não é constante! Para entender melhor essa afirmação, considere o diagrama ilustrado na Figura 25, em que a propagação de um fóton é temporariamente interrompida pela criação de um par elétron-pósitron, que posteriormente se aniquila e dá origem novamente a um fóton que continua a se propagar. Esse processo ilustra que, devido à interação com o campo eletrônico, um fóton não pode ser visto apenas como uma excitação do campo eletromagnético. Sua propagação é afetada por sua interação com elétrons e pósitrons. E isso, por sua vez, tem impacto sobre a maneira como esse fóton intermedeia a interação eletromagnética entre cargas elétricas. Figura 25 Diagrama de Feynman ilustrando um possível processo ocorrendo durante a propagação de um fóton, temporariamente interrompida pela criação e posterior aniquilação de um par elétron-pósitron. Este é um exemplo de um diagrama com um laço. De fato, considere a interação entre uma carga q incidindo contra uma carga Q, que por simplicidade suporemos ser muito mais pesada, de modo que ela permanece essencialmente imóvel ao longo do processo. O eletromagnetismo clássico diz que essa interação é regida pela lei de Coulomb, ou seja, a energia potencial de interação é (15) V Coulomb ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r , com k ≈ 9×109N m2/C2 a constante de Coulomb. Esse comportamento é exatamente o que se obtém na eletrodinâmica quântica a partir do diagrama da Figura 26(a), como já discutido na seção 2.7.3. Ou seja, a teoria eletromagnética clássica está contida na QED como primeira aproximação, ao ignorarmos todos diagramas que contenham laços. Mas há vários outros processos também presentes na QED, como o ilustrado na Figura 26(b), que contribuem para a mediação da interação entre as cargas, e que portanto fornecem “correções quânticas” à predição da teoria clássica. Esses processos estão sempre presentes, independentemente de a interação ser macroscópica ou não. Quer dizer, é impossível “desligarmos” esses processos tipicamente quânticos e observarmos apenas os processos clássicos. Sendo assim, por que esses efeitos quânticos não são comumente observados em nosso dia a dia? Por que a lei de Coulomb é uma boa aproximação para interações macroscópicas? E, ainda mais importante: o quão pequenas têm que ser as distâncias envolvidas para que esses efeitos quânticos se manifestem mais perceptivelmente? Podemos responder essa questão recorrendo novamente ao conceito de virtualidade das partículas intermediárias, elaborado na seção 2.7.3. Naquela ocasião, definimos o “grau de virtualidade” de uma partícula de energia E, momento p→ e massa m como uma medida do quanto ela viola a relação relativística de massa-energia-momento, i.e. (16) virtualidade ≡ E 2 - | p → | 2 ⁢ c 2 - m 2 ⁢ c 4 . Assim, tudo se passa como se a partícula virtual tivesse uma massa diferente da correspondente partícula real. Por exemplo, é como se um elétron virtual tivesse massa diferente de me ≈ 9.1×10−31 kg. Uma partícula real é aquela para a qual o lado direito da equação (16) se anula. Figura 26 Dois processos possíveis de mediação da interação entre as cargas q e Q. (a) Diagrama responsável pela interação descrita no eletromagnetismo clássico. (b) Uma correção quântica oriunda da interação mútua entre o fóton e as excitações do campo eletrônico, que altera a propagação do fóton. Por incluir uma modificação na propagação do fóton, esse diagrama induz uma modificação da lei de Coulomb para a interação entre partículas carregadas. Isso também pode ser interpretado como uma alteração na “carga elétrica efetiva” das partículas interagentes. Interações de longa distância são mediadas predominantemente por fótons de baixa virtualidade, o que por sua vez implica em uma alta virtualidade para o par elétron-pósitron da Figura 26(b)25. Isso faz com que os efeitos desse diagrama sejam atenuados em comparação com o da Figura 26(a). Assim, para grandes distâncias, a interação é regida essencialmente pela lei de Coulomb, como esperado. A que distâncias a contribuição do diagrama com laço se torna relevante? Ora, só existe uma escala de energia característica desse processo, que é a energia de repouso do par elétron-pósitron, 2mec2. Essa energia está naturalmente associada, na teoria quântica, a uma escala de distância da ordem26 (17) r ˜ = ℏ c 2 m e c 2 = ( constante de Planck ) × ( velocidade da luz ) ( energia de repouso do par e + e - ) ∼ 2 × 10 − 13 m . O fato de essa escala de distância, característica do processo da Figura 26(b), envolver a constante de Planck e a velocidade da luz mostra que se trata de um efeito caracteristicamente quântico e relativístico. Como já poderíamos antecipar, trata-se de uma escala de distância associada ao comprimento de onda de um fóton com energia 2mec2. Nota-se que r~ é cerca de duas ordens de magnitude menor do que o típico raio atômico, portanto as partículas interagentes devem estar de fato muito próximas para que a modificação na propagação do fóton pela criação de pares intermediários seja perceptível. Essas previsões são confirmadas quando computamos as correções quânticas ao potencial de Coulomb para r≳r~ devido ao diagrama da Figura 26(b), resultando no chamado potencial de Uehling, (18) V ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r ⁢ ( 1 + α 2 ⁢ π ⁢ ( r ~ r ) 3 / 2 ⁢ e - r / r ~ + … ) . Aqui, α ≈ 1/137 é uma constante que dita a intensidade da interação eletromagnética27, e r~ é a distância característica ao processo quântico da Figura 26(b) que dá origem a essa correção. É fácil ver que, para distâncias muito maiores do que essa escala característica, r≫r~, o potencial de Uehling da equação (18) reduz-se ao potencial de Coulomb, como esperado. As reticências indicam que existem ainda outras correções advindas de processos ainda mais complicados, e que só serão notáveis a distâncias ainda menores. Essas correções quânticas devido à criação de pares elétron-pósitron virtuais em torno de uma carga elétrica podem ser interpretadas fisicamente como oriundas de uma blindagem da carga devido a um efeito de polarização do vácuo, como ilustrado na Figura 27. Suponhamos, por exemplo, que a partícula ao centro da figura seja um elétron. Devido a processos como os da Figura 26(b), em torno desse elétron existe uma multitude de pares elétron-pósitron virtuais que atuam como minúsculos dipolos, efetivamente reduzindo a densidade de carga do elétron e, portanto, a intensidade de sua interação eletromagnética com outras cargas. Diz-se que o elétron está sempre “vestido”, de modo que, quando dois elétrons interagem, a densidade de carga efetiva da interação é a da nuvem ilustrada na Figura 27, e não do elétron “nu” (ilustrado no centro da figura). Porém, à medida que os elétrons são lançados um contra o outro a mais altas energias, a interação se dá a distâncias cada vez menores, até que eventualmente (quando a energia do centro de massa for Ec.m.≳2mec2) um elétron começa a penetrar a nuvem de polarização do outro e enxerga uma maior carga efetiva, o que faz com que o comportamento da interação seja diferente do Coulombiano. O “raio efetivo” dessa nuvem de polarização em torno do elétron é a escala característica r~ associada ao diagrama 26(b), como já discutido anteriormente. Figura 27 Efeito de blindagem da carga do elétron devido aos pares elétron-pósitron virtuais. Fonte: cortesia de © INFN, Laboratori Nazionali di Frascati [62]. Essa variação da carga efetiva do elétron com a distância é, de fato, observada. Em processos que envolvem interações entre elétrons a altas energias, tudo se passa como se a carga do elétron fosse de fato maior do que a que observamos em nosso mundo de baixas energias. Uma pergunta plausível, neste momento, seria: e qual é, então, a carga do elétron “nu”? A resposta é que a carga do elétron tende a infinito à medida que a distância entre as cargas interagentes diminui. É claro que uma carga infinita não faz sentido fisicamente, e esse comportamento já nos indica que, a partir de uma certa escala de energia, essa descrição do elétron e suas interações em termos de partículas e campos já não é mais aplicável. Isso é análogo ao caso em que a descrição contínua de um sólido ou fluido deixa de ser válida a partir de certas escalas de distância, quando a estrutura atômico-molecular da matéria se torna relevante, e novos graus de liberdade precisam ser incluídos na descrição do sistema. Questões sobre o que é e quais são as propriedades de um elétron ‘‘nu’’ não podem ainda ser resolvidas conclusivamente, e é mais provável que, a partir de uma determinada escala de energia, a pergunta sequer faça sentido, pois o próprio conceito de ‘‘elétron’’ como hoje o entendemos deve ser modificado28. Uma importante consequência desse efeito de polarização do vácuo é o deslocamento de Lamb entre os níveis de energia dos orbitais 2S1/2 e 2P1/2 do átomo de hidrogênio. Se a interação elétron-núcleo ocorresse apenas via diagrama da Figura 26(a), esses orbitais seriam degenerados (i.e. possuiriam a mesma energia). No entanto, experimentos cuidadosos mostraram que há uma transição entre eles, correspondendo à emissão de um fóton de frequência ∼1057 MHz. Na QED, esse valor é predito corretamente com grande precisão levando-se em conta que o elétron no orbital S é capaz de penetrar o núcleo atômico29 e, com isso, sentir os efeitos do termo anômalo do potencial de Uehling. Isso não ocorre no orbital P, para o qual o potencial eletromagnético é simplesmente o potencial de Coulomb. Portanto, o nível de energia do orbital S fica ligeiramente deslocado do orbital P, dando origem a uma possível transição eletrônica que é, de fato, observada. A obtenção do valor correto para o deslocamento Lamb por meio do formalismo da QED constitui ainda um dos maiores triunfos dessa teoria, e um forte indicativo de seu poder preditivo. a seguir.

Ressalta-se, ainda, que a Figura 17 é apenas uma representação esquemática da interação, uma alusão semiclássica a um processo que é fundamentalmente quântico. O simples fato de desenhar as oscilações do campo pressupõe que saibamos a posição de cada ponto dessa superfície no espaço, em desacordo com o princípio da incerteza. Entretanto, ilustrar um campo quântico é impossível, e a representação acima, apesar de incompleta, fornece uma boa intuição sobre o processo de interação entre (excitações de) campos.

Ainda relacionado às limitações da figura, note que, assim como a presença do elétron causa excitações do campo eletromagnético, estes fótons virtuais também induzem excitações do campo eletrônico, que induzem outras oscilações fotônicas, e assim sucessivamente. Ou seja, em torno das oscilações do campo eletromagnético dever-se-ia também ilustrar oscilações do campo eletrônico, e em torno dessas ilustrar outras excitações do campo eletromagnético, etc. A Figura 17 representa, portanto, apenas a primeira ordem de uma série de outros processos que poderiam ocorrer na presença de dois elétrons. Como se trata de um sistema quântico, não é possível dizer qual desses processos realmente ocorre: o resultado da interação é uma superposição quântica de todas essas possibilidades. Aqui o(a) docente pode fazer uma alusão direta ao experimento da fenda dupla, em que não é possível afirmar por qual fenda a partícula passa: a interferência é resultado da superposição das duas possibilidades de trajetórias, cada uma passando por uma fenda.

2.7.3. Diagramas de Feynman

Outra maneira de representar a interação entre elétrons é através de um diagrama de Feynman, como na Figura 18. Aqui, o eixo vertical representa a dimensão espacial, e o eixo horizontal é a passagem do tempo. Representa-se, aqui, o mesmo processo ilustrado na Figura 17 anterior: dois elétrons interagindo pela troca de um fóton virtual. Entretanto, não é correto ler esse diagrama como se um dos elétrons (digamos, o elétron da parte superior da figura) tivesse emitido o fóton, e o outro (da parte inferior) o tivesse absorvido. Pois o processo oposto, em que o elétron inferior emitiu e o superior absorveu o fóton, é igualmente possível. E, se há dois processos intermediários possíveis, a mecânica quântica garante que a contribuição total aos processos físicos é a soma das contribuições dos processos intermediários. A Figura 19 mostra que o diagrama de Feynman da Figura 18 representa a soma (i.e. a superposição quântica) das duas ordenações temporais possíveis para a emissão e absorção do fóton intermediário [5757. R. Feynman, A estranha teoria da luz e da matéria (Editora Senai, São Paulo, 2018)., 5858. M. Thomson, Modern Particle Physics (Cambridge University Press, Cambridge, 2013)., 5959. F. Halzen e A.D. Martin, Quarks and Leptons: An Introductory Course in Modern Particle Physics (Wiley, Hoboken, 1984).]. Ou seja, a Figura 18 ilustra apenas que, em primeira ordem, esse processo ocorre mediante a troca de um fóton virtual, sem representar como esse processo de fato ocorre no espaço-tempo.

Figura 18
Diagrama de Feynman ilustrando a interação entre dois elétrons mediada pela troca de um fóton virtual. Os pontos que conectam os elétrons ao fóton são chamados de vértices do diagrama.
Figura 19
A interação entre elétrons pela troca de um fóton virtual deve levar em conta as duas possibilidades de ordenamento temporal, em que um elétron emite e o outro absorve o fóton trocado.

Para compreender melhor a diferença entre fótons reais e virtuais, consideremos o balanço de energia-momento em um ponto de “emissão/absorção” do fóton no diagrama, i.e. em um de seus vértices. Sejam (E,p) e (E,p) a energia e momento linear de um elétron da Figura 18 (por ex., o elétron da parte superior do diagrama) antes e depois da interação (i.e. à esquerda e à direita do vértice, respectivamente), e sejam (Eγ,pγ) a energia e momento do fóton virtual. A conservação de energia e momento na absorção/emissão do fóton impõe que

(9) E = E γ + E ,
(10) p = p γ + p ,

logo

(11) E γ 2 - | p γ | 2 c 2 = ( E - E ) 2 - | p - p | 2 c 2 .

Como um fóton tem massa mγ = 0, esperar-se-ia, da relação relativística de energia-momento16 16 Não é necessário discutir extensamente sobre a teoria da relatividade especial para introduzir essa relação aos estudantes. Para os propósitos desta discussão, é suficiente dizer que a relação Newtoniana de energia-momento, E = p2/2m = mv2/2, é modificada para E2 = p2c2 + m2c4, de modo a incluir a energia de repouso. De fato, quando não há energia cinética, p=0, a relação relativística reduz-se à conhecida fórmula de Einstein E = mc2. , que

(12) E γ 2 - | p γ | 2 c 2 = m γ 2 c 4 = 0 ?

No entanto, em um espalhamento de elétrons não há nada que vincule E a E′ ou p a p a priori17 17 A relação relativística de energia-momento relaciona E a p→ e E′ a p→′ através de E 2 - | p → | 2 ⁢ c 2 = m e 2 ⁢ c 4 = E ′ ⁣ 2 - | p → ′ | 2 ⁢ c 2 , que podemos usar para reescrever o lado direito da equação (11) como E γ 2 - | p γ → | 2 ⁢ c 2 = 2 ⁢ m e 2 ⁢ c 4 - 2 ⁢ ( E ⁢ E ′ - p → ⋅ p → ′ ) , que em geral não é igual a zero. (tratam-se de variáveis livres do problema), de maneira que, em geral, o lado direito da equação (11) não se anula. Isso significa que um fóton virtual em geral não satisfaz a relação relativística de energia-momento. Ou, dito de outra forma, é como se a partícula virtual pudesse ter massa diferente da massa observada para excitações normais do campo em questão. Essa é outra importante distinção entre partículas reais e virtuais. Essa violação da equação (12) não é um problema, contanto que esteja dentro da margem de incerteza associada à energia e ao momento do fóton virtual. Pelo princípio da incerteza, a precisão com que se pode determinar a energia de um sistema (ΔE) é limitada pelo tempo disponível para ele interagir com um possível aparato medidor (Δt), assim como a incerteza em seu momento (Δp) cresce à medida que se reduz a região do espaço a que ele esteja restrito (Δx). Isso pode ser expresso matematicamente por meio das famosas relações de incerteza

(13) Δ E Δ t 2 , Δ p Δ x 2 ,

com ℏ ≈ 1.05×10−34 kg m2/s a constante de Planck reduzida18 18 Essa constante é característica da teoria quântica. Sempre que ela aparece, é indício de que há algum fenômeno quântico subjacente. . Assim, quanto menor for o tempo de vida de uma excitação de um campo, e/ou quanto menor for seu alcance espacial, maior será a incerteza associada à sua energia-momento, e portanto maior será a margem para uma aparente violação da equação (12).

Mais especificamente, o espalhamento descrito pelo diagrama da Figura 18 é mediado por fótons de todas as possíveis virtualidades, e a interação final resulta da soma de todas as contribuições. Entretanto, para grandes distâncias entre as partículas interagentes, a sobreposição dos fótons virtuais resulta em uma interferência destrutiva (exatamente no sentido de interferência de ondas), de modo que quanto maior a virtualidade dos fótons mediadores, menores serão seus impactos no resultado final da interação. Assim, a grandes distâncias, apenas fótons de baixa virtualidade contribuem significativamente. Reciprocamente, a menores distâncias, a contribuição dos fótons de maior virtualidade também se torna relevante. Uma discussão muito detalhada desse efeito, ao mesmo tempo em que é acessível ao público geral, pode ser encontrada na ref. [5757. R. Feynman, A estranha teoria da luz e da matéria (Editora Senai, São Paulo, 2018).], cuja leitura é fortemente recomendada para uma maior compreensão da QED e um complemento da discussão aqui apresentada.

O argumento exposto acima nos fornece uma maneira de compreender o comportamento da Lei de Coulomb sob uma perspectiva microscópica da interação eletromagnética. Consideremos o caso de um elétron espalhado elasticamente por uma carga muito mais pesada, e que portanto permanece aproximadamente estática, como esquematizado na Figura 20. Um exemplo é um experimento de difração de elétrons, ao estilo dos experimentos de Rutherford-Geiger-Marsden que levaram à descoberta do núcleo atômico19 19 O experimento de Rutherford-Geiger-Marsden foi realizado com partículas α, ao invés de elétrons, mas a argumentação independe da natureza da carga teste, contanto que o espalhamento seja elástico. . Nesse caso, a energia cinética do elétron não varia (por se tratar de espalhamento elástico) e a equação (11) fica

(14) virtualidade E γ 2 - | p γ | 2 c 2 = - | p - p | 2 c 2 = - 4 | p | 2 c 2 sin 2 θ 2 ,

que define o “grau de virtualidade” do fóton através da medida de violação da relação relativística de energia-momento. Nessa equação, θ é o ângulo entre o feixe espalhado e a direção do feixe incidente (vide legenda da Figura 20), que varia entre θ = 0 (quando não há desvio) e θ = π (quando o feixe volta na mesma direção e sentido oposto ao incidente).

Figura 20
Diagrama de Feynman para um espalhamento elástico por uma carga estática. Define-se o ângulo θ como o ângulo entre o momento final (p) e inicial do elétron (p), medindo o desvio relativamente à direção do feixe incidente. Ele não aparece na figura, pois um diagrama de Feynman representa apenas uma esquematização do processo que contribui para a interação, e não ilustra como o espalhamento ocorre, de fato, no espaço-tempo. Veja comentário no início da seção 2.7.3 2.7.3. Diagramas de Feynman Outra maneira de representar a interação entre elétrons é através de um diagrama de Feynman, como na Figura 18. Aqui, o eixo vertical representa a dimensão espacial, e o eixo horizontal é a passagem do tempo. Representa-se, aqui, o mesmo processo ilustrado na Figura 17 anterior: dois elétrons interagindo pela troca de um fóton virtual. Entretanto, não é correto ler esse diagrama como se um dos elétrons (digamos, o elétron da parte superior da figura) tivesse emitido o fóton, e o outro (da parte inferior) o tivesse absorvido. Pois o processo oposto, em que o elétron inferior emitiu e o superior absorveu o fóton, é igualmente possível. E, se há dois processos intermediários possíveis, a mecânica quântica garante que a contribuição total aos processos físicos é a soma das contribuições dos processos intermediários. A Figura 19 mostra que o diagrama de Feynman da Figura 18 representa a soma (i.e. a superposição quântica) das duas ordenações temporais possíveis para a emissão e absorção do fóton intermediário [57, 58, 59]. Ou seja, a Figura 18 ilustra apenas que, em primeira ordem, esse processo ocorre mediante a troca de um fóton virtual, sem representar como esse processo de fato ocorre no espaço-tempo. Figura 18 Diagrama de Feynman ilustrando a interação entre dois elétrons mediada pela troca de um fóton virtual. Os pontos que conectam os elétrons ao fóton são chamados de vértices do diagrama. Figura 19 A interação entre elétrons pela troca de um fóton virtual deve levar em conta as duas possibilidades de ordenamento temporal, em que um elétron emite e o outro absorve o fóton trocado. Para compreender melhor a diferença entre fótons reais e virtuais, consideremos o balanço de energia-momento em um ponto de “emissão/absorção” do fóton no diagrama, i.e. em um de seus vértices. Sejam (E,p→) e (E′,p→′) a energia e momento linear de um elétron da Figura 18 (por ex., o elétron da parte superior do diagrama) antes e depois da interação (i.e. à esquerda e à direita do vértice, respectivamente), e sejam (Eγ,p→γ) a energia e momento do fóton virtual. A conservação de energia e momento na absorção/emissão do fóton impõe que (9) E = E γ + E ′ , (10) p → = p → γ + p → ′ , logo (11) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = ( E - E ′ ) 2 - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 . Como um fóton tem massa mγ = 0, esperar-se-ia, da relação relativística de energia-momento16, que (12) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = m γ 2 ⁢ c 4 = 0 ⁢ ? No entanto, em um espalhamento de elétrons não há nada que vincule E a E′ ou p→ a p→′ a priori17 (tratam-se de variáveis livres do problema), de maneira que, em geral, o lado direito da equação (11) não se anula. Isso significa que um fóton virtual em geral não satisfaz a relação relativística de energia-momento. Ou, dito de outra forma, é como se a partícula virtual pudesse ter massa diferente da massa observada para excitações normais do campo em questão. Essa é outra importante distinção entre partículas reais e virtuais. Essa violação da equação (12) não é um problema, contanto que esteja dentro da margem de incerteza associada à energia e ao momento do fóton virtual. Pelo princípio da incerteza, a precisão com que se pode determinar a energia de um sistema (ΔE) é limitada pelo tempo disponível para ele interagir com um possível aparato medidor (Δt), assim como a incerteza em seu momento (Δp) cresce à medida que se reduz a região do espaço a que ele esteja restrito (Δx). Isso pode ser expresso matematicamente por meio das famosas relações de incerteza (13) Δ ⁢ E ⁢ Δ ⁢ t ≥ ℏ 2 , Δ ⁢ p ⁢ Δ ⁢ x ≥ ℏ 2 , com ℏ ≈ 1.05×10−34 kg m2/s a constante de Planck reduzida18. Assim, quanto menor for o tempo de vida de uma excitação de um campo, e/ou quanto menor for seu alcance espacial, maior será a incerteza associada à sua energia-momento, e portanto maior será a margem para uma aparente violação da equação (12). Mais especificamente, o espalhamento descrito pelo diagrama da Figura 18 é mediado por fótons de todas as possíveis virtualidades, e a interação final resulta da soma de todas as contribuições. Entretanto, para grandes distâncias entre as partículas interagentes, a sobreposição dos fótons virtuais resulta em uma interferência destrutiva (exatamente no sentido de interferência de ondas), de modo que quanto maior a virtualidade dos fótons mediadores, menores serão seus impactos no resultado final da interação. Assim, a grandes distâncias, apenas fótons de baixa virtualidade contribuem significativamente. Reciprocamente, a menores distâncias, a contribuição dos fótons de maior virtualidade também se torna relevante. Uma discussão muito detalhada desse efeito, ao mesmo tempo em que é acessível ao público geral, pode ser encontrada na ref. [57], cuja leitura é fortemente recomendada para uma maior compreensão da QED e um complemento da discussão aqui apresentada. O argumento exposto acima nos fornece uma maneira de compreender o comportamento da Lei de Coulomb sob uma perspectiva microscópica da interação eletromagnética. Consideremos o caso de um elétron espalhado elasticamente por uma carga muito mais pesada, e que portanto permanece aproximadamente estática, como esquematizado na Figura 20. Um exemplo é um experimento de difração de elétrons, ao estilo dos experimentos de Rutherford-Geiger-Marsden que levaram à descoberta do núcleo atômico19. Nesse caso, a energia cinética do elétron não varia (por se tratar de espalhamento elástico) e a equação (11) fica (14) virtualidade ≡ E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 = - 4 ⁢ | p → | 2 ⁢ c 2 ⁢ sin 2 ⁡ θ 2 , que define o “grau de virtualidade” do fóton através da medida de violação da relação relativística de energia-momento. Nessa equação, θ é o ângulo entre o feixe espalhado e a direção do feixe incidente (vide legenda da Figura 20), que varia entre θ = 0 (quando não há desvio) e θ = π (quando o feixe volta na mesma direção e sentido oposto ao incidente). Figura 20 Diagrama de Feynman para um espalhamento elástico por uma carga estática. Define-se o ângulo θ como o ângulo entre o momento final (p→′) e inicial do elétron (p→), medindo o desvio relativamente à direção do feixe incidente. Ele não aparece na figura, pois um diagrama de Feynman representa apenas uma esquematização do processo que contribui para a interação, e não ilustra como o espalhamento ocorre, de fato, no espaço-tempo. Veja comentário no início da seção 2.7.3, bem como a Figura 19. Nota-se que, quanto maior o ângulo θ de espalhamento relativo ao feixe incidente (i.e. quanto maior for a alteração do estado de movimento do elétron devido à interação), maior é a virtualidade, e portanto, pelo argumento anterior, menor deve ser o alcance dessa interação. Ou seja, o elétron só é desviado significativamente de sua trajetória incidente se ele se aproximar muito da outra carga. Por outro lado, um espalhamento em que o momento linear do elétron pouco varia, p→≈p→′ e θ ≈ 0, está associado a fótons que satisfazem a relação energia-momento em boa aproximação, e portanto podem mediar interações a longas distâncias. Posto de outra forma: quanto mais o elétron se aproxima de outra carga, maior poderá ser a virtualidade dos fótons trocados entre elas, e maior será o desvio da trajetória do elétron; ao passo que, se as cargas estão distantes, os fótons devem satisfazer a equação (12) em boa aproximação, o que corresponde, pela equação (14), a um desvio pequeno de trajetória. Esse é justamente o comportamento clássico da interação eletrostática: quanto mais distantes as cargas, menor é a força e, consequentemente, menor a variação do momento linear da partícula teste. O argumento acima apresenta uma explicação para esse fenômeno em nível microscópico. É possível mostrar que a relação de virtualidade dada pela equação (14) dá origem a uma energia potencial de interação do tipo V(r)∼1/r, que é justamente a energia potencial associada à lei de Coulomb. Note, ainda, que todos os fótons que contribuem para a Lei de Coulomb são virtuais. Uma outra maneira de refrasear a argumentação acima é a seguinte. Um fóton real, não massivo, contém apenas duas possíveis polarizações, que são transversais à direção de propagação20. Por outro lado, a violação da equação (12) implica que um fóton virtual possui uma terceira polarização, dita longitudinal, que não está associada a um grau de liberdade que se propaga. De fato, é possível mostrar que esse grau de liberdade longitudinal atua como mensageiro da Lei de Coulomb [59]. Segue-se que quanto maior for a virtualidade do fóton, maior é a contribuição da polarização longitudinal, e mais intensa a interação Coulombiana, como concluímos acima. , bem como a Figura 19.

Nota-se que, quanto maior o ângulo θ de espalhamento relativo ao feixe incidente (i.e. quanto maior for a alteração do estado de movimento do elétron devido à interação), maior é a virtualidade, e portanto, pelo argumento anterior, menor deve ser o alcance dessa interação. Ou seja, o elétron só é desviado significativamente de sua trajetória incidente se ele se aproximar muito da outra carga. Por outro lado, um espalhamento em que o momento linear do elétron pouco varia, pp e θ ≈ 0, está associado a fótons que satisfazem a relação energia-momento em boa aproximação, e portanto podem mediar interações a longas distâncias. Posto de outra forma: quanto mais o elétron se aproxima de outra carga, maior poderá ser a virtualidade dos fótons trocados entre elas, e maior será o desvio da trajetória do elétron; ao passo que, se as cargas estão distantes, os fótons devem satisfazer a equação (12) em boa aproximação, o que corresponde, pela equação (14), a um desvio pequeno de trajetória. Esse é justamente o comportamento clássico da interação eletrostática: quanto mais distantes as cargas, menor é a força e, consequentemente, menor a variação do momento linear da partícula teste. O argumento acima apresenta uma explicação para esse fenômeno em nível microscópico. É possível mostrar que a relação de virtualidade dada pela equação (14) dá origem a uma energia potencial de interação do tipo V(r)∼1/r, que é justamente a energia potencial associada à lei de Coulomb. Note, ainda, que todos os fótons que contribuem para a Lei de Coulomb são virtuais.

Uma outra maneira de refrasear a argumentação acima é a seguinte. Um fóton real, não massivo, contém apenas duas possíveis polarizações, que são transversais à direção de propagação20 20 Ou seja, o fato de a luz ser uma onda transversal advém do fato de o fóton não ter massa. . Por outro lado, a violação da equação (12) implica que um fóton virtual possui uma terceira polarização, dita longitudinal, que não está associada a um grau de liberdade que se propaga. De fato, é possível mostrar que esse grau de liberdade longitudinal atua como mensageiro da Lei de Coulomb [5959. F. Halzen e A.D. Martin, Quarks and Leptons: An Introductory Course in Modern Particle Physics (Wiley, Hoboken, 1984).]. Segue-se que quanto maior for a virtualidade do fóton, maior é a contribuição da polarização longitudinal, e mais intensa a interação Coulombiana, como concluímos acima.

2.8. Pósitrons: os antielétrons

Na seção 2.7.1 2.7.1. O campo eletromagnético quântico A introdução do conceito de fóton implica, em um primeiro momento, em uma ambiguidade na descrição da radiação eletromagnética, que passa a ser ao mesmo tempo tratada como oscilação de um campo clássico e como ente com propriedades quânticas11. Como o caráter quântico dos fótons poderia emergir da propagação de um campo clássico? Essa inconsistência aponta para a necessidade de se quantizar o campo eletromagnético, i.e. descrevê-lo inteiramente de acordo com o paradigma quântico. A teoria quântica que descreve a interação entre partículas carregadas (por ex. elétrons) e o campo eletromagnético quantizado é chamada de Eletrodinâmica Quântica (Quantum Electrodynamics ou QED em inglês). Na QED, o campo eletromagnético passa a ser visto como uma ‘‘superfície’’ tridimensional12 vibratória que preenche todo o volume do espaço, análoga à superfície de um instrumento musical de percussão, como a pele de um tambor. À parte da dimensionalidade -- o campo preenche todo o espaço, enquanto a pele percussiva é plana, bidimensional --, a única (e crucial) distinção se deve ao caráter clássico das vibrações do instrumento musical e ao caráter quântico do campo quantizado13. A partir dessa analogia, e da compreensão de suas limitações, pode-se entender conceitos fundamentais da QED (e de Teorias Quânticas de Campos em geral). Primeiramente, assim como a superfície percussiva possui um estado em que não há quaisquer vibrações e nenhum som é emitido, também o campo quântico possui um estado fundamental, que é chamado de estado de vácuo (a motivação para essa nomenclatura ficará clara a seguir). No entanto, note que, por se tratar de um objeto quântico, não é possível afirmar que o campo no estado fundamental está em repouso. O princípio da incerteza garante que, mesmo no estado fundamental, há vibrações do campo, associadas à chamada “energia de ponto-zero”. Isso significa que o vácuo quântico tem energia, fato que tem consequências observáveis e aplicações práticas/tecnológicas, tais como: o efeito Casimir, que consiste na atração de duas placas metálicas, eletricamente neutras, imersas no vácuo. A atração se deve à modificação da energia do vácuo quântico na presença das placas. Mais especificamente, quanto mais próximas as placas, menor a energia do vácuo na região por elas limitadas; o processo de emissão espontânea de um fóton por um átomo no estado excitado, que dá origem aos espectros atômicos. No formalismo de Schrödinger da mecânica quântica, todas as camadas eletrônicas do átomo correspondem a estados estacionários, e a probabilidade de transição entre eles é nula. A transição do elétron entre camadas, e a consequente emissão de um fóton, só ocorre devido à interação do elétron com o vácuo eletromagnético quântico; por possuir energia, a relatividade geral de Einstein garante que o vácuo quântico gravita . Essa energia do vácuo age como uma constante cosmológica, contribuindo para a expansão acelerada do Universo. Entretanto, quando se compara a previsão teórica para a energia do vácuo quântico com o valor da constante cosmológica medido com base em observações da expansão do Universo, há uma discrepância de 120 ordens de magnitude! Ou seja, trata-se da pior previsão da história da Física! Esse é o chamado problema da constante cosmológica, ainda sem solução [54, 55]. Além do estado fundamental, uma superfície vibratória pode, obviamente, oscilar de diversas maneiras. Dentre elas, destacam-se os chamados modos normais de vibração, associados a ondas estacionárias, em que todos os pontos da superfície oscilam com a mesma frequência, como exemplificado ilustrativamente na Figura 16. Em um instrumento musical, um modo normal está associado a uma nota musical específica: quando se ataca a pele de um tambor, ela vibra em um modo normal e emite som da frequência para a qual o instrumento foi previamente afinado. No caso de um campo quântico, um modo normal de vibração corresponde a uma partícula de energia e momento definidos. Note o caráter explicitamente dual dessa descrição, que traça paralelos diretos entre partículas com energia definida e modos de oscilação de determinada frequência. O fato de a vibração não estar localizada em nenhuma região, mas ocorrer em todo o espaço ocupado pelo campo, como ilustrado na Figura 16, está de acordo com o esperado pelo princípio da incerteza de Heisenberg quando aplicado a uma partícula cujo momento linear é conhecido precisamente. Figura 16 Momentos distintos de um ciclo oscilatório associado a um modo normal de vibração para uma superfície bidimensional. No caso de um instrumento de percussão, esse padrão corresponderia a uma nota musical (i.e. uma frequência sonora) específica. Para um campo quântico, corresponde a uma partícula com energia e momento específicos. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Essa interpretação de partículas como excitações do campo em modos normais de vibração justifica, ainda, a nomenclatura de vácuo para o estado fundamental, por corresponder ao caso em que o número de partículas se anula. Por fim, enfatiza-se que a mesma interpretação se aplica a partículas materiais: o elétron também é um modo normal de vibração de um campo fundamental, que podemos chamar de campo eletrônico ou campo do elétron. Isso explica, aliás, por que todos elétrons do Universo são idênticos: todos são vibrações de um único campo fundamental. O Modelo Padrão da Física de Partículas, embasado no formalismo de Teoria Quântica de Campos, é ao mesmo tempo uma teoria de partículas e uma teoria de interação entre campos. acima vimos que, em uma teoria quântica relativística, o elétron é interpretado como uma excitação de um campo fundamental, que chamamos de “campo do elétron” ou “campo eletrônico”. Contudo, é possível mostrar que os postulados da relatividade restrita só são satisfeitos quando se considera que o campo eletrônico possui também um outro tipo de excitação, com a mesma massa do elétron mas carga oposta. Em outras palavras, uma teoria quântica relativística do elétron prevê, também, a existência de um antielétron! Como a carga dessa partícula é positiva, ela é chamada de pósitron.

Figura 21
Representação esquemática do movimento de um pósitron, interpretado como o movimento de um elétron movendo-se “para trás no tempo”. O pósitron pode ser visto como uma “ausência de elétron” ou como um buraco nesta página em branco: à medida que o “buraco” se move para a direita, o espaço que ele antes ocupava passa a ser novamente branco, como o restante da página. Reduzir a ausência de carga negativa em uma determinada posição é equivalente a acrescentar uma carga negativa nesse ponto. Isso porque −(+ e) = −e. Assim, o pósitron movendo-se de 1 para 2 em t1t2 corresponde a um elétron movendo-se de 2 para 1. Em t2t3 o elétron se desloca de 3 para 2. Note que o elétron que saiu de 2 para 1 precisou, primeiro, sair de 3 para 2. Assim, efetivamente, o movimento do pósitron de 1→2→3 em t1t2t3 corresponde ao movimento de um elétron de 3→2→1 em t3t2t1.

Pode-se entender a afirmação acima da seguinte maneira. Considere dois eventos que ocorrem nos pontos x=(t,x) e x+Δx=(t+Δt,x+Δx) do espaço-tempo, e suponhamos que |Δx|>cΔt, ou seja, a distância espacial Δx é maior do que a distância que a luz pode percorrer no intervalo Δt. Isso significa que esses dois eventos são causalmente desconexos, pois só poderiam ser relacionados por um sinal superluminal, o que violaria os postulados da relatividade restrita. No entanto, quando calculamos a probabilidade de que um elétron se propague de x até x + Δx, constata-se que essa probabilidade não se anula! Assim, se o campo eletrônico propagasse informação somente via elétrons, haveria violação da causalidade: veríamos efeitos precedendo suas causas, o que é absurdo! Para preservar a causalidade, o campo eletrônico deve possuir, também, um segundo tipo de excitação, que são os chamados “pósitrons”: as antipartículas dos elétrons. A transmissão de informação entre dois pontos espaço-temporais envolve a propagação de um elétron de x a x + Δx bem como a propagação de um pósitron de x + Δx a x e, quando essas duas partículas têm exatamente a mesma massa, esses dois processos interferem destrutivamente21 21 Vale enfatizar que essa superposição entre propagação de elétrons e pósitrons só se anula quando x e x + Δx estão fora do cone de luz um do outro. Quando Δ⁢x→≤c⁢Δ⁢t, a interferência entre elétron e pósitron não é totalmente destrutiva, de modo a (felizmente) ser possível a transmissão de informação nesse caso. , garantindo a causalidade em nível quântico. Note que, nesse caso, a propagação de um elétron é exatamente cancelada pela de um pósitron se propagando no sentido oposto no espaço e no tempo. Esse é um dos aspectos da interpretação de Feynman-Stückelberg para as antipartículas, que garante que, sob todos os aspectos, as antipartículas se comportam como partículas viajando para trás no tempo. Isso explica porque partículas e antipartículas possuem a mesma massa: são, no fundo, a mesma partícula, ou, dito de outra forma, são excitações de um mesmo campo fundamental.

Essa interpretação de antipartículas pode ser visualizada da seguinte maneira. Imagine um pósitron se propagando da esquerda para a direita, como ilustrado na Figura 21. Vamos denominar as três posições que o pósitron ocupa na figura como posições 1, 2 e 3, respectivamente. No instante t1 há uma carga elétrica positiva ocupando a posição 1, mais à esquerda da figura, enquanto as posições vizinhas correspondem a espaços vazios, portanto com carga nula. Na passagem do instante t1 para um instante t2 posterior, a carga + e é subtraída da posição 1 e acrescida na posição 2. Mas esse processo é totalmente análogo a subtrairmos uma carga −e de 2 (pois 0−(−e) = + e) e adicionarmos −e em 1 (pois −e + e = 0). Dito de outra forma, é como se a existência de um pósitron pudesse ser vista como a “ausência de um elétron”, ou como um “buraco”: à medida que o pósitron se move da esquerda para a direita, os espaços mais à direita vão se movendo para a esquerda, para preencher a lacuna do pósitron. A Figura 21 mostra, assim, como o movimento do pósitron da esquerda para a direita ao longo de t1t2t3 corresponde ao movimento de um elétron da direita para a esquerda ao longo de t3t2t1, portanto andando “para trás no tempo”.

Esse mesmo argumento se aplica a qualquer campo quântico, de modo que toda partícula elementar possui uma antipartícula associada, e ambas partícula e antipartícula possuem a mesma massa, mas cargas opostas22 22 Algumas partículas são as suas próprias antipartículas, como é o caso dos fótons. .

Refraseando em poucas palavras: antipartículas emergem inevitavelmente dos postulados da mecânica quântica e da relatividade restrita. Ou, ainda de outra forma: é impossível formular uma teoria quântica relativística de apenas uma partícula. Isso não é inesperado, visto que a relação relativística E = mc2 já aponta para a possibilidade de se converter energia em massa e, portanto, criar novas partículas a partir de uma energia inicial ou, reciprocamente, converter massa em energia através da aniquilação de partículas.

Na QED, em que elétrons e pósitrons interagem com o campo eletromagnético, essa energia que cria partículas ou resulta de suas aniquilações está na forma de fótons. Ou seja, um par elétron-pósitron pode se aniquilar mutuamente, resultando em (dois ou mais) fótons no produto final, ou, reciprocamente, fótons podem produzir um par elétron-pósitron23 23 É fácil mostrar, por conservação de energia-momento, que um par elétron-pósitron não pode resultar de um único fóton não-massivo, devendo portanto existir pelo menos dois fótons no estado inicial de um processo de criação de pares. Para um fóton virtual, o processo γ↔e+ + e− é permitido. . Esse processo está representado diagramaticamente pela Figura 22.

Figura 22
Diagrama representando a aniquilação de um par elétron-pósitron em dois fótons. Note como a partícula mediadora é uma excitação do campo eletrônico. Esse caso ilustra como todas as partículas podem ser virtuais, e não apenas as mediadoras das interações.

Historicamente, a existência dos pósitrons foi prevista por Dirac em 1928, mesmo antes de essas partículas terem sido observadas. Após ter formulado sua equação relativística para o elétron, Dirac notou que as soluções inevitavelmente continham, também, elétrons de energia negativa. O que parecia um problema foi transformado em um triunfo da teoria quando Dirac interpretou essas soluções como fenomenologicamente equivalentes a antielétrons, ou ‘‘elétrons’’ de carga positiva24 24 Inicialmente Dirac relutou em propor a existência de uma nova partícula, e supôs que os “antielétrons” que apareciam como soluções de sua equação eram os prótons. A exorbitante diferença entre as massas do elétron e do próton logo desmentiu essa hipótese, e, para a sorte de Dirac, Anderson detectou o pósitron poucos anos depois, corroborando o sucesso da descrição do elétron por Dirac. . A corroboração experimental dessa predição foi feita por Anderson em 1932, ao observar partículas que, sob um campo magnético, curvavam-se como se tivessem a mesma massa do elétron, porém carga oposta. A história do pósitron é, portanto, um dos muitos exemplos de partículas preditas teoricamente antes de serem detectadas experimentalmente, o que ilustra o caráter altamente preditivo dessas teorias.

A Figura 23 ilustra a criação de um par elétron-pósitron observada em uma câmara de bolhas. O experimento é desenhado para detectar o rastro de partículas carregadas. Por isso, o rastro do fóton não aparece, embora possa ser deduzido pelo vértice de criação do par. As partículas estão submetidas a um campo magnético perpendicular ao plano da figura, e, por possuírem mesma massa e cargas opostas, são curvadas em direções opostas, mas com trajetórias de aproximadamente mesmo raio.

Figura 23
Criação de um par elétron-pósitron visualizado em uma câmara de bolhas. Fonte: CERN.

Esse fenômeno de aniquilação de pares resultando em radiação eletromagnética tem aplicação prática na medicina, nos chamados PET scans (PET é a sigla em inglês para Tomografia por Emissão de Pósitrons). Trata-se de uma modalidade de obtenção de imagens e dados sobre o funcionamento metabólico do organismo, que funciona da seguinte maneira [6060. P.E. Valk, D.L. Bailey e D.W. Towsend, Positron Emission Tomography: Basic Science and Clinical Practise (Springer Verlag, New York, 2002).]. Primeiramente, modifica-se uma molécula usualmente metabolizada pelo organismo (por exemplo, glucose) substituindo-se um de seus átomos por um elemento radioativo que decai por emissão de pósitrons (usualmente 18F). Essa substância é inserida intravenosamente no paciente, e o organismo, confundindo-a com glucose, redireciona-a a órgão vitais, onde será metabolizada. Ali, o elemento radioativo emitirá um pósitron, que se aniquilará com um elétron do corpo do paciente, emitindo dois fótons de radiação γ que serão observados pelo aparelho detector, como na Figura 24. Por conservação de momento, os fótons sempre são emitidos em direções opostas. O aparelho calcula o intervalo de tempo entre a detecção de cada fóton, e determina, assim, o local de onde o pósitron foi emitido. Faz-se, assim, um mapeamento da atividade metabólica do organismo, podendo-se determinar a integridade do tecido cerebral, a existência de tumores, o funcionamento cardiovascular, dentre outras aplicações.

Figura 24
Esquema de funcionamento de um aparelho de Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET scan). Fonte: adaptado de [6161. www.physicsforums.com/insights/basics-positron-emission-tomography-pet, acessado em 05/03/2021.
www.physicsforums.com/insights/basics-po...
].

2.9. A carga efetiva do elétron

Outra consequência da conversão de fótons em pares elétron-pósitron (e vice-versa) é a chamada “polarização do vácuo”, que tem uma importante consequência fenomenológica: a constatação de que a carga elétrica do elétron não é constante!

Para entender melhor essa afirmação, considere o diagrama ilustrado na Figura 25, em que a propagação de um fóton é temporariamente interrompida pela criação de um par elétron-pósitron, que posteriormente se aniquila e dá origem novamente a um fóton que continua a se propagar. Esse processo ilustra que, devido à interação com o campo eletrônico, um fóton não pode ser visto apenas como uma excitação do campo eletromagnético. Sua propagação é afetada por sua interação com elétrons e pósitrons. E isso, por sua vez, tem impacto sobre a maneira como esse fóton intermedeia a interação eletromagnética entre cargas elétricas.

Figura 25
Diagrama de Feynman ilustrando um possível processo ocorrendo durante a propagação de um fóton, temporariamente interrompida pela criação e posterior aniquilação de um par elétron-pósitron. Este é um exemplo de um diagrama com um laço.

De fato, considere a interação entre uma carga q incidindo contra uma carga Q, que por simplicidade suporemos ser muito mais pesada, de modo que ela permanece essencialmente imóvel ao longo do processo. O eletromagnetismo clássico diz que essa interação é regida pela lei de Coulomb, ou seja, a energia potencial de interação é

(15) V Coulomb ( r ) = k Q q r ,

com k ≈ 9×109N m2/C2 a constante de Coulomb. Esse comportamento é exatamente o que se obtém na eletrodinâmica quântica a partir do diagrama da Figura 26(a), como já discutido na seção 2.7.3 2.7.3. Diagramas de Feynman Outra maneira de representar a interação entre elétrons é através de um diagrama de Feynman, como na Figura 18. Aqui, o eixo vertical representa a dimensão espacial, e o eixo horizontal é a passagem do tempo. Representa-se, aqui, o mesmo processo ilustrado na Figura 17 anterior: dois elétrons interagindo pela troca de um fóton virtual. Entretanto, não é correto ler esse diagrama como se um dos elétrons (digamos, o elétron da parte superior da figura) tivesse emitido o fóton, e o outro (da parte inferior) o tivesse absorvido. Pois o processo oposto, em que o elétron inferior emitiu e o superior absorveu o fóton, é igualmente possível. E, se há dois processos intermediários possíveis, a mecânica quântica garante que a contribuição total aos processos físicos é a soma das contribuições dos processos intermediários. A Figura 19 mostra que o diagrama de Feynman da Figura 18 representa a soma (i.e. a superposição quântica) das duas ordenações temporais possíveis para a emissão e absorção do fóton intermediário [57, 58, 59]. Ou seja, a Figura 18 ilustra apenas que, em primeira ordem, esse processo ocorre mediante a troca de um fóton virtual, sem representar como esse processo de fato ocorre no espaço-tempo. Figura 18 Diagrama de Feynman ilustrando a interação entre dois elétrons mediada pela troca de um fóton virtual. Os pontos que conectam os elétrons ao fóton são chamados de vértices do diagrama. Figura 19 A interação entre elétrons pela troca de um fóton virtual deve levar em conta as duas possibilidades de ordenamento temporal, em que um elétron emite e o outro absorve o fóton trocado. Para compreender melhor a diferença entre fótons reais e virtuais, consideremos o balanço de energia-momento em um ponto de “emissão/absorção” do fóton no diagrama, i.e. em um de seus vértices. Sejam (E,p→) e (E′,p→′) a energia e momento linear de um elétron da Figura 18 (por ex., o elétron da parte superior do diagrama) antes e depois da interação (i.e. à esquerda e à direita do vértice, respectivamente), e sejam (Eγ,p→γ) a energia e momento do fóton virtual. A conservação de energia e momento na absorção/emissão do fóton impõe que (9) E = E γ + E ′ , (10) p → = p → γ + p → ′ , logo (11) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = ( E - E ′ ) 2 - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 . Como um fóton tem massa mγ = 0, esperar-se-ia, da relação relativística de energia-momento16, que (12) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = m γ 2 ⁢ c 4 = 0 ⁢ ? No entanto, em um espalhamento de elétrons não há nada que vincule E a E′ ou p→ a p→′ a priori17 (tratam-se de variáveis livres do problema), de maneira que, em geral, o lado direito da equação (11) não se anula. Isso significa que um fóton virtual em geral não satisfaz a relação relativística de energia-momento. Ou, dito de outra forma, é como se a partícula virtual pudesse ter massa diferente da massa observada para excitações normais do campo em questão. Essa é outra importante distinção entre partículas reais e virtuais. Essa violação da equação (12) não é um problema, contanto que esteja dentro da margem de incerteza associada à energia e ao momento do fóton virtual. Pelo princípio da incerteza, a precisão com que se pode determinar a energia de um sistema (ΔE) é limitada pelo tempo disponível para ele interagir com um possível aparato medidor (Δt), assim como a incerteza em seu momento (Δp) cresce à medida que se reduz a região do espaço a que ele esteja restrito (Δx). Isso pode ser expresso matematicamente por meio das famosas relações de incerteza (13) Δ ⁢ E ⁢ Δ ⁢ t ≥ ℏ 2 , Δ ⁢ p ⁢ Δ ⁢ x ≥ ℏ 2 , com ℏ ≈ 1.05×10−34 kg m2/s a constante de Planck reduzida18. Assim, quanto menor for o tempo de vida de uma excitação de um campo, e/ou quanto menor for seu alcance espacial, maior será a incerteza associada à sua energia-momento, e portanto maior será a margem para uma aparente violação da equação (12). Mais especificamente, o espalhamento descrito pelo diagrama da Figura 18 é mediado por fótons de todas as possíveis virtualidades, e a interação final resulta da soma de todas as contribuições. Entretanto, para grandes distâncias entre as partículas interagentes, a sobreposição dos fótons virtuais resulta em uma interferência destrutiva (exatamente no sentido de interferência de ondas), de modo que quanto maior a virtualidade dos fótons mediadores, menores serão seus impactos no resultado final da interação. Assim, a grandes distâncias, apenas fótons de baixa virtualidade contribuem significativamente. Reciprocamente, a menores distâncias, a contribuição dos fótons de maior virtualidade também se torna relevante. Uma discussão muito detalhada desse efeito, ao mesmo tempo em que é acessível ao público geral, pode ser encontrada na ref. [57], cuja leitura é fortemente recomendada para uma maior compreensão da QED e um complemento da discussão aqui apresentada. O argumento exposto acima nos fornece uma maneira de compreender o comportamento da Lei de Coulomb sob uma perspectiva microscópica da interação eletromagnética. Consideremos o caso de um elétron espalhado elasticamente por uma carga muito mais pesada, e que portanto permanece aproximadamente estática, como esquematizado na Figura 20. Um exemplo é um experimento de difração de elétrons, ao estilo dos experimentos de Rutherford-Geiger-Marsden que levaram à descoberta do núcleo atômico19. Nesse caso, a energia cinética do elétron não varia (por se tratar de espalhamento elástico) e a equação (11) fica (14) virtualidade ≡ E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 = - 4 ⁢ | p → | 2 ⁢ c 2 ⁢ sin 2 ⁡ θ 2 , que define o “grau de virtualidade” do fóton através da medida de violação da relação relativística de energia-momento. Nessa equação, θ é o ângulo entre o feixe espalhado e a direção do feixe incidente (vide legenda da Figura 20), que varia entre θ = 0 (quando não há desvio) e θ = π (quando o feixe volta na mesma direção e sentido oposto ao incidente). Figura 20 Diagrama de Feynman para um espalhamento elástico por uma carga estática. Define-se o ângulo θ como o ângulo entre o momento final (p→′) e inicial do elétron (p→), medindo o desvio relativamente à direção do feixe incidente. Ele não aparece na figura, pois um diagrama de Feynman representa apenas uma esquematização do processo que contribui para a interação, e não ilustra como o espalhamento ocorre, de fato, no espaço-tempo. Veja comentário no início da seção 2.7.3, bem como a Figura 19. Nota-se que, quanto maior o ângulo θ de espalhamento relativo ao feixe incidente (i.e. quanto maior for a alteração do estado de movimento do elétron devido à interação), maior é a virtualidade, e portanto, pelo argumento anterior, menor deve ser o alcance dessa interação. Ou seja, o elétron só é desviado significativamente de sua trajetória incidente se ele se aproximar muito da outra carga. Por outro lado, um espalhamento em que o momento linear do elétron pouco varia, p→≈p→′ e θ ≈ 0, está associado a fótons que satisfazem a relação energia-momento em boa aproximação, e portanto podem mediar interações a longas distâncias. Posto de outra forma: quanto mais o elétron se aproxima de outra carga, maior poderá ser a virtualidade dos fótons trocados entre elas, e maior será o desvio da trajetória do elétron; ao passo que, se as cargas estão distantes, os fótons devem satisfazer a equação (12) em boa aproximação, o que corresponde, pela equação (14), a um desvio pequeno de trajetória. Esse é justamente o comportamento clássico da interação eletrostática: quanto mais distantes as cargas, menor é a força e, consequentemente, menor a variação do momento linear da partícula teste. O argumento acima apresenta uma explicação para esse fenômeno em nível microscópico. É possível mostrar que a relação de virtualidade dada pela equação (14) dá origem a uma energia potencial de interação do tipo V(r)∼1/r, que é justamente a energia potencial associada à lei de Coulomb. Note, ainda, que todos os fótons que contribuem para a Lei de Coulomb são virtuais. Uma outra maneira de refrasear a argumentação acima é a seguinte. Um fóton real, não massivo, contém apenas duas possíveis polarizações, que são transversais à direção de propagação20. Por outro lado, a violação da equação (12) implica que um fóton virtual possui uma terceira polarização, dita longitudinal, que não está associada a um grau de liberdade que se propaga. De fato, é possível mostrar que esse grau de liberdade longitudinal atua como mensageiro da Lei de Coulomb [59]. Segue-se que quanto maior for a virtualidade do fóton, maior é a contribuição da polarização longitudinal, e mais intensa a interação Coulombiana, como concluímos acima. . Ou seja, a teoria eletromagnética clássica está contida na QED como primeira aproximação, ao ignorarmos todos diagramas que contenham laços.

Mas há vários outros processos também presentes na QED, como o ilustrado na Figura 26(b), que contribuem para a mediação da interação entre as cargas, e que portanto fornecem “correções quânticas” à predição da teoria clássica. Esses processos estão sempre presentes, independentemente de a interação ser macroscópica ou não. Quer dizer, é impossível “desligarmos” esses processos tipicamente quânticos e observarmos apenas os processos clássicos. Sendo assim, por que esses efeitos quânticos não são comumente observados em nosso dia a dia? Por que a lei de Coulomb é uma boa aproximação para interações macroscópicas? E, ainda mais importante: o quão pequenas têm que ser as distâncias envolvidas para que esses efeitos quânticos se manifestem mais perceptivelmente?

Podemos responder essa questão recorrendo novamente ao conceito de virtualidade das partículas intermediárias, elaborado na seção 2.7.3 2.7.3. Diagramas de Feynman Outra maneira de representar a interação entre elétrons é através de um diagrama de Feynman, como na Figura 18. Aqui, o eixo vertical representa a dimensão espacial, e o eixo horizontal é a passagem do tempo. Representa-se, aqui, o mesmo processo ilustrado na Figura 17 anterior: dois elétrons interagindo pela troca de um fóton virtual. Entretanto, não é correto ler esse diagrama como se um dos elétrons (digamos, o elétron da parte superior da figura) tivesse emitido o fóton, e o outro (da parte inferior) o tivesse absorvido. Pois o processo oposto, em que o elétron inferior emitiu e o superior absorveu o fóton, é igualmente possível. E, se há dois processos intermediários possíveis, a mecânica quântica garante que a contribuição total aos processos físicos é a soma das contribuições dos processos intermediários. A Figura 19 mostra que o diagrama de Feynman da Figura 18 representa a soma (i.e. a superposição quântica) das duas ordenações temporais possíveis para a emissão e absorção do fóton intermediário [57, 58, 59]. Ou seja, a Figura 18 ilustra apenas que, em primeira ordem, esse processo ocorre mediante a troca de um fóton virtual, sem representar como esse processo de fato ocorre no espaço-tempo. Figura 18 Diagrama de Feynman ilustrando a interação entre dois elétrons mediada pela troca de um fóton virtual. Os pontos que conectam os elétrons ao fóton são chamados de vértices do diagrama. Figura 19 A interação entre elétrons pela troca de um fóton virtual deve levar em conta as duas possibilidades de ordenamento temporal, em que um elétron emite e o outro absorve o fóton trocado. Para compreender melhor a diferença entre fótons reais e virtuais, consideremos o balanço de energia-momento em um ponto de “emissão/absorção” do fóton no diagrama, i.e. em um de seus vértices. Sejam (E,p→) e (E′,p→′) a energia e momento linear de um elétron da Figura 18 (por ex., o elétron da parte superior do diagrama) antes e depois da interação (i.e. à esquerda e à direita do vértice, respectivamente), e sejam (Eγ,p→γ) a energia e momento do fóton virtual. A conservação de energia e momento na absorção/emissão do fóton impõe que (9) E = E γ + E ′ , (10) p → = p → γ + p → ′ , logo (11) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = ( E - E ′ ) 2 - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 . Como um fóton tem massa mγ = 0, esperar-se-ia, da relação relativística de energia-momento16, que (12) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = m γ 2 ⁢ c 4 = 0 ⁢ ? No entanto, em um espalhamento de elétrons não há nada que vincule E a E′ ou p→ a p→′ a priori17 (tratam-se de variáveis livres do problema), de maneira que, em geral, o lado direito da equação (11) não se anula. Isso significa que um fóton virtual em geral não satisfaz a relação relativística de energia-momento. Ou, dito de outra forma, é como se a partícula virtual pudesse ter massa diferente da massa observada para excitações normais do campo em questão. Essa é outra importante distinção entre partículas reais e virtuais. Essa violação da equação (12) não é um problema, contanto que esteja dentro da margem de incerteza associada à energia e ao momento do fóton virtual. Pelo princípio da incerteza, a precisão com que se pode determinar a energia de um sistema (ΔE) é limitada pelo tempo disponível para ele interagir com um possível aparato medidor (Δt), assim como a incerteza em seu momento (Δp) cresce à medida que se reduz a região do espaço a que ele esteja restrito (Δx). Isso pode ser expresso matematicamente por meio das famosas relações de incerteza (13) Δ ⁢ E ⁢ Δ ⁢ t ≥ ℏ 2 , Δ ⁢ p ⁢ Δ ⁢ x ≥ ℏ 2 , com ℏ ≈ 1.05×10−34 kg m2/s a constante de Planck reduzida18. Assim, quanto menor for o tempo de vida de uma excitação de um campo, e/ou quanto menor for seu alcance espacial, maior será a incerteza associada à sua energia-momento, e portanto maior será a margem para uma aparente violação da equação (12). Mais especificamente, o espalhamento descrito pelo diagrama da Figura 18 é mediado por fótons de todas as possíveis virtualidades, e a interação final resulta da soma de todas as contribuições. Entretanto, para grandes distâncias entre as partículas interagentes, a sobreposição dos fótons virtuais resulta em uma interferência destrutiva (exatamente no sentido de interferência de ondas), de modo que quanto maior a virtualidade dos fótons mediadores, menores serão seus impactos no resultado final da interação. Assim, a grandes distâncias, apenas fótons de baixa virtualidade contribuem significativamente. Reciprocamente, a menores distâncias, a contribuição dos fótons de maior virtualidade também se torna relevante. Uma discussão muito detalhada desse efeito, ao mesmo tempo em que é acessível ao público geral, pode ser encontrada na ref. [57], cuja leitura é fortemente recomendada para uma maior compreensão da QED e um complemento da discussão aqui apresentada. O argumento exposto acima nos fornece uma maneira de compreender o comportamento da Lei de Coulomb sob uma perspectiva microscópica da interação eletromagnética. Consideremos o caso de um elétron espalhado elasticamente por uma carga muito mais pesada, e que portanto permanece aproximadamente estática, como esquematizado na Figura 20. Um exemplo é um experimento de difração de elétrons, ao estilo dos experimentos de Rutherford-Geiger-Marsden que levaram à descoberta do núcleo atômico19. Nesse caso, a energia cinética do elétron não varia (por se tratar de espalhamento elástico) e a equação (11) fica (14) virtualidade ≡ E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 = - 4 ⁢ | p → | 2 ⁢ c 2 ⁢ sin 2 ⁡ θ 2 , que define o “grau de virtualidade” do fóton através da medida de violação da relação relativística de energia-momento. Nessa equação, θ é o ângulo entre o feixe espalhado e a direção do feixe incidente (vide legenda da Figura 20), que varia entre θ = 0 (quando não há desvio) e θ = π (quando o feixe volta na mesma direção e sentido oposto ao incidente). Figura 20 Diagrama de Feynman para um espalhamento elástico por uma carga estática. Define-se o ângulo θ como o ângulo entre o momento final (p→′) e inicial do elétron (p→), medindo o desvio relativamente à direção do feixe incidente. Ele não aparece na figura, pois um diagrama de Feynman representa apenas uma esquematização do processo que contribui para a interação, e não ilustra como o espalhamento ocorre, de fato, no espaço-tempo. Veja comentário no início da seção 2.7.3, bem como a Figura 19. Nota-se que, quanto maior o ângulo θ de espalhamento relativo ao feixe incidente (i.e. quanto maior for a alteração do estado de movimento do elétron devido à interação), maior é a virtualidade, e portanto, pelo argumento anterior, menor deve ser o alcance dessa interação. Ou seja, o elétron só é desviado significativamente de sua trajetória incidente se ele se aproximar muito da outra carga. Por outro lado, um espalhamento em que o momento linear do elétron pouco varia, p→≈p→′ e θ ≈ 0, está associado a fótons que satisfazem a relação energia-momento em boa aproximação, e portanto podem mediar interações a longas distâncias. Posto de outra forma: quanto mais o elétron se aproxima de outra carga, maior poderá ser a virtualidade dos fótons trocados entre elas, e maior será o desvio da trajetória do elétron; ao passo que, se as cargas estão distantes, os fótons devem satisfazer a equação (12) em boa aproximação, o que corresponde, pela equação (14), a um desvio pequeno de trajetória. Esse é justamente o comportamento clássico da interação eletrostática: quanto mais distantes as cargas, menor é a força e, consequentemente, menor a variação do momento linear da partícula teste. O argumento acima apresenta uma explicação para esse fenômeno em nível microscópico. É possível mostrar que a relação de virtualidade dada pela equação (14) dá origem a uma energia potencial de interação do tipo V(r)∼1/r, que é justamente a energia potencial associada à lei de Coulomb. Note, ainda, que todos os fótons que contribuem para a Lei de Coulomb são virtuais. Uma outra maneira de refrasear a argumentação acima é a seguinte. Um fóton real, não massivo, contém apenas duas possíveis polarizações, que são transversais à direção de propagação20. Por outro lado, a violação da equação (12) implica que um fóton virtual possui uma terceira polarização, dita longitudinal, que não está associada a um grau de liberdade que se propaga. De fato, é possível mostrar que esse grau de liberdade longitudinal atua como mensageiro da Lei de Coulomb [59]. Segue-se que quanto maior for a virtualidade do fóton, maior é a contribuição da polarização longitudinal, e mais intensa a interação Coulombiana, como concluímos acima. . Naquela ocasião, definimos o “grau de virtualidade” de uma partícula de energia E, momento p e massa m como uma medida do quanto ela viola a relação relativística de massa-energia-momento, i.e.

(16) virtualidade E 2 - | p | 2 c 2 - m 2 c 4 .

Assim, tudo se passa como se a partícula virtual tivesse uma massa diferente da correspondente partícula real. Por exemplo, é como se um elétron virtual tivesse massa diferente de me ≈ 9.1×10−31 kg. Uma partícula real é aquela para a qual o lado direito da equação (16) se anula.

Figura 26
Dois processos possíveis de mediação da interação entre as cargas q e Q. (a) Diagrama responsável pela interação descrita no eletromagnetismo clássico. (b) Uma correção quântica oriunda da interação mútua entre o fóton e as excitações do campo eletrônico, que altera a propagação do fóton. Por incluir uma modificação na propagação do fóton, esse diagrama induz uma modificação da lei de Coulomb para a interação entre partículas carregadas. Isso também pode ser interpretado como uma alteração na “carga elétrica efetiva” das partículas interagentes.

Interações de longa distância são mediadas predominantemente por fótons de baixa virtualidade, o que por sua vez implica em uma alta virtualidade para o par elétron-pósitron da Figura 26(b)25 25 Um exercício interessante consiste em aplicar as leis de conservação de energia e momento aos vértices do diagrama da Figura 25 para mostrar que o par elétron-pósitron só pode ser real se E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 ≥ ( 2 ⁢ m e ⁢ c 2 ) 2 . . Isso faz com que os efeitos desse diagrama sejam atenuados em comparação com o da Figura 26(a). Assim, para grandes distâncias, a interação é regida essencialmente pela lei de Coulomb, como esperado. A que distâncias a contribuição do diagrama com laço se torna relevante? Ora, só existe uma escala de energia característica desse processo, que é a energia de repouso do par elétron-pósitron, 2mec2. Essa energia está naturalmente associada, na teoria quântica, a uma escala de distância da ordem26 26 Veja o apêndice A.4 para uma atividade elucidando a relação entre energia e distâncias que emerge naturalmente no paradigma quântico.

(17) r ˜ = c 2 m e c 2 = ( constante de Planck ) × ( velocidade da luz ) ( energia de repouso do par e + e - ) 2 × 10 13 m .

O fato de essa escala de distância, característica do processo da Figura 26(b), envolver a constante de Planck e a velocidade da luz mostra que se trata de um efeito caracteristicamente quântico e relativístico. Como já poderíamos antecipar, trata-se de uma escala de distância associada ao comprimento de onda de um fóton com energia 2mec2. Nota-se que r~ é cerca de duas ordens de magnitude menor do que o típico raio atômico, portanto as partículas interagentes devem estar de fato muito próximas para que a modificação na propagação do fóton pela criação de pares intermediários seja perceptível.

Essas previsões são confirmadas quando computamos as correções quânticas ao potencial de Coulomb para rr~ devido ao diagrama da Figura 26(b), resultando no chamado potencial de Uehling,

(18) V ( r ) = k Q q r ( 1 + α 2 π ( r ~ r ) 3 / 2 e - r / r ~ + ) .

Aqui, α ≈ 1/137 é uma constante que dita a intensidade da interação eletromagnética27 27 É a chamada “constante de estrutura fina”, uma grandeza adimensional definida a partir da carga elétrica elementar e, da constante de Coulomb k, da velocidade da luz c e da constante de Planck reduzida ℏ, e é dada por α≡ke2/ℏc. , e r~ é a distância característica ao processo quântico da Figura 26(b) que dá origem a essa correção.

É fácil ver que, para distâncias muito maiores do que essa escala característica, rr~, o potencial de Uehling da equação (18) reduz-se ao potencial de Coulomb, como esperado. As reticências indicam que existem ainda outras correções advindas de processos ainda mais complicados, e que só serão notáveis a distâncias ainda menores.

Essas correções quânticas devido à criação de pares elétron-pósitron virtuais em torno de uma carga elétrica podem ser interpretadas fisicamente como oriundas de uma blindagem da carga devido a um efeito de polarização do vácuo, como ilustrado na Figura 27. Suponhamos, por exemplo, que a partícula ao centro da figura seja um elétron. Devido a processos como os da Figura 26(b), em torno desse elétron existe uma multitude de pares elétron-pósitron virtuais que atuam como minúsculos dipolos, efetivamente reduzindo a densidade de carga do elétron e, portanto, a intensidade de sua interação eletromagnética com outras cargas. Diz-se que o elétron está sempre “vestido”, de modo que, quando dois elétrons interagem, a densidade de carga efetiva da interação é a da nuvem ilustrada na Figura 27, e não do elétron “nu” (ilustrado no centro da figura). Porém, à medida que os elétrons são lançados um contra o outro a mais altas energias, a interação se dá a distâncias cada vez menores, até que eventualmente (quando a energia do centro de massa for Ec.m.≳2mec2) um elétron começa a penetrar a nuvem de polarização do outro e enxerga uma maior carga efetiva, o que faz com que o comportamento da interação seja diferente do Coulombiano. O “raio efetivo” dessa nuvem de polarização em torno do elétron é a escala característica r~ associada ao diagrama 26(b), como já discutido anteriormente.

Figura 27
Efeito de blindagem da carga do elétron devido aos pares elétron-pósitron virtuais. Fonte: cortesia de © INFN, Laboratori Nazionali di Frascati [6262. http://w3.lnf.infn.it/the-variable-constant, acessado em 05/03/2021.
http://w3.lnf.infn.it/the-variable-const...
].

Essa variação da carga efetiva do elétron com a distância é, de fato, observada. Em processos que envolvem interações entre elétrons a altas energias, tudo se passa como se a carga do elétron fosse de fato maior do que a que observamos em nosso mundo de baixas energias. Uma pergunta plausível, neste momento, seria: e qual é, então, a carga do elétron “nu”? A resposta é que a carga do elétron tende a infinito à medida que a distância entre as cargas interagentes diminui. É claro que uma carga infinita não faz sentido fisicamente, e esse comportamento já nos indica que, a partir de uma certa escala de energia, essa descrição do elétron e suas interações em termos de partículas e campos já não é mais aplicável. Isso é análogo ao caso em que a descrição contínua de um sólido ou fluido deixa de ser válida a partir de certas escalas de distância, quando a estrutura atômico-molecular da matéria se torna relevante, e novos graus de liberdade precisam ser incluídos na descrição do sistema. Questões sobre o que é e quais são as propriedades de um elétron ‘‘nu’’ não podem ainda ser resolvidas conclusivamente, e é mais provável que, a partir de uma determinada escala de energia, a pergunta sequer faça sentido, pois o próprio conceito de ‘‘elétron’’ como hoje o entendemos deve ser modificado28 28 É esperado que, a distâncias da ordem do comprimento de Planck, ℓP∼10−35 m, a interação gravitacional se torne relevante em nível quântico. A descrição desses efeitos tipicamente exige reformulações de nossos conceitos de partículas e campos, como nas chamadas teorias de cordas, ou uma discretização do próprio espaço-tempo, como no formalismo de spin foams e gravitação quântica de laços. .

Uma importante consequência desse efeito de polarização do vácuo é o deslocamento de Lamb entre os níveis de energia dos orbitais 2S1/2 e 2P1/2 do átomo de hidrogênio. Se a interação elétron-núcleo ocorresse apenas via diagrama da Figura 26(a), esses orbitais seriam degenerados (i.e. possuiriam a mesma energia). No entanto, experimentos cuidadosos mostraram que há uma transição entre eles, correspondendo à emissão de um fóton de frequência ∼1057 MHz. Na QED, esse valor é predito corretamente com grande precisão levando-se em conta que o elétron no orbital S é capaz de penetrar o núcleo atômico29 29 Para um elétron no orbital S, a probabilidade de encontrá-lo na região do núcleo atômico é não-nula. Isso não ocorre para nenhum outro orbital eletrônico, e portanto apenas os orbitais S são afetados. e, com isso, sentir os efeitos do termo anômalo do potencial de Uehling. Isso não ocorre no orbital P, para o qual o potencial eletromagnético é simplesmente o potencial de Coulomb. Portanto, o nível de energia do orbital S fica ligeiramente deslocado do orbital P, dando origem a uma possível transição eletrônica que é, de fato, observada. A obtenção do valor correto para o deslocamento Lamb por meio do formalismo da QED constitui ainda um dos maiores triunfos dessa teoria, e um forte indicativo de seu poder preditivo.

3. Análise das intervenções

3.1. O contexto: o local e os sujeitos

O Núcleo Cosmo-ufes, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), iniciou, no ano de 2017, um projeto de extensão chamado “Universo na Escola” [6363. http://www.cosmo-ufes.org/universo-na-escola.html, acessado em 05/03/2021.
http://www.cosmo-ufes.org/universo-na-es...
], em que professores e pesquisadores da Universidade são convidados a ministrar palestras a estudantes do ensino médio da rede pública do estado do Espírito Santo. As palestras versam sobre tópicos atuais de pesquisa em Física, visando complementar a formação dos estudantes e despertar-lhes o interesse pelas Ciências em geral e, em particular, pela Física. Elas são elaboradas como atividade complementar eletiva a estudantes nas escolas participantes e realizadas após o período regular de aulas.

Os autores elaboraram uma sequência sobre Física de Partículas para ser inserida no contexto desse projeto e foi ministrada por um dos autores a um grupo de, no máximo, quatorze estudantes do Centro Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral (CEEMTI) Profa Maura Abaurre, no município de Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Os(as) estudantes compunham uma turma mista contemplando as 1a, 2a e 3a séries do ensino médio. Alguns participantes já integravam um grupo com interesse prévio em Física, que vinha sendo acompanhado e orientado durante o ano pelo professor-coordenador. No entanto, no decorrer da sequência outros(as) estudantes se juntaram ao grupo, frequentemente a convite dos demais. A organização local foi realizada pelo professor-coordenador da área de Física na escola. Os encontros da sequência como um todo tiveram duração aproximada de uma hora em aulas extra-classe durante os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro de 2019, totalizando uma carga horária de 10 horas de atividades de Física de Partículas desenvolvidas com os(as) discentes. Cabe ressaltar que os(as) estudantes não tinham qualquer obrigação curricular de frequentar as aulas das intervenções, que constituíam atividade voluntária. Ainda ressaltamos que a sequência didática foi elaborada em formato de aulas e não se deu no formato usual de palestras, como geralmente ocorre na perspectiva do projeto de extensão mencionado.

3.2. Das aulas

Na seção 2 2. Propostas de momentos didáticos Mencionamos a seguir alguns momentos didáticos que podem ser explorados em sala de aula contendo a temática de Eletrodinâmica Quântica no contexto da Física de Partículas. O material foi elaborado com intuito de servir como referência sugestiva ao docente, ficando este livre para adequá-lo a seus propósitos, ao invés de ter que segui-lo como receita impositiva. Dessa forma, há várias possibilidades de se adotar a proposta deste trabalho em sala de aula. Por suposto, uma opção seria a inserção de uma sequência de aulas sobre Física de Partículas ao final do terceiro ano letivo do ensino médio, após se ter discutido extensivamente eletromagnetismo e aspectos da teoria quântica. A Física de Partículas seria, assim, um apêndice ao conteúdo de física moderna. A desvantagem dessa abordagem é privar o(a) aluno(a), durante todo o decurso do ensino médio, do contato com aspectos fascinantes da física contemporânea, exceto por poucas aulas ministradas em um momento em que ele(a) possivelmente já tenha formalizado a escolha do curso que pretende seguir em nível superior. Uma segunda possibilidade seria ministrar essas aulas a grupos de alunos(as) que manifestem interesse prévio em seguir carreira científica. Pode-se, ainda, discutir a temática em disciplinas eletivas em escolas de tempo integral. Note que esse foi o caso da prática dos presentes autores. Ainda uma outra abordagem possível consiste na inserção de discussões conectadas à Física de Partículas em aulas que versam sobre outras grandes temáticas mais tradicionais do ensino médio. Por exemplo, pode-se complementar uma sequência didática sobre eletromagnetismo mencionando a interpretação dessa interação sob a perspectiva da Eletrodinâmica Quântica, ou introduzir tal discussão em uma aula sobre o fóton, o efeito fotoelétrico e/ou outros elementos de física moderna. De fato, o presente trabalho já está estruturado de maneira propícia a essa abordagem, por estar dividido em propostas de momentos didáticos maleáveis, adaptáveis aos propósitos do(a) docente. Antecipa-se, assim, uma resposta à previsível crítica de que a restrita carga horária de Física no ensino médio impossibilita a introdução de temáticas para além das necessárias à preparação dos(as) estudantes para exames qualificatórios, como ENEM e vestibulares. Por fim, há ainda uma outra possibilidade de leitura deste trabalho, ainda mais ousada e mais abrangente, qual seja: utilizar a Física de Altas Energias não apenas como um conteúdo particular, mas como um dos panos de fundo para o ensino de todo o conteúdo de Física do ensino médio. O conteúdo das seções 2.1 à 2.6 é parte da ementa usual do ensino médio, com a qual os(as) docentes certamente estão familiarizados. Nessas seções, apenas sugerimos uma possível abordagem desses tópicos com ênfase na temática relacionada à Física de Partículas. Já as seções 2.7, 2.8 e 2.9 versam sobre elementos de Eletrodinâmica Quântica, que provavelmente serão menos familiares a docentes de ensino médio. Por isso, essa parte do texto passa a ser direcionada também à formação desses professores nos principais elementos desse paradigma teórico, mas com uma linguagem acessível também a estudantes. Pode-se julgar que o conteúdo dessas seções é mais extenso do que se desejaria discutir em sala de aula. Em conformidade com a proposta neste trabalho, deixamos a critério do(a) docente decidir quais tópicos poderiam ser abordados com os(as) estudantes dentro do contexto das salas de aula em que lecionam. 2.1. Introdução ao tema O primeiro momento da sequência propicia a oportunidade de diálogo com os(as) estudantes a fim de averiguar sua familiaridade com a grande temática de Física de Partículas, que aparece frequentemente em livros de divulgação científica ou mesmo em seriados televisivos, canais de plataformas de compartilhamento de vídeos e sítios que discutem ciência. Os(as) estudantes conseguem imaginar o quê (e quais) são essas partículas a que a temática se refere? Já tiveram contato com alguma literatura que falasse sobre quarks, neutrinos, bóson de Higgs, etc.? Já ouviram falar sobre o LHC (Grande Colisor de Hádrons), ou outros aceleradores de partículas e colisores? Interessam-se pelo tema? Por que é relevante estudá-lo? É um momento de deixar os(as) alunos(as) se expressarem, seja publicamente ou em pequenos grupos com os(as) colegas, de modo a se divertirem ao se envolverem com a temática. Após essa discussão, convém apresentar, a título de motivação, alguns fenômenos que se pode explicar graças à nossa compreensão da estrutura da matéria em diversas escalas, incluindo aplicações tecnológicas que envolvem Física de Partículas. Por exemplo, a descrição atômica da matéria nos permite explicar a origem das forças normais de resistência dos materiais enquanto forças eletromagnéticas repulsivas entre orbitais moleculares. Ou seja, explica-se fenômenos simples e cotidianos, como o fato de não atravessarmos uma cadeira quando nela sentamos;a Eletrodinâmica Quântica (QED) nos dá uma descrição muito acurada do comportamento da luz, possibilitando-nos manipulá-la para o desenvolvimento de lasers desde os mais simples, vendidos comercialmente, aos mais potentes, utilizados em escala industrial para diversos fins;a mesma QED prevê a existência de partículas chamadas pósitrons, que têm aplicação medicinal nos chamados PET scans3 ;o brilho do Sol é devido a reações relacionadas às interações nucleares fraca e forte, que também estão relacionadas a decaimentos radioativos, com aplicações na datação de fósseis ou rochas, e em inúmeros aparatos cotidianos, como detectores de fumaça;o poder preditivo da física nuclear é ilustrado de modo estarrecedor pela capacidade destrutiva dos armamentos nucleares, ou pela capacidade de geração de energia a partir de poucos quilogramas de matéria em usinas nucleares. Todos esses fenômenos e aplicações tecnológicas poderão ser explicados em maiores detalhes em momentos posteriores da sequência didática, quando o assunto relevante for discutido em maior detalhe. 2.2. Estrutura atômica da matéria O objeto de estudo da Física de Partículas é a matéria em seu nível mais elementar, precedendo a formação de estruturas compostas mais complexas. Ou seja, é o estudo dos constituintes fundamentais da matéria e de suas interações mútuas. A temática é convidativa, portanto, a uma discussão que desemboque na teoria atômica e na natureza discreta da matéria. Em um primeiro momento, mais importante do que explicar as nuances dos diversos modelos atômicos, é preciso que fique claro aos(às) discentes a gênese do conceito de átomo, a diferença entre as concepções grega, moderna e contemporânea desse termo, e, principalmente, as evidências empíricas em favor do atomismo. Não basta que a ideia de átomo seja aceita, é preciso que o(a) estudante saiba convencer outrem de que a hipótese atomista resulta em uma excelente descrição do comportamento da matéria. Ademais, mesmo que os(as) alunos(as) saibam sobre atomismo, discutir as evidências que corroboram essa hipótese leva a um debate salutar sobre epistemologia e ciência, sobre as condições para que uma hipótese seja “validada” pela comunidade científica. No caso da teoria atômica, há o fator explicativo e o poder preditivo da hipótese, ilustrado em evidências como: As Leis Ponderais da Química: sob uma perspectiva plenista/continuista da matéria, é difícil explicar por que reações químicas ocorrem sempre na mesma proporção fixa de massa ou de moles dos reagentes, e por que qualquer excedente além dessa proporção fixa permanece sem reagir. Por outro lado, a hipótese atomista explica prontamente esse comportamento, bem como a lei de conservação de massas de Lavoisier, ao postular que reações químicas são simplesmente um rearranjo de átomos. Um experimento ilustrativo, que pode ser invocado durante a aula e até mesmo realizado ao vivo devido à sua simplicidade, é a eletrólise da água, em que o volume de gás hidrogênio gerado é sempre o dobro do volume de oxigênio. Um vídeo ilustrativo desse experimento pode ser encontrado em [30]. Teoria Cinética dos Gases: admitindo-se a hipótese atômica, é possível deduzir a equação de estado dos gases ideais a partir das leis da mecânica de Newton. Mais ainda, é possível aprimorar a descrição dos gases reais levando-se em conta, por exemplo, o tamanho das moléculas e suas interações mútuas, obtendo uma descrição ainda mais precisa de sistemas gasosos. Em última instância, a hipótese atomista dá origem à unificação da mecânica e da termodinâmica na mecânica estatística. O Movimento Browniano é o movimento aleatório de micropartículas suspensas em um líquido. O(a) docente pode mostrar um vídeo ou animação ilustrando o fenômeno como visto em um microscópio. Em 1905, Einstein foi capaz de explicar esse movimento como devido à constante colisão das moléculas do líquido com as micropartículas, e, com essa descrição, foi capaz de prever corretamente que a distância média percorrida por uma partícula é proporcional à raiz quadrada do tempo decorrido, d∼t, um comportamento típico do caráter estatístico do fenômeno. Outros exemplos podem ser apresentados. O importante é enfatizar que não é necessário enxergarmos os átomos para saber que existem (embora isso já seja possível com microscópios eletrônicos). Ao supormos que a matéria é assim constituída, podemos deduzir suas propriedades e prever corretamente seu comportamento, cumprindo, assim, uma das funções da Ciência enquanto atividade humana: nosso empoderamento diante das forças naturais. 2.3. Elétrons Uma vez que se tenha consolidado a concepção de estrutura atômica da matéria, pode-se partir para o rompimento da ideia de que o átomo é indivisível. Aqui começa a Física de Partículas de fato, introduzindo a primeira partícula elementar, protagonista da Eletrodinâmica Quântica: o elétron. Uma maneira natural de se introduzir partículas subatômicas é discutir o experimento de J. J. Thomson com tubos de raios catódicos, ilustrado na Figura 1. Para uma sequência didática investigativa explorando essa temática vide ref. [31]. Tais tubos são os elementos constitutivos básicos de televisores antigos (as chamadas “TVs de tubo”), e o(a) docente pode usar isso como motivação inicial à aula, propondo uma discussão sobre como esses aparelhos funcionam. A discussão sobre esses tubos é também propícia ao conteúdo da sequência, pois constituem exemplos simples de aceleradores de partículas. Essencialmente, dois filamentos metálicos são inseridos em um tubo a vácuo e conectados a uma fonte de energia (uma bateria, no caso do experimento de Thomson, ou a tomada doméstica no caso de um televisor), gerando os pólos − e + na figura. Ao fazê-lo, elétrons são acelerados do cátodo ao ânodo e colidem com o bulbo à direita da figura, causando o aparecimento de um ponto luminoso, que gera a imagem em aparelhos televisores. Figura 1 Tubo de raios catódicos usado no experimento de Thomson [32]. Um feixe de partículas é emitido do filamento metálico conectado ao pólo negativo da bateria (à esquerda da Figura), e se propaga em um tubo a vácuo até colidir com a outra extremidade, no bulbo à direita. O feixe é desviado por um campo elétrico inserido no meio do tubo (região amarela entre as placas horizontais), indicando que as partículas emitidas possuem carga. Com auxílio de um campo magnético (não simbolizado na imagem), pode-se calcular a razão entre a carga e a massa dessas partículas. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Púbico. Quando realizou seu experimento, Thomson não sabia sobre a existência de elétrons, e seu propósito era justamente desvendar a natureza desses raios que geravam o ponto luminoso. Submetendo esse feixe a campos elétricos e magnéticos, chegou a duas conclusões principais, que merecem ênfase no contexto dessa sequência didática: O feixe é constituído de partículas cujas massas são cerca de 2000 vezes menor do que a massa do átomo mais leve (o hidrogênio)4. Ou seja, essas partículas não poderiam ser constituídas de quaisquer átomos conhecidos até então. Após repetir o experimento com cátodos de vários materiais (alumínio, chumbo, estanho, cobre e ferro) e obter sempre os mesmos resultados, Thomson concluiu que essas partículas devem estar contidas no interior de todos os átomos. Thomson descobriu, assim, o elétron: a primeira partícula subatômica a ser identificada. Outra discussão interessante a se explorar, no contexto dessa aula, é o uso de tubo de raios catódicos em televisores e monitores como um dos muitos exemplos de uma pesquisa a princípio puramente acadêmica, mas que deu origem a uma aplicação tecnológica que, poucas décadas depois, veio a se tornar parte da vida cotidiana em nossa sociedade. Outro exemplo famoso é o nascimento da World Wide Web no CERN5, rede criada inicialmente para compartilhar dados entre os cientistas trabalhando no laboratório e os espalhados no mundo, e que hoje faz parte da experiência cotidiana de todos que navegam na internet. 2.4. A interação eletromagnética A Física de Partículas versa não somente sobre os constituintes fundamentais da matéria, mas também sobre o modo como essas partículas interagem entre si, e como essas interações microscópicas dão origem à física macroscópica que observamos cotidianamente. Dentre as interações fundamentais da matéria, a interação eletromagnética se destaca por ser a mais simples de todas (veremos a justificativa para essa afirmação na seção 2.4.1), e também pela sua ubiquidade em nosso cotidiano: além das inúmeras aplicações tecnológicas, todas as “forças de contato” que experimentamos têm origem eletromagnética. O eletromagnetismo já é um tópico pertencente ao currículo usual de Física no ensino médio, de modo que a discussão apresentada aqui não foge à temática que já seria tratada em algum momento pelo(a) docente em sala de aula. Entretanto, a apresentação do tópico sob uma perspectiva motivada pela Física de Partículas tem certas vantagens, por possibilitar uma melhor compreensão sobre o comportamento dessa interação, além de induzir uma conexão natural entre física clássica e moderna. 2.4.1. Semelhanças e diferenças entre eletromagnetismo e gravitação A lei de força da interação entre duas partículas estáticas eletricamente carregadas (Lei de Coulomb) tem importantes semelhanças e diferenças frente à lei de atração gravitacional de Newton (vide Figura 2), e uma discussão aprofundada sobre as causas dessas (dis)similitudes abre inúmeras possibilidades de discussões em sala de aula, todas ricas em conteúdo físico, algumas propícias ao desenvolvimento da intuição dos estudantes, e ainda outras que levam a questões profundas que continuam em aberto na Física de Partículas. Figura 2 Dois elétrons sob a ação da atração gravitacional F→g, devido a suas massas me, e da repulsão eletrostática F→e⁢l devido a suas cargas −e. A semelhança é óbvia: ambas leis de força seguem o padrão (1) força = constante × (produto de cargas) (distância) 2 . Por que isso ocorre? O produto das cargas tem que aparecer para que a terceira lei de Newton seja satisfeita6: a força agindo sobre A devido a B deve ser proporcional7 à carga de A, e deve ter mesma magnitude que a força em B devido a A, que por sua vez é proporcional à carga de B. A constante aparece devido à escolha de unidades. Por exemplo, em unidades Gaussianas, a constante da Lei de Coulomb é igual a 1. A física mais interessante está no comportamento ∼1/r2 dessas forças, que merece uma discussão mais aprofundada e cuidadosa com os(as) alunos(as). Em última instância, a Lei de Coulomb tem essa forma porque o campo eletromagnético/o fóton/a luz não possui carga nem massa. Para explicar essa afirmação, deve-se primeiramente introduzir o conceito de campo elétrico, incluindo sua manifestação visual em termos de linhas de campo e como as cargas elétricas constituem fontes e sumidouros dessas linhas8. A partir daí, segue-se que: Como o próprio campo não carrega a carga com a qual ele interage (i.e. o campo eletromagnético não é autointeragente), a única fonte de linhas de campo é a matéria, que é o enunciado da Lei de Gauss, (2) ∇ ⋅ E → ⏟ fonte de campo ∼ ρ ⏟ carga , expressa ilustrativamente na Figura 3(a). Por isso, o fluxo de linhas de campo através de uma superfície fechada englobando a carga é sempre constante, pois não há novas linhas de campo surgindo no espaço entre a carga e a superfície. Aqui, uma analogia com um fluido pode ser evocada: se interpretarmos a carga central na Figura 3(a) como uma fonte de água em um chafariz, Figura 3(b), o fluxo de água atravessando as circunferências pontilhadas em um determinado instante é sempre igual ao fluxo de água jorrando da fonte, contanto que não haja novas fontes ou sumidouros de água no meio do percurso. Portanto a quantidade de água que atravessa as circunferências pontilhadas, por unidade de comprimento dessa circunferência, decresce com a distância à fonte como ∼1/2πr. Ou seja, se temos em nossas mãos um copo, e queremos enchê-lo com a água escorrendo através da borda do chafariz, o tempo necessário para encher o copo variará com o inverso da distância da borda à fonte. Retornando ao caso eletromagnético de interesse, em que as linhas de campo se espalham por todo o espaço tridimensional, o fluxo dessas linhas de campo é constante sobre qualquer esfera de raio r, de modo que a densidade de linhas de campo (que corresponde à intensidade do campo) decai com a área dessa esfera, E∼1/4πr2. Pelo mesmo argumento, podemos identificar como seria a Lei de Coulomb em espaços de d-dimensões: E∼1/rd−1 (o volume de uma esfera d-dimensional é ∼rd, e sua área é ∼rd−1). Figura 3 (a) Linhas de campo elétrico geradas por uma carga pontual. O número de linhas atravessando uma superfície fechada é sempre constante, o que significa que a densidade de linhas diminui com a distância. Para um espaço tridimensional, a redução é ∼1/r2. (b) Toda a água que emana da fonte escorre através da borda do chafariz. A quantidade de água que atravessa uma unidade de comprimento desse perímetro varia com o inverso da distância da borda à fonte, ∼1/r. Fonte: Domínio Público. Caso o campo eletromagnético portasse carga elétrica, as próprias linhas de campo seriam fonte de novas linhas de campo, e o fluxo não seria constante, invalidando o argumento acima. Mais ainda: o fato de o campo eletromagnético não ser autointeragente é também a causa da linearidade das equações de Maxwell, e do princípio da superposição em particular. É fácil entender por que: os campos produzidos por duas cargas se propagam no espaço sem interagirem entre si e, portanto, sem que a informação que carregavam inicialmente seja modificada durante o percurso. O campo resultante é, portanto, simplesmente a soma dos campos produzidos por cada carga. Note que, com essa discussão, o(a) estudante de ensino médio é apresentado, de maneira muito clara e intuitiva, a uma das leis de Maxwell do eletromagnetismo e suas implicações. Expande-se, assim, o entendimento do(a) estudante sobre fenômenos eletromagnéticos para além de meras memorizações de leis de forças e atividades operacionais puramente mecânicas. A dependência da lei de força com a massa do campo é menos trivial, por se tratar de um aspecto quântico, mas possivelmente interessante mencionar (principalmente para aulas posteriores, quando se discutir interações nucleares forte e fraca). Caso os fótons tivessem massa m, o potencial eletrostático teria a forma de um potencial de Yukawa, (3)VYukawa ∼e-m⁢rr, correspondendo a uma força que decai muito mais rapidamente do que 1/r2, tendo um curto alcance efetivo, ref∼1/m. O fato de o fóton ser não-massivo é responsável pelo longo alcance da interação eletromagnética, bem como pelo fato de se propagar à máxima velocidade permitida para a troca de informações na Natureza: a velocidade da luz no vácuo. E a gravitação? O campo gravitacional também não possui massa – quer dizer, o gráviton9, que é a partícula associada à propagação do campo gravitacional, tem massa nula –, o que explica por que essa interação é de longo alcance, efetiva a distâncias em escala cosmológica (e também se propaga no vácuo à velocidade da luz). Mais ainda, na gravitação de Newton apenas as massas agem como fonte de gravitação, e portanto o campo gravitacional newtoniano não interage gravitacionalmente (i.e. não é autointeragente), o que implica no comportamento ∼1/r2, como vimos acima. Entretanto, hoje se sabe que a teoria newtoniana não descreve corretamente todos os fenômenos gravitacionais, e é, em última instância, suplantada pela teoria da relatividade geral de Einstein. Nessa teoria, não só a massa dos corpos é fonte de campo gravitacional, mas toda e qualquer forma de energia e momento. Logo, a energia contida no campo gravitacional também gravita. Por isso as equações da relatividade geral são altamente não-lineares. Assim, a gravitação Newtoniana está contida na relatividade geral no limite em que se negligencia a autointeração dos grávitons. Segue-se, dessas discussões, que a interação eletromagnética é a interação mais simples da Natureza , pois é a única linear. Há, ainda, outras diferenças entre gravitação e eletromagnetismo. A interação gravitacional é muito mais fraca que a eletromagnética. De fato, comparando-se a razão entre as magnitudes das forças eletrostática e gravitacional agindo sobre dois elétrons, vem que (4)|F→e⁢lF→g|=k⁢e2G⁢me2∼1042. Esse fato é facilmente comprovado notando-se que a força eletrostática entre um balão de festa e os cabelos de uma pessoa é suficiente para superar a atração gravitacional do planeta inteiro, como se vê na Figura 4. Outra maneira de formular essa discrepância entre as duas interações é notar que, em um sistema de unidades com k = G = 1, a equação (4) nos diz que a carga elétrica e a massa de uma partícula possuem as mesmas unidades, mas para o elétron a carga é ∼1021 vezes maior que a massa. Discrepâncias similares se aplicam a todas as outras partículas carregadas que conhecemos, e é uma manifestação de que a gravidade é a interação mais fraca da natureza. Figura 4A força eletrostática devido a um balão de festa é suficiente para superar a atração gravitacional de todo o planeta e fazer o cabelo levantar. Fonte: adaptado de SWNS/Splash News. A razão para a existência dessa hierarquia entre essas interações é um dos maiores mistérios abertos da Física de Altas Energias, denominado o problema da hierarquia . Uma proposta de solução consiste em supor que existem dimensões espaciais extras (além das três usuais com as quais estamos familiarizados), e que em última instância todas as interações têm a mesma intensidade, mas que a geometria das dimensões extras faz com que a gravitação efetiva em três dimensões se torne muito mais fraca [35]. A interação eletromagnética pode ser atrativa ou repulsiva, enquanto a gravitação é sempre atrativa. Em um sistema de partículas carregadas, as forças eletromagnéticas dominam e fazem com que elas estejam em constante movimento, sempre se repelindo e se atraindo, até o momento em que a velocidade média das partículas (i.e. a temperatura do sistema) seja suficientemente baixa para que a atração entre cargas opostas seja capaz de prendê-las em órbita, formando um sistema ligado neutro. Esse processo ocorreu no Universo primordial, cerca de 380.000 anos após o Big Bang, numa transição de fase em que os prótons e elétrons do plasma primordial se combinaram em átomos – um processo chamado na literatura de Recombinação , e que dá origem à Radiação Cósmica de Fundo [36, 37, 38]. Importante se ressaltar esse argumento à turma, pois ilustra como a efetiva neutralidade do Universo não é simplesmente uma condição inicial arbitrária, mas decorre de um processo físico no Universo primordial. Apesar de a interação eletromagnética ser muito mais forte que a gravitacional, seus efeitos de atração e repulsão tendem a se cancelar em grandes escalas, enquanto os efeitos gravitacionais são sempre cumulativos. Assim, para sistemas formados de grandes quantidades de matéria (formando corpos celestes, galáxias, conglomerados e demais estruturas cósmicas), a gravitação se torna a interação mais relevante. De fato, um dos princípios básicos da Cosmologia moderna é que, em escalas cosmológicas, é necessário levar em conta apenas a interação gravitacional entre as estruturas interagentes. 2.4.2. Eletromagnetismo e forças de contato Outro ponto de importante menção é a ubiquidade da interação eletromagnética em fenômenos onde não se os reconhece a princípio. De seu curso de mecânica, o(a) estudante está familiarizado(a) com o conceito de gravitação e força peso atuando sobre um corpo, assim como outras formas de força que emergem do contato entre corpos (Figura 5), como a força normal, força de atrito, tensão em uma corda, forças atuantes em uma colisão, etc. Figura 5 Forças de contato. Em última instância, todas têm origem na repulsão eletromagnética. Fontes: os autores e adaptações de [39] e [40], respectivamente. Entretanto, em sentido estrito, forças de contato inexistem: todas essas forças têm origem eletromagnética, advindas da repulsão entre os elétrons dos átomos que constituem os corpos, como ilustrado na Figura 6. Apesar de a magnitude da força de repulsão entre elétrons ser tipicamente muito menor do que a força peso de um corpo macroscópico, a repulsão aumenta drasticamente à medida que as distâncias entre as superfícies diminuem, existindo uma distância não-nula para a qual a força peso e a repulsão eletrostática se equilibram. Figura 6 A força normal de uma mesa sobre um bloco é devida à repulsão entre os elétrons dos átomos das superfícies. A revelação de que nenhum objeto está em contato com outro, e que estamos sempre ‘‘flutuando’’ sobre as superfícies onde nos apoiamos, usualmente causa fascinação e entusiasmo em estudantes. Mas mais do que isso, é importante enfatizar esse ponto porque mostra que todas as forças que vivenciamos em nosso cotidiano -- atrito, forças normais, empuxo, etc. -- têm origem eletromagnética ou gravitacional, o que abre caminho à asserção futura de que existem poucas10 interações elementares na natureza. 2.5. Ondas eletromagnéticas e a natureza da luz O fato de o eletromagnetismo ser uma interação à distância [41] suscita uma questão importante: como partículas distantes sabem do comportamento das demais para reagirem de maneira a satisfazer as leis da eletrodinâmica? Como um elétron no receptor de um celular sabe que existem elétrons se movendo na antena emissora do sinal? Essa problemática tem relação direta com aplicações tecnológicas que permeiam o cotidiano dos(as) estudantes, que podem (e devem) ser usadas como motivação para essa aula. Perguntas do tipo “Como os telefones celulares enviam e recebem mensagens?”, ou “Como funcionam tecnologias wireless?” podem servir como problema inicial em uma aula investigativa. A discussão pode ser então guiada a uma ênfase no papel do campo eletromagnético enquanto mediador da interação e, mais importante, enquanto ente físico com dinâmica própria. As conclusões centrais que devem ser atingidas pelos(as) estudantes são: (i) a existência de uma carga elétrica gera um campo eletromagnético; (ii) caso o estado de movimento da carga seja alterado, o campo é modificado em seu entorno imediato, e essa modificação se propaga como uma onda; (iii) quando a onda atinge uma outra carga, transfere-lhe energia e momento, alterando seu estado de movimento, i.e. comunicando-lhe o movimento apropriado. Algumas simulações interativas visando auxiliar a compreensão desses efeitos podem ser encontradas em [42, 43] (ver Figuras 7 e 8). A conclusão final da investigação é que a existência de radiação eletromagnética garante que a causalidade seja preservada pela interação. Figura 7 Simulação interativa PhET Colorado: Irradiando Carga. Na imagem da esquerda, a carga está em repouso e as linhas de campo são radiais. À direita, a carga foi posta em movimento e as linhas se deformam para acompanhá-la. Essa deformação se propaga, constituindo a onda eletromagnética. Fonte: [42]. Figura 8 Simulação interativa PhET Colorado: Ondas de Rádio e Campos Eletromagnéticos. A simulação ilustra como a oscilação dos elétrons em uma antena transmissora gera uma onda eletromagnética, que se propaga até outra antena receptora, fazendo seus elétrons oscilarem à mesma frequência que os da fonte. Assim, o sinal é transmitido de um ponto a outro sem intermédio de fios. Nessa simulação o(a) estudante pode interagir movendo o elétron da antena com o mouse e produzindo seu próprio sinal. Fonte: [43]. O processo de emissão e recepção de ondas eletromagnéticas engloba, em uma só temática, todos os aspectos centrais da teoria eletromagnética. A etapa (i) oferece a oportunidade de se discutir a Lei de Gauss, a etapa (ii) possibilita discutir o fenômeno de indução de campos elétricos pela variação de campos magnéticos (e vice-versa), enquanto (iii) está associado à força de Lorentz sobre uma carga. Mais especificamente, pode-se apresentar as equações de Maxwell de maneira intuitiva e acessível a estudantes de ensino médio, substituindo-se as expressões matemáticas, envolvendo derivadas e integrais, por suas interpretações físicas em forma de sentenças enunciativas (cf. ref. [44], Vol. II, Cap. 1). Por exemplo, a Lei de Gauss, que rege a maneira como o campo elétrico é gerado por uma carga, foi apresentada na seção 2.4.1 em termos do fluxo das linhas de campo e como elas se originam e terminam em cargas elétricas. Especificamente, o fluxo do campo elétrico E→ sobre uma superfície é constante, proporcional à carga contida em seu interior, (5) fluxo de E → através de superfície fechada = carga contida no interior da superfície A partir daí, o docente pode estimular os(as) próprios(as) alunos(as) a enunciar a lei análoga para campos magnéticos, bastando dizer-lhes que nunca foram observadas cargas magnéticas (i.e. monopolos magnéticos). O lado direito deve ser, então, igualado a zero, concluindo-se que o fluxo de campo magnético B→ se anula sobre superfícies fechadas. “Qual é, então, a fonte de campos magnéticos?”. A questão gera a ocasião para apresentar as outras duas equações de Maxwell, (6) circulação de B → em torno de C = corrente elétrica através de S + variação temporal do fluxo de E → através de S (7) circulação de E → em torno de C = variação temporal do fluxo de ( – B → ) , através de S onde S é uma superfície arbitrária e C seu contorno, como ilustrado na Figura 9. Figura 9 Uma superfície arbitrária S delimitada por uma curva fechada C. Assim, a variação de um campo elétrico no tempo (por ex., devido à aceleração da partícula fonte desse campo) gera um campo magnético variável, que gera um campo elétrico variável, e assim sucessivamente. Com essa argumentação, pode-se mostrar aos estudantes o princípio básico por trás da propagação das ondas eletromagnéticas. A Figura 10 mostra um esquema simplificado do processo, mais intuitivo e de mais fácil apreensão. Figura 10 (a) Esquema do ciclo retroalimentativo que sustenta a propagação da onda eletromagnética. (b) Uma onda eletromagnética propagando-se na direção x consiste em oscilações dos campos elétrico e magnético no plano yz. No vácuo esses campos são sempre mutuamente perpendiculares. Note que não há componentes dos campos na direção de propagação: diz-se que a onda eletromagnética é uma onda transversal. Fonte: Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0. A introdução do conceito de ondas eletromagnéticas abre um leque de possibilidades ao docente, que pode abordar temáticas consideradas pelos(as) próprios(as) estudantes como altamente interessantes [3], tais como: o funcionamento de antenas de emissão e recepção, e como ondas eletromagnéticas estão presentes em tecnologias atuais de telecomunicação (celulares, transmissão de sinal wifi, etc.); propriedades fundamentais de ondas gerais, e de ondas eletromagnéticas em particular (frequência, comprimento de onda, amplitude); o espectro eletromagnético e aplicações tecnológicas e medicinais de cada uma de suas bandas (ondas de TV e rádio, microondas, infravermelho, raios solares ultravioleta, raios-X, etc.), ilustradas na Figura 11. O(A) docente pode, por exemplo, discutir como o microondas funciona enquanto uma cavidade ressonante: a onda eletromagnética faz as moléculas de água dos alimentos vibrarem, aumentando sua temperatura. Note que as regiões que se localizam nos nós da onda eletromagnética do aparelho não serão aquecidas. Por isso, o alimento deve ser posto a girar para que nenhum ponto fique parado no mesmo lugar da cavidade durante todo o período do processo de aquecimento do alimento. Pode-se usar a pipoca de microondas como um exemplo divertido para os(as) estudantes; Figura 11Algumas aplicações de diversas bandas do espectro eletromagnético, que podem ser exploradas em sala em um contexto CTSA. Fonte: Domínio Público. como atividade, o(a) docente pode pedir que os(as) estudantes pesquisem a banda de frequência em que funcionam os roteadores wifi a que têm acesso, e computem o comprimento de onda associado, localizando-o no espectro eletromagnético. Que outros aparelhos domésticos funcionam nessa mesma banda do espectro? O funcionamento de roteadores oferece uma interessante aplicação tecnológica cotidiana da teoria eletromagnética, e tem grande potencial de ser um tópico atraente para muitos(as) estudantes interessados nessa área de informática e/ou tecnologia da informação; interessante destacar, também, a natureza da luz enquanto onda eletromagnética, e alguns aspectos históricos a respeito dessa descoberta. A possibilidade de existência de tais ondas foi estabelecida por Maxwell em 1864, que também calculou a velocidade de propagação, encontrando um valor muito próximo à velocidade da luz (cujo valor já era conhecido na época), concluindo, então, que a luz é uma onda eletromagnética. Esse resultado tem um valor histórico inestimável: a partir de grandezas medidas em laboratório com o uso de circuitos elétricos, fios, voltímetros etc., Maxwell pôde extrair uma conclusão sobre a natureza da luz, um fenômeno que não parece ter qualquer relação com aqueles experimentos! A natureza ondulatória da luz já era conhecida desde que Young realizou seu experimento de fenda dupla em 1801. No entanto, não se conhecia ainda o substrato oscilante nessas ondas, cabendo a Maxwell tal identificação; pode-se, ainda, mencionar o espectro de corpo negro, ou, mais geralmente, o fato de que todo corpo emite radiação eletromagnética devido à sua temperatura. Esse espectro contém um pico, e a frequência no pico de emitância é proporcional à temperatura do corpo, o que significa que quanto mais quente for o corpo, mais “azulada” é a radiação emitida por ele. O(a) docente pode propor aos(às) estudantes interagirem com a simulação encontrada na ref. [45], que mostra como o espectro de emitância de um corpo varia com a temperatura, como na Figura 12. Essa dependência do pico de emitância com a temperatura é utilizada, por exemplo, para medir a temperatura de estrelas a partir do espectro de luz que elas emitem. A superfície do Sol está a uma temperatura de aproximadamente 5500 K, e seu espectro de emissão tem um pico justamente na região da luz visível, i.e. a maior parte da radiação emitida pelo Sol encontra-se na faixa que nós conseguimos enxergar. Isso não é uma coincidência, mas produto da seleção natural. O apêndice A.1 contém uma proposta de atividade interdisciplinar, a ser realizada com os(as) estudantes e potencialmente em conjunto com o(a) professor(a) da área de Biologia, explorando esse fato. A Figura 30 encontrada naquela seção ilustra o espectro de emitância solar sobreposto ao de um corpo negro ideal à temperatura 5500 K. Figura 12Imagem da simulação interativa PhET Colorado: Espectro de Corpo Negro. Fonte: [45]. A Figura 13 ilustra diversos aspectos do espectro eletromagnético, e pode ser extremamente útil ao(à) docente na elaboração de sua aula e das atividades a serem propostas relativas a essa temática. Figura 13 Diversos tipos de radiação eletromagnética, caracterizados por uma banda específica de frequência e comprimento de onda do espectro completo. A cada banda, atribui-se também um objeto cujo tamanho típico é da mesma ordem de magnitude do comprimento da onda correspondente: tratam-se dos menores objetos que podem ser distinguidos por meio dessas ondas. Por exemplo, microorganismos podem ser vistos sob um microscópio usual, funcionando à base de luz visível, mas para distinguir moléculas ou átomos é preciso fazer incidir radiação muito mais energética, de menor comprimento de onda. As frequências de cada banda são associadas, também, às cores da radiação correspondente, divididas em três regiões: o infravermelho, o espectro contínuo da luz visível, e o ultravioleta. Por fim, ilustra-se também a temperatura de um corpo cujo espectro de emissão termal é predominante na banda em questão. Fonte: Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0. 2.6. Dualidade onda-partícula A discussão da temática de ondas eletromagnéticas abre a possibilidade de se adentrar em temas de física moderna, como a teoria da relatividade restrita ou a dualidade onda-partícula em mecânica quântica. Embora ambos sejam de suma importância para a Física de Partículas, nesta sequência didática focamos no aspecto quântico visando a introdução do conceito de fóton. Para propostas didáticas visando o ensino de relatividade no ensino médio vide refs. [46, 47, 48]. A dualidade onda-partícula da luz pode ser introduzida de diversas maneiras. Invocando-se o experimento de Young da fenda dupla, pode-se, em um primeiro momento da aula, discutir as expectativas dos(as) alunos(as) quanto à imagem formada no aparato de incidência, quando o objeto incidente for uma partícula clássica (Figura 14) e quando for uma onda (para esse caso pode-se explorar, junto aos(às) alunos(as), a simulação interativa disponível em [49]). Em um segundo momento da aula, discute-se (ou realiza-se em sala) o experimento de Young, que detectou franjas de interferência para a luz, mostrando tratar-se de um fenômeno de natureza ondulatória. Posteriormente, discute-se o que ocorre quando se reduz suficientemente a intensidade do feixe luminoso, resultando nos padrões mostrados na Figura 15. As franjas são reveladas aos poucos, a partir de detecções de partículas pontuais, revelando assim o caráter corpuscular da luz (para imagens e vídeo ilustrativo que podem ser usados em sala de aula, consultar ref. [50]). Figura 14 Padrão esperado para um feixe de partículas clássicas lançadas contra uma tela com duas fendas. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Figura 15 Para partículas quânticas, o padrão de interferência é inicialmente imperceptível, mas emerge paulatinamente à medida que mais estatística é coletada pelo experimento. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio público. A discussão do experimento da fenda dupla em sala de aula cria, também, uma excelente oportunidade de desmistificar a mecânica quântica, o que é especialmente importante levando-se em conta a quantidade de charlatães que usam os resultados não-intuitivos desse experimento para propor que a Física corrobora suas interpretações esotéricas do mundo. Mais especificamente, o surgimento de um padrão de interferência para um feixe de partículas pode ser explorado para se discutir a necessidade de se abandonar o conceito de trajetórias bem definidas (que deveria levar ao padrão dado pela Figura 14), e, consequentemente, a necessidade de se reformular a mecânica. Pode-se usar esse gancho para discutir o princípio da incerteza de Heisenberg, e como esse princípio explica o fenômeno de destruição do padrão de interferência quando um observador detecta por qual fenda a partícula passou (cf. ref. [44], Vol. III, Seção 1.8). Também é essencial esclarecer aos estudantes que não se deve pensar em partículas quânticas como “bolinhas” movendo-se classicamente. A propósito, fazer uso de analogias com a mecânica clássica geralmente leva a uma confusão de conceitos [51]. Os fótons devem ser vistos como pacotes de energia e momento. O mesmo vale para todas as partículas elementares. Isso ficará mais claro quando se apresentar a definição de partícula no paradigma de Teorias Quânticas de Campos, como a Eletrodinâmica Quântica, que será apresentada na seção seguinte. Outra evidência em favor do caráter corpuscular da luz é o efeito fotoelétrico/fotovoltaico. Por constituir o princípio básico do funcionamento de células fotovoltaicas, essa temática pode ser abordada em um contexto de aula investigativa [52] ou, ainda, em diálogo mais amplo com outras disciplinas escolares em contexto CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) [53]. Uma proposta de tal atividade encontra-se delineada no apêndice A.2. Ademais, a discussão do efeito fotoelétrico permite a apresentação da relação de Einstein para a energia dos “pacotes de onda eletromagnética”, (8) ( energia da partícula ) = ( constante ) × ( frequência da onda associada ) , relação que quantifica a dualidade ao associar uma grandeza tipicamente ligada a partículas a uma propriedade ondulatória. Seja qual for o caminho escolhido, o objetivo a se atingir é introduzir o conceito de fótons enquanto partículas da radiação eletromagnética. 2.7. Eletrodinâmica Quântica 2.7.1. O campo eletromagnético quântico A introdução do conceito de fóton implica, em um primeiro momento, em uma ambiguidade na descrição da radiação eletromagnética, que passa a ser ao mesmo tempo tratada como oscilação de um campo clássico e como ente com propriedades quânticas11. Como o caráter quântico dos fótons poderia emergir da propagação de um campo clássico? Essa inconsistência aponta para a necessidade de se quantizar o campo eletromagnético, i.e. descrevê-lo inteiramente de acordo com o paradigma quântico. A teoria quântica que descreve a interação entre partículas carregadas (por ex. elétrons) e o campo eletromagnético quantizado é chamada de Eletrodinâmica Quântica (Quantum Electrodynamics ou QED em inglês). Na QED, o campo eletromagnético passa a ser visto como uma ‘‘superfície’’ tridimensional12 vibratória que preenche todo o volume do espaço, análoga à superfície de um instrumento musical de percussão, como a pele de um tambor. À parte da dimensionalidade -- o campo preenche todo o espaço, enquanto a pele percussiva é plana, bidimensional --, a única (e crucial) distinção se deve ao caráter clássico das vibrações do instrumento musical e ao caráter quântico do campo quantizado13. A partir dessa analogia, e da compreensão de suas limitações, pode-se entender conceitos fundamentais da QED (e de Teorias Quânticas de Campos em geral). Primeiramente, assim como a superfície percussiva possui um estado em que não há quaisquer vibrações e nenhum som é emitido, também o campo quântico possui um estado fundamental, que é chamado de estado de vácuo (a motivação para essa nomenclatura ficará clara a seguir). No entanto, note que, por se tratar de um objeto quântico, não é possível afirmar que o campo no estado fundamental está em repouso. O princípio da incerteza garante que, mesmo no estado fundamental, há vibrações do campo, associadas à chamada “energia de ponto-zero”. Isso significa que o vácuo quântico tem energia, fato que tem consequências observáveis e aplicações práticas/tecnológicas, tais como: o efeito Casimir, que consiste na atração de duas placas metálicas, eletricamente neutras, imersas no vácuo. A atração se deve à modificação da energia do vácuo quântico na presença das placas. Mais especificamente, quanto mais próximas as placas, menor a energia do vácuo na região por elas limitadas; o processo de emissão espontânea de um fóton por um átomo no estado excitado, que dá origem aos espectros atômicos. No formalismo de Schrödinger da mecânica quântica, todas as camadas eletrônicas do átomo correspondem a estados estacionários, e a probabilidade de transição entre eles é nula. A transição do elétron entre camadas, e a consequente emissão de um fóton, só ocorre devido à interação do elétron com o vácuo eletromagnético quântico; por possuir energia, a relatividade geral de Einstein garante que o vácuo quântico gravita . Essa energia do vácuo age como uma constante cosmológica, contribuindo para a expansão acelerada do Universo. Entretanto, quando se compara a previsão teórica para a energia do vácuo quântico com o valor da constante cosmológica medido com base em observações da expansão do Universo, há uma discrepância de 120 ordens de magnitude! Ou seja, trata-se da pior previsão da história da Física! Esse é o chamado problema da constante cosmológica, ainda sem solução [54, 55]. Além do estado fundamental, uma superfície vibratória pode, obviamente, oscilar de diversas maneiras. Dentre elas, destacam-se os chamados modos normais de vibração, associados a ondas estacionárias, em que todos os pontos da superfície oscilam com a mesma frequência, como exemplificado ilustrativamente na Figura 16. Em um instrumento musical, um modo normal está associado a uma nota musical específica: quando se ataca a pele de um tambor, ela vibra em um modo normal e emite som da frequência para a qual o instrumento foi previamente afinado. No caso de um campo quântico, um modo normal de vibração corresponde a uma partícula de energia e momento definidos. Note o caráter explicitamente dual dessa descrição, que traça paralelos diretos entre partículas com energia definida e modos de oscilação de determinada frequência. O fato de a vibração não estar localizada em nenhuma região, mas ocorrer em todo o espaço ocupado pelo campo, como ilustrado na Figura 16, está de acordo com o esperado pelo princípio da incerteza de Heisenberg quando aplicado a uma partícula cujo momento linear é conhecido precisamente. Figura 16 Momentos distintos de um ciclo oscilatório associado a um modo normal de vibração para uma superfície bidimensional. No caso de um instrumento de percussão, esse padrão corresponderia a uma nota musical (i.e. uma frequência sonora) específica. Para um campo quântico, corresponde a uma partícula com energia e momento específicos. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Essa interpretação de partículas como excitações do campo em modos normais de vibração justifica, ainda, a nomenclatura de vácuo para o estado fundamental, por corresponder ao caso em que o número de partículas se anula. Por fim, enfatiza-se que a mesma interpretação se aplica a partículas materiais: o elétron também é um modo normal de vibração de um campo fundamental, que podemos chamar de campo eletrônico ou campo do elétron. Isso explica, aliás, por que todos elétrons do Universo são idênticos: todos são vibrações de um único campo fundamental. O Modelo Padrão da Física de Partículas, embasado no formalismo de Teoria Quântica de Campos, é ao mesmo tempo uma teoria de partículas e uma teoria de interação entre campos. 2.7.2. Fótons virtuais como mediadoresda interação eletromagnética Em discussões anteriores (vide seções 2.4.2 e 2.5), foi apresentada a ideia de que a matéria não interage por contato direto entre seus constituintes, mas à distância, mediada por campos de interação, como o campo eletromagnético. Sob a perspectiva da QED, isso se traduz como a ausência de autointeração do campo de elétrons. Ao invés disso, a interação direta do campo eletrônico se dá com outro(s) campo(s), e a repulsão entre dois elétrons nada mais é do que um efeito colateral da interação de ambos com um campo intermediário. Esse processo de interação na QED está representado esquematicamente na Figura 17. Os dois picos mais protuberantes, de cor laranja, representam elétrons, i.e. excitações do campo eletrônico14, e o campo de fundo, de cor verde, corresponde ao campo eletromagnético. Devido à interação entre os dois campos, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz uma “nuvem” de excitações do campo eletromagnético ao seu redor, como na Figura 17(a). À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético (b), causando a mútua repulsão (c). Figura 17 (a) Dois elétrons (picos mais protuberantes, de cor laranja) afastados um do outro. Devido à interação entre o campo de elétrons e o campo eletromagnético, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz excitações do campo fotônico ao seu redor. (b) À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético, causando a mútua repulsão. (c) Elétrons novamente distantes após a interação. Dá-se o nome de fóton virtual a qualquer excitação do campo eletromagnético que não corresponde a um modo normal de vibração, tais como as excitações do campo eletromagnético ilustradas na Figura 17. Um fóton virtual é, portanto, um estado não-estacionário, não necessariamente associado à propagação de uma onda, e portanto bastante diferente de um fóton real, como ficará ainda mais claro a seguir. Entretanto, justifica-se chamá-la de fóton por se tratar de uma vibração do campo eletromagnético, e, para distinguí-la de um fóton observável, usa-se essa adjetivação de virtual15. Note que há fótons virtuais sendo trocados em todas as três etapas da interação, representados pelas pequenas perturbações do campo eletromagnético entre os dois elétrons nas Figuras 17(a), (b) e (c). Mas a contribuição do fóton virtual ao espalhamento é mais significativa quando os elétrons estão mais próximos um do outro, como representado na Figura 17(b). Essa discussão será retomada em mais detalhes na seção 2.7.3 a seguir. Cabe ressaltar que, apesar de termos definido anteriormente um elétron como uma excitação do campo eletrônico, o que realmente se observa é o conjunto de excitações do campo eletrônico e do campo eletromagnético ao seu redor: diz-se que o elétron nunca é visto “nu”, mas está sempre “vestido” de uma nuvem de partículas virtuais. Esse fato será novamente discutido e melhor explorado na seção 2.9 a seguir. Ressalta-se, ainda, que a Figura 17 é apenas uma representação esquemática da interação, uma alusão semiclássica a um processo que é fundamentalmente quântico. O simples fato de desenhar as oscilações do campo pressupõe que saibamos a posição de cada ponto dessa superfície no espaço, em desacordo com o princípio da incerteza. Entretanto, ilustrar um campo quântico é impossível, e a representação acima, apesar de incompleta, fornece uma boa intuição sobre o processo de interação entre (excitações de) campos. Ainda relacionado às limitações da figura, note que, assim como a presença do elétron causa excitações do campo eletromagnético, estes fótons virtuais também induzem excitações do campo eletrônico, que induzem outras oscilações fotônicas, e assim sucessivamente. Ou seja, em torno das oscilações do campo eletromagnético dever-se-ia também ilustrar oscilações do campo eletrônico, e em torno dessas ilustrar outras excitações do campo eletromagnético, etc. A Figura 17 representa, portanto, apenas a primeira ordem de uma série de outros processos que poderiam ocorrer na presença de dois elétrons. Como se trata de um sistema quântico, não é possível dizer qual desses processos realmente ocorre: o resultado da interação é uma superposição quântica de todas essas possibilidades. Aqui o(a) docente pode fazer uma alusão direta ao experimento da fenda dupla, em que não é possível afirmar por qual fenda a partícula passa: a interferência é resultado da superposição das duas possibilidades de trajetórias, cada uma passando por uma fenda. 2.7.3. Diagramas de Feynman Outra maneira de representar a interação entre elétrons é através de um diagrama de Feynman, como na Figura 18. Aqui, o eixo vertical representa a dimensão espacial, e o eixo horizontal é a passagem do tempo. Representa-se, aqui, o mesmo processo ilustrado na Figura 17 anterior: dois elétrons interagindo pela troca de um fóton virtual. Entretanto, não é correto ler esse diagrama como se um dos elétrons (digamos, o elétron da parte superior da figura) tivesse emitido o fóton, e o outro (da parte inferior) o tivesse absorvido. Pois o processo oposto, em que o elétron inferior emitiu e o superior absorveu o fóton, é igualmente possível. E, se há dois processos intermediários possíveis, a mecânica quântica garante que a contribuição total aos processos físicos é a soma das contribuições dos processos intermediários. A Figura 19 mostra que o diagrama de Feynman da Figura 18 representa a soma (i.e. a superposição quântica) das duas ordenações temporais possíveis para a emissão e absorção do fóton intermediário [57, 58, 59]. Ou seja, a Figura 18 ilustra apenas que, em primeira ordem, esse processo ocorre mediante a troca de um fóton virtual, sem representar como esse processo de fato ocorre no espaço-tempo. Figura 18 Diagrama de Feynman ilustrando a interação entre dois elétrons mediada pela troca de um fóton virtual. Os pontos que conectam os elétrons ao fóton são chamados de vértices do diagrama. Figura 19 A interação entre elétrons pela troca de um fóton virtual deve levar em conta as duas possibilidades de ordenamento temporal, em que um elétron emite e o outro absorve o fóton trocado. Para compreender melhor a diferença entre fótons reais e virtuais, consideremos o balanço de energia-momento em um ponto de “emissão/absorção” do fóton no diagrama, i.e. em um de seus vértices. Sejam (E,p→) e (E′,p→′) a energia e momento linear de um elétron da Figura 18 (por ex., o elétron da parte superior do diagrama) antes e depois da interação (i.e. à esquerda e à direita do vértice, respectivamente), e sejam (Eγ,p→γ) a energia e momento do fóton virtual. A conservação de energia e momento na absorção/emissão do fóton impõe que (9) E = E γ + E ′ , (10) p → = p → γ + p → ′ , logo (11) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = ( E - E ′ ) 2 - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 . Como um fóton tem massa mγ = 0, esperar-se-ia, da relação relativística de energia-momento16, que (12) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = m γ 2 ⁢ c 4 = 0 ⁢ ? No entanto, em um espalhamento de elétrons não há nada que vincule E a E′ ou p→ a p→′ a priori17 (tratam-se de variáveis livres do problema), de maneira que, em geral, o lado direito da equação (11) não se anula. Isso significa que um fóton virtual em geral não satisfaz a relação relativística de energia-momento. Ou, dito de outra forma, é como se a partícula virtual pudesse ter massa diferente da massa observada para excitações normais do campo em questão. Essa é outra importante distinção entre partículas reais e virtuais. Essa violação da equação (12) não é um problema, contanto que esteja dentro da margem de incerteza associada à energia e ao momento do fóton virtual. Pelo princípio da incerteza, a precisão com que se pode determinar a energia de um sistema (ΔE) é limitada pelo tempo disponível para ele interagir com um possível aparato medidor (Δt), assim como a incerteza em seu momento (Δp) cresce à medida que se reduz a região do espaço a que ele esteja restrito (Δx). Isso pode ser expresso matematicamente por meio das famosas relações de incerteza (13) Δ ⁢ E ⁢ Δ ⁢ t ≥ ℏ 2 , Δ ⁢ p ⁢ Δ ⁢ x ≥ ℏ 2 , com ℏ ≈ 1.05×10−34 kg m2/s a constante de Planck reduzida18. Assim, quanto menor for o tempo de vida de uma excitação de um campo, e/ou quanto menor for seu alcance espacial, maior será a incerteza associada à sua energia-momento, e portanto maior será a margem para uma aparente violação da equação (12). Mais especificamente, o espalhamento descrito pelo diagrama da Figura 18 é mediado por fótons de todas as possíveis virtualidades, e a interação final resulta da soma de todas as contribuições. Entretanto, para grandes distâncias entre as partículas interagentes, a sobreposição dos fótons virtuais resulta em uma interferência destrutiva (exatamente no sentido de interferência de ondas), de modo que quanto maior a virtualidade dos fótons mediadores, menores serão seus impactos no resultado final da interação. Assim, a grandes distâncias, apenas fótons de baixa virtualidade contribuem significativamente. Reciprocamente, a menores distâncias, a contribuição dos fótons de maior virtualidade também se torna relevante. Uma discussão muito detalhada desse efeito, ao mesmo tempo em que é acessível ao público geral, pode ser encontrada na ref. [57], cuja leitura é fortemente recomendada para uma maior compreensão da QED e um complemento da discussão aqui apresentada. O argumento exposto acima nos fornece uma maneira de compreender o comportamento da Lei de Coulomb sob uma perspectiva microscópica da interação eletromagnética. Consideremos o caso de um elétron espalhado elasticamente por uma carga muito mais pesada, e que portanto permanece aproximadamente estática, como esquematizado na Figura 20. Um exemplo é um experimento de difração de elétrons, ao estilo dos experimentos de Rutherford-Geiger-Marsden que levaram à descoberta do núcleo atômico19. Nesse caso, a energia cinética do elétron não varia (por se tratar de espalhamento elástico) e a equação (11) fica (14) virtualidade ≡ E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 = - 4 ⁢ | p → | 2 ⁢ c 2 ⁢ sin 2 ⁡ θ 2 , que define o “grau de virtualidade” do fóton através da medida de violação da relação relativística de energia-momento. Nessa equação, θ é o ângulo entre o feixe espalhado e a direção do feixe incidente (vide legenda da Figura 20), que varia entre θ = 0 (quando não há desvio) e θ = π (quando o feixe volta na mesma direção e sentido oposto ao incidente). Figura 20 Diagrama de Feynman para um espalhamento elástico por uma carga estática. Define-se o ângulo θ como o ângulo entre o momento final (p→′) e inicial do elétron (p→), medindo o desvio relativamente à direção do feixe incidente. Ele não aparece na figura, pois um diagrama de Feynman representa apenas uma esquematização do processo que contribui para a interação, e não ilustra como o espalhamento ocorre, de fato, no espaço-tempo. Veja comentário no início da seção 2.7.3, bem como a Figura 19. Nota-se que, quanto maior o ângulo θ de espalhamento relativo ao feixe incidente (i.e. quanto maior for a alteração do estado de movimento do elétron devido à interação), maior é a virtualidade, e portanto, pelo argumento anterior, menor deve ser o alcance dessa interação. Ou seja, o elétron só é desviado significativamente de sua trajetória incidente se ele se aproximar muito da outra carga. Por outro lado, um espalhamento em que o momento linear do elétron pouco varia, p→≈p→′ e θ ≈ 0, está associado a fótons que satisfazem a relação energia-momento em boa aproximação, e portanto podem mediar interações a longas distâncias. Posto de outra forma: quanto mais o elétron se aproxima de outra carga, maior poderá ser a virtualidade dos fótons trocados entre elas, e maior será o desvio da trajetória do elétron; ao passo que, se as cargas estão distantes, os fótons devem satisfazer a equação (12) em boa aproximação, o que corresponde, pela equação (14), a um desvio pequeno de trajetória. Esse é justamente o comportamento clássico da interação eletrostática: quanto mais distantes as cargas, menor é a força e, consequentemente, menor a variação do momento linear da partícula teste. O argumento acima apresenta uma explicação para esse fenômeno em nível microscópico. É possível mostrar que a relação de virtualidade dada pela equação (14) dá origem a uma energia potencial de interação do tipo V(r)∼1/r, que é justamente a energia potencial associada à lei de Coulomb. Note, ainda, que todos os fótons que contribuem para a Lei de Coulomb são virtuais. Uma outra maneira de refrasear a argumentação acima é a seguinte. Um fóton real, não massivo, contém apenas duas possíveis polarizações, que são transversais à direção de propagação20. Por outro lado, a violação da equação (12) implica que um fóton virtual possui uma terceira polarização, dita longitudinal, que não está associada a um grau de liberdade que se propaga. De fato, é possível mostrar que esse grau de liberdade longitudinal atua como mensageiro da Lei de Coulomb [59]. Segue-se que quanto maior for a virtualidade do fóton, maior é a contribuição da polarização longitudinal, e mais intensa a interação Coulombiana, como concluímos acima. 2.8. Pósitrons: os antielétrons Na seção 2.7.1 acima vimos que, em uma teoria quântica relativística, o elétron é interpretado como uma excitação de um campo fundamental, que chamamos de “campo do elétron” ou “campo eletrônico”. Contudo, é possível mostrar que os postulados da relatividade restrita só são satisfeitos quando se considera que o campo eletrônico possui também um outro tipo de excitação, com a mesma massa do elétron mas carga oposta. Em outras palavras, uma teoria quântica relativística do elétron prevê, também, a existência de um antielétron! Como a carga dessa partícula é positiva, ela é chamada de pósitron. Figura 21 Representação esquemática do movimento de um pósitron, interpretado como o movimento de um elétron movendo-se “para trás no tempo”. O pósitron pode ser visto como uma “ausência de elétron” ou como um buraco nesta página em branco: à medida que o “buraco” se move para a direita, o espaço que ele antes ocupava passa a ser novamente branco, como o restante da página. Reduzir a ausência de carga negativa em uma determinada posição é equivalente a acrescentar uma carga negativa nesse ponto. Isso porque −(+ e) = −e. Assim, o pósitron movendo-se de 1 para 2 em t1→t2 corresponde a um elétron movendo-se de 2 para 1. Em t2→t3 o elétron se desloca de 3 para 2. Note que o elétron que saiu de 2 para 1 precisou, primeiro, sair de 3 para 2. Assim, efetivamente, o movimento do pósitron de 1→2→3 em t1→t2→t3 corresponde ao movimento de um elétron de 3→2→1 em t3→t2→t1. Pode-se entender a afirmação acima da seguinte maneira. Considere dois eventos que ocorrem nos pontos x=(t,x→) e x+Δ⁢x=(t+Δ⁢t,x→+Δ⁢x→) do espaço-tempo, e suponhamos que |Δ⁢x→|>c⁢Δ⁢t, ou seja, a distância espacial Δ⁢x→ é maior do que a distância que a luz pode percorrer no intervalo Δt. Isso significa que esses dois eventos são causalmente desconexos, pois só poderiam ser relacionados por um sinal superluminal, o que violaria os postulados da relatividade restrita. No entanto, quando calculamos a probabilidade de que um elétron se propague de x até x + Δx, constata-se que essa probabilidade não se anula! Assim, se o campo eletrônico propagasse informação somente via elétrons, haveria violação da causalidade: veríamos efeitos precedendo suas causas, o que é absurdo! Para preservar a causalidade, o campo eletrônico deve possuir, também, um segundo tipo de excitação, que são os chamados “pósitrons”: as antipartículas dos elétrons. A transmissão de informação entre dois pontos espaço-temporais envolve a propagação de um elétron de x a x + Δx bem como a propagação de um pósitron de x + Δx a x e, quando essas duas partículas têm exatamente a mesma massa, esses dois processos interferem destrutivamente21, garantindo a causalidade em nível quântico. Note que, nesse caso, a propagação de um elétron é exatamente cancelada pela de um pósitron se propagando no sentido oposto no espaço e no tempo. Esse é um dos aspectos da interpretação de Feynman-Stückelberg para as antipartículas, que garante que, sob todos os aspectos, as antipartículas se comportam como partículas viajando para trás no tempo. Isso explica porque partículas e antipartículas possuem a mesma massa: são, no fundo, a mesma partícula, ou, dito de outra forma, são excitações de um mesmo campo fundamental. Essa interpretação de antipartículas pode ser visualizada da seguinte maneira. Imagine um pósitron se propagando da esquerda para a direita, como ilustrado na Figura 21. Vamos denominar as três posições que o pósitron ocupa na figura como posições 1, 2 e 3, respectivamente. No instante t1 há uma carga elétrica positiva ocupando a posição 1, mais à esquerda da figura, enquanto as posições vizinhas correspondem a espaços vazios, portanto com carga nula. Na passagem do instante t1 para um instante t2 posterior, a carga + e é subtraída da posição 1 e acrescida na posição 2. Mas esse processo é totalmente análogo a subtrairmos uma carga −e de 2 (pois 0−(−e) = + e) e adicionarmos −e em 1 (pois −e + e = 0). Dito de outra forma, é como se a existência de um pósitron pudesse ser vista como a “ausência de um elétron”, ou como um “buraco”: à medida que o pósitron se move da esquerda para a direita, os espaços mais à direita vão se movendo para a esquerda, para preencher a lacuna do pósitron. A Figura 21 mostra, assim, como o movimento do pósitron da esquerda para a direita ao longo de t1→t2→t3 corresponde ao movimento de um elétron da direita para a esquerda ao longo de t3→t2→t1, portanto andando “para trás no tempo”. Esse mesmo argumento se aplica a qualquer campo quântico, de modo que toda partícula elementar possui uma antipartícula associada, e ambas partícula e antipartícula possuem a mesma massa, mas cargas opostas22. Refraseando em poucas palavras: antipartículas emergem inevitavelmente dos postulados da mecânica quântica e da relatividade restrita. Ou, ainda de outra forma: é impossível formular uma teoria quântica relativística de apenas uma partícula. Isso não é inesperado, visto que a relação relativística E = mc2 já aponta para a possibilidade de se converter energia em massa e, portanto, criar novas partículas a partir de uma energia inicial ou, reciprocamente, converter massa em energia através da aniquilação de partículas. Na QED, em que elétrons e pósitrons interagem com o campo eletromagnético, essa energia que cria partículas ou resulta de suas aniquilações está na forma de fótons. Ou seja, um par elétron-pósitron pode se aniquilar mutuamente, resultando em (dois ou mais) fótons no produto final, ou, reciprocamente, fótons podem produzir um par elétron-pósitron23. Esse processo está representado diagramaticamente pela Figura 22. Figura 22 Diagrama representando a aniquilação de um par elétron-pósitron em dois fótons. Note como a partícula mediadora é uma excitação do campo eletrônico. Esse caso ilustra como todas as partículas podem ser virtuais, e não apenas as mediadoras das interações. Historicamente, a existência dos pósitrons foi prevista por Dirac em 1928, mesmo antes de essas partículas terem sido observadas. Após ter formulado sua equação relativística para o elétron, Dirac notou que as soluções inevitavelmente continham, também, elétrons de energia negativa. O que parecia um problema foi transformado em um triunfo da teoria quando Dirac interpretou essas soluções como fenomenologicamente equivalentes a antielétrons, ou ‘‘elétrons’’ de carga positiva24. A corroboração experimental dessa predição foi feita por Anderson em 1932, ao observar partículas que, sob um campo magnético, curvavam-se como se tivessem a mesma massa do elétron, porém carga oposta. A história do pósitron é, portanto, um dos muitos exemplos de partículas preditas teoricamente antes de serem detectadas experimentalmente, o que ilustra o caráter altamente preditivo dessas teorias. A Figura 23 ilustra a criação de um par elétron-pósitron observada em uma câmara de bolhas. O experimento é desenhado para detectar o rastro de partículas carregadas. Por isso, o rastro do fóton não aparece, embora possa ser deduzido pelo vértice de criação do par. As partículas estão submetidas a um campo magnético perpendicular ao plano da figura, e, por possuírem mesma massa e cargas opostas, são curvadas em direções opostas, mas com trajetórias de aproximadamente mesmo raio. Figura 23 Criação de um par elétron-pósitron visualizado em uma câmara de bolhas. Fonte: CERN. Esse fenômeno de aniquilação de pares resultando em radiação eletromagnética tem aplicação prática na medicina, nos chamados PET scans (PET é a sigla em inglês para Tomografia por Emissão de Pósitrons). Trata-se de uma modalidade de obtenção de imagens e dados sobre o funcionamento metabólico do organismo, que funciona da seguinte maneira [60]. Primeiramente, modifica-se uma molécula usualmente metabolizada pelo organismo (por exemplo, glucose) substituindo-se um de seus átomos por um elemento radioativo que decai por emissão de pósitrons (usualmente 18F). Essa substância é inserida intravenosamente no paciente, e o organismo, confundindo-a com glucose, redireciona-a a órgão vitais, onde será metabolizada. Ali, o elemento radioativo emitirá um pósitron, que se aniquilará com um elétron do corpo do paciente, emitindo dois fótons de radiação γ que serão observados pelo aparelho detector, como na Figura 24. Por conservação de momento, os fótons sempre são emitidos em direções opostas. O aparelho calcula o intervalo de tempo entre a detecção de cada fóton, e determina, assim, o local de onde o pósitron foi emitido. Faz-se, assim, um mapeamento da atividade metabólica do organismo, podendo-se determinar a integridade do tecido cerebral, a existência de tumores, o funcionamento cardiovascular, dentre outras aplicações. Figura 24 Esquema de funcionamento de um aparelho de Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET scan). Fonte: adaptado de [61]. 2.9. A carga efetiva do elétron Outra consequência da conversão de fótons em pares elétron-pósitron (e vice-versa) é a chamada “polarização do vácuo”, que tem uma importante consequência fenomenológica: a constatação de que a carga elétrica do elétron não é constante! Para entender melhor essa afirmação, considere o diagrama ilustrado na Figura 25, em que a propagação de um fóton é temporariamente interrompida pela criação de um par elétron-pósitron, que posteriormente se aniquila e dá origem novamente a um fóton que continua a se propagar. Esse processo ilustra que, devido à interação com o campo eletrônico, um fóton não pode ser visto apenas como uma excitação do campo eletromagnético. Sua propagação é afetada por sua interação com elétrons e pósitrons. E isso, por sua vez, tem impacto sobre a maneira como esse fóton intermedeia a interação eletromagnética entre cargas elétricas. Figura 25 Diagrama de Feynman ilustrando um possível processo ocorrendo durante a propagação de um fóton, temporariamente interrompida pela criação e posterior aniquilação de um par elétron-pósitron. Este é um exemplo de um diagrama com um laço. De fato, considere a interação entre uma carga q incidindo contra uma carga Q, que por simplicidade suporemos ser muito mais pesada, de modo que ela permanece essencialmente imóvel ao longo do processo. O eletromagnetismo clássico diz que essa interação é regida pela lei de Coulomb, ou seja, a energia potencial de interação é (15) V Coulomb ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r , com k ≈ 9×109N m2/C2 a constante de Coulomb. Esse comportamento é exatamente o que se obtém na eletrodinâmica quântica a partir do diagrama da Figura 26(a), como já discutido na seção 2.7.3. Ou seja, a teoria eletromagnética clássica está contida na QED como primeira aproximação, ao ignorarmos todos diagramas que contenham laços. Mas há vários outros processos também presentes na QED, como o ilustrado na Figura 26(b), que contribuem para a mediação da interação entre as cargas, e que portanto fornecem “correções quânticas” à predição da teoria clássica. Esses processos estão sempre presentes, independentemente de a interação ser macroscópica ou não. Quer dizer, é impossível “desligarmos” esses processos tipicamente quânticos e observarmos apenas os processos clássicos. Sendo assim, por que esses efeitos quânticos não são comumente observados em nosso dia a dia? Por que a lei de Coulomb é uma boa aproximação para interações macroscópicas? E, ainda mais importante: o quão pequenas têm que ser as distâncias envolvidas para que esses efeitos quânticos se manifestem mais perceptivelmente? Podemos responder essa questão recorrendo novamente ao conceito de virtualidade das partículas intermediárias, elaborado na seção 2.7.3. Naquela ocasião, definimos o “grau de virtualidade” de uma partícula de energia E, momento p→ e massa m como uma medida do quanto ela viola a relação relativística de massa-energia-momento, i.e. (16) virtualidade ≡ E 2 - | p → | 2 ⁢ c 2 - m 2 ⁢ c 4 . Assim, tudo se passa como se a partícula virtual tivesse uma massa diferente da correspondente partícula real. Por exemplo, é como se um elétron virtual tivesse massa diferente de me ≈ 9.1×10−31 kg. Uma partícula real é aquela para a qual o lado direito da equação (16) se anula. Figura 26 Dois processos possíveis de mediação da interação entre as cargas q e Q. (a) Diagrama responsável pela interação descrita no eletromagnetismo clássico. (b) Uma correção quântica oriunda da interação mútua entre o fóton e as excitações do campo eletrônico, que altera a propagação do fóton. Por incluir uma modificação na propagação do fóton, esse diagrama induz uma modificação da lei de Coulomb para a interação entre partículas carregadas. Isso também pode ser interpretado como uma alteração na “carga elétrica efetiva” das partículas interagentes. Interações de longa distância são mediadas predominantemente por fótons de baixa virtualidade, o que por sua vez implica em uma alta virtualidade para o par elétron-pósitron da Figura 26(b)25. Isso faz com que os efeitos desse diagrama sejam atenuados em comparação com o da Figura 26(a). Assim, para grandes distâncias, a interação é regida essencialmente pela lei de Coulomb, como esperado. A que distâncias a contribuição do diagrama com laço se torna relevante? Ora, só existe uma escala de energia característica desse processo, que é a energia de repouso do par elétron-pósitron, 2mec2. Essa energia está naturalmente associada, na teoria quântica, a uma escala de distância da ordem26 (17) r ˜ = ℏ c 2 m e c 2 = ( constante de Planck ) × ( velocidade da luz ) ( energia de repouso do par e + e - ) ∼ 2 × 10 − 13 m . O fato de essa escala de distância, característica do processo da Figura 26(b), envolver a constante de Planck e a velocidade da luz mostra que se trata de um efeito caracteristicamente quântico e relativístico. Como já poderíamos antecipar, trata-se de uma escala de distância associada ao comprimento de onda de um fóton com energia 2mec2. Nota-se que r~ é cerca de duas ordens de magnitude menor do que o típico raio atômico, portanto as partículas interagentes devem estar de fato muito próximas para que a modificação na propagação do fóton pela criação de pares intermediários seja perceptível. Essas previsões são confirmadas quando computamos as correções quânticas ao potencial de Coulomb para r≳r~ devido ao diagrama da Figura 26(b), resultando no chamado potencial de Uehling, (18) V ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r ⁢ ( 1 + α 2 ⁢ π ⁢ ( r ~ r ) 3 / 2 ⁢ e - r / r ~ + … ) . Aqui, α ≈ 1/137 é uma constante que dita a intensidade da interação eletromagnética27, e r~ é a distância característica ao processo quântico da Figura 26(b) que dá origem a essa correção. É fácil ver que, para distâncias muito maiores do que essa escala característica, r≫r~, o potencial de Uehling da equação (18) reduz-se ao potencial de Coulomb, como esperado. As reticências indicam que existem ainda outras correções advindas de processos ainda mais complicados, e que só serão notáveis a distâncias ainda menores. Essas correções quânticas devido à criação de pares elétron-pósitron virtuais em torno de uma carga elétrica podem ser interpretadas fisicamente como oriundas de uma blindagem da carga devido a um efeito de polarização do vácuo, como ilustrado na Figura 27. Suponhamos, por exemplo, que a partícula ao centro da figura seja um elétron. Devido a processos como os da Figura 26(b), em torno desse elétron existe uma multitude de pares elétron-pósitron virtuais que atuam como minúsculos dipolos, efetivamente reduzindo a densidade de carga do elétron e, portanto, a intensidade de sua interação eletromagnética com outras cargas. Diz-se que o elétron está sempre “vestido”, de modo que, quando dois elétrons interagem, a densidade de carga efetiva da interação é a da nuvem ilustrada na Figura 27, e não do elétron “nu” (ilustrado no centro da figura). Porém, à medida que os elétrons são lançados um contra o outro a mais altas energias, a interação se dá a distâncias cada vez menores, até que eventualmente (quando a energia do centro de massa for Ec.m.≳2mec2) um elétron começa a penetrar a nuvem de polarização do outro e enxerga uma maior carga efetiva, o que faz com que o comportamento da interação seja diferente do Coulombiano. O “raio efetivo” dessa nuvem de polarização em torno do elétron é a escala característica r~ associada ao diagrama 26(b), como já discutido anteriormente. Figura 27 Efeito de blindagem da carga do elétron devido aos pares elétron-pósitron virtuais. Fonte: cortesia de © INFN, Laboratori Nazionali di Frascati [62]. Essa variação da carga efetiva do elétron com a distância é, de fato, observada. Em processos que envolvem interações entre elétrons a altas energias, tudo se passa como se a carga do elétron fosse de fato maior do que a que observamos em nosso mundo de baixas energias. Uma pergunta plausível, neste momento, seria: e qual é, então, a carga do elétron “nu”? A resposta é que a carga do elétron tende a infinito à medida que a distância entre as cargas interagentes diminui. É claro que uma carga infinita não faz sentido fisicamente, e esse comportamento já nos indica que, a partir de uma certa escala de energia, essa descrição do elétron e suas interações em termos de partículas e campos já não é mais aplicável. Isso é análogo ao caso em que a descrição contínua de um sólido ou fluido deixa de ser válida a partir de certas escalas de distância, quando a estrutura atômico-molecular da matéria se torna relevante, e novos graus de liberdade precisam ser incluídos na descrição do sistema. Questões sobre o que é e quais são as propriedades de um elétron ‘‘nu’’ não podem ainda ser resolvidas conclusivamente, e é mais provável que, a partir de uma determinada escala de energia, a pergunta sequer faça sentido, pois o próprio conceito de ‘‘elétron’’ como hoje o entendemos deve ser modificado28. Uma importante consequência desse efeito de polarização do vácuo é o deslocamento de Lamb entre os níveis de energia dos orbitais 2S1/2 e 2P1/2 do átomo de hidrogênio. Se a interação elétron-núcleo ocorresse apenas via diagrama da Figura 26(a), esses orbitais seriam degenerados (i.e. possuiriam a mesma energia). No entanto, experimentos cuidadosos mostraram que há uma transição entre eles, correspondendo à emissão de um fóton de frequência ∼1057 MHz. Na QED, esse valor é predito corretamente com grande precisão levando-se em conta que o elétron no orbital S é capaz de penetrar o núcleo atômico29 e, com isso, sentir os efeitos do termo anômalo do potencial de Uehling. Isso não ocorre no orbital P, para o qual o potencial eletromagnético é simplesmente o potencial de Coulomb. Portanto, o nível de energia do orbital S fica ligeiramente deslocado do orbital P, dando origem a uma possível transição eletrônica que é, de fato, observada. A obtenção do valor correto para o deslocamento Lamb por meio do formalismo da QED constitui ainda um dos maiores triunfos dessa teoria, e um forte indicativo de seu poder preditivo. apresentamos propostas de momentos didáticos para introduzir a temática de Física de Partículas e da Eletrodinâmica Quântica em particular, organizados de maneira tal que promoveram o engajamento dos(as) estudantes desde o primeiro instante da intervenção e de modo que os conceitos relevantes à Física de Partículas eram construídos conjuntamente com os(as) discentes, conectando-se a seus conhecimentos prévios.

Em nossa intervenção na CEEMTI Profa Maura Abaurre, o conteúdo apresentado neste trabalho, com foco na Eletrodinâmica Quântica, serviu como base para a primeira parte da sequência didática elaborada sobre Física de Partículas. Por sua vez, tal parte foi dividida em três aulas, ministradas nos dias 16, 26 e 30 de setembro do ano de 2019, cada uma com duração entre 55 e 65 minutos. Os principais tópicos abordados em sala, e as respectivas subseções discutidas mais detalhadamente acima, encontram-se listadas nas Tabelas 1, 2 e 3.

Tabela 1
Os momentos da primeira aula da sequência.
Tabela 2
Os momentos da segunda aula da sequência.
Tabela 3
Os momentos da terceira aula da sequência.

É muito importante ressaltar que as aulas não foram meramente expositivas mas o professor adotou uma postura amplamente dialógica com os(as) alunos(as), a partir da qual diversos momentos citados nas tabelas emergiram organicamente da discussão com os(as) estudantes e das respostas às interrogações e propostas de debates. Por exemplo, durante o primeiro momento, em que os(as) estudantes se expressaram sobre seus conhecimentos prévios da temática, foram citadas “partículas subatômicas”, ao que o professor rebateu com a pergunta “E como sabemos que a matéria é composta por átomos?”. Essa questão suscitou uma breve discussão sobre como o conhecimento científico consiste de modelos, que devem fazer previsões testáveis e, mais importante, promover um empoderamento daqueles que portam tal conhecimento. Modelos são acatados ou suplantados de acordo com o nível de empoderamento que promovem. Essa situação foi, então, ilustrada na discussão dos sucessos empíricos da teoria atômica, enfatizando-se que não precisamos “enxergar” um átomo para saber que existem, bastando testar alguns “efeitos colaterais” preditos pelo modelo. No caso, as leis ponderais constituem forte evidência de que as reações químicas são meros rearranjos de átomos, e não metamorfoses de um contínuo.

Outro exemplo são os momentos 8 e 9 da aula 2. Aqui, ao invés de simplesmente expor as equações de Maxwell, o professor perguntou aos alunos onde se encaixaria o magnetismo, que ainda não havia se manifestado a não ser no nome da interação eletromagnética. Já tendo discutido a lei de Gauss para campos elétricos, o professor propôs aos(às) alunos(as) formularem a lei análoga para campos magnéticos, informando-lhes apenas que monopolos magnéticos não existem. Isso estimulou uma interessante discussão sobre como equações matemáticas são expressões de fatos físicos em uma outra forma de linguagem. Houve certa dificuldade por parte dos(as) estudantes em construir essa formulação matemática da lei de Gauss para campos magnéticos, mas, guiados pelo professor, foi possível obter o resultado desejado. Seguiu-se, então, uma discussão subsequente sobre as outras leis de Maxwell, mas dessa vez expressas verbalmente de maneira qualitativa, conforme discutido na seção 2.4 2.4. A interação eletromagnética A Física de Partículas versa não somente sobre os constituintes fundamentais da matéria, mas também sobre o modo como essas partículas interagem entre si, e como essas interações microscópicas dão origem à física macroscópica que observamos cotidianamente. Dentre as interações fundamentais da matéria, a interação eletromagnética se destaca por ser a mais simples de todas (veremos a justificativa para essa afirmação na seção 2.4.1), e também pela sua ubiquidade em nosso cotidiano: além das inúmeras aplicações tecnológicas, todas as “forças de contato” que experimentamos têm origem eletromagnética. O eletromagnetismo já é um tópico pertencente ao currículo usual de Física no ensino médio, de modo que a discussão apresentada aqui não foge à temática que já seria tratada em algum momento pelo(a) docente em sala de aula. Entretanto, a apresentação do tópico sob uma perspectiva motivada pela Física de Partículas tem certas vantagens, por possibilitar uma melhor compreensão sobre o comportamento dessa interação, além de induzir uma conexão natural entre física clássica e moderna. 2.4.1. Semelhanças e diferenças entre eletromagnetismo e gravitação A lei de força da interação entre duas partículas estáticas eletricamente carregadas (Lei de Coulomb) tem importantes semelhanças e diferenças frente à lei de atração gravitacional de Newton (vide Figura 2), e uma discussão aprofundada sobre as causas dessas (dis)similitudes abre inúmeras possibilidades de discussões em sala de aula, todas ricas em conteúdo físico, algumas propícias ao desenvolvimento da intuição dos estudantes, e ainda outras que levam a questões profundas que continuam em aberto na Física de Partículas. Figura 2 Dois elétrons sob a ação da atração gravitacional F→g, devido a suas massas me, e da repulsão eletrostática F→e⁢l devido a suas cargas −e. A semelhança é óbvia: ambas leis de força seguem o padrão (1) força = constante × (produto de cargas) (distância) 2 . Por que isso ocorre? O produto das cargas tem que aparecer para que a terceira lei de Newton seja satisfeita6: a força agindo sobre A devido a B deve ser proporcional7 à carga de A, e deve ter mesma magnitude que a força em B devido a A, que por sua vez é proporcional à carga de B. A constante aparece devido à escolha de unidades. Por exemplo, em unidades Gaussianas, a constante da Lei de Coulomb é igual a 1. A física mais interessante está no comportamento ∼1/r2 dessas forças, que merece uma discussão mais aprofundada e cuidadosa com os(as) alunos(as). Em última instância, a Lei de Coulomb tem essa forma porque o campo eletromagnético/o fóton/a luz não possui carga nem massa. Para explicar essa afirmação, deve-se primeiramente introduzir o conceito de campo elétrico, incluindo sua manifestação visual em termos de linhas de campo e como as cargas elétricas constituem fontes e sumidouros dessas linhas8. A partir daí, segue-se que: Como o próprio campo não carrega a carga com a qual ele interage (i.e. o campo eletromagnético não é autointeragente), a única fonte de linhas de campo é a matéria, que é o enunciado da Lei de Gauss, (2) ∇ ⋅ E → ⏟ fonte de campo ∼ ρ ⏟ carga , expressa ilustrativamente na Figura 3(a). Por isso, o fluxo de linhas de campo através de uma superfície fechada englobando a carga é sempre constante, pois não há novas linhas de campo surgindo no espaço entre a carga e a superfície. Aqui, uma analogia com um fluido pode ser evocada: se interpretarmos a carga central na Figura 3(a) como uma fonte de água em um chafariz, Figura 3(b), o fluxo de água atravessando as circunferências pontilhadas em um determinado instante é sempre igual ao fluxo de água jorrando da fonte, contanto que não haja novas fontes ou sumidouros de água no meio do percurso. Portanto a quantidade de água que atravessa as circunferências pontilhadas, por unidade de comprimento dessa circunferência, decresce com a distância à fonte como ∼1/2πr. Ou seja, se temos em nossas mãos um copo, e queremos enchê-lo com a água escorrendo através da borda do chafariz, o tempo necessário para encher o copo variará com o inverso da distância da borda à fonte. Retornando ao caso eletromagnético de interesse, em que as linhas de campo se espalham por todo o espaço tridimensional, o fluxo dessas linhas de campo é constante sobre qualquer esfera de raio r, de modo que a densidade de linhas de campo (que corresponde à intensidade do campo) decai com a área dessa esfera, E∼1/4πr2. Pelo mesmo argumento, podemos identificar como seria a Lei de Coulomb em espaços de d-dimensões: E∼1/rd−1 (o volume de uma esfera d-dimensional é ∼rd, e sua área é ∼rd−1). Figura 3 (a) Linhas de campo elétrico geradas por uma carga pontual. O número de linhas atravessando uma superfície fechada é sempre constante, o que significa que a densidade de linhas diminui com a distância. Para um espaço tridimensional, a redução é ∼1/r2. (b) Toda a água que emana da fonte escorre através da borda do chafariz. A quantidade de água que atravessa uma unidade de comprimento desse perímetro varia com o inverso da distância da borda à fonte, ∼1/r. Fonte: Domínio Público. Caso o campo eletromagnético portasse carga elétrica, as próprias linhas de campo seriam fonte de novas linhas de campo, e o fluxo não seria constante, invalidando o argumento acima. Mais ainda: o fato de o campo eletromagnético não ser autointeragente é também a causa da linearidade das equações de Maxwell, e do princípio da superposição em particular. É fácil entender por que: os campos produzidos por duas cargas se propagam no espaço sem interagirem entre si e, portanto, sem que a informação que carregavam inicialmente seja modificada durante o percurso. O campo resultante é, portanto, simplesmente a soma dos campos produzidos por cada carga. Note que, com essa discussão, o(a) estudante de ensino médio é apresentado, de maneira muito clara e intuitiva, a uma das leis de Maxwell do eletromagnetismo e suas implicações. Expande-se, assim, o entendimento do(a) estudante sobre fenômenos eletromagnéticos para além de meras memorizações de leis de forças e atividades operacionais puramente mecânicas. A dependência da lei de força com a massa do campo é menos trivial, por se tratar de um aspecto quântico, mas possivelmente interessante mencionar (principalmente para aulas posteriores, quando se discutir interações nucleares forte e fraca). Caso os fótons tivessem massa m, o potencial eletrostático teria a forma de um potencial de Yukawa, (3)VYukawa ∼e-m⁢rr, correspondendo a uma força que decai muito mais rapidamente do que 1/r2, tendo um curto alcance efetivo, ref∼1/m. O fato de o fóton ser não-massivo é responsável pelo longo alcance da interação eletromagnética, bem como pelo fato de se propagar à máxima velocidade permitida para a troca de informações na Natureza: a velocidade da luz no vácuo. E a gravitação? O campo gravitacional também não possui massa – quer dizer, o gráviton9, que é a partícula associada à propagação do campo gravitacional, tem massa nula –, o que explica por que essa interação é de longo alcance, efetiva a distâncias em escala cosmológica (e também se propaga no vácuo à velocidade da luz). Mais ainda, na gravitação de Newton apenas as massas agem como fonte de gravitação, e portanto o campo gravitacional newtoniano não interage gravitacionalmente (i.e. não é autointeragente), o que implica no comportamento ∼1/r2, como vimos acima. Entretanto, hoje se sabe que a teoria newtoniana não descreve corretamente todos os fenômenos gravitacionais, e é, em última instância, suplantada pela teoria da relatividade geral de Einstein. Nessa teoria, não só a massa dos corpos é fonte de campo gravitacional, mas toda e qualquer forma de energia e momento. Logo, a energia contida no campo gravitacional também gravita. Por isso as equações da relatividade geral são altamente não-lineares. Assim, a gravitação Newtoniana está contida na relatividade geral no limite em que se negligencia a autointeração dos grávitons. Segue-se, dessas discussões, que a interação eletromagnética é a interação mais simples da Natureza , pois é a única linear. Há, ainda, outras diferenças entre gravitação e eletromagnetismo. A interação gravitacional é muito mais fraca que a eletromagnética. De fato, comparando-se a razão entre as magnitudes das forças eletrostática e gravitacional agindo sobre dois elétrons, vem que (4)|F→e⁢lF→g|=k⁢e2G⁢me2∼1042. Esse fato é facilmente comprovado notando-se que a força eletrostática entre um balão de festa e os cabelos de uma pessoa é suficiente para superar a atração gravitacional do planeta inteiro, como se vê na Figura 4. Outra maneira de formular essa discrepância entre as duas interações é notar que, em um sistema de unidades com k = G = 1, a equação (4) nos diz que a carga elétrica e a massa de uma partícula possuem as mesmas unidades, mas para o elétron a carga é ∼1021 vezes maior que a massa. Discrepâncias similares se aplicam a todas as outras partículas carregadas que conhecemos, e é uma manifestação de que a gravidade é a interação mais fraca da natureza. Figura 4A força eletrostática devido a um balão de festa é suficiente para superar a atração gravitacional de todo o planeta e fazer o cabelo levantar. Fonte: adaptado de SWNS/Splash News. A razão para a existência dessa hierarquia entre essas interações é um dos maiores mistérios abertos da Física de Altas Energias, denominado o problema da hierarquia . Uma proposta de solução consiste em supor que existem dimensões espaciais extras (além das três usuais com as quais estamos familiarizados), e que em última instância todas as interações têm a mesma intensidade, mas que a geometria das dimensões extras faz com que a gravitação efetiva em três dimensões se torne muito mais fraca [35]. A interação eletromagnética pode ser atrativa ou repulsiva, enquanto a gravitação é sempre atrativa. Em um sistema de partículas carregadas, as forças eletromagnéticas dominam e fazem com que elas estejam em constante movimento, sempre se repelindo e se atraindo, até o momento em que a velocidade média das partículas (i.e. a temperatura do sistema) seja suficientemente baixa para que a atração entre cargas opostas seja capaz de prendê-las em órbita, formando um sistema ligado neutro. Esse processo ocorreu no Universo primordial, cerca de 380.000 anos após o Big Bang, numa transição de fase em que os prótons e elétrons do plasma primordial se combinaram em átomos – um processo chamado na literatura de Recombinação , e que dá origem à Radiação Cósmica de Fundo [36, 37, 38]. Importante se ressaltar esse argumento à turma, pois ilustra como a efetiva neutralidade do Universo não é simplesmente uma condição inicial arbitrária, mas decorre de um processo físico no Universo primordial. Apesar de a interação eletromagnética ser muito mais forte que a gravitacional, seus efeitos de atração e repulsão tendem a se cancelar em grandes escalas, enquanto os efeitos gravitacionais são sempre cumulativos. Assim, para sistemas formados de grandes quantidades de matéria (formando corpos celestes, galáxias, conglomerados e demais estruturas cósmicas), a gravitação se torna a interação mais relevante. De fato, um dos princípios básicos da Cosmologia moderna é que, em escalas cosmológicas, é necessário levar em conta apenas a interação gravitacional entre as estruturas interagentes. 2.4.2. Eletromagnetismo e forças de contato Outro ponto de importante menção é a ubiquidade da interação eletromagnética em fenômenos onde não se os reconhece a princípio. De seu curso de mecânica, o(a) estudante está familiarizado(a) com o conceito de gravitação e força peso atuando sobre um corpo, assim como outras formas de força que emergem do contato entre corpos (Figura 5), como a força normal, força de atrito, tensão em uma corda, forças atuantes em uma colisão, etc. Figura 5 Forças de contato. Em última instância, todas têm origem na repulsão eletromagnética. Fontes: os autores e adaptações de [39] e [40], respectivamente. Entretanto, em sentido estrito, forças de contato inexistem: todas essas forças têm origem eletromagnética, advindas da repulsão entre os elétrons dos átomos que constituem os corpos, como ilustrado na Figura 6. Apesar de a magnitude da força de repulsão entre elétrons ser tipicamente muito menor do que a força peso de um corpo macroscópico, a repulsão aumenta drasticamente à medida que as distâncias entre as superfícies diminuem, existindo uma distância não-nula para a qual a força peso e a repulsão eletrostática se equilibram. Figura 6 A força normal de uma mesa sobre um bloco é devida à repulsão entre os elétrons dos átomos das superfícies. A revelação de que nenhum objeto está em contato com outro, e que estamos sempre ‘‘flutuando’’ sobre as superfícies onde nos apoiamos, usualmente causa fascinação e entusiasmo em estudantes. Mas mais do que isso, é importante enfatizar esse ponto porque mostra que todas as forças que vivenciamos em nosso cotidiano -- atrito, forças normais, empuxo, etc. -- têm origem eletromagnética ou gravitacional, o que abre caminho à asserção futura de que existem poucas10 interações elementares na natureza. .

Por fim, outro exemplo é o momento sobre “Trajetórias em Mecânica Quântica” na aula 3. Essa discussão emergiu de uma pergunta sobre a aparente contradição entre a inexistência de trajetórias na descrição quântica das partículas, e a observação de “trajetórias” no mundo clássico ou mesmo em experimentos de elétrons se movendo em câmaras de bolhas. O questionamento tornou-se uma oportunidade para discutir mais aprofundadamente o princípio da incerteza de Heisenberg nesse contexto, mostrando como a aparente trajetória do elétron não consiste em uma linha, mas em um tubo com espessura finita correspondendo à incerteza em sua localização.

Uma análise detalhada das narrativas presentes em sala de aula, considerando as participações dos estudantes, as trocas com o professor e colegas, e diversas outras observações sobre todas as aulas da sequência didática será publicada em trabalho futuro dos autores.

3.3. Metodologia e coleta de dados

O percurso metodológico adotado em nossa análise possui cunho qualitativo e caráter de estudo de caso. A pesquisa qualitativa considera relevante todos os sujeitos envolvidos, os significados e os pontos de vista atribuídos às situações a partir de dados coletados diretamente no ambiente natural de ação [6464. M. Lüdke e M.E.D.A André, Pesquisa em educação: abordagens qualitativas (EPU, São Paulo, 1986).]. Obtivemos autorização da Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo e da diretoria da escola para tomar notas durante as intervenções sobre as interações entre os(as) discentes, seus níveis de interesse e de atenção, as perguntas realizadas, e demais reações. A coleta de dados ocorreu a partir de observações registradas durante as aulas em um diário de campo, contemplando aspectos descritivos e reflexivos dos sujeitos envolvidos, dos objetos, do espaço, das atividades e dos acontecimentos [6464. M. Lüdke e M.E.D.A André, Pesquisa em educação: abordagens qualitativas (EPU, São Paulo, 1986)., 6565. R.C.M. de Oliveira, Revista Brasileira de Educação de Jovens e Adultos 2, 69 (2014).], bem como reflexões posteriores às intervenções sobre relações entre tais aspectos, sobre atividades para casa e interações imediatamente antes e após as intervenções. A vivência com o local onde as ações se desenvolveram favoreceu uma metodologia de estudo de caso, ideal quando se pretende conhecer as perspectivas de significados dos sujeitos e a identificação de relações causais e padrões em contextos complexos que não permitem a utilização de levantamentos e experimentos [6666. V.R.A. de Moraes e J.A. Taziri, Investigações em Ensino de Ciências 24, 72 (2019).]. Em nosso caso focamos na compreensão de conceitos-chave e suas relações com tecnologia, sociedade e meio-ambiente, avaliando o surgimento de indicadores de alfabetização científica e de engajamento ao longo das aulas, bem como relações entre esses indicadores.

A fim de manter o sigilo e preservar as identidades dos participantes, adotamos nomes fictícios para os estudantes, fazendo referência a cientistas que atuaram na área da Física de Partículas e/ou contribuíram para o seu desenvolvimento.

3.4. Os indicadores de alfabetização científicae de engajamento

As observações realizadas durante as intervenções incluíram a análise dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento demonstrados pelos estudantes para avaliar a viabilidade, a efetividade e as potencialidades da inclusão da temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio. Novamente ressaltamos que, para além do conteúdo abordado em sala de aula, as intervenções incorporaram uma postura amplamente dialógica do professor e acreditamos que essa combinação favoreceu a viabilidade e a efetividade de nossa proposta.

3.4.1. Indicadores de alfabetização científica

Os indicadores de alfabetização científica utilizados se alicerçam na perspectiva freireana de alfabetização científica [6767. P. Freire, Educação como prática da liberdade (Paz e Terra, São Paulo, 2000)., 6868. P. Freire, A importância do ato de ler – em três artigos que se completam (Cortez, São Paulo, 1989).], que destaca o(a) alfabetizado(a) cientificamente como aquele(a) que: compreende as relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente; compreende a natureza da Ciência; compreende a ética que envolve o trabalho de um(a) cientista; e possui conhecimentos básicos sobre as ciências para atuar no mundo. Em qualquer processo de ensino-aprendizagem que busca incorporar a alfabetização científica identificam-se indicadores que demonstram o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos associados ao trabalho de cientistas que, de acordo com a ref. [66. L.H. Sasseron e A.M.P. Carvalho, Investigações em Ensino de Ciências 13, 333 (2008).], podem ser divididos em três blocos de ações:

  1. ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação;

  2. ações que estruturam o pensamento científico;

  3. ações que buscam o entendimento da situação analisada.

No primeiro bloco de ações podem ser identificados os seguintes elementos: a seriação de informações, a organização de informações e a classificação de informações. O primeiro busca estabelecer as bases para uma pesquisa, um conjunto de dados, por exemplo. O segundo elemento aparece quando se discute a metodologia de uma pesquisa, um arranjo das informações. Já o terceiro elemento aparece quando se pretende hierarquizar as informações, estabelecendo relações entre elas. O segundo bloco de ações envolve as formas de organizar o pensamento, seja através do raciocínio lógico (relacionando a forma das ideias) e/ou do raciocínio proporcional (ideias e variáveis são relacionadas). Já o terceiro bloco contempla o maior número de elementos: o levantamento de hipóteses, o teste de hipóteses, a justificativa, a previsão e a explicação. O levantamento de hipóteses ocorre nos momentos em que suposições sobre determinada ideia ou assunto surgem, e o teste de hipóteses ocorre quando essas hipóteses são colocadas em xeque. Já a justificativa aparece quando ideias são incorporadas a uma linha de raciocínio que fortalecem uma determinada afirmação. A etapa da previsão ocorre quando se sugere que algum evento seja proveniente de alguma ideia e/ou fenômeno em análise. O último elemento nesse bloco de ações, a explicação, propõe reunir e relacionar todos os elementos anteriores: informações, ideias, hipóteses, previsões.

Tais elementos do fazer científico foram considerados em nossa análise como indicadores de alfabetização científica e são resumidos na Tabela 4. Ressaltamos que cada um desses indicadores pode se manifestar independentemente dos outros em sala de aula. Além de serem independentes entre si podem, inclusive, aparecer concomitantemente.

Tabela 4
Os indicadores de alfabetização científica a partir de elementos do fazer científico.

3.4.2. Indicadores de engajamento

O engajamento escolar possui natureza multifacetada e é fruto da complexa interação social do sujeito com o ambiente escolar no qual está inserido, as situações que presencia e os outros sujeitos desse espaço. Além disso, engloba todo um processamento psicológico do sujeito com relação aos estímulos e quaisquer modificações que alterem esse ambiente e suas experiências. Dessa maneira, um engajamento positivo por parte dos estudantes está diretamente ligado à existência de estímulos e situações de aprendizagem favoráveis ao seu desenvolvimento. Considerar a incidência de indicadores referentes ao engajamento dos estudantes auxilia na compreensão das experiências no ambiente escolar, na preparação de atividades, e na compreensão da efetividade e das potencialidades do processo de ensino-aprendizagem adotado.

A literatura sobre o assunto contempla três tipos de engajamento que se relacionam de forma dinâmica e não podem ser pensados como processos isolados: o comportamental, o emocional e o cognitivo [6969. J.A. Fredericks, P.C. Blumenfeld e A.H. Paris, Review of Educacional Reseach 74, 59 (2004)., 7070. G.R. Coelho, A evolução do entendimento dos estudantes em eletricidade: um estudo longitudinal. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizontes (2011)., 7171. O. Borges, J.M. Júlio e G.R. Coelho, em Atas do V ENPEC (Bauru, 2005)., 7272. L.H. Sasseron e T.N. de Souza, Investigações em Ensino de Ciências 24, 139 (2019)., 7373. A.F. Faria e A.M. Vaz, Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências 21, e10545 (2019)., 7474. J.D. Finn, School engagement and students at risk (National Center for Education Statistics, Washington, 1993)., 7575. K.E. Voelkl, American Journal of Education 105, 294 (1997)., 7676. D. Stipek, em Development of achievement motivation: a volume in Educational Psychology, editado por A. Wigfield e J.S. Eccles (Academic Press, San Diego, 2002)., 7777. J.P. Connell e J.G. Wellborn, em Minnesota Symposium on Child Psychology 23 Self processes and development, editado por M.R. Gunnar e L.A. Sroufe (University of Chicago Press, Chicago, 1991)., 7878. J.E. Brophy, em Advances in motivation and achievement: enhancing motivation, editado por M.L. Maehr e D.A. Kleiber (JAI Press, Greenwich, 1987)., 7979. C. Ames, Journal of Educational Psychology 84, 261 (1992)., 8080. C.S. Dweck e E.L. Legget, Psychological Review 95, 256 (1988)., 8181. S. Harter, Development Psychology 17, 300 (1981)., 8282. L. Corno e E.B. Madinach, Educational Psychologist 18, 88 (1983).]. Listamos na Tabela 5 os indicadores de engajamento que consideramos abaixo na apresentação de nossos resultados quanto à viabilidade, à efetividade e às potencialidades da inserção da temática de Física de Partículas em sala de aula do ensino médio.

Tabela 5
Os indicadores de engajamento.

3.5. Resultados

As incidências dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento serão apresentadas apenas para as três primeiras aulas da sequência, foco deste trabalho, relacionando-as com algumas observações da sequência como um todo. Uma elaboração detalhada e a análise aprofundada da incidência desses indicadores ao longo de toda a sequência será publicada separadamente.

Os resultados referentes aos indicadores de alfabetização científica mais notáveis nas três primeiras aulas da sequência são apresentados na Figura 28.

Entre as ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, a mais presente foi a de seriação de informações. Esse resultado é bastante natural considerando que o bloco de aulas em questão se refere às primeiras aulas da sequência, com diversos momentos em que os(as) alunos(as) buscavam estabelecer as informações bases, pois ou estabeleceram seus primeiros contatos com alguns dos tópicos ou relembraram conhecimentos prévios, ressignificando-os no contexto das discussões ocorridas em sala de aula.

Com relação às ações que estruturam o pensamento científico, percebemos uma maior incidência do raciocínio proporcional. Isso se deu principalmente por conta do estímulo dado para o uso do raciocínio proporcional por parte dos(as) alunos(as) quando uma abordagem qualitativa sustentou a discussão sobre as semelhanças e diferenças da lei de Coulomb com a lei da gravitação universal de Newton na primeira aula. Também houve forte ocorrência desse indicador durante a discussão da segunda aula sobre a expressão da lei de Coulomb, quando foram analisados casos limites, como o de duas cargas elétricas colocadas muito próximas uma da outra.

Já com relação às ações que buscam o entendimento da situação analisada, a maior incidência ficou por conta do levantamento de hipóteses, principalmente devido à primeira e à segunda aulas. Na primeira aula, esse indicador apareceu mais no momento de busca pelos conhecimentos prévios dos(as) estudantes, quando eles ficaram bem à vontade para responder algumas questões-chave propostas pelo docente, com o intuito de entender o que os(as) alunos(as) já conheciam sobre Física de Partículas, e também para discutirem entre si, complementando as falas dos(as) colegas com sugestões que avançavam a conversa inicial. Já na segunda aula, esse indicador apareceu com maior frequência nos momentos em que o professor estimulou os(as) alunos(as) a elaborarem uma lei de Gauss para o magnetismo após a discussão sobre a inexistência de monopolos magnéticos. Também houve alta incidência desse indicador no momento em que a simulação interativa com as ondas eletromagnéticas foi utilizada [4343. https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/radio-waves, acessado em 05/05/2021.
https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulati...
], bem como no momento em que conversaram sobre o que caracterizava uma onda.

Figura 28
Indicadores de alfabetização científica observados nas intervenções realizadas. A legenda está ordenada no sentido anti-horário do gráfico a partir de “seriação de informações” (azul escuro, 20,07%).

Na Figura 29 apresentamos a alta incidência dos indicadores de engajamento manifestados durante as intervenções, para cada um dos tipos de engajamento, e para os cinco estudantes mais presentes nas aulas da sequência de Física de Partículas como um todo. Estes serão denominados com os nomes fictícios Werner, Albert, Marie, Peter e Emmy, e estiveram presentes em 10, 10, 8, 7 e 6 das 10 aulas da sequência, respectivamente.

Figura 29
Incidência dos indicadores de engajamento comportamental, emocional e cognitivo nas três primeiras aulas da sequência didática proposta para os cinco estudantes mais presentes nas intervenções. Note que o estudante Werner se destacou apresentando altas incidências em todos os indicadores. Optamos por reescalonar essas incidências no gráfico e, portanto, os números totais para esse estudante são obtidos a partir dos números apresentados multiplicados por um fator 3.

As maiores incidências de engajamento comportamental e cognitivo partiram do estudante Werner. Marie, Peter e Emmy demonstraram incidências similares para cada um dos tipos de engajamento. Já Albert foi o que menos participou das três primeiras aulas entre os cinco alunos. No entanto, a partir da quarta aula (sobre física nuclear, que será abordada em futura publicação) este aluno revelará um enorme salto na incidência de engajamento comportamental. Além disso, a partir da quinta aula da sequência, ele também revelará um aumento significativo dos indicadores de engajamento emocional e, principalmente, de engajamento cognitivo. Considerando todas as aulas da sequência que serão abordadas em futuras publicações, observamos em Albert uma significativa evolução nas incidências de todos os tipos de engajamento e, junto a Werner, que demonstrou engajamento ao longo de todas as aulas da sequência, ele irá se configurar com um dos estudantes com maiores níveis de engajamento da sequência. Esse crescimento progressivo em seus índices de engajamento é demonstrativo do sucesso da sequência, que, aliada às intervenções dialógicas do docente, mostra-se capaz de trazer os(as) estudantes para as aulas, mesmo aqueles(as) mais inibidos, tímidos e/ou inseguros em um primeiro momento.

4. Conclusões

Neste trabalho apresentamos material referente à primeira parte de uma proposta de sequência didática sobre Física de Partículas para o ensino médio. A sequência didática de 10 aulas contemplou também outras temáticas da Física de Partículas: a Física Nuclear; a interação forte (QCD, da sigla em inglês Quantum Cromodynamics); e a interação fraca, o bóson de Higgs e tópicos além do Modelo Padrão da Física de Partículas. Estão em preparação outras publicações com material similar ao apresentado neste trabalho para essas outras temáticas.

A primeira parte dessa sequência, foco do presente trabalho, lidou com a Eletrodinâmica Quântica. Na seção 2 2. Propostas de momentos didáticos Mencionamos a seguir alguns momentos didáticos que podem ser explorados em sala de aula contendo a temática de Eletrodinâmica Quântica no contexto da Física de Partículas. O material foi elaborado com intuito de servir como referência sugestiva ao docente, ficando este livre para adequá-lo a seus propósitos, ao invés de ter que segui-lo como receita impositiva. Dessa forma, há várias possibilidades de se adotar a proposta deste trabalho em sala de aula. Por suposto, uma opção seria a inserção de uma sequência de aulas sobre Física de Partículas ao final do terceiro ano letivo do ensino médio, após se ter discutido extensivamente eletromagnetismo e aspectos da teoria quântica. A Física de Partículas seria, assim, um apêndice ao conteúdo de física moderna. A desvantagem dessa abordagem é privar o(a) aluno(a), durante todo o decurso do ensino médio, do contato com aspectos fascinantes da física contemporânea, exceto por poucas aulas ministradas em um momento em que ele(a) possivelmente já tenha formalizado a escolha do curso que pretende seguir em nível superior. Uma segunda possibilidade seria ministrar essas aulas a grupos de alunos(as) que manifestem interesse prévio em seguir carreira científica. Pode-se, ainda, discutir a temática em disciplinas eletivas em escolas de tempo integral. Note que esse foi o caso da prática dos presentes autores. Ainda uma outra abordagem possível consiste na inserção de discussões conectadas à Física de Partículas em aulas que versam sobre outras grandes temáticas mais tradicionais do ensino médio. Por exemplo, pode-se complementar uma sequência didática sobre eletromagnetismo mencionando a interpretação dessa interação sob a perspectiva da Eletrodinâmica Quântica, ou introduzir tal discussão em uma aula sobre o fóton, o efeito fotoelétrico e/ou outros elementos de física moderna. De fato, o presente trabalho já está estruturado de maneira propícia a essa abordagem, por estar dividido em propostas de momentos didáticos maleáveis, adaptáveis aos propósitos do(a) docente. Antecipa-se, assim, uma resposta à previsível crítica de que a restrita carga horária de Física no ensino médio impossibilita a introdução de temáticas para além das necessárias à preparação dos(as) estudantes para exames qualificatórios, como ENEM e vestibulares. Por fim, há ainda uma outra possibilidade de leitura deste trabalho, ainda mais ousada e mais abrangente, qual seja: utilizar a Física de Altas Energias não apenas como um conteúdo particular, mas como um dos panos de fundo para o ensino de todo o conteúdo de Física do ensino médio. O conteúdo das seções 2.1 à 2.6 é parte da ementa usual do ensino médio, com a qual os(as) docentes certamente estão familiarizados. Nessas seções, apenas sugerimos uma possível abordagem desses tópicos com ênfase na temática relacionada à Física de Partículas. Já as seções 2.7, 2.8 e 2.9 versam sobre elementos de Eletrodinâmica Quântica, que provavelmente serão menos familiares a docentes de ensino médio. Por isso, essa parte do texto passa a ser direcionada também à formação desses professores nos principais elementos desse paradigma teórico, mas com uma linguagem acessível também a estudantes. Pode-se julgar que o conteúdo dessas seções é mais extenso do que se desejaria discutir em sala de aula. Em conformidade com a proposta neste trabalho, deixamos a critério do(a) docente decidir quais tópicos poderiam ser abordados com os(as) estudantes dentro do contexto das salas de aula em que lecionam. 2.1. Introdução ao tema O primeiro momento da sequência propicia a oportunidade de diálogo com os(as) estudantes a fim de averiguar sua familiaridade com a grande temática de Física de Partículas, que aparece frequentemente em livros de divulgação científica ou mesmo em seriados televisivos, canais de plataformas de compartilhamento de vídeos e sítios que discutem ciência. Os(as) estudantes conseguem imaginar o quê (e quais) são essas partículas a que a temática se refere? Já tiveram contato com alguma literatura que falasse sobre quarks, neutrinos, bóson de Higgs, etc.? Já ouviram falar sobre o LHC (Grande Colisor de Hádrons), ou outros aceleradores de partículas e colisores? Interessam-se pelo tema? Por que é relevante estudá-lo? É um momento de deixar os(as) alunos(as) se expressarem, seja publicamente ou em pequenos grupos com os(as) colegas, de modo a se divertirem ao se envolverem com a temática. Após essa discussão, convém apresentar, a título de motivação, alguns fenômenos que se pode explicar graças à nossa compreensão da estrutura da matéria em diversas escalas, incluindo aplicações tecnológicas que envolvem Física de Partículas. Por exemplo, a descrição atômica da matéria nos permite explicar a origem das forças normais de resistência dos materiais enquanto forças eletromagnéticas repulsivas entre orbitais moleculares. Ou seja, explica-se fenômenos simples e cotidianos, como o fato de não atravessarmos uma cadeira quando nela sentamos;a Eletrodinâmica Quântica (QED) nos dá uma descrição muito acurada do comportamento da luz, possibilitando-nos manipulá-la para o desenvolvimento de lasers desde os mais simples, vendidos comercialmente, aos mais potentes, utilizados em escala industrial para diversos fins;a mesma QED prevê a existência de partículas chamadas pósitrons, que têm aplicação medicinal nos chamados PET scans3 ;o brilho do Sol é devido a reações relacionadas às interações nucleares fraca e forte, que também estão relacionadas a decaimentos radioativos, com aplicações na datação de fósseis ou rochas, e em inúmeros aparatos cotidianos, como detectores de fumaça;o poder preditivo da física nuclear é ilustrado de modo estarrecedor pela capacidade destrutiva dos armamentos nucleares, ou pela capacidade de geração de energia a partir de poucos quilogramas de matéria em usinas nucleares. Todos esses fenômenos e aplicações tecnológicas poderão ser explicados em maiores detalhes em momentos posteriores da sequência didática, quando o assunto relevante for discutido em maior detalhe. 2.2. Estrutura atômica da matéria O objeto de estudo da Física de Partículas é a matéria em seu nível mais elementar, precedendo a formação de estruturas compostas mais complexas. Ou seja, é o estudo dos constituintes fundamentais da matéria e de suas interações mútuas. A temática é convidativa, portanto, a uma discussão que desemboque na teoria atômica e na natureza discreta da matéria. Em um primeiro momento, mais importante do que explicar as nuances dos diversos modelos atômicos, é preciso que fique claro aos(às) discentes a gênese do conceito de átomo, a diferença entre as concepções grega, moderna e contemporânea desse termo, e, principalmente, as evidências empíricas em favor do atomismo. Não basta que a ideia de átomo seja aceita, é preciso que o(a) estudante saiba convencer outrem de que a hipótese atomista resulta em uma excelente descrição do comportamento da matéria. Ademais, mesmo que os(as) alunos(as) saibam sobre atomismo, discutir as evidências que corroboram essa hipótese leva a um debate salutar sobre epistemologia e ciência, sobre as condições para que uma hipótese seja “validada” pela comunidade científica. No caso da teoria atômica, há o fator explicativo e o poder preditivo da hipótese, ilustrado em evidências como: As Leis Ponderais da Química: sob uma perspectiva plenista/continuista da matéria, é difícil explicar por que reações químicas ocorrem sempre na mesma proporção fixa de massa ou de moles dos reagentes, e por que qualquer excedente além dessa proporção fixa permanece sem reagir. Por outro lado, a hipótese atomista explica prontamente esse comportamento, bem como a lei de conservação de massas de Lavoisier, ao postular que reações químicas são simplesmente um rearranjo de átomos. Um experimento ilustrativo, que pode ser invocado durante a aula e até mesmo realizado ao vivo devido à sua simplicidade, é a eletrólise da água, em que o volume de gás hidrogênio gerado é sempre o dobro do volume de oxigênio. Um vídeo ilustrativo desse experimento pode ser encontrado em [30]. Teoria Cinética dos Gases: admitindo-se a hipótese atômica, é possível deduzir a equação de estado dos gases ideais a partir das leis da mecânica de Newton. Mais ainda, é possível aprimorar a descrição dos gases reais levando-se em conta, por exemplo, o tamanho das moléculas e suas interações mútuas, obtendo uma descrição ainda mais precisa de sistemas gasosos. Em última instância, a hipótese atomista dá origem à unificação da mecânica e da termodinâmica na mecânica estatística. O Movimento Browniano é o movimento aleatório de micropartículas suspensas em um líquido. O(a) docente pode mostrar um vídeo ou animação ilustrando o fenômeno como visto em um microscópio. Em 1905, Einstein foi capaz de explicar esse movimento como devido à constante colisão das moléculas do líquido com as micropartículas, e, com essa descrição, foi capaz de prever corretamente que a distância média percorrida por uma partícula é proporcional à raiz quadrada do tempo decorrido, d∼t, um comportamento típico do caráter estatístico do fenômeno. Outros exemplos podem ser apresentados. O importante é enfatizar que não é necessário enxergarmos os átomos para saber que existem (embora isso já seja possível com microscópios eletrônicos). Ao supormos que a matéria é assim constituída, podemos deduzir suas propriedades e prever corretamente seu comportamento, cumprindo, assim, uma das funções da Ciência enquanto atividade humana: nosso empoderamento diante das forças naturais. 2.3. Elétrons Uma vez que se tenha consolidado a concepção de estrutura atômica da matéria, pode-se partir para o rompimento da ideia de que o átomo é indivisível. Aqui começa a Física de Partículas de fato, introduzindo a primeira partícula elementar, protagonista da Eletrodinâmica Quântica: o elétron. Uma maneira natural de se introduzir partículas subatômicas é discutir o experimento de J. J. Thomson com tubos de raios catódicos, ilustrado na Figura 1. Para uma sequência didática investigativa explorando essa temática vide ref. [31]. Tais tubos são os elementos constitutivos básicos de televisores antigos (as chamadas “TVs de tubo”), e o(a) docente pode usar isso como motivação inicial à aula, propondo uma discussão sobre como esses aparelhos funcionam. A discussão sobre esses tubos é também propícia ao conteúdo da sequência, pois constituem exemplos simples de aceleradores de partículas. Essencialmente, dois filamentos metálicos são inseridos em um tubo a vácuo e conectados a uma fonte de energia (uma bateria, no caso do experimento de Thomson, ou a tomada doméstica no caso de um televisor), gerando os pólos − e + na figura. Ao fazê-lo, elétrons são acelerados do cátodo ao ânodo e colidem com o bulbo à direita da figura, causando o aparecimento de um ponto luminoso, que gera a imagem em aparelhos televisores. Figura 1 Tubo de raios catódicos usado no experimento de Thomson [32]. Um feixe de partículas é emitido do filamento metálico conectado ao pólo negativo da bateria (à esquerda da Figura), e se propaga em um tubo a vácuo até colidir com a outra extremidade, no bulbo à direita. O feixe é desviado por um campo elétrico inserido no meio do tubo (região amarela entre as placas horizontais), indicando que as partículas emitidas possuem carga. Com auxílio de um campo magnético (não simbolizado na imagem), pode-se calcular a razão entre a carga e a massa dessas partículas. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio Púbico. Quando realizou seu experimento, Thomson não sabia sobre a existência de elétrons, e seu propósito era justamente desvendar a natureza desses raios que geravam o ponto luminoso. Submetendo esse feixe a campos elétricos e magnéticos, chegou a duas conclusões principais, que merecem ênfase no contexto dessa sequência didática: O feixe é constituído de partículas cujas massas são cerca de 2000 vezes menor do que a massa do átomo mais leve (o hidrogênio)4. Ou seja, essas partículas não poderiam ser constituídas de quaisquer átomos conhecidos até então. Após repetir o experimento com cátodos de vários materiais (alumínio, chumbo, estanho, cobre e ferro) e obter sempre os mesmos resultados, Thomson concluiu que essas partículas devem estar contidas no interior de todos os átomos. Thomson descobriu, assim, o elétron: a primeira partícula subatômica a ser identificada. Outra discussão interessante a se explorar, no contexto dessa aula, é o uso de tubo de raios catódicos em televisores e monitores como um dos muitos exemplos de uma pesquisa a princípio puramente acadêmica, mas que deu origem a uma aplicação tecnológica que, poucas décadas depois, veio a se tornar parte da vida cotidiana em nossa sociedade. Outro exemplo famoso é o nascimento da World Wide Web no CERN5, rede criada inicialmente para compartilhar dados entre os cientistas trabalhando no laboratório e os espalhados no mundo, e que hoje faz parte da experiência cotidiana de todos que navegam na internet. 2.4. A interação eletromagnética A Física de Partículas versa não somente sobre os constituintes fundamentais da matéria, mas também sobre o modo como essas partículas interagem entre si, e como essas interações microscópicas dão origem à física macroscópica que observamos cotidianamente. Dentre as interações fundamentais da matéria, a interação eletromagnética se destaca por ser a mais simples de todas (veremos a justificativa para essa afirmação na seção 2.4.1), e também pela sua ubiquidade em nosso cotidiano: além das inúmeras aplicações tecnológicas, todas as “forças de contato” que experimentamos têm origem eletromagnética. O eletromagnetismo já é um tópico pertencente ao currículo usual de Física no ensino médio, de modo que a discussão apresentada aqui não foge à temática que já seria tratada em algum momento pelo(a) docente em sala de aula. Entretanto, a apresentação do tópico sob uma perspectiva motivada pela Física de Partículas tem certas vantagens, por possibilitar uma melhor compreensão sobre o comportamento dessa interação, além de induzir uma conexão natural entre física clássica e moderna. 2.4.1. Semelhanças e diferenças entre eletromagnetismo e gravitação A lei de força da interação entre duas partículas estáticas eletricamente carregadas (Lei de Coulomb) tem importantes semelhanças e diferenças frente à lei de atração gravitacional de Newton (vide Figura 2), e uma discussão aprofundada sobre as causas dessas (dis)similitudes abre inúmeras possibilidades de discussões em sala de aula, todas ricas em conteúdo físico, algumas propícias ao desenvolvimento da intuição dos estudantes, e ainda outras que levam a questões profundas que continuam em aberto na Física de Partículas. Figura 2 Dois elétrons sob a ação da atração gravitacional F→g, devido a suas massas me, e da repulsão eletrostática F→e⁢l devido a suas cargas −e. A semelhança é óbvia: ambas leis de força seguem o padrão (1) força = constante × (produto de cargas) (distância) 2 . Por que isso ocorre? O produto das cargas tem que aparecer para que a terceira lei de Newton seja satisfeita6: a força agindo sobre A devido a B deve ser proporcional7 à carga de A, e deve ter mesma magnitude que a força em B devido a A, que por sua vez é proporcional à carga de B. A constante aparece devido à escolha de unidades. Por exemplo, em unidades Gaussianas, a constante da Lei de Coulomb é igual a 1. A física mais interessante está no comportamento ∼1/r2 dessas forças, que merece uma discussão mais aprofundada e cuidadosa com os(as) alunos(as). Em última instância, a Lei de Coulomb tem essa forma porque o campo eletromagnético/o fóton/a luz não possui carga nem massa. Para explicar essa afirmação, deve-se primeiramente introduzir o conceito de campo elétrico, incluindo sua manifestação visual em termos de linhas de campo e como as cargas elétricas constituem fontes e sumidouros dessas linhas8. A partir daí, segue-se que: Como o próprio campo não carrega a carga com a qual ele interage (i.e. o campo eletromagnético não é autointeragente), a única fonte de linhas de campo é a matéria, que é o enunciado da Lei de Gauss, (2) ∇ ⋅ E → ⏟ fonte de campo ∼ ρ ⏟ carga , expressa ilustrativamente na Figura 3(a). Por isso, o fluxo de linhas de campo através de uma superfície fechada englobando a carga é sempre constante, pois não há novas linhas de campo surgindo no espaço entre a carga e a superfície. Aqui, uma analogia com um fluido pode ser evocada: se interpretarmos a carga central na Figura 3(a) como uma fonte de água em um chafariz, Figura 3(b), o fluxo de água atravessando as circunferências pontilhadas em um determinado instante é sempre igual ao fluxo de água jorrando da fonte, contanto que não haja novas fontes ou sumidouros de água no meio do percurso. Portanto a quantidade de água que atravessa as circunferências pontilhadas, por unidade de comprimento dessa circunferência, decresce com a distância à fonte como ∼1/2πr. Ou seja, se temos em nossas mãos um copo, e queremos enchê-lo com a água escorrendo através da borda do chafariz, o tempo necessário para encher o copo variará com o inverso da distância da borda à fonte. Retornando ao caso eletromagnético de interesse, em que as linhas de campo se espalham por todo o espaço tridimensional, o fluxo dessas linhas de campo é constante sobre qualquer esfera de raio r, de modo que a densidade de linhas de campo (que corresponde à intensidade do campo) decai com a área dessa esfera, E∼1/4πr2. Pelo mesmo argumento, podemos identificar como seria a Lei de Coulomb em espaços de d-dimensões: E∼1/rd−1 (o volume de uma esfera d-dimensional é ∼rd, e sua área é ∼rd−1). Figura 3 (a) Linhas de campo elétrico geradas por uma carga pontual. O número de linhas atravessando uma superfície fechada é sempre constante, o que significa que a densidade de linhas diminui com a distância. Para um espaço tridimensional, a redução é ∼1/r2. (b) Toda a água que emana da fonte escorre através da borda do chafariz. A quantidade de água que atravessa uma unidade de comprimento desse perímetro varia com o inverso da distância da borda à fonte, ∼1/r. Fonte: Domínio Público. Caso o campo eletromagnético portasse carga elétrica, as próprias linhas de campo seriam fonte de novas linhas de campo, e o fluxo não seria constante, invalidando o argumento acima. Mais ainda: o fato de o campo eletromagnético não ser autointeragente é também a causa da linearidade das equações de Maxwell, e do princípio da superposição em particular. É fácil entender por que: os campos produzidos por duas cargas se propagam no espaço sem interagirem entre si e, portanto, sem que a informação que carregavam inicialmente seja modificada durante o percurso. O campo resultante é, portanto, simplesmente a soma dos campos produzidos por cada carga. Note que, com essa discussão, o(a) estudante de ensino médio é apresentado, de maneira muito clara e intuitiva, a uma das leis de Maxwell do eletromagnetismo e suas implicações. Expande-se, assim, o entendimento do(a) estudante sobre fenômenos eletromagnéticos para além de meras memorizações de leis de forças e atividades operacionais puramente mecânicas. A dependência da lei de força com a massa do campo é menos trivial, por se tratar de um aspecto quântico, mas possivelmente interessante mencionar (principalmente para aulas posteriores, quando se discutir interações nucleares forte e fraca). Caso os fótons tivessem massa m, o potencial eletrostático teria a forma de um potencial de Yukawa, (3)VYukawa ∼e-m⁢rr, correspondendo a uma força que decai muito mais rapidamente do que 1/r2, tendo um curto alcance efetivo, ref∼1/m. O fato de o fóton ser não-massivo é responsável pelo longo alcance da interação eletromagnética, bem como pelo fato de se propagar à máxima velocidade permitida para a troca de informações na Natureza: a velocidade da luz no vácuo. E a gravitação? O campo gravitacional também não possui massa – quer dizer, o gráviton9, que é a partícula associada à propagação do campo gravitacional, tem massa nula –, o que explica por que essa interação é de longo alcance, efetiva a distâncias em escala cosmológica (e também se propaga no vácuo à velocidade da luz). Mais ainda, na gravitação de Newton apenas as massas agem como fonte de gravitação, e portanto o campo gravitacional newtoniano não interage gravitacionalmente (i.e. não é autointeragente), o que implica no comportamento ∼1/r2, como vimos acima. Entretanto, hoje se sabe que a teoria newtoniana não descreve corretamente todos os fenômenos gravitacionais, e é, em última instância, suplantada pela teoria da relatividade geral de Einstein. Nessa teoria, não só a massa dos corpos é fonte de campo gravitacional, mas toda e qualquer forma de energia e momento. Logo, a energia contida no campo gravitacional também gravita. Por isso as equações da relatividade geral são altamente não-lineares. Assim, a gravitação Newtoniana está contida na relatividade geral no limite em que se negligencia a autointeração dos grávitons. Segue-se, dessas discussões, que a interação eletromagnética é a interação mais simples da Natureza , pois é a única linear. Há, ainda, outras diferenças entre gravitação e eletromagnetismo. A interação gravitacional é muito mais fraca que a eletromagnética. De fato, comparando-se a razão entre as magnitudes das forças eletrostática e gravitacional agindo sobre dois elétrons, vem que (4)|F→e⁢lF→g|=k⁢e2G⁢me2∼1042. Esse fato é facilmente comprovado notando-se que a força eletrostática entre um balão de festa e os cabelos de uma pessoa é suficiente para superar a atração gravitacional do planeta inteiro, como se vê na Figura 4. Outra maneira de formular essa discrepância entre as duas interações é notar que, em um sistema de unidades com k = G = 1, a equação (4) nos diz que a carga elétrica e a massa de uma partícula possuem as mesmas unidades, mas para o elétron a carga é ∼1021 vezes maior que a massa. Discrepâncias similares se aplicam a todas as outras partículas carregadas que conhecemos, e é uma manifestação de que a gravidade é a interação mais fraca da natureza. Figura 4A força eletrostática devido a um balão de festa é suficiente para superar a atração gravitacional de todo o planeta e fazer o cabelo levantar. Fonte: adaptado de SWNS/Splash News. A razão para a existência dessa hierarquia entre essas interações é um dos maiores mistérios abertos da Física de Altas Energias, denominado o problema da hierarquia . Uma proposta de solução consiste em supor que existem dimensões espaciais extras (além das três usuais com as quais estamos familiarizados), e que em última instância todas as interações têm a mesma intensidade, mas que a geometria das dimensões extras faz com que a gravitação efetiva em três dimensões se torne muito mais fraca [35]. A interação eletromagnética pode ser atrativa ou repulsiva, enquanto a gravitação é sempre atrativa. Em um sistema de partículas carregadas, as forças eletromagnéticas dominam e fazem com que elas estejam em constante movimento, sempre se repelindo e se atraindo, até o momento em que a velocidade média das partículas (i.e. a temperatura do sistema) seja suficientemente baixa para que a atração entre cargas opostas seja capaz de prendê-las em órbita, formando um sistema ligado neutro. Esse processo ocorreu no Universo primordial, cerca de 380.000 anos após o Big Bang, numa transição de fase em que os prótons e elétrons do plasma primordial se combinaram em átomos – um processo chamado na literatura de Recombinação , e que dá origem à Radiação Cósmica de Fundo [36, 37, 38]. Importante se ressaltar esse argumento à turma, pois ilustra como a efetiva neutralidade do Universo não é simplesmente uma condição inicial arbitrária, mas decorre de um processo físico no Universo primordial. Apesar de a interação eletromagnética ser muito mais forte que a gravitacional, seus efeitos de atração e repulsão tendem a se cancelar em grandes escalas, enquanto os efeitos gravitacionais são sempre cumulativos. Assim, para sistemas formados de grandes quantidades de matéria (formando corpos celestes, galáxias, conglomerados e demais estruturas cósmicas), a gravitação se torna a interação mais relevante. De fato, um dos princípios básicos da Cosmologia moderna é que, em escalas cosmológicas, é necessário levar em conta apenas a interação gravitacional entre as estruturas interagentes. 2.4.2. Eletromagnetismo e forças de contato Outro ponto de importante menção é a ubiquidade da interação eletromagnética em fenômenos onde não se os reconhece a princípio. De seu curso de mecânica, o(a) estudante está familiarizado(a) com o conceito de gravitação e força peso atuando sobre um corpo, assim como outras formas de força que emergem do contato entre corpos (Figura 5), como a força normal, força de atrito, tensão em uma corda, forças atuantes em uma colisão, etc. Figura 5 Forças de contato. Em última instância, todas têm origem na repulsão eletromagnética. Fontes: os autores e adaptações de [39] e [40], respectivamente. Entretanto, em sentido estrito, forças de contato inexistem: todas essas forças têm origem eletromagnética, advindas da repulsão entre os elétrons dos átomos que constituem os corpos, como ilustrado na Figura 6. Apesar de a magnitude da força de repulsão entre elétrons ser tipicamente muito menor do que a força peso de um corpo macroscópico, a repulsão aumenta drasticamente à medida que as distâncias entre as superfícies diminuem, existindo uma distância não-nula para a qual a força peso e a repulsão eletrostática se equilibram. Figura 6 A força normal de uma mesa sobre um bloco é devida à repulsão entre os elétrons dos átomos das superfícies. A revelação de que nenhum objeto está em contato com outro, e que estamos sempre ‘‘flutuando’’ sobre as superfícies onde nos apoiamos, usualmente causa fascinação e entusiasmo em estudantes. Mas mais do que isso, é importante enfatizar esse ponto porque mostra que todas as forças que vivenciamos em nosso cotidiano -- atrito, forças normais, empuxo, etc. -- têm origem eletromagnética ou gravitacional, o que abre caminho à asserção futura de que existem poucas10 interações elementares na natureza. 2.5. Ondas eletromagnéticas e a natureza da luz O fato de o eletromagnetismo ser uma interação à distância [41] suscita uma questão importante: como partículas distantes sabem do comportamento das demais para reagirem de maneira a satisfazer as leis da eletrodinâmica? Como um elétron no receptor de um celular sabe que existem elétrons se movendo na antena emissora do sinal? Essa problemática tem relação direta com aplicações tecnológicas que permeiam o cotidiano dos(as) estudantes, que podem (e devem) ser usadas como motivação para essa aula. Perguntas do tipo “Como os telefones celulares enviam e recebem mensagens?”, ou “Como funcionam tecnologias wireless?” podem servir como problema inicial em uma aula investigativa. A discussão pode ser então guiada a uma ênfase no papel do campo eletromagnético enquanto mediador da interação e, mais importante, enquanto ente físico com dinâmica própria. As conclusões centrais que devem ser atingidas pelos(as) estudantes são: (i) a existência de uma carga elétrica gera um campo eletromagnético; (ii) caso o estado de movimento da carga seja alterado, o campo é modificado em seu entorno imediato, e essa modificação se propaga como uma onda; (iii) quando a onda atinge uma outra carga, transfere-lhe energia e momento, alterando seu estado de movimento, i.e. comunicando-lhe o movimento apropriado. Algumas simulações interativas visando auxiliar a compreensão desses efeitos podem ser encontradas em [42, 43] (ver Figuras 7 e 8). A conclusão final da investigação é que a existência de radiação eletromagnética garante que a causalidade seja preservada pela interação. Figura 7 Simulação interativa PhET Colorado: Irradiando Carga. Na imagem da esquerda, a carga está em repouso e as linhas de campo são radiais. À direita, a carga foi posta em movimento e as linhas se deformam para acompanhá-la. Essa deformação se propaga, constituindo a onda eletromagnética. Fonte: [42]. Figura 8 Simulação interativa PhET Colorado: Ondas de Rádio e Campos Eletromagnéticos. A simulação ilustra como a oscilação dos elétrons em uma antena transmissora gera uma onda eletromagnética, que se propaga até outra antena receptora, fazendo seus elétrons oscilarem à mesma frequência que os da fonte. Assim, o sinal é transmitido de um ponto a outro sem intermédio de fios. Nessa simulação o(a) estudante pode interagir movendo o elétron da antena com o mouse e produzindo seu próprio sinal. Fonte: [43]. O processo de emissão e recepção de ondas eletromagnéticas engloba, em uma só temática, todos os aspectos centrais da teoria eletromagnética. A etapa (i) oferece a oportunidade de se discutir a Lei de Gauss, a etapa (ii) possibilita discutir o fenômeno de indução de campos elétricos pela variação de campos magnéticos (e vice-versa), enquanto (iii) está associado à força de Lorentz sobre uma carga. Mais especificamente, pode-se apresentar as equações de Maxwell de maneira intuitiva e acessível a estudantes de ensino médio, substituindo-se as expressões matemáticas, envolvendo derivadas e integrais, por suas interpretações físicas em forma de sentenças enunciativas (cf. ref. [44], Vol. II, Cap. 1). Por exemplo, a Lei de Gauss, que rege a maneira como o campo elétrico é gerado por uma carga, foi apresentada na seção 2.4.1 em termos do fluxo das linhas de campo e como elas se originam e terminam em cargas elétricas. Especificamente, o fluxo do campo elétrico E→ sobre uma superfície é constante, proporcional à carga contida em seu interior, (5) fluxo de E → através de superfície fechada = carga contida no interior da superfície A partir daí, o docente pode estimular os(as) próprios(as) alunos(as) a enunciar a lei análoga para campos magnéticos, bastando dizer-lhes que nunca foram observadas cargas magnéticas (i.e. monopolos magnéticos). O lado direito deve ser, então, igualado a zero, concluindo-se que o fluxo de campo magnético B→ se anula sobre superfícies fechadas. “Qual é, então, a fonte de campos magnéticos?”. A questão gera a ocasião para apresentar as outras duas equações de Maxwell, (6) circulação de B → em torno de C = corrente elétrica através de S + variação temporal do fluxo de E → através de S (7) circulação de E → em torno de C = variação temporal do fluxo de ( – B → ) , através de S onde S é uma superfície arbitrária e C seu contorno, como ilustrado na Figura 9. Figura 9 Uma superfície arbitrária S delimitada por uma curva fechada C. Assim, a variação de um campo elétrico no tempo (por ex., devido à aceleração da partícula fonte desse campo) gera um campo magnético variável, que gera um campo elétrico variável, e assim sucessivamente. Com essa argumentação, pode-se mostrar aos estudantes o princípio básico por trás da propagação das ondas eletromagnéticas. A Figura 10 mostra um esquema simplificado do processo, mais intuitivo e de mais fácil apreensão. Figura 10 (a) Esquema do ciclo retroalimentativo que sustenta a propagação da onda eletromagnética. (b) Uma onda eletromagnética propagando-se na direção x consiste em oscilações dos campos elétrico e magnético no plano yz. No vácuo esses campos são sempre mutuamente perpendiculares. Note que não há componentes dos campos na direção de propagação: diz-se que a onda eletromagnética é uma onda transversal. Fonte: Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0. A introdução do conceito de ondas eletromagnéticas abre um leque de possibilidades ao docente, que pode abordar temáticas consideradas pelos(as) próprios(as) estudantes como altamente interessantes [3], tais como: o funcionamento de antenas de emissão e recepção, e como ondas eletromagnéticas estão presentes em tecnologias atuais de telecomunicação (celulares, transmissão de sinal wifi, etc.); propriedades fundamentais de ondas gerais, e de ondas eletromagnéticas em particular (frequência, comprimento de onda, amplitude); o espectro eletromagnético e aplicações tecnológicas e medicinais de cada uma de suas bandas (ondas de TV e rádio, microondas, infravermelho, raios solares ultravioleta, raios-X, etc.), ilustradas na Figura 11. O(A) docente pode, por exemplo, discutir como o microondas funciona enquanto uma cavidade ressonante: a onda eletromagnética faz as moléculas de água dos alimentos vibrarem, aumentando sua temperatura. Note que as regiões que se localizam nos nós da onda eletromagnética do aparelho não serão aquecidas. Por isso, o alimento deve ser posto a girar para que nenhum ponto fique parado no mesmo lugar da cavidade durante todo o período do processo de aquecimento do alimento. Pode-se usar a pipoca de microondas como um exemplo divertido para os(as) estudantes; Figura 11Algumas aplicações de diversas bandas do espectro eletromagnético, que podem ser exploradas em sala em um contexto CTSA. Fonte: Domínio Público. como atividade, o(a) docente pode pedir que os(as) estudantes pesquisem a banda de frequência em que funcionam os roteadores wifi a que têm acesso, e computem o comprimento de onda associado, localizando-o no espectro eletromagnético. Que outros aparelhos domésticos funcionam nessa mesma banda do espectro? O funcionamento de roteadores oferece uma interessante aplicação tecnológica cotidiana da teoria eletromagnética, e tem grande potencial de ser um tópico atraente para muitos(as) estudantes interessados nessa área de informática e/ou tecnologia da informação; interessante destacar, também, a natureza da luz enquanto onda eletromagnética, e alguns aspectos históricos a respeito dessa descoberta. A possibilidade de existência de tais ondas foi estabelecida por Maxwell em 1864, que também calculou a velocidade de propagação, encontrando um valor muito próximo à velocidade da luz (cujo valor já era conhecido na época), concluindo, então, que a luz é uma onda eletromagnética. Esse resultado tem um valor histórico inestimável: a partir de grandezas medidas em laboratório com o uso de circuitos elétricos, fios, voltímetros etc., Maxwell pôde extrair uma conclusão sobre a natureza da luz, um fenômeno que não parece ter qualquer relação com aqueles experimentos! A natureza ondulatória da luz já era conhecida desde que Young realizou seu experimento de fenda dupla em 1801. No entanto, não se conhecia ainda o substrato oscilante nessas ondas, cabendo a Maxwell tal identificação; pode-se, ainda, mencionar o espectro de corpo negro, ou, mais geralmente, o fato de que todo corpo emite radiação eletromagnética devido à sua temperatura. Esse espectro contém um pico, e a frequência no pico de emitância é proporcional à temperatura do corpo, o que significa que quanto mais quente for o corpo, mais “azulada” é a radiação emitida por ele. O(a) docente pode propor aos(às) estudantes interagirem com a simulação encontrada na ref. [45], que mostra como o espectro de emitância de um corpo varia com a temperatura, como na Figura 12. Essa dependência do pico de emitância com a temperatura é utilizada, por exemplo, para medir a temperatura de estrelas a partir do espectro de luz que elas emitem. A superfície do Sol está a uma temperatura de aproximadamente 5500 K, e seu espectro de emissão tem um pico justamente na região da luz visível, i.e. a maior parte da radiação emitida pelo Sol encontra-se na faixa que nós conseguimos enxergar. Isso não é uma coincidência, mas produto da seleção natural. O apêndice A.1 contém uma proposta de atividade interdisciplinar, a ser realizada com os(as) estudantes e potencialmente em conjunto com o(a) professor(a) da área de Biologia, explorando esse fato. A Figura 30 encontrada naquela seção ilustra o espectro de emitância solar sobreposto ao de um corpo negro ideal à temperatura 5500 K. Figura 12Imagem da simulação interativa PhET Colorado: Espectro de Corpo Negro. Fonte: [45]. A Figura 13 ilustra diversos aspectos do espectro eletromagnético, e pode ser extremamente útil ao(à) docente na elaboração de sua aula e das atividades a serem propostas relativas a essa temática. Figura 13 Diversos tipos de radiação eletromagnética, caracterizados por uma banda específica de frequência e comprimento de onda do espectro completo. A cada banda, atribui-se também um objeto cujo tamanho típico é da mesma ordem de magnitude do comprimento da onda correspondente: tratam-se dos menores objetos que podem ser distinguidos por meio dessas ondas. Por exemplo, microorganismos podem ser vistos sob um microscópio usual, funcionando à base de luz visível, mas para distinguir moléculas ou átomos é preciso fazer incidir radiação muito mais energética, de menor comprimento de onda. As frequências de cada banda são associadas, também, às cores da radiação correspondente, divididas em três regiões: o infravermelho, o espectro contínuo da luz visível, e o ultravioleta. Por fim, ilustra-se também a temperatura de um corpo cujo espectro de emissão termal é predominante na banda em questão. Fonte: Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0. 2.6. Dualidade onda-partícula A discussão da temática de ondas eletromagnéticas abre a possibilidade de se adentrar em temas de física moderna, como a teoria da relatividade restrita ou a dualidade onda-partícula em mecânica quântica. Embora ambos sejam de suma importância para a Física de Partículas, nesta sequência didática focamos no aspecto quântico visando a introdução do conceito de fóton. Para propostas didáticas visando o ensino de relatividade no ensino médio vide refs. [46, 47, 48]. A dualidade onda-partícula da luz pode ser introduzida de diversas maneiras. Invocando-se o experimento de Young da fenda dupla, pode-se, em um primeiro momento da aula, discutir as expectativas dos(as) alunos(as) quanto à imagem formada no aparato de incidência, quando o objeto incidente for uma partícula clássica (Figura 14) e quando for uma onda (para esse caso pode-se explorar, junto aos(às) alunos(as), a simulação interativa disponível em [49]). Em um segundo momento da aula, discute-se (ou realiza-se em sala) o experimento de Young, que detectou franjas de interferência para a luz, mostrando tratar-se de um fenômeno de natureza ondulatória. Posteriormente, discute-se o que ocorre quando se reduz suficientemente a intensidade do feixe luminoso, resultando nos padrões mostrados na Figura 15. As franjas são reveladas aos poucos, a partir de detecções de partículas pontuais, revelando assim o caráter corpuscular da luz (para imagens e vídeo ilustrativo que podem ser usados em sala de aula, consultar ref. [50]). Figura 14 Padrão esperado para um feixe de partículas clássicas lançadas contra uma tela com duas fendas. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Figura 15 Para partículas quânticas, o padrão de interferência é inicialmente imperceptível, mas emerge paulatinamente à medida que mais estatística é coletada pelo experimento. Fonte: Wikimedia Commons/Domínio público. A discussão do experimento da fenda dupla em sala de aula cria, também, uma excelente oportunidade de desmistificar a mecânica quântica, o que é especialmente importante levando-se em conta a quantidade de charlatães que usam os resultados não-intuitivos desse experimento para propor que a Física corrobora suas interpretações esotéricas do mundo. Mais especificamente, o surgimento de um padrão de interferência para um feixe de partículas pode ser explorado para se discutir a necessidade de se abandonar o conceito de trajetórias bem definidas (que deveria levar ao padrão dado pela Figura 14), e, consequentemente, a necessidade de se reformular a mecânica. Pode-se usar esse gancho para discutir o princípio da incerteza de Heisenberg, e como esse princípio explica o fenômeno de destruição do padrão de interferência quando um observador detecta por qual fenda a partícula passou (cf. ref. [44], Vol. III, Seção 1.8). Também é essencial esclarecer aos estudantes que não se deve pensar em partículas quânticas como “bolinhas” movendo-se classicamente. A propósito, fazer uso de analogias com a mecânica clássica geralmente leva a uma confusão de conceitos [51]. Os fótons devem ser vistos como pacotes de energia e momento. O mesmo vale para todas as partículas elementares. Isso ficará mais claro quando se apresentar a definição de partícula no paradigma de Teorias Quânticas de Campos, como a Eletrodinâmica Quântica, que será apresentada na seção seguinte. Outra evidência em favor do caráter corpuscular da luz é o efeito fotoelétrico/fotovoltaico. Por constituir o princípio básico do funcionamento de células fotovoltaicas, essa temática pode ser abordada em um contexto de aula investigativa [52] ou, ainda, em diálogo mais amplo com outras disciplinas escolares em contexto CTSA (Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente) [53]. Uma proposta de tal atividade encontra-se delineada no apêndice A.2. Ademais, a discussão do efeito fotoelétrico permite a apresentação da relação de Einstein para a energia dos “pacotes de onda eletromagnética”, (8) ( energia da partícula ) = ( constante ) × ( frequência da onda associada ) , relação que quantifica a dualidade ao associar uma grandeza tipicamente ligada a partículas a uma propriedade ondulatória. Seja qual for o caminho escolhido, o objetivo a se atingir é introduzir o conceito de fótons enquanto partículas da radiação eletromagnética. 2.7. Eletrodinâmica Quântica 2.7.1. O campo eletromagnético quântico A introdução do conceito de fóton implica, em um primeiro momento, em uma ambiguidade na descrição da radiação eletromagnética, que passa a ser ao mesmo tempo tratada como oscilação de um campo clássico e como ente com propriedades quânticas11. Como o caráter quântico dos fótons poderia emergir da propagação de um campo clássico? Essa inconsistência aponta para a necessidade de se quantizar o campo eletromagnético, i.e. descrevê-lo inteiramente de acordo com o paradigma quântico. A teoria quântica que descreve a interação entre partículas carregadas (por ex. elétrons) e o campo eletromagnético quantizado é chamada de Eletrodinâmica Quântica (Quantum Electrodynamics ou QED em inglês). Na QED, o campo eletromagnético passa a ser visto como uma ‘‘superfície’’ tridimensional12 vibratória que preenche todo o volume do espaço, análoga à superfície de um instrumento musical de percussão, como a pele de um tambor. À parte da dimensionalidade -- o campo preenche todo o espaço, enquanto a pele percussiva é plana, bidimensional --, a única (e crucial) distinção se deve ao caráter clássico das vibrações do instrumento musical e ao caráter quântico do campo quantizado13. A partir dessa analogia, e da compreensão de suas limitações, pode-se entender conceitos fundamentais da QED (e de Teorias Quânticas de Campos em geral). Primeiramente, assim como a superfície percussiva possui um estado em que não há quaisquer vibrações e nenhum som é emitido, também o campo quântico possui um estado fundamental, que é chamado de estado de vácuo (a motivação para essa nomenclatura ficará clara a seguir). No entanto, note que, por se tratar de um objeto quântico, não é possível afirmar que o campo no estado fundamental está em repouso. O princípio da incerteza garante que, mesmo no estado fundamental, há vibrações do campo, associadas à chamada “energia de ponto-zero”. Isso significa que o vácuo quântico tem energia, fato que tem consequências observáveis e aplicações práticas/tecnológicas, tais como: o efeito Casimir, que consiste na atração de duas placas metálicas, eletricamente neutras, imersas no vácuo. A atração se deve à modificação da energia do vácuo quântico na presença das placas. Mais especificamente, quanto mais próximas as placas, menor a energia do vácuo na região por elas limitadas; o processo de emissão espontânea de um fóton por um átomo no estado excitado, que dá origem aos espectros atômicos. No formalismo de Schrödinger da mecânica quântica, todas as camadas eletrônicas do átomo correspondem a estados estacionários, e a probabilidade de transição entre eles é nula. A transição do elétron entre camadas, e a consequente emissão de um fóton, só ocorre devido à interação do elétron com o vácuo eletromagnético quântico; por possuir energia, a relatividade geral de Einstein garante que o vácuo quântico gravita . Essa energia do vácuo age como uma constante cosmológica, contribuindo para a expansão acelerada do Universo. Entretanto, quando se compara a previsão teórica para a energia do vácuo quântico com o valor da constante cosmológica medido com base em observações da expansão do Universo, há uma discrepância de 120 ordens de magnitude! Ou seja, trata-se da pior previsão da história da Física! Esse é o chamado problema da constante cosmológica, ainda sem solução [54, 55]. Além do estado fundamental, uma superfície vibratória pode, obviamente, oscilar de diversas maneiras. Dentre elas, destacam-se os chamados modos normais de vibração, associados a ondas estacionárias, em que todos os pontos da superfície oscilam com a mesma frequência, como exemplificado ilustrativamente na Figura 16. Em um instrumento musical, um modo normal está associado a uma nota musical específica: quando se ataca a pele de um tambor, ela vibra em um modo normal e emite som da frequência para a qual o instrumento foi previamente afinado. No caso de um campo quântico, um modo normal de vibração corresponde a uma partícula de energia e momento definidos. Note o caráter explicitamente dual dessa descrição, que traça paralelos diretos entre partículas com energia definida e modos de oscilação de determinada frequência. O fato de a vibração não estar localizada em nenhuma região, mas ocorrer em todo o espaço ocupado pelo campo, como ilustrado na Figura 16, está de acordo com o esperado pelo princípio da incerteza de Heisenberg quando aplicado a uma partícula cujo momento linear é conhecido precisamente. Figura 16 Momentos distintos de um ciclo oscilatório associado a um modo normal de vibração para uma superfície bidimensional. No caso de um instrumento de percussão, esse padrão corresponderia a uma nota musical (i.e. uma frequência sonora) específica. Para um campo quântico, corresponde a uma partícula com energia e momento específicos. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Essa interpretação de partículas como excitações do campo em modos normais de vibração justifica, ainda, a nomenclatura de vácuo para o estado fundamental, por corresponder ao caso em que o número de partículas se anula. Por fim, enfatiza-se que a mesma interpretação se aplica a partículas materiais: o elétron também é um modo normal de vibração de um campo fundamental, que podemos chamar de campo eletrônico ou campo do elétron. Isso explica, aliás, por que todos elétrons do Universo são idênticos: todos são vibrações de um único campo fundamental. O Modelo Padrão da Física de Partículas, embasado no formalismo de Teoria Quântica de Campos, é ao mesmo tempo uma teoria de partículas e uma teoria de interação entre campos. 2.7.2. Fótons virtuais como mediadoresda interação eletromagnética Em discussões anteriores (vide seções 2.4.2 e 2.5), foi apresentada a ideia de que a matéria não interage por contato direto entre seus constituintes, mas à distância, mediada por campos de interação, como o campo eletromagnético. Sob a perspectiva da QED, isso se traduz como a ausência de autointeração do campo de elétrons. Ao invés disso, a interação direta do campo eletrônico se dá com outro(s) campo(s), e a repulsão entre dois elétrons nada mais é do que um efeito colateral da interação de ambos com um campo intermediário. Esse processo de interação na QED está representado esquematicamente na Figura 17. Os dois picos mais protuberantes, de cor laranja, representam elétrons, i.e. excitações do campo eletrônico14, e o campo de fundo, de cor verde, corresponde ao campo eletromagnético. Devido à interação entre os dois campos, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz uma “nuvem” de excitações do campo eletromagnético ao seu redor, como na Figura 17(a). À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético (b), causando a mútua repulsão (c). Figura 17 (a) Dois elétrons (picos mais protuberantes, de cor laranja) afastados um do outro. Devido à interação entre o campo de elétrons e o campo eletromagnético, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz excitações do campo fotônico ao seu redor. (b) À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético, causando a mútua repulsão. (c) Elétrons novamente distantes após a interação. Dá-se o nome de fóton virtual a qualquer excitação do campo eletromagnético que não corresponde a um modo normal de vibração, tais como as excitações do campo eletromagnético ilustradas na Figura 17. Um fóton virtual é, portanto, um estado não-estacionário, não necessariamente associado à propagação de uma onda, e portanto bastante diferente de um fóton real, como ficará ainda mais claro a seguir. Entretanto, justifica-se chamá-la de fóton por se tratar de uma vibração do campo eletromagnético, e, para distinguí-la de um fóton observável, usa-se essa adjetivação de virtual15. Note que há fótons virtuais sendo trocados em todas as três etapas da interação, representados pelas pequenas perturbações do campo eletromagnético entre os dois elétrons nas Figuras 17(a), (b) e (c). Mas a contribuição do fóton virtual ao espalhamento é mais significativa quando os elétrons estão mais próximos um do outro, como representado na Figura 17(b). Essa discussão será retomada em mais detalhes na seção 2.7.3 a seguir. Cabe ressaltar que, apesar de termos definido anteriormente um elétron como uma excitação do campo eletrônico, o que realmente se observa é o conjunto de excitações do campo eletrônico e do campo eletromagnético ao seu redor: diz-se que o elétron nunca é visto “nu”, mas está sempre “vestido” de uma nuvem de partículas virtuais. Esse fato será novamente discutido e melhor explorado na seção 2.9 a seguir. Ressalta-se, ainda, que a Figura 17 é apenas uma representação esquemática da interação, uma alusão semiclássica a um processo que é fundamentalmente quântico. O simples fato de desenhar as oscilações do campo pressupõe que saibamos a posição de cada ponto dessa superfície no espaço, em desacordo com o princípio da incerteza. Entretanto, ilustrar um campo quântico é impossível, e a representação acima, apesar de incompleta, fornece uma boa intuição sobre o processo de interação entre (excitações de) campos. Ainda relacionado às limitações da figura, note que, assim como a presença do elétron causa excitações do campo eletromagnético, estes fótons virtuais também induzem excitações do campo eletrônico, que induzem outras oscilações fotônicas, e assim sucessivamente. Ou seja, em torno das oscilações do campo eletromagnético dever-se-ia também ilustrar oscilações do campo eletrônico, e em torno dessas ilustrar outras excitações do campo eletromagnético, etc. A Figura 17 representa, portanto, apenas a primeira ordem de uma série de outros processos que poderiam ocorrer na presença de dois elétrons. Como se trata de um sistema quântico, não é possível dizer qual desses processos realmente ocorre: o resultado da interação é uma superposição quântica de todas essas possibilidades. Aqui o(a) docente pode fazer uma alusão direta ao experimento da fenda dupla, em que não é possível afirmar por qual fenda a partícula passa: a interferência é resultado da superposição das duas possibilidades de trajetórias, cada uma passando por uma fenda. 2.7.3. Diagramas de Feynman Outra maneira de representar a interação entre elétrons é através de um diagrama de Feynman, como na Figura 18. Aqui, o eixo vertical representa a dimensão espacial, e o eixo horizontal é a passagem do tempo. Representa-se, aqui, o mesmo processo ilustrado na Figura 17 anterior: dois elétrons interagindo pela troca de um fóton virtual. Entretanto, não é correto ler esse diagrama como se um dos elétrons (digamos, o elétron da parte superior da figura) tivesse emitido o fóton, e o outro (da parte inferior) o tivesse absorvido. Pois o processo oposto, em que o elétron inferior emitiu e o superior absorveu o fóton, é igualmente possível. E, se há dois processos intermediários possíveis, a mecânica quântica garante que a contribuição total aos processos físicos é a soma das contribuições dos processos intermediários. A Figura 19 mostra que o diagrama de Feynman da Figura 18 representa a soma (i.e. a superposição quântica) das duas ordenações temporais possíveis para a emissão e absorção do fóton intermediário [57, 58, 59]. Ou seja, a Figura 18 ilustra apenas que, em primeira ordem, esse processo ocorre mediante a troca de um fóton virtual, sem representar como esse processo de fato ocorre no espaço-tempo. Figura 18 Diagrama de Feynman ilustrando a interação entre dois elétrons mediada pela troca de um fóton virtual. Os pontos que conectam os elétrons ao fóton são chamados de vértices do diagrama. Figura 19 A interação entre elétrons pela troca de um fóton virtual deve levar em conta as duas possibilidades de ordenamento temporal, em que um elétron emite e o outro absorve o fóton trocado. Para compreender melhor a diferença entre fótons reais e virtuais, consideremos o balanço de energia-momento em um ponto de “emissão/absorção” do fóton no diagrama, i.e. em um de seus vértices. Sejam (E,p→) e (E′,p→′) a energia e momento linear de um elétron da Figura 18 (por ex., o elétron da parte superior do diagrama) antes e depois da interação (i.e. à esquerda e à direita do vértice, respectivamente), e sejam (Eγ,p→γ) a energia e momento do fóton virtual. A conservação de energia e momento na absorção/emissão do fóton impõe que (9) E = E γ + E ′ , (10) p → = p → γ + p → ′ , logo (11) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = ( E - E ′ ) 2 - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 . Como um fóton tem massa mγ = 0, esperar-se-ia, da relação relativística de energia-momento16, que (12) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = m γ 2 ⁢ c 4 = 0 ⁢ ? No entanto, em um espalhamento de elétrons não há nada que vincule E a E′ ou p→ a p→′ a priori17 (tratam-se de variáveis livres do problema), de maneira que, em geral, o lado direito da equação (11) não se anula. Isso significa que um fóton virtual em geral não satisfaz a relação relativística de energia-momento. Ou, dito de outra forma, é como se a partícula virtual pudesse ter massa diferente da massa observada para excitações normais do campo em questão. Essa é outra importante distinção entre partículas reais e virtuais. Essa violação da equação (12) não é um problema, contanto que esteja dentro da margem de incerteza associada à energia e ao momento do fóton virtual. Pelo princípio da incerteza, a precisão com que se pode determinar a energia de um sistema (ΔE) é limitada pelo tempo disponível para ele interagir com um possível aparato medidor (Δt), assim como a incerteza em seu momento (Δp) cresce à medida que se reduz a região do espaço a que ele esteja restrito (Δx). Isso pode ser expresso matematicamente por meio das famosas relações de incerteza (13) Δ ⁢ E ⁢ Δ ⁢ t ≥ ℏ 2 , Δ ⁢ p ⁢ Δ ⁢ x ≥ ℏ 2 , com ℏ ≈ 1.05×10−34 kg m2/s a constante de Planck reduzida18. Assim, quanto menor for o tempo de vida de uma excitação de um campo, e/ou quanto menor for seu alcance espacial, maior será a incerteza associada à sua energia-momento, e portanto maior será a margem para uma aparente violação da equação (12). Mais especificamente, o espalhamento descrito pelo diagrama da Figura 18 é mediado por fótons de todas as possíveis virtualidades, e a interação final resulta da soma de todas as contribuições. Entretanto, para grandes distâncias entre as partículas interagentes, a sobreposição dos fótons virtuais resulta em uma interferência destrutiva (exatamente no sentido de interferência de ondas), de modo que quanto maior a virtualidade dos fótons mediadores, menores serão seus impactos no resultado final da interação. Assim, a grandes distâncias, apenas fótons de baixa virtualidade contribuem significativamente. Reciprocamente, a menores distâncias, a contribuição dos fótons de maior virtualidade também se torna relevante. Uma discussão muito detalhada desse efeito, ao mesmo tempo em que é acessível ao público geral, pode ser encontrada na ref. [57], cuja leitura é fortemente recomendada para uma maior compreensão da QED e um complemento da discussão aqui apresentada. O argumento exposto acima nos fornece uma maneira de compreender o comportamento da Lei de Coulomb sob uma perspectiva microscópica da interação eletromagnética. Consideremos o caso de um elétron espalhado elasticamente por uma carga muito mais pesada, e que portanto permanece aproximadamente estática, como esquematizado na Figura 20. Um exemplo é um experimento de difração de elétrons, ao estilo dos experimentos de Rutherford-Geiger-Marsden que levaram à descoberta do núcleo atômico19. Nesse caso, a energia cinética do elétron não varia (por se tratar de espalhamento elástico) e a equação (11) fica (14) virtualidade ≡ E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 = - 4 ⁢ | p → | 2 ⁢ c 2 ⁢ sin 2 ⁡ θ 2 , que define o “grau de virtualidade” do fóton através da medida de violação da relação relativística de energia-momento. Nessa equação, θ é o ângulo entre o feixe espalhado e a direção do feixe incidente (vide legenda da Figura 20), que varia entre θ = 0 (quando não há desvio) e θ = π (quando o feixe volta na mesma direção e sentido oposto ao incidente). Figura 20 Diagrama de Feynman para um espalhamento elástico por uma carga estática. Define-se o ângulo θ como o ângulo entre o momento final (p→′) e inicial do elétron (p→), medindo o desvio relativamente à direção do feixe incidente. Ele não aparece na figura, pois um diagrama de Feynman representa apenas uma esquematização do processo que contribui para a interação, e não ilustra como o espalhamento ocorre, de fato, no espaço-tempo. Veja comentário no início da seção 2.7.3, bem como a Figura 19. Nota-se que, quanto maior o ângulo θ de espalhamento relativo ao feixe incidente (i.e. quanto maior for a alteração do estado de movimento do elétron devido à interação), maior é a virtualidade, e portanto, pelo argumento anterior, menor deve ser o alcance dessa interação. Ou seja, o elétron só é desviado significativamente de sua trajetória incidente se ele se aproximar muito da outra carga. Por outro lado, um espalhamento em que o momento linear do elétron pouco varia, p→≈p→′ e θ ≈ 0, está associado a fótons que satisfazem a relação energia-momento em boa aproximação, e portanto podem mediar interações a longas distâncias. Posto de outra forma: quanto mais o elétron se aproxima de outra carga, maior poderá ser a virtualidade dos fótons trocados entre elas, e maior será o desvio da trajetória do elétron; ao passo que, se as cargas estão distantes, os fótons devem satisfazer a equação (12) em boa aproximação, o que corresponde, pela equação (14), a um desvio pequeno de trajetória. Esse é justamente o comportamento clássico da interação eletrostática: quanto mais distantes as cargas, menor é a força e, consequentemente, menor a variação do momento linear da partícula teste. O argumento acima apresenta uma explicação para esse fenômeno em nível microscópico. É possível mostrar que a relação de virtualidade dada pela equação (14) dá origem a uma energia potencial de interação do tipo V(r)∼1/r, que é justamente a energia potencial associada à lei de Coulomb. Note, ainda, que todos os fótons que contribuem para a Lei de Coulomb são virtuais. Uma outra maneira de refrasear a argumentação acima é a seguinte. Um fóton real, não massivo, contém apenas duas possíveis polarizações, que são transversais à direção de propagação20. Por outro lado, a violação da equação (12) implica que um fóton virtual possui uma terceira polarização, dita longitudinal, que não está associada a um grau de liberdade que se propaga. De fato, é possível mostrar que esse grau de liberdade longitudinal atua como mensageiro da Lei de Coulomb [59]. Segue-se que quanto maior for a virtualidade do fóton, maior é a contribuição da polarização longitudinal, e mais intensa a interação Coulombiana, como concluímos acima. 2.8. Pósitrons: os antielétrons Na seção 2.7.1 acima vimos que, em uma teoria quântica relativística, o elétron é interpretado como uma excitação de um campo fundamental, que chamamos de “campo do elétron” ou “campo eletrônico”. Contudo, é possível mostrar que os postulados da relatividade restrita só são satisfeitos quando se considera que o campo eletrônico possui também um outro tipo de excitação, com a mesma massa do elétron mas carga oposta. Em outras palavras, uma teoria quântica relativística do elétron prevê, também, a existência de um antielétron! Como a carga dessa partícula é positiva, ela é chamada de pósitron. Figura 21 Representação esquemática do movimento de um pósitron, interpretado como o movimento de um elétron movendo-se “para trás no tempo”. O pósitron pode ser visto como uma “ausência de elétron” ou como um buraco nesta página em branco: à medida que o “buraco” se move para a direita, o espaço que ele antes ocupava passa a ser novamente branco, como o restante da página. Reduzir a ausência de carga negativa em uma determinada posição é equivalente a acrescentar uma carga negativa nesse ponto. Isso porque −(+ e) = −e. Assim, o pósitron movendo-se de 1 para 2 em t1→t2 corresponde a um elétron movendo-se de 2 para 1. Em t2→t3 o elétron se desloca de 3 para 2. Note que o elétron que saiu de 2 para 1 precisou, primeiro, sair de 3 para 2. Assim, efetivamente, o movimento do pósitron de 1→2→3 em t1→t2→t3 corresponde ao movimento de um elétron de 3→2→1 em t3→t2→t1. Pode-se entender a afirmação acima da seguinte maneira. Considere dois eventos que ocorrem nos pontos x=(t,x→) e x+Δ⁢x=(t+Δ⁢t,x→+Δ⁢x→) do espaço-tempo, e suponhamos que |Δ⁢x→|>c⁢Δ⁢t, ou seja, a distância espacial Δ⁢x→ é maior do que a distância que a luz pode percorrer no intervalo Δt. Isso significa que esses dois eventos são causalmente desconexos, pois só poderiam ser relacionados por um sinal superluminal, o que violaria os postulados da relatividade restrita. No entanto, quando calculamos a probabilidade de que um elétron se propague de x até x + Δx, constata-se que essa probabilidade não se anula! Assim, se o campo eletrônico propagasse informação somente via elétrons, haveria violação da causalidade: veríamos efeitos precedendo suas causas, o que é absurdo! Para preservar a causalidade, o campo eletrônico deve possuir, também, um segundo tipo de excitação, que são os chamados “pósitrons”: as antipartículas dos elétrons. A transmissão de informação entre dois pontos espaço-temporais envolve a propagação de um elétron de x a x + Δx bem como a propagação de um pósitron de x + Δx a x e, quando essas duas partículas têm exatamente a mesma massa, esses dois processos interferem destrutivamente21, garantindo a causalidade em nível quântico. Note que, nesse caso, a propagação de um elétron é exatamente cancelada pela de um pósitron se propagando no sentido oposto no espaço e no tempo. Esse é um dos aspectos da interpretação de Feynman-Stückelberg para as antipartículas, que garante que, sob todos os aspectos, as antipartículas se comportam como partículas viajando para trás no tempo. Isso explica porque partículas e antipartículas possuem a mesma massa: são, no fundo, a mesma partícula, ou, dito de outra forma, são excitações de um mesmo campo fundamental. Essa interpretação de antipartículas pode ser visualizada da seguinte maneira. Imagine um pósitron se propagando da esquerda para a direita, como ilustrado na Figura 21. Vamos denominar as três posições que o pósitron ocupa na figura como posições 1, 2 e 3, respectivamente. No instante t1 há uma carga elétrica positiva ocupando a posição 1, mais à esquerda da figura, enquanto as posições vizinhas correspondem a espaços vazios, portanto com carga nula. Na passagem do instante t1 para um instante t2 posterior, a carga + e é subtraída da posição 1 e acrescida na posição 2. Mas esse processo é totalmente análogo a subtrairmos uma carga −e de 2 (pois 0−(−e) = + e) e adicionarmos −e em 1 (pois −e + e = 0). Dito de outra forma, é como se a existência de um pósitron pudesse ser vista como a “ausência de um elétron”, ou como um “buraco”: à medida que o pósitron se move da esquerda para a direita, os espaços mais à direita vão se movendo para a esquerda, para preencher a lacuna do pósitron. A Figura 21 mostra, assim, como o movimento do pósitron da esquerda para a direita ao longo de t1→t2→t3 corresponde ao movimento de um elétron da direita para a esquerda ao longo de t3→t2→t1, portanto andando “para trás no tempo”. Esse mesmo argumento se aplica a qualquer campo quântico, de modo que toda partícula elementar possui uma antipartícula associada, e ambas partícula e antipartícula possuem a mesma massa, mas cargas opostas22. Refraseando em poucas palavras: antipartículas emergem inevitavelmente dos postulados da mecânica quântica e da relatividade restrita. Ou, ainda de outra forma: é impossível formular uma teoria quântica relativística de apenas uma partícula. Isso não é inesperado, visto que a relação relativística E = mc2 já aponta para a possibilidade de se converter energia em massa e, portanto, criar novas partículas a partir de uma energia inicial ou, reciprocamente, converter massa em energia através da aniquilação de partículas. Na QED, em que elétrons e pósitrons interagem com o campo eletromagnético, essa energia que cria partículas ou resulta de suas aniquilações está na forma de fótons. Ou seja, um par elétron-pósitron pode se aniquilar mutuamente, resultando em (dois ou mais) fótons no produto final, ou, reciprocamente, fótons podem produzir um par elétron-pósitron23. Esse processo está representado diagramaticamente pela Figura 22. Figura 22 Diagrama representando a aniquilação de um par elétron-pósitron em dois fótons. Note como a partícula mediadora é uma excitação do campo eletrônico. Esse caso ilustra como todas as partículas podem ser virtuais, e não apenas as mediadoras das interações. Historicamente, a existência dos pósitrons foi prevista por Dirac em 1928, mesmo antes de essas partículas terem sido observadas. Após ter formulado sua equação relativística para o elétron, Dirac notou que as soluções inevitavelmente continham, também, elétrons de energia negativa. O que parecia um problema foi transformado em um triunfo da teoria quando Dirac interpretou essas soluções como fenomenologicamente equivalentes a antielétrons, ou ‘‘elétrons’’ de carga positiva24. A corroboração experimental dessa predição foi feita por Anderson em 1932, ao observar partículas que, sob um campo magnético, curvavam-se como se tivessem a mesma massa do elétron, porém carga oposta. A história do pósitron é, portanto, um dos muitos exemplos de partículas preditas teoricamente antes de serem detectadas experimentalmente, o que ilustra o caráter altamente preditivo dessas teorias. A Figura 23 ilustra a criação de um par elétron-pósitron observada em uma câmara de bolhas. O experimento é desenhado para detectar o rastro de partículas carregadas. Por isso, o rastro do fóton não aparece, embora possa ser deduzido pelo vértice de criação do par. As partículas estão submetidas a um campo magnético perpendicular ao plano da figura, e, por possuírem mesma massa e cargas opostas, são curvadas em direções opostas, mas com trajetórias de aproximadamente mesmo raio. Figura 23 Criação de um par elétron-pósitron visualizado em uma câmara de bolhas. Fonte: CERN. Esse fenômeno de aniquilação de pares resultando em radiação eletromagnética tem aplicação prática na medicina, nos chamados PET scans (PET é a sigla em inglês para Tomografia por Emissão de Pósitrons). Trata-se de uma modalidade de obtenção de imagens e dados sobre o funcionamento metabólico do organismo, que funciona da seguinte maneira [60]. Primeiramente, modifica-se uma molécula usualmente metabolizada pelo organismo (por exemplo, glucose) substituindo-se um de seus átomos por um elemento radioativo que decai por emissão de pósitrons (usualmente 18F). Essa substância é inserida intravenosamente no paciente, e o organismo, confundindo-a com glucose, redireciona-a a órgão vitais, onde será metabolizada. Ali, o elemento radioativo emitirá um pósitron, que se aniquilará com um elétron do corpo do paciente, emitindo dois fótons de radiação γ que serão observados pelo aparelho detector, como na Figura 24. Por conservação de momento, os fótons sempre são emitidos em direções opostas. O aparelho calcula o intervalo de tempo entre a detecção de cada fóton, e determina, assim, o local de onde o pósitron foi emitido. Faz-se, assim, um mapeamento da atividade metabólica do organismo, podendo-se determinar a integridade do tecido cerebral, a existência de tumores, o funcionamento cardiovascular, dentre outras aplicações. Figura 24 Esquema de funcionamento de um aparelho de Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET scan). Fonte: adaptado de [61]. 2.9. A carga efetiva do elétron Outra consequência da conversão de fótons em pares elétron-pósitron (e vice-versa) é a chamada “polarização do vácuo”, que tem uma importante consequência fenomenológica: a constatação de que a carga elétrica do elétron não é constante! Para entender melhor essa afirmação, considere o diagrama ilustrado na Figura 25, em que a propagação de um fóton é temporariamente interrompida pela criação de um par elétron-pósitron, que posteriormente se aniquila e dá origem novamente a um fóton que continua a se propagar. Esse processo ilustra que, devido à interação com o campo eletrônico, um fóton não pode ser visto apenas como uma excitação do campo eletromagnético. Sua propagação é afetada por sua interação com elétrons e pósitrons. E isso, por sua vez, tem impacto sobre a maneira como esse fóton intermedeia a interação eletromagnética entre cargas elétricas. Figura 25 Diagrama de Feynman ilustrando um possível processo ocorrendo durante a propagação de um fóton, temporariamente interrompida pela criação e posterior aniquilação de um par elétron-pósitron. Este é um exemplo de um diagrama com um laço. De fato, considere a interação entre uma carga q incidindo contra uma carga Q, que por simplicidade suporemos ser muito mais pesada, de modo que ela permanece essencialmente imóvel ao longo do processo. O eletromagnetismo clássico diz que essa interação é regida pela lei de Coulomb, ou seja, a energia potencial de interação é (15) V Coulomb ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r , com k ≈ 9×109N m2/C2 a constante de Coulomb. Esse comportamento é exatamente o que se obtém na eletrodinâmica quântica a partir do diagrama da Figura 26(a), como já discutido na seção 2.7.3. Ou seja, a teoria eletromagnética clássica está contida na QED como primeira aproximação, ao ignorarmos todos diagramas que contenham laços. Mas há vários outros processos também presentes na QED, como o ilustrado na Figura 26(b), que contribuem para a mediação da interação entre as cargas, e que portanto fornecem “correções quânticas” à predição da teoria clássica. Esses processos estão sempre presentes, independentemente de a interação ser macroscópica ou não. Quer dizer, é impossível “desligarmos” esses processos tipicamente quânticos e observarmos apenas os processos clássicos. Sendo assim, por que esses efeitos quânticos não são comumente observados em nosso dia a dia? Por que a lei de Coulomb é uma boa aproximação para interações macroscópicas? E, ainda mais importante: o quão pequenas têm que ser as distâncias envolvidas para que esses efeitos quânticos se manifestem mais perceptivelmente? Podemos responder essa questão recorrendo novamente ao conceito de virtualidade das partículas intermediárias, elaborado na seção 2.7.3. Naquela ocasião, definimos o “grau de virtualidade” de uma partícula de energia E, momento p→ e massa m como uma medida do quanto ela viola a relação relativística de massa-energia-momento, i.e. (16) virtualidade ≡ E 2 - | p → | 2 ⁢ c 2 - m 2 ⁢ c 4 . Assim, tudo se passa como se a partícula virtual tivesse uma massa diferente da correspondente partícula real. Por exemplo, é como se um elétron virtual tivesse massa diferente de me ≈ 9.1×10−31 kg. Uma partícula real é aquela para a qual o lado direito da equação (16) se anula. Figura 26 Dois processos possíveis de mediação da interação entre as cargas q e Q. (a) Diagrama responsável pela interação descrita no eletromagnetismo clássico. (b) Uma correção quântica oriunda da interação mútua entre o fóton e as excitações do campo eletrônico, que altera a propagação do fóton. Por incluir uma modificação na propagação do fóton, esse diagrama induz uma modificação da lei de Coulomb para a interação entre partículas carregadas. Isso também pode ser interpretado como uma alteração na “carga elétrica efetiva” das partículas interagentes. Interações de longa distância são mediadas predominantemente por fótons de baixa virtualidade, o que por sua vez implica em uma alta virtualidade para o par elétron-pósitron da Figura 26(b)25. Isso faz com que os efeitos desse diagrama sejam atenuados em comparação com o da Figura 26(a). Assim, para grandes distâncias, a interação é regida essencialmente pela lei de Coulomb, como esperado. A que distâncias a contribuição do diagrama com laço se torna relevante? Ora, só existe uma escala de energia característica desse processo, que é a energia de repouso do par elétron-pósitron, 2mec2. Essa energia está naturalmente associada, na teoria quântica, a uma escala de distância da ordem26 (17) r ˜ = ℏ c 2 m e c 2 = ( constante de Planck ) × ( velocidade da luz ) ( energia de repouso do par e + e - ) ∼ 2 × 10 − 13 m . O fato de essa escala de distância, característica do processo da Figura 26(b), envolver a constante de Planck e a velocidade da luz mostra que se trata de um efeito caracteristicamente quântico e relativístico. Como já poderíamos antecipar, trata-se de uma escala de distância associada ao comprimento de onda de um fóton com energia 2mec2. Nota-se que r~ é cerca de duas ordens de magnitude menor do que o típico raio atômico, portanto as partículas interagentes devem estar de fato muito próximas para que a modificação na propagação do fóton pela criação de pares intermediários seja perceptível. Essas previsões são confirmadas quando computamos as correções quânticas ao potencial de Coulomb para r≳r~ devido ao diagrama da Figura 26(b), resultando no chamado potencial de Uehling, (18) V ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r ⁢ ( 1 + α 2 ⁢ π ⁢ ( r ~ r ) 3 / 2 ⁢ e - r / r ~ + … ) . Aqui, α ≈ 1/137 é uma constante que dita a intensidade da interação eletromagnética27, e r~ é a distância característica ao processo quântico da Figura 26(b) que dá origem a essa correção. É fácil ver que, para distâncias muito maiores do que essa escala característica, r≫r~, o potencial de Uehling da equação (18) reduz-se ao potencial de Coulomb, como esperado. As reticências indicam que existem ainda outras correções advindas de processos ainda mais complicados, e que só serão notáveis a distâncias ainda menores. Essas correções quânticas devido à criação de pares elétron-pósitron virtuais em torno de uma carga elétrica podem ser interpretadas fisicamente como oriundas de uma blindagem da carga devido a um efeito de polarização do vácuo, como ilustrado na Figura 27. Suponhamos, por exemplo, que a partícula ao centro da figura seja um elétron. Devido a processos como os da Figura 26(b), em torno desse elétron existe uma multitude de pares elétron-pósitron virtuais que atuam como minúsculos dipolos, efetivamente reduzindo a densidade de carga do elétron e, portanto, a intensidade de sua interação eletromagnética com outras cargas. Diz-se que o elétron está sempre “vestido”, de modo que, quando dois elétrons interagem, a densidade de carga efetiva da interação é a da nuvem ilustrada na Figura 27, e não do elétron “nu” (ilustrado no centro da figura). Porém, à medida que os elétrons são lançados um contra o outro a mais altas energias, a interação se dá a distâncias cada vez menores, até que eventualmente (quando a energia do centro de massa for Ec.m.≳2mec2) um elétron começa a penetrar a nuvem de polarização do outro e enxerga uma maior carga efetiva, o que faz com que o comportamento da interação seja diferente do Coulombiano. O “raio efetivo” dessa nuvem de polarização em torno do elétron é a escala característica r~ associada ao diagrama 26(b), como já discutido anteriormente. Figura 27 Efeito de blindagem da carga do elétron devido aos pares elétron-pósitron virtuais. Fonte: cortesia de © INFN, Laboratori Nazionali di Frascati [62]. Essa variação da carga efetiva do elétron com a distância é, de fato, observada. Em processos que envolvem interações entre elétrons a altas energias, tudo se passa como se a carga do elétron fosse de fato maior do que a que observamos em nosso mundo de baixas energias. Uma pergunta plausível, neste momento, seria: e qual é, então, a carga do elétron “nu”? A resposta é que a carga do elétron tende a infinito à medida que a distância entre as cargas interagentes diminui. É claro que uma carga infinita não faz sentido fisicamente, e esse comportamento já nos indica que, a partir de uma certa escala de energia, essa descrição do elétron e suas interações em termos de partículas e campos já não é mais aplicável. Isso é análogo ao caso em que a descrição contínua de um sólido ou fluido deixa de ser válida a partir de certas escalas de distância, quando a estrutura atômico-molecular da matéria se torna relevante, e novos graus de liberdade precisam ser incluídos na descrição do sistema. Questões sobre o que é e quais são as propriedades de um elétron ‘‘nu’’ não podem ainda ser resolvidas conclusivamente, e é mais provável que, a partir de uma determinada escala de energia, a pergunta sequer faça sentido, pois o próprio conceito de ‘‘elétron’’ como hoje o entendemos deve ser modificado28. Uma importante consequência desse efeito de polarização do vácuo é o deslocamento de Lamb entre os níveis de energia dos orbitais 2S1/2 e 2P1/2 do átomo de hidrogênio. Se a interação elétron-núcleo ocorresse apenas via diagrama da Figura 26(a), esses orbitais seriam degenerados (i.e. possuiriam a mesma energia). No entanto, experimentos cuidadosos mostraram que há uma transição entre eles, correspondendo à emissão de um fóton de frequência ∼1057 MHz. Na QED, esse valor é predito corretamente com grande precisão levando-se em conta que o elétron no orbital S é capaz de penetrar o núcleo atômico29 e, com isso, sentir os efeitos do termo anômalo do potencial de Uehling. Isso não ocorre no orbital P, para o qual o potencial eletromagnético é simplesmente o potencial de Coulomb. Portanto, o nível de energia do orbital S fica ligeiramente deslocado do orbital P, dando origem a uma possível transição eletrônica que é, de fato, observada. A obtenção do valor correto para o deslocamento Lamb por meio do formalismo da QED constitui ainda um dos maiores triunfos dessa teoria, e um forte indicativo de seu poder preditivo. apresentamos os momentos didáticos que podem ser explorados em sala de aula dentro desse contexto. Na seção 3 3. Análise das intervenções 3.1. O contexto: o local e os sujeitos O Núcleo Cosmo-ufes, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), iniciou, no ano de 2017, um projeto de extensão chamado “Universo na Escola” [63], em que professores e pesquisadores da Universidade são convidados a ministrar palestras a estudantes do ensino médio da rede pública do estado do Espírito Santo. As palestras versam sobre tópicos atuais de pesquisa em Física, visando complementar a formação dos estudantes e despertar-lhes o interesse pelas Ciências em geral e, em particular, pela Física. Elas são elaboradas como atividade complementar eletiva a estudantes nas escolas participantes e realizadas após o período regular de aulas. Os autores elaboraram uma sequência sobre Física de Partículas para ser inserida no contexto desse projeto e foi ministrada por um dos autores a um grupo de, no máximo, quatorze estudantes do Centro Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral (CEEMTI) Profa Maura Abaurre, no município de Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Os(as) estudantes compunham uma turma mista contemplando as 1a, 2a e 3a séries do ensino médio. Alguns participantes já integravam um grupo com interesse prévio em Física, que vinha sendo acompanhado e orientado durante o ano pelo professor-coordenador. No entanto, no decorrer da sequência outros(as) estudantes se juntaram ao grupo, frequentemente a convite dos demais. A organização local foi realizada pelo professor-coordenador da área de Física na escola. Os encontros da sequência como um todo tiveram duração aproximada de uma hora em aulas extra-classe durante os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro de 2019, totalizando uma carga horária de 10 horas de atividades de Física de Partículas desenvolvidas com os(as) discentes. Cabe ressaltar que os(as) estudantes não tinham qualquer obrigação curricular de frequentar as aulas das intervenções, que constituíam atividade voluntária. Ainda ressaltamos que a sequência didática foi elaborada em formato de aulas e não se deu no formato usual de palestras, como geralmente ocorre na perspectiva do projeto de extensão mencionado. 3.2. Das aulas Na seção 2 apresentamos propostas de momentos didáticos para introduzir a temática de Física de Partículas e da Eletrodinâmica Quântica em particular, organizados de maneira tal que promoveram o engajamento dos(as) estudantes desde o primeiro instante da intervenção e de modo que os conceitos relevantes à Física de Partículas eram construídos conjuntamente com os(as) discentes, conectando-se a seus conhecimentos prévios. Em nossa intervenção na CEEMTI Profa Maura Abaurre, o conteúdo apresentado neste trabalho, com foco na Eletrodinâmica Quântica, serviu como base para a primeira parte da sequência didática elaborada sobre Física de Partículas. Por sua vez, tal parte foi dividida em três aulas, ministradas nos dias 16, 26 e 30 de setembro do ano de 2019, cada uma com duração entre 55 e 65 minutos. Os principais tópicos abordados em sala, e as respectivas subseções discutidas mais detalhadamente acima, encontram-se listadas nas Tabelas 1, 2 e 3. Tabela 1 Os momentos da primeira aula da sequência. Aula 1: Introdução à Física de Partículas Seção Momento 2.1 Busca por conhecimentos prévios 1 Nós “enxergamos” as partículas? Debate sobre o funcionamento da Ciência 2 Apresentação do Modelo Padrão da Física de Partículas 3 Alguns fenômenos e aplicações da Física de Partículas 4 2.2 O contínuo e o vácuo: embate sobre a estrutura da matéria 5 Os “quatro elementos” de Empédocles e Aristóteles 6 Atomismo de Demócrito, Leucipo e Epicuro 7 Sucessos da hipótese atomista: – a eletrólise da água e as leis ponderais 8 – a lei dos gases ideais 9 – o movimento browniano 10 Ciência como ferramenta de empoderamento 11 2.3 A divisibilidade do “indivisível” 13 O experimento de Thomson e a descoberta do elétron 14 2.4.1 Atração e repulsão entre elétrons 15 Lei de Coulomb e Gravitação de Newton: semelhanças e diferenças 16 Por que percebemos mais a força gravitacional do que a força elétrica? 17 Tabela 2 Os momentos da segunda aula da sequência. Aula 2: A natureza da luz – Parte I Seção Momento 2.4.2 Breve revisão da aula anterior 1 Ubiquidade da interação eletromagnética 2 Gravitação e eletromagnetismo predominam no nosso dia a dia 3 2.5 Conhecimentos prévios sobre o conceito de campo 4 O campo elétrico e a lei de Coulomb 5 Linhas de campo elétrico, lei de Gauss e o comportamento 1/r2 6 Analogia com fluxo de água de um chafariz (seção 2.4.1 revisitada) 7 A inexistência de monopolos magnéticos 8 As equações de Maxwell e a unificaçãoequações de Maxwell do eletromagnetismo 9 Ondas eletromagnéticas 10 Simulações: geração e recepção de ondas eletromagnéticas 11 Aplicações: ondas de rádio, wifi e telecomunicações em geral 12 A luz é uma onda eletromagnética 13 O espectro eletromagnético 14 Fazendo pipoca no microondas 15 A.1 Espectro de emitância solar: evolução da visão humana 16 por que as plantas são verdes? 17 Tabela 3 Os momentos da terceira aula da sequência. Aula 3: A natureza da luz – Parte II Seção Momento 2.6 Breve revisão das aulas anteriores 1 O que são partículas? O que são ondas? 2 A dualidade onda-partícula e o fóton 3 O fóton não tem massa 4 O elétron também é onda-partícula 5 O microscópio eletrônico 6 Trajetórias em Mecânica Quântica 7 A relação de de Broglie e a constante de Planck 8 Constantes fundamentais da Natureza 9 2.7.3 Interação eletromagnética: troca de fótons e diagramas de Feynman 10 2.8 O pósitron: a antipartícula do elétron prevista por Dirac 11 O poder preditivo de uma teoria científica 12 Aniquilação matéria-antimatéria 13 Antipartículas como partículas se movendo para trás no tempo 14 A criação de um par elétron-pósitron 15 A relação massa-energia de Einstein 16 Raios-X e tomografia PET–scan: são perigosos? 17 É muito importante ressaltar que as aulas não foram meramente expositivas mas o professor adotou uma postura amplamente dialógica com os(as) alunos(as), a partir da qual diversos momentos citados nas tabelas emergiram organicamente da discussão com os(as) estudantes e das respostas às interrogações e propostas de debates. Por exemplo, durante o primeiro momento, em que os(as) estudantes se expressaram sobre seus conhecimentos prévios da temática, foram citadas “partículas subatômicas”, ao que o professor rebateu com a pergunta “E como sabemos que a matéria é composta por átomos?”. Essa questão suscitou uma breve discussão sobre como o conhecimento científico consiste de modelos, que devem fazer previsões testáveis e, mais importante, promover um empoderamento daqueles que portam tal conhecimento. Modelos são acatados ou suplantados de acordo com o nível de empoderamento que promovem. Essa situação foi, então, ilustrada na discussão dos sucessos empíricos da teoria atômica, enfatizando-se que não precisamos “enxergar” um átomo para saber que existem, bastando testar alguns “efeitos colaterais” preditos pelo modelo. No caso, as leis ponderais constituem forte evidência de que as reações químicas são meros rearranjos de átomos, e não metamorfoses de um contínuo. Outro exemplo são os momentos 8 e 9 da aula 2. Aqui, ao invés de simplesmente expor as equações de Maxwell, o professor perguntou aos alunos onde se encaixaria o magnetismo, que ainda não havia se manifestado a não ser no nome da interação eletromagnética. Já tendo discutido a lei de Gauss para campos elétricos, o professor propôs aos(às) alunos(as) formularem a lei análoga para campos magnéticos, informando-lhes apenas que monopolos magnéticos não existem. Isso estimulou uma interessante discussão sobre como equações matemáticas são expressões de fatos físicos em uma outra forma de linguagem. Houve certa dificuldade por parte dos(as) estudantes em construir essa formulação matemática da lei de Gauss para campos magnéticos, mas, guiados pelo professor, foi possível obter o resultado desejado. Seguiu-se, então, uma discussão subsequente sobre as outras leis de Maxwell, mas dessa vez expressas verbalmente de maneira qualitativa, conforme discutido na seção 2.4. Por fim, outro exemplo é o momento sobre “Trajetórias em Mecânica Quântica” na aula 3. Essa discussão emergiu de uma pergunta sobre a aparente contradição entre a inexistência de trajetórias na descrição quântica das partículas, e a observação de “trajetórias” no mundo clássico ou mesmo em experimentos de elétrons se movendo em câmaras de bolhas. O questionamento tornou-se uma oportunidade para discutir mais aprofundadamente o princípio da incerteza de Heisenberg nesse contexto, mostrando como a aparente trajetória do elétron não consiste em uma linha, mas em um tubo com espessura finita correspondendo à incerteza em sua localização. Uma análise detalhada das narrativas presentes em sala de aula, considerando as participações dos estudantes, as trocas com o professor e colegas, e diversas outras observações sobre todas as aulas da sequência didática será publicada em trabalho futuro dos autores. 3.3. Metodologia e coleta de dados O percurso metodológico adotado em nossa análise possui cunho qualitativo e caráter de estudo de caso. A pesquisa qualitativa considera relevante todos os sujeitos envolvidos, os significados e os pontos de vista atribuídos às situações a partir de dados coletados diretamente no ambiente natural de ação [64]. Obtivemos autorização da Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo e da diretoria da escola para tomar notas durante as intervenções sobre as interações entre os(as) discentes, seus níveis de interesse e de atenção, as perguntas realizadas, e demais reações. A coleta de dados ocorreu a partir de observações registradas durante as aulas em um diário de campo, contemplando aspectos descritivos e reflexivos dos sujeitos envolvidos, dos objetos, do espaço, das atividades e dos acontecimentos [64, 65], bem como reflexões posteriores às intervenções sobre relações entre tais aspectos, sobre atividades para casa e interações imediatamente antes e após as intervenções. A vivência com o local onde as ações se desenvolveram favoreceu uma metodologia de estudo de caso, ideal quando se pretende conhecer as perspectivas de significados dos sujeitos e a identificação de relações causais e padrões em contextos complexos que não permitem a utilização de levantamentos e experimentos [66]. Em nosso caso focamos na compreensão de conceitos-chave e suas relações com tecnologia, sociedade e meio-ambiente, avaliando o surgimento de indicadores de alfabetização científica e de engajamento ao longo das aulas, bem como relações entre esses indicadores. A fim de manter o sigilo e preservar as identidades dos participantes, adotamos nomes fictícios para os estudantes, fazendo referência a cientistas que atuaram na área da Física de Partículas e/ou contribuíram para o seu desenvolvimento. 3.4. Os indicadores de alfabetização científicae de engajamento As observações realizadas durante as intervenções incluíram a análise dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento demonstrados pelos estudantes para avaliar a viabilidade, a efetividade e as potencialidades da inclusão da temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio. Novamente ressaltamos que, para além do conteúdo abordado em sala de aula, as intervenções incorporaram uma postura amplamente dialógica do professor e acreditamos que essa combinação favoreceu a viabilidade e a efetividade de nossa proposta. 3.4.1. Indicadores de alfabetização científica Os indicadores de alfabetização científica utilizados se alicerçam na perspectiva freireana de alfabetização científica [67, 68], que destaca o(a) alfabetizado(a) cientificamente como aquele(a) que: compreende as relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente; compreende a natureza da Ciência; compreende a ética que envolve o trabalho de um(a) cientista; e possui conhecimentos básicos sobre as ciências para atuar no mundo. Em qualquer processo de ensino-aprendizagem que busca incorporar a alfabetização científica identificam-se indicadores que demonstram o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos associados ao trabalho de cientistas que, de acordo com a ref. [6], podem ser divididos em três blocos de ações: ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação; ações que estruturam o pensamento científico; ações que buscam o entendimento da situação analisada. No primeiro bloco de ações podem ser identificados os seguintes elementos: a seriação de informações, a organização de informações e a classificação de informações. O primeiro busca estabelecer as bases para uma pesquisa, um conjunto de dados, por exemplo. O segundo elemento aparece quando se discute a metodologia de uma pesquisa, um arranjo das informações. Já o terceiro elemento aparece quando se pretende hierarquizar as informações, estabelecendo relações entre elas. O segundo bloco de ações envolve as formas de organizar o pensamento, seja através do raciocínio lógico (relacionando a forma das ideias) e/ou do raciocínio proporcional (ideias e variáveis são relacionadas). Já o terceiro bloco contempla o maior número de elementos: o levantamento de hipóteses, o teste de hipóteses, a justificativa, a previsão e a explicação. O levantamento de hipóteses ocorre nos momentos em que suposições sobre determinada ideia ou assunto surgem, e o teste de hipóteses ocorre quando essas hipóteses são colocadas em xeque. Já a justificativa aparece quando ideias são incorporadas a uma linha de raciocínio que fortalecem uma determinada afirmação. A etapa da previsão ocorre quando se sugere que algum evento seja proveniente de alguma ideia e/ou fenômeno em análise. O último elemento nesse bloco de ações, a explicação, propõe reunir e relacionar todos os elementos anteriores: informações, ideias, hipóteses, previsões. Tais elementos do fazer científico foram considerados em nossa análise como indicadores de alfabetização científica e são resumidos na Tabela 4. Ressaltamos que cada um desses indicadores pode se manifestar independentemente dos outros em sala de aula. Além de serem independentes entre si podem, inclusive, aparecer concomitantemente. Tabela 4 Os indicadores de alfabetização científica a partir de elementos do fazer científico. Ação do fazer científico Indicadores de alfabetização científica (Elementos do fazer científico) Trabalho com os dados obtidos em umainvestigação Seriação de informaçõesOrganização de informaçõesClassificação de informações Estruturação dopensamento científico Raciocínio lógicoRaciocínio proporcional Entendimento dasituação analisada Levantamento de hipótesesTeste de hipótesesJustificativaPrevisãoExplicação 3.4.2. Indicadores de engajamento O engajamento escolar possui natureza multifacetada e é fruto da complexa interação social do sujeito com o ambiente escolar no qual está inserido, as situações que presencia e os outros sujeitos desse espaço. Além disso, engloba todo um processamento psicológico do sujeito com relação aos estímulos e quaisquer modificações que alterem esse ambiente e suas experiências. Dessa maneira, um engajamento positivo por parte dos estudantes está diretamente ligado à existência de estímulos e situações de aprendizagem favoráveis ao seu desenvolvimento. Considerar a incidência de indicadores referentes ao engajamento dos estudantes auxilia na compreensão das experiências no ambiente escolar, na preparação de atividades, e na compreensão da efetividade e das potencialidades do processo de ensino-aprendizagem adotado. A literatura sobre o assunto contempla três tipos de engajamento que se relacionam de forma dinâmica e não podem ser pensados como processos isolados: o comportamental, o emocional e o cognitivo [69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82]. Listamos na Tabela 5 os indicadores de engajamento que consideramos abaixo na apresentação de nossos resultados quanto à viabilidade, à efetividade e às potencialidades da inserção da temática de Física de Partículas em sala de aula do ensino médio. Tabela 5 Os indicadores de engajamento. Indicadores de engajamento Comportamental Emocional Cognitivo Participação nas aulas Emoção Investimento no aprendizado Participação/execuçãonas/das tarefas de sala Identificação coma escola e/ou colegas Autonomia Participação/execuçãonas/das tarefas de casa Identificação com o professor Desejo de ir além do básico Atribuição de valores à Físicae/ou às Ciências em geral Uso de estratégias 3.5. Resultados As incidências dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento serão apresentadas apenas para as três primeiras aulas da sequência, foco deste trabalho, relacionando-as com algumas observações da sequência como um todo. Uma elaboração detalhada e a análise aprofundada da incidência desses indicadores ao longo de toda a sequência será publicada separadamente. Os resultados referentes aos indicadores de alfabetização científica mais notáveis nas três primeiras aulas da sequência são apresentados na Figura 28. Entre as ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, a mais presente foi a de seriação de informações. Esse resultado é bastante natural considerando que o bloco de aulas em questão se refere às primeiras aulas da sequência, com diversos momentos em que os(as) alunos(as) buscavam estabelecer as informações bases, pois ou estabeleceram seus primeiros contatos com alguns dos tópicos ou relembraram conhecimentos prévios, ressignificando-os no contexto das discussões ocorridas em sala de aula. Com relação às ações que estruturam o pensamento científico, percebemos uma maior incidência do raciocínio proporcional. Isso se deu principalmente por conta do estímulo dado para o uso do raciocínio proporcional por parte dos(as) alunos(as) quando uma abordagem qualitativa sustentou a discussão sobre as semelhanças e diferenças da lei de Coulomb com a lei da gravitação universal de Newton na primeira aula. Também houve forte ocorrência desse indicador durante a discussão da segunda aula sobre a expressão da lei de Coulomb, quando foram analisados casos limites, como o de duas cargas elétricas colocadas muito próximas uma da outra. Já com relação às ações que buscam o entendimento da situação analisada, a maior incidência ficou por conta do levantamento de hipóteses, principalmente devido à primeira e à segunda aulas. Na primeira aula, esse indicador apareceu mais no momento de busca pelos conhecimentos prévios dos(as) estudantes, quando eles ficaram bem à vontade para responder algumas questões-chave propostas pelo docente, com o intuito de entender o que os(as) alunos(as) já conheciam sobre Física de Partículas, e também para discutirem entre si, complementando as falas dos(as) colegas com sugestões que avançavam a conversa inicial. Já na segunda aula, esse indicador apareceu com maior frequência nos momentos em que o professor estimulou os(as) alunos(as) a elaborarem uma lei de Gauss para o magnetismo após a discussão sobre a inexistência de monopolos magnéticos. Também houve alta incidência desse indicador no momento em que a simulação interativa com as ondas eletromagnéticas foi utilizada [43], bem como no momento em que conversaram sobre o que caracterizava uma onda. Figura 28 Indicadores de alfabetização científica observados nas intervenções realizadas. A legenda está ordenada no sentido anti-horário do gráfico a partir de “seriação de informações” (azul escuro, 20,07%). Na Figura 29 apresentamos a alta incidência dos indicadores de engajamento manifestados durante as intervenções, para cada um dos tipos de engajamento, e para os cinco estudantes mais presentes nas aulas da sequência de Física de Partículas como um todo. Estes serão denominados com os nomes fictícios Werner, Albert, Marie, Peter e Emmy, e estiveram presentes em 10, 10, 8, 7 e 6 das 10 aulas da sequência, respectivamente. Figura 29 Incidência dos indicadores de engajamento comportamental, emocional e cognitivo nas três primeiras aulas da sequência didática proposta para os cinco estudantes mais presentes nas intervenções. Note que o estudante Werner se destacou apresentando altas incidências em todos os indicadores. Optamos por reescalonar essas incidências no gráfico e, portanto, os números totais para esse estudante são obtidos a partir dos números apresentados multiplicados por um fator 3. As maiores incidências de engajamento comportamental e cognitivo partiram do estudante Werner. Marie, Peter e Emmy demonstraram incidências similares para cada um dos tipos de engajamento. Já Albert foi o que menos participou das três primeiras aulas entre os cinco alunos. No entanto, a partir da quarta aula (sobre física nuclear, que será abordada em futura publicação) este aluno revelará um enorme salto na incidência de engajamento comportamental. Além disso, a partir da quinta aula da sequência, ele também revelará um aumento significativo dos indicadores de engajamento emocional e, principalmente, de engajamento cognitivo. Considerando todas as aulas da sequência que serão abordadas em futuras publicações, observamos em Albert uma significativa evolução nas incidências de todos os tipos de engajamento e, junto a Werner, que demonstrou engajamento ao longo de todas as aulas da sequência, ele irá se configurar com um dos estudantes com maiores níveis de engajamento da sequência. Esse crescimento progressivo em seus índices de engajamento é demonstrativo do sucesso da sequência, que, aliada às intervenções dialógicas do docente, mostra-se capaz de trazer os(as) estudantes para as aulas, mesmo aqueles(as) mais inibidos, tímidos e/ou inseguros em um primeiro momento. avaliamos a viabilidade e a efetividade de nossa proposta a partir de aplicação própria deste material a um grupo misto de 14 alunos das três séries do ensino médio de uma escola pública estadual do Espírito Santo. O material apresentado neste trabalho serviu como base para três aulas com duração aproximada de uma hora cada, e foi utilizado em sala de aula aliado a uma postura dialógica do docente e a uma perspectiva de ensino-aprendizagem que contemplou a alfabetização científica dos estudantes. As aulas incorporaram elementos para fomentar uma discussão sistematizada sobre o assunto e seus conceitos-chave, sobre a natureza e a ética das ciências e os fatores recorrentes na prática científica, bem como sobre as relações da temática com Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente. Percebemos um bom entendimento dos conceitos-chave referentes ao material aqui apresentado ao avaliarmos as interações em sala de aula, que serão publicadas à parte. Os resultados da seção 3 3. Análise das intervenções 3.1. O contexto: o local e os sujeitos O Núcleo Cosmo-ufes, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), iniciou, no ano de 2017, um projeto de extensão chamado “Universo na Escola” [63], em que professores e pesquisadores da Universidade são convidados a ministrar palestras a estudantes do ensino médio da rede pública do estado do Espírito Santo. As palestras versam sobre tópicos atuais de pesquisa em Física, visando complementar a formação dos estudantes e despertar-lhes o interesse pelas Ciências em geral e, em particular, pela Física. Elas são elaboradas como atividade complementar eletiva a estudantes nas escolas participantes e realizadas após o período regular de aulas. Os autores elaboraram uma sequência sobre Física de Partículas para ser inserida no contexto desse projeto e foi ministrada por um dos autores a um grupo de, no máximo, quatorze estudantes do Centro Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral (CEEMTI) Profa Maura Abaurre, no município de Vila Velha, no estado do Espírito Santo. Os(as) estudantes compunham uma turma mista contemplando as 1a, 2a e 3a séries do ensino médio. Alguns participantes já integravam um grupo com interesse prévio em Física, que vinha sendo acompanhado e orientado durante o ano pelo professor-coordenador. No entanto, no decorrer da sequência outros(as) estudantes se juntaram ao grupo, frequentemente a convite dos demais. A organização local foi realizada pelo professor-coordenador da área de Física na escola. Os encontros da sequência como um todo tiveram duração aproximada de uma hora em aulas extra-classe durante os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro de 2019, totalizando uma carga horária de 10 horas de atividades de Física de Partículas desenvolvidas com os(as) discentes. Cabe ressaltar que os(as) estudantes não tinham qualquer obrigação curricular de frequentar as aulas das intervenções, que constituíam atividade voluntária. Ainda ressaltamos que a sequência didática foi elaborada em formato de aulas e não se deu no formato usual de palestras, como geralmente ocorre na perspectiva do projeto de extensão mencionado. 3.2. Das aulas Na seção 2 apresentamos propostas de momentos didáticos para introduzir a temática de Física de Partículas e da Eletrodinâmica Quântica em particular, organizados de maneira tal que promoveram o engajamento dos(as) estudantes desde o primeiro instante da intervenção e de modo que os conceitos relevantes à Física de Partículas eram construídos conjuntamente com os(as) discentes, conectando-se a seus conhecimentos prévios. Em nossa intervenção na CEEMTI Profa Maura Abaurre, o conteúdo apresentado neste trabalho, com foco na Eletrodinâmica Quântica, serviu como base para a primeira parte da sequência didática elaborada sobre Física de Partículas. Por sua vez, tal parte foi dividida em três aulas, ministradas nos dias 16, 26 e 30 de setembro do ano de 2019, cada uma com duração entre 55 e 65 minutos. Os principais tópicos abordados em sala, e as respectivas subseções discutidas mais detalhadamente acima, encontram-se listadas nas Tabelas 1, 2 e 3. Tabela 1 Os momentos da primeira aula da sequência. Aula 1: Introdução à Física de Partículas Seção Momento 2.1 Busca por conhecimentos prévios 1 Nós “enxergamos” as partículas? Debate sobre o funcionamento da Ciência 2 Apresentação do Modelo Padrão da Física de Partículas 3 Alguns fenômenos e aplicações da Física de Partículas 4 2.2 O contínuo e o vácuo: embate sobre a estrutura da matéria 5 Os “quatro elementos” de Empédocles e Aristóteles 6 Atomismo de Demócrito, Leucipo e Epicuro 7 Sucessos da hipótese atomista: – a eletrólise da água e as leis ponderais 8 – a lei dos gases ideais 9 – o movimento browniano 10 Ciência como ferramenta de empoderamento 11 2.3 A divisibilidade do “indivisível” 13 O experimento de Thomson e a descoberta do elétron 14 2.4.1 Atração e repulsão entre elétrons 15 Lei de Coulomb e Gravitação de Newton: semelhanças e diferenças 16 Por que percebemos mais a força gravitacional do que a força elétrica? 17 Tabela 2 Os momentos da segunda aula da sequência. Aula 2: A natureza da luz – Parte I Seção Momento 2.4.2 Breve revisão da aula anterior 1 Ubiquidade da interação eletromagnética 2 Gravitação e eletromagnetismo predominam no nosso dia a dia 3 2.5 Conhecimentos prévios sobre o conceito de campo 4 O campo elétrico e a lei de Coulomb 5 Linhas de campo elétrico, lei de Gauss e o comportamento 1/r2 6 Analogia com fluxo de água de um chafariz (seção 2.4.1 revisitada) 7 A inexistência de monopolos magnéticos 8 As equações de Maxwell e a unificaçãoequações de Maxwell do eletromagnetismo 9 Ondas eletromagnéticas 10 Simulações: geração e recepção de ondas eletromagnéticas 11 Aplicações: ondas de rádio, wifi e telecomunicações em geral 12 A luz é uma onda eletromagnética 13 O espectro eletromagnético 14 Fazendo pipoca no microondas 15 A.1 Espectro de emitância solar: evolução da visão humana 16 por que as plantas são verdes? 17 Tabela 3 Os momentos da terceira aula da sequência. Aula 3: A natureza da luz – Parte II Seção Momento 2.6 Breve revisão das aulas anteriores 1 O que são partículas? O que são ondas? 2 A dualidade onda-partícula e o fóton 3 O fóton não tem massa 4 O elétron também é onda-partícula 5 O microscópio eletrônico 6 Trajetórias em Mecânica Quântica 7 A relação de de Broglie e a constante de Planck 8 Constantes fundamentais da Natureza 9 2.7.3 Interação eletromagnética: troca de fótons e diagramas de Feynman 10 2.8 O pósitron: a antipartícula do elétron prevista por Dirac 11 O poder preditivo de uma teoria científica 12 Aniquilação matéria-antimatéria 13 Antipartículas como partículas se movendo para trás no tempo 14 A criação de um par elétron-pósitron 15 A relação massa-energia de Einstein 16 Raios-X e tomografia PET–scan: são perigosos? 17 É muito importante ressaltar que as aulas não foram meramente expositivas mas o professor adotou uma postura amplamente dialógica com os(as) alunos(as), a partir da qual diversos momentos citados nas tabelas emergiram organicamente da discussão com os(as) estudantes e das respostas às interrogações e propostas de debates. Por exemplo, durante o primeiro momento, em que os(as) estudantes se expressaram sobre seus conhecimentos prévios da temática, foram citadas “partículas subatômicas”, ao que o professor rebateu com a pergunta “E como sabemos que a matéria é composta por átomos?”. Essa questão suscitou uma breve discussão sobre como o conhecimento científico consiste de modelos, que devem fazer previsões testáveis e, mais importante, promover um empoderamento daqueles que portam tal conhecimento. Modelos são acatados ou suplantados de acordo com o nível de empoderamento que promovem. Essa situação foi, então, ilustrada na discussão dos sucessos empíricos da teoria atômica, enfatizando-se que não precisamos “enxergar” um átomo para saber que existem, bastando testar alguns “efeitos colaterais” preditos pelo modelo. No caso, as leis ponderais constituem forte evidência de que as reações químicas são meros rearranjos de átomos, e não metamorfoses de um contínuo. Outro exemplo são os momentos 8 e 9 da aula 2. Aqui, ao invés de simplesmente expor as equações de Maxwell, o professor perguntou aos alunos onde se encaixaria o magnetismo, que ainda não havia se manifestado a não ser no nome da interação eletromagnética. Já tendo discutido a lei de Gauss para campos elétricos, o professor propôs aos(às) alunos(as) formularem a lei análoga para campos magnéticos, informando-lhes apenas que monopolos magnéticos não existem. Isso estimulou uma interessante discussão sobre como equações matemáticas são expressões de fatos físicos em uma outra forma de linguagem. Houve certa dificuldade por parte dos(as) estudantes em construir essa formulação matemática da lei de Gauss para campos magnéticos, mas, guiados pelo professor, foi possível obter o resultado desejado. Seguiu-se, então, uma discussão subsequente sobre as outras leis de Maxwell, mas dessa vez expressas verbalmente de maneira qualitativa, conforme discutido na seção 2.4. Por fim, outro exemplo é o momento sobre “Trajetórias em Mecânica Quântica” na aula 3. Essa discussão emergiu de uma pergunta sobre a aparente contradição entre a inexistência de trajetórias na descrição quântica das partículas, e a observação de “trajetórias” no mundo clássico ou mesmo em experimentos de elétrons se movendo em câmaras de bolhas. O questionamento tornou-se uma oportunidade para discutir mais aprofundadamente o princípio da incerteza de Heisenberg nesse contexto, mostrando como a aparente trajetória do elétron não consiste em uma linha, mas em um tubo com espessura finita correspondendo à incerteza em sua localização. Uma análise detalhada das narrativas presentes em sala de aula, considerando as participações dos estudantes, as trocas com o professor e colegas, e diversas outras observações sobre todas as aulas da sequência didática será publicada em trabalho futuro dos autores. 3.3. Metodologia e coleta de dados O percurso metodológico adotado em nossa análise possui cunho qualitativo e caráter de estudo de caso. A pesquisa qualitativa considera relevante todos os sujeitos envolvidos, os significados e os pontos de vista atribuídos às situações a partir de dados coletados diretamente no ambiente natural de ação [64]. Obtivemos autorização da Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo e da diretoria da escola para tomar notas durante as intervenções sobre as interações entre os(as) discentes, seus níveis de interesse e de atenção, as perguntas realizadas, e demais reações. A coleta de dados ocorreu a partir de observações registradas durante as aulas em um diário de campo, contemplando aspectos descritivos e reflexivos dos sujeitos envolvidos, dos objetos, do espaço, das atividades e dos acontecimentos [64, 65], bem como reflexões posteriores às intervenções sobre relações entre tais aspectos, sobre atividades para casa e interações imediatamente antes e após as intervenções. A vivência com o local onde as ações se desenvolveram favoreceu uma metodologia de estudo de caso, ideal quando se pretende conhecer as perspectivas de significados dos sujeitos e a identificação de relações causais e padrões em contextos complexos que não permitem a utilização de levantamentos e experimentos [66]. Em nosso caso focamos na compreensão de conceitos-chave e suas relações com tecnologia, sociedade e meio-ambiente, avaliando o surgimento de indicadores de alfabetização científica e de engajamento ao longo das aulas, bem como relações entre esses indicadores. A fim de manter o sigilo e preservar as identidades dos participantes, adotamos nomes fictícios para os estudantes, fazendo referência a cientistas que atuaram na área da Física de Partículas e/ou contribuíram para o seu desenvolvimento. 3.4. Os indicadores de alfabetização científicae de engajamento As observações realizadas durante as intervenções incluíram a análise dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento demonstrados pelos estudantes para avaliar a viabilidade, a efetividade e as potencialidades da inclusão da temática de Física de Partículas em salas de aula do ensino médio. Novamente ressaltamos que, para além do conteúdo abordado em sala de aula, as intervenções incorporaram uma postura amplamente dialógica do professor e acreditamos que essa combinação favoreceu a viabilidade e a efetividade de nossa proposta. 3.4.1. Indicadores de alfabetização científica Os indicadores de alfabetização científica utilizados se alicerçam na perspectiva freireana de alfabetização científica [67, 68], que destaca o(a) alfabetizado(a) cientificamente como aquele(a) que: compreende as relações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio-Ambiente; compreende a natureza da Ciência; compreende a ética que envolve o trabalho de um(a) cientista; e possui conhecimentos básicos sobre as ciências para atuar no mundo. Em qualquer processo de ensino-aprendizagem que busca incorporar a alfabetização científica identificam-se indicadores que demonstram o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos associados ao trabalho de cientistas que, de acordo com a ref. [6], podem ser divididos em três blocos de ações: ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação; ações que estruturam o pensamento científico; ações que buscam o entendimento da situação analisada. No primeiro bloco de ações podem ser identificados os seguintes elementos: a seriação de informações, a organização de informações e a classificação de informações. O primeiro busca estabelecer as bases para uma pesquisa, um conjunto de dados, por exemplo. O segundo elemento aparece quando se discute a metodologia de uma pesquisa, um arranjo das informações. Já o terceiro elemento aparece quando se pretende hierarquizar as informações, estabelecendo relações entre elas. O segundo bloco de ações envolve as formas de organizar o pensamento, seja através do raciocínio lógico (relacionando a forma das ideias) e/ou do raciocínio proporcional (ideias e variáveis são relacionadas). Já o terceiro bloco contempla o maior número de elementos: o levantamento de hipóteses, o teste de hipóteses, a justificativa, a previsão e a explicação. O levantamento de hipóteses ocorre nos momentos em que suposições sobre determinada ideia ou assunto surgem, e o teste de hipóteses ocorre quando essas hipóteses são colocadas em xeque. Já a justificativa aparece quando ideias são incorporadas a uma linha de raciocínio que fortalecem uma determinada afirmação. A etapa da previsão ocorre quando se sugere que algum evento seja proveniente de alguma ideia e/ou fenômeno em análise. O último elemento nesse bloco de ações, a explicação, propõe reunir e relacionar todos os elementos anteriores: informações, ideias, hipóteses, previsões. Tais elementos do fazer científico foram considerados em nossa análise como indicadores de alfabetização científica e são resumidos na Tabela 4. Ressaltamos que cada um desses indicadores pode se manifestar independentemente dos outros em sala de aula. Além de serem independentes entre si podem, inclusive, aparecer concomitantemente. Tabela 4 Os indicadores de alfabetização científica a partir de elementos do fazer científico. Ação do fazer científico Indicadores de alfabetização científica (Elementos do fazer científico) Trabalho com os dados obtidos em umainvestigação Seriação de informaçõesOrganização de informaçõesClassificação de informações Estruturação dopensamento científico Raciocínio lógicoRaciocínio proporcional Entendimento dasituação analisada Levantamento de hipótesesTeste de hipótesesJustificativaPrevisãoExplicação 3.4.2. Indicadores de engajamento O engajamento escolar possui natureza multifacetada e é fruto da complexa interação social do sujeito com o ambiente escolar no qual está inserido, as situações que presencia e os outros sujeitos desse espaço. Além disso, engloba todo um processamento psicológico do sujeito com relação aos estímulos e quaisquer modificações que alterem esse ambiente e suas experiências. Dessa maneira, um engajamento positivo por parte dos estudantes está diretamente ligado à existência de estímulos e situações de aprendizagem favoráveis ao seu desenvolvimento. Considerar a incidência de indicadores referentes ao engajamento dos estudantes auxilia na compreensão das experiências no ambiente escolar, na preparação de atividades, e na compreensão da efetividade e das potencialidades do processo de ensino-aprendizagem adotado. A literatura sobre o assunto contempla três tipos de engajamento que se relacionam de forma dinâmica e não podem ser pensados como processos isolados: o comportamental, o emocional e o cognitivo [69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82]. Listamos na Tabela 5 os indicadores de engajamento que consideramos abaixo na apresentação de nossos resultados quanto à viabilidade, à efetividade e às potencialidades da inserção da temática de Física de Partículas em sala de aula do ensino médio. Tabela 5 Os indicadores de engajamento. Indicadores de engajamento Comportamental Emocional Cognitivo Participação nas aulas Emoção Investimento no aprendizado Participação/execuçãonas/das tarefas de sala Identificação coma escola e/ou colegas Autonomia Participação/execuçãonas/das tarefas de casa Identificação com o professor Desejo de ir além do básico Atribuição de valores à Físicae/ou às Ciências em geral Uso de estratégias 3.5. Resultados As incidências dos indicadores de alfabetização científica e de engajamento serão apresentadas apenas para as três primeiras aulas da sequência, foco deste trabalho, relacionando-as com algumas observações da sequência como um todo. Uma elaboração detalhada e a análise aprofundada da incidência desses indicadores ao longo de toda a sequência será publicada separadamente. Os resultados referentes aos indicadores de alfabetização científica mais notáveis nas três primeiras aulas da sequência são apresentados na Figura 28. Entre as ações que envolvem o trabalho com os dados obtidos em uma investigação, a mais presente foi a de seriação de informações. Esse resultado é bastante natural considerando que o bloco de aulas em questão se refere às primeiras aulas da sequência, com diversos momentos em que os(as) alunos(as) buscavam estabelecer as informações bases, pois ou estabeleceram seus primeiros contatos com alguns dos tópicos ou relembraram conhecimentos prévios, ressignificando-os no contexto das discussões ocorridas em sala de aula. Com relação às ações que estruturam o pensamento científico, percebemos uma maior incidência do raciocínio proporcional. Isso se deu principalmente por conta do estímulo dado para o uso do raciocínio proporcional por parte dos(as) alunos(as) quando uma abordagem qualitativa sustentou a discussão sobre as semelhanças e diferenças da lei de Coulomb com a lei da gravitação universal de Newton na primeira aula. Também houve forte ocorrência desse indicador durante a discussão da segunda aula sobre a expressão da lei de Coulomb, quando foram analisados casos limites, como o de duas cargas elétricas colocadas muito próximas uma da outra. Já com relação às ações que buscam o entendimento da situação analisada, a maior incidência ficou por conta do levantamento de hipóteses, principalmente devido à primeira e à segunda aulas. Na primeira aula, esse indicador apareceu mais no momento de busca pelos conhecimentos prévios dos(as) estudantes, quando eles ficaram bem à vontade para responder algumas questões-chave propostas pelo docente, com o intuito de entender o que os(as) alunos(as) já conheciam sobre Física de Partículas, e também para discutirem entre si, complementando as falas dos(as) colegas com sugestões que avançavam a conversa inicial. Já na segunda aula, esse indicador apareceu com maior frequência nos momentos em que o professor estimulou os(as) alunos(as) a elaborarem uma lei de Gauss para o magnetismo após a discussão sobre a inexistência de monopolos magnéticos. Também houve alta incidência desse indicador no momento em que a simulação interativa com as ondas eletromagnéticas foi utilizada [43], bem como no momento em que conversaram sobre o que caracterizava uma onda. Figura 28 Indicadores de alfabetização científica observados nas intervenções realizadas. A legenda está ordenada no sentido anti-horário do gráfico a partir de “seriação de informações” (azul escuro, 20,07%). Na Figura 29 apresentamos a alta incidência dos indicadores de engajamento manifestados durante as intervenções, para cada um dos tipos de engajamento, e para os cinco estudantes mais presentes nas aulas da sequência de Física de Partículas como um todo. Estes serão denominados com os nomes fictícios Werner, Albert, Marie, Peter e Emmy, e estiveram presentes em 10, 10, 8, 7 e 6 das 10 aulas da sequência, respectivamente. Figura 29 Incidência dos indicadores de engajamento comportamental, emocional e cognitivo nas três primeiras aulas da sequência didática proposta para os cinco estudantes mais presentes nas intervenções. Note que o estudante Werner se destacou apresentando altas incidências em todos os indicadores. Optamos por reescalonar essas incidências no gráfico e, portanto, os números totais para esse estudante são obtidos a partir dos números apresentados multiplicados por um fator 3. As maiores incidências de engajamento comportamental e cognitivo partiram do estudante Werner. Marie, Peter e Emmy demonstraram incidências similares para cada um dos tipos de engajamento. Já Albert foi o que menos participou das três primeiras aulas entre os cinco alunos. No entanto, a partir da quarta aula (sobre física nuclear, que será abordada em futura publicação) este aluno revelará um enorme salto na incidência de engajamento comportamental. Além disso, a partir da quinta aula da sequência, ele também revelará um aumento significativo dos indicadores de engajamento emocional e, principalmente, de engajamento cognitivo. Considerando todas as aulas da sequência que serão abordadas em futuras publicações, observamos em Albert uma significativa evolução nas incidências de todos os tipos de engajamento e, junto a Werner, que demonstrou engajamento ao longo de todas as aulas da sequência, ele irá se configurar com um dos estudantes com maiores níveis de engajamento da sequência. Esse crescimento progressivo em seus índices de engajamento é demonstrativo do sucesso da sequência, que, aliada às intervenções dialógicas do docente, mostra-se capaz de trazer os(as) estudantes para as aulas, mesmo aqueles(as) mais inibidos, tímidos e/ou inseguros em um primeiro momento. revelam a presença de diversos indicadores de alfabetização científica bem como de engajamento dos estudantes. Tais resultados indicam a viabilidade de se incorporar temáticas da física moderna e contemporânea no ensino médio, satisfazendo um longo desejo dos próprios estudantes que, curiosos, acabam se envolvendo em um processo de ensino-aprendizagem que os empodera para participarem do processo coletivo de construção histórico-social da Ciência e os insere em discussões relevantes à realidade concreta do mundo contemporâneo. Acreditamos que a efetividade das aulas foi fruto da combinação da postura dialógica do docente aliada à perspectiva voltada à alfabetização científica dos estudantes.

Nota-se que o material apresentado neste artigo é um pouco mais extenso do que aquele que ministramos em sala de aula. Isso se deve a dois fatores. Por um lado, nossas aulas ocorreram em um contexto de um projeto de extensão, envolvendo um grupo heterogêneo de estudantes, com o propósito de servir-lhes como introdução à Física de Partículas. Nesse formato, não julgamos cabível aprofundar discussões sobre o eletromagnetismo clássico, mas tampouco se poderia pressupor que o grupo já estivesse familiarizado com esse conteúdo. Ao mesmo tempo, por limitações de tempo disponível, julgamos inadequado discutir a QED enquanto teoria de campo (seção 2.7.1 2.7.1. O campo eletromagnético quântico A introdução do conceito de fóton implica, em um primeiro momento, em uma ambiguidade na descrição da radiação eletromagnética, que passa a ser ao mesmo tempo tratada como oscilação de um campo clássico e como ente com propriedades quânticas11. Como o caráter quântico dos fótons poderia emergir da propagação de um campo clássico? Essa inconsistência aponta para a necessidade de se quantizar o campo eletromagnético, i.e. descrevê-lo inteiramente de acordo com o paradigma quântico. A teoria quântica que descreve a interação entre partículas carregadas (por ex. elétrons) e o campo eletromagnético quantizado é chamada de Eletrodinâmica Quântica (Quantum Electrodynamics ou QED em inglês). Na QED, o campo eletromagnético passa a ser visto como uma ‘‘superfície’’ tridimensional12 vibratória que preenche todo o volume do espaço, análoga à superfície de um instrumento musical de percussão, como a pele de um tambor. À parte da dimensionalidade -- o campo preenche todo o espaço, enquanto a pele percussiva é plana, bidimensional --, a única (e crucial) distinção se deve ao caráter clássico das vibrações do instrumento musical e ao caráter quântico do campo quantizado13. A partir dessa analogia, e da compreensão de suas limitações, pode-se entender conceitos fundamentais da QED (e de Teorias Quânticas de Campos em geral). Primeiramente, assim como a superfície percussiva possui um estado em que não há quaisquer vibrações e nenhum som é emitido, também o campo quântico possui um estado fundamental, que é chamado de estado de vácuo (a motivação para essa nomenclatura ficará clara a seguir). No entanto, note que, por se tratar de um objeto quântico, não é possível afirmar que o campo no estado fundamental está em repouso. O princípio da incerteza garante que, mesmo no estado fundamental, há vibrações do campo, associadas à chamada “energia de ponto-zero”. Isso significa que o vácuo quântico tem energia, fato que tem consequências observáveis e aplicações práticas/tecnológicas, tais como: o efeito Casimir, que consiste na atração de duas placas metálicas, eletricamente neutras, imersas no vácuo. A atração se deve à modificação da energia do vácuo quântico na presença das placas. Mais especificamente, quanto mais próximas as placas, menor a energia do vácuo na região por elas limitadas; o processo de emissão espontânea de um fóton por um átomo no estado excitado, que dá origem aos espectros atômicos. No formalismo de Schrödinger da mecânica quântica, todas as camadas eletrônicas do átomo correspondem a estados estacionários, e a probabilidade de transição entre eles é nula. A transição do elétron entre camadas, e a consequente emissão de um fóton, só ocorre devido à interação do elétron com o vácuo eletromagnético quântico; por possuir energia, a relatividade geral de Einstein garante que o vácuo quântico gravita . Essa energia do vácuo age como uma constante cosmológica, contribuindo para a expansão acelerada do Universo. Entretanto, quando se compara a previsão teórica para a energia do vácuo quântico com o valor da constante cosmológica medido com base em observações da expansão do Universo, há uma discrepância de 120 ordens de magnitude! Ou seja, trata-se da pior previsão da história da Física! Esse é o chamado problema da constante cosmológica, ainda sem solução [54, 55]. Além do estado fundamental, uma superfície vibratória pode, obviamente, oscilar de diversas maneiras. Dentre elas, destacam-se os chamados modos normais de vibração, associados a ondas estacionárias, em que todos os pontos da superfície oscilam com a mesma frequência, como exemplificado ilustrativamente na Figura 16. Em um instrumento musical, um modo normal está associado a uma nota musical específica: quando se ataca a pele de um tambor, ela vibra em um modo normal e emite som da frequência para a qual o instrumento foi previamente afinado. No caso de um campo quântico, um modo normal de vibração corresponde a uma partícula de energia e momento definidos. Note o caráter explicitamente dual dessa descrição, que traça paralelos diretos entre partículas com energia definida e modos de oscilação de determinada frequência. O fato de a vibração não estar localizada em nenhuma região, mas ocorrer em todo o espaço ocupado pelo campo, como ilustrado na Figura 16, está de acordo com o esperado pelo princípio da incerteza de Heisenberg quando aplicado a uma partícula cujo momento linear é conhecido precisamente. Figura 16 Momentos distintos de um ciclo oscilatório associado a um modo normal de vibração para uma superfície bidimensional. No caso de um instrumento de percussão, esse padrão corresponderia a uma nota musical (i.e. uma frequência sonora) específica. Para um campo quântico, corresponde a uma partícula com energia e momento específicos. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Essa interpretação de partículas como excitações do campo em modos normais de vibração justifica, ainda, a nomenclatura de vácuo para o estado fundamental, por corresponder ao caso em que o número de partículas se anula. Por fim, enfatiza-se que a mesma interpretação se aplica a partículas materiais: o elétron também é um modo normal de vibração de um campo fundamental, que podemos chamar de campo eletrônico ou campo do elétron. Isso explica, aliás, por que todos elétrons do Universo são idênticos: todos são vibrações de um único campo fundamental. O Modelo Padrão da Física de Partículas, embasado no formalismo de Teoria Quântica de Campos, é ao mesmo tempo uma teoria de partículas e uma teoria de interação entre campos. ) ou aprofundar a discussão sobre o conceito de fóton virtual, apesar de tal discussão fornecer uma rica ferramenta para compreensão da interação eletromagnética em termos de microfísica. Em suma, foi necessário encontrar um meio termo, de acordo com nossas circunstâncias concretas. Por outro lado, a outros(as) docentes, trabalhando em situações diferentes, pode ser mais conveniente expandir a discussão sobre algumas seções, e por isso disponibilizamos material que auxilie nesse propósito. Estamos, com isso, aderindo ao princípio norteador deste trabalho, que é elaborar um material que sirva não como receita a ser seguida linear e mecanicamente, mas como fonte auxiliar ao planejamento de aulas sobre esse assunto, um produto orgânico que sirva de matéria prima a ser trabalhada pelo(a) docente, ao invés de fórmulas rígidas, engessadas. Uma valiosa sugestão de material complementar sobre a QED voltada ao público leigo, extremamente instrutivo e educativo, pode ser lido no livro de um dos pioneiros dessa teoria: Richard Feynman, “A estranha teoria da luz e da matéria” [5757. R. Feynman, A estranha teoria da luz e da matéria (Editora Senai, São Paulo, 2018).]. Além do material e dos resultados exploratórios relativos aos indicadores de alfabetização científica e de engajamento apresentados neste trabalho, incluímos um apêndice com propostas de atividades que podem ser incorporadas em sala de aula dentro da temática de Eletrodinâmica Quântica.

Nossos resultados mostram conclusivamente que, aliando-se a utilização (e adaptação) do presente material a uma postura dialógica por parte do(a) docente, é possível engajar os(as) estudantes no processo de ensino-aprendizagem e promover a alfabetização científica em seu sentido pleno.

Agradecimentos

Os autores agradecem Júlio César Fabris, organizador do projeto “Universo na Escola”, e Thiago Pereira da Silva, professor de Física da CEEMTI Profa Maura Abaurre (Vila Velha – ES) no período das intervenções, por viabilizarem o presente estudo. Agradecemos também Geide Rosa Coelho, por sugestões e comentários relevantes à análise das intervenções.

Apêndice: Propostas de Atividades

A.1. Espectro de emitância solar

Uma interessante atividade em diálogo com a Biologia consiste em apresentar o espectro de emissão solar (i.e. a potência de ondas eletromagnéticas emitidas pelo Sol em função da frequência da onda), Figura 30, que tem pico de máximo precisamente na região do visível, e lançar à turma o desafio de tentar explicar a “coincidência” de o Sol ser mais luminoso justamente na faixa em que nós enxergamos o espectro eletromagnético. Pela experiência dos autores, não haverá grandes dificuldades da turma em invocar o mecanismo de seleção natural.

Figura 30
Espectro de emissão de radiação pelo Sol. Note o pico exatamente na região do visível, com máximo na faixa da cor verde. Fonte: Domínio público.

Ainda mais intrigante, entretanto, é que o pico do espectro solar corresponde à radiação na faixa da cor verde, que é justamente a cor das folhas das plantas. Isso significa que, embora usem absorção de luz para realizarem fotossíntese, as folhas refletem a faixa de frequência em que há mais luminosidade disponível. Como explicar esse aparente paradoxo? Também essa questão, cuja solução é bastante mais elaborada, pode ser lançada à turma, para que, individualmente ou em grupos, tentem formular hipóteses plausíveis que expliquem tal fato, exercitando assim o raciocínio e criatividade no âmbito científico. Uma proposta recente de se explicar o aparente paradoxo é a chamada “hipótese da Terra roxa” [8383. S. DasSarma e E.W. Schwieterman, International Journal of Astrobiology 20, 1 (2018).]. Uma discussão sobre o assunto pode ser articulada conjuntamente com o(a) professor(a) de Biologia da instituição de ensino, pois envolve, em igual medida, conhecimentos de Física (espectro eletromagnético, espectro de emissão solar, a cor dos objetos) e Biologia (mecanismos de seleção natural e especiação, fotossíntese), fornecendo uma excelente oportunidade para se superar a compartimentalização do ensino científico na escola, além de promover atividades diferenciadas com um viés de ensino investigativo.

A.2. Efeito fotovoltaico e energia solar
  1. Ao invés de apresentar em aula a explicação de Einstein para o efeito fotoelétrico, o docente pode descrever brevemente o fenômeno da ejeção de elétrons de uma superfície metálica quando iluminada por uma fonte de luz, junto dos seguintes fatos experimentais:

    • existe uma frequência mínima da luz incidente abaixo da qual nenhum elétron é ejetado. Essa frequência mínima depende do material de que é feita a superfície;

    • a energia cinética dos elétrons ejetados aumenta com a frequência da luz incidente, mas não depende de sua intensidade;

    • o número de elétrons ejetados não depende da frequência da luz incidente, mas aumenta com sua intensidade.

    Sugere-se, então, que os(as) estudantes discutam possíveis explicações para essas observações. Pode-se direcioná-los(as) a usar o conceito de fóton introduzido por outras vias, ou deixá-los(as) concluir sobre a necessidade de se tratar a luz como constituída de corpúsculos. O objetivo central é que sejam capazes de construir a relação Einsteiniana dada pela equação (8), e identificar que a intensidade da luz está relacionada ao número de fótons. Pode ser uma atividade desafiadora aos estudantes, mas o(a) docente pode e deve intervir para ajudá-los a construir o raciocínio que leva à impossibilidade de explicar esse comportamento pela teoria ondulatória da luz, e formular o conceito de fóton.

  2. Complementar à discussão do efeito fotoelétrico, pode-se propor que os(as) alunos(as) pesquisem e redijam um texto, ou apresentem curtos seminários sobre assuntos relativos a energia solar e células fotovoltaicas. Como essas células funcionam? Quais são as vantagens e desvantagens perante outras formas de geração de energia elétrica? Quais são os potenciais impactos ambientais? Qual é a eficiência típica de tais células? Onde elas são utilizadas? Pode-se indicar as refs. [8484. http://www.ieee.org.br/wp-content/uploads/2014/05/energia-solar-fotovoltaica-terceira-geracao.pdf, acessado em 05/03/2021.
    http://www.ieee.org.br/wp-content/upload...
    , 8585. C.T. Machado e F.S. Miranda, Rev. Virtual Quim. 7, 126 (2015)., 8686. Brasil. Agência Nacional de Energia Elétrica. Atlas de energia elétrica do Brasil, 2a ed. (Brasília, 2002).] (e demais referências citadas por essas) como alguns textos base à pesquisa. Caso o(a) docente queira preparar uma sequência de aulas voltada a essa temática, pode se basear na ref. [5353. C.E. Lima, A energia fotovoltaica num contexto CTSA: uma sequência de ensino sobre as transformações de energia solar em energia elétrica. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte (2018).].

A.3. Dualidade onda-partícula e o laboratório SIRIUS

O SIRIUS (Figura 31) é o novo acelerador de partículas brasileiro, localizado no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) em Campinas, e que tem por objetivo contribuir para o estudo da estrutura de materiais e até mesmo de moléculas. Ao produzir fótons altamente energéticos, ele pode ser usado essencialmente como um microscópio extremamente potente, capaz de discernir distâncias muito inferiores às acessíveis por um microscópio usual, que funcione à base de luz visível. Isso porque a menor distância d que um instrumento ótico pode discernir está associada ao comprimento da onda λ incidente sobre o objeto que se deseja observar, que por sua vez está associado à energia do fóton E via

(A1) d λ = h c E 1.24 × 10 - 6 eV m E .

Figura 31
Sirius, o novo laboratório de luz síncrotron brasileiro, localizado no Laboratório Nacional de Luz Síncroton (LNLS) em Campinas. Fonte: LNLS/CNPEM.

No Sirius, um feixe de elétrons é acelerado em torno de uma circunferência de 518.4 m, e, por se tratarem de cargas elétricas aceleradas, emitem radiação eletromagnética de diversas frequências – chamada radiação síncrotron. Essa radiação é separada e coletada em 13 diferentes canais (chamados linhas de luz), cada um com intensidades e energias características, e é usada para “fotografar” objetos em alta resolução.

Para se ter uma ideia das capacidades desse laboratório, podemos considerar a linha de luz Sapucaia, em que o feixe de luz é otimizado para energias de 12 keV. O(a) docente pode propor que os(as) estudantes estimem a escala de comprimento mínima que pode ser discernida por essa fonte, usando a relação (A1), e citem alguns tipos de objetos que podem ser estudados nessa linha de luz.

É fácil ver que a resolução estimada é suficiente para enxergar subestruturas da ordem de 10−10 m, portanto essa linha de luz é apropriada ao estudo de moléculas ou polímeros.

Essa discussão também ajuda a construir a compreensão de que experimentos a mais altas energias estão associados à “sondagem” de distâncias cada vez menores, o que fica claro da relação (A1). É por isso que, se queremos estudar a estrutura elementar da matéria, precisamos de aceleradores de partículas cada vez mais potentes.

A.4. Unidades naturais

A Física de Partículas lida com fenômenos em escalas subatômicas, envolvendo ordens de grandeza muito díspares daquelas com que estamos familiarizados no dia a dia. Por isso, é difícil adquirir uma intuição acurada das quantidades físicas relevantes em termos das unidades do Sistema Internacional (metro, segundo, grama, etc.). Nesse caso é mais conveniente usar um outro sistema de unidades, chamado “sistema natural de unidades”, que será objeto de discussão nessa atividade.

Mais especificamente, a proposta principal da atividade a seguir é discutir o papel das constantes universais na Natureza como fatores de conversão entre grandezas físicas que possuem uma relação íntima entre si, mas que foram inicialmente consideradas distintas no desenvolvimento histórico das teorias científicas. Um sistema natural de unidades é aquele em que essas grandezas intimamente relacionadas são tratadas como tal, em pé de igualdade.

A discussão pode se iniciar com a constatação de que, por se tratar de uma teoria quântica relativística, duas constantes fundamentais aparecem frequentemente nas expressões das grandezas físicas computadas em Física de Partículas:

1.055 × 10 34 J s ( constante de Planck 2 π ) , c 2.998 × 10 8 m/s ( velocidade da luz no vácuo ) .

O(A) professor(a) pode, então, questionar os(as) estudantes por que essas constantes possuem esses valores específicos. O que esses números significam, de fato? A discussão é longa e profunda, mas um ponto que deve ser tocado é que esses números são específicos a um sistema de unidades em particular, e que, em outro sistema, os números seriam outros. Deve ficar claro aos(às) estudantes que isso não significa que o valor da constante muda. O que muda é a sua representação, que vai depender do sistema de unidades: expressar a velocidade da luz em milhas por hora resultará em um valor numérico diferente do citado acima, mas isso certamente não significa que a velocidade da luz foi alterada de alguma maneira.

Essa discussão inicial abre margem para a questão: seria possível escolher um sistema de unidades em que ℏ = 1 e c = 1? Deve ficar claro, aqui, que esses valores são adimensionais. Isso pode introduzir alguma confusão na turma: como pode uma grandeza com dimensão de “metro/segundo” converter-se em uma constante adimensional? Podemos igualar unidades de comprimento e unidades de tempo? Se sim, o que isso significa?

As respostas a essas perguntas são bastante profundas e, em última instância, essa discussão pode até mesmo ser utilizada para introduzir à turma alguns princípios básicos da relatividade especial. Para iniciar o debate, o(a) docente pode propor o seguinte problema.

“Imagine, por um momento, que decidamos medir comprimentos, larguras e alturas usando unidades (e dimensões!) diferentes para cada uma dessas direções espaciais. Explique por que devem existir fatores de conversão entre essas unidades, e discuta suas propriedades. Discuta por que essa decisão, mais do que artificial, é antinatural.”

O(a) docente pode pedir que os(as) estudantes criem nomes para as diferentes unidades de comprimento, largura e altura a serem usadas no exemplo, bem como fatores de conversão entre elas. O importante é concluir que usar unidades distintas não faz sentido, porque sempre podemos fazer uma rotação do objeto e converter largura em altura, altura em comprimento, e assim por diante (vide Figura 32). Se usamos unidades diferentes para cada dimensão espacial, sempre que rotacionássemos um objeto teríamos que usar fatores de conversão para reescrever suas dimensões nas unidades apropriadas. Como rotações não alteram o tamanho dos objetos, esses fatores de conversão seriam “constantes fundamentais da Natureza”. A escolha mais conveniente seria, portanto, fazer com que tais fatores de conversão sejam iguais à unidade (ou seja, fatores iguais a 1).

Figura 32
Se utilizássemos unidades e dimensões distintas para medir altura, largura, e comprimento, sempre que fizéssemos a rotação de um objeto teríamos que recalcular suas dimensões. Como rotações não alteram o tamanho do objeto, esse cálculo envolveria fatores de conversão universais. A escolha mais conveniente é aquela em que esses fatores são todos unitários, ou seja, medimos todos os lados dos objetos usando as mesmas unidades. A universalidade da velocidade da luz nos indica, de igual modo, que espaço e tempo são dimensões distintas de um único ente: o espaço-tempo. E a conversão entre elas é feita pela propagação da luz, que oferece, aqui, o análogo à rotação espacial do objeto no exemplo da presente figura.

Emendando essa conclusão, o professor pode então lançar a seguinte provocação:

“A velocidade da luz no vácuo, c, é uma constante universal, com cujo valor quaisquer observadores sob quaisquer circunstâncias no Universo concordam. Podemos, portanto, considerar c como um fator de conversão, análogo ao caso da discussão anterior. Repetindo a argumentação acima, a que conclusões podemos chegar baseado na constância da velocidade da luz?”

Em analogia direta à discussão anterior, a conclusão é que a propagação da luz constitui um processo físico universal que conecta tempo e espaço (análogo à rotação dos objetos no exemplo anterior, Figura 32). A constância da velocidade da luz indica que tempo e espaço são dimensões distintas de um mesmo objeto: o espaço-tempo. Portanto, é mais natural lidarmos com unidades em que c=1 e espaço e tempo são tratados indistintamente.

Por fim, o(a) docente pode estender a analogia à outra constante universal: a constante de Planck.

“Analogamente, que conclusões físicas podemos extrair da constância de ℏ?”

A conclusão importante, aqui, é que ℏ conecta o conceito de energia a espaço e tempo. Essa conexão foi utilizada na seção 2.9 2.9. A carga efetiva do elétron Outra consequência da conversão de fótons em pares elétron-pósitron (e vice-versa) é a chamada “polarização do vácuo”, que tem uma importante consequência fenomenológica: a constatação de que a carga elétrica do elétron não é constante! Para entender melhor essa afirmação, considere o diagrama ilustrado na Figura 25, em que a propagação de um fóton é temporariamente interrompida pela criação de um par elétron-pósitron, que posteriormente se aniquila e dá origem novamente a um fóton que continua a se propagar. Esse processo ilustra que, devido à interação com o campo eletrônico, um fóton não pode ser visto apenas como uma excitação do campo eletromagnético. Sua propagação é afetada por sua interação com elétrons e pósitrons. E isso, por sua vez, tem impacto sobre a maneira como esse fóton intermedeia a interação eletromagnética entre cargas elétricas. Figura 25 Diagrama de Feynman ilustrando um possível processo ocorrendo durante a propagação de um fóton, temporariamente interrompida pela criação e posterior aniquilação de um par elétron-pósitron. Este é um exemplo de um diagrama com um laço. De fato, considere a interação entre uma carga q incidindo contra uma carga Q, que por simplicidade suporemos ser muito mais pesada, de modo que ela permanece essencialmente imóvel ao longo do processo. O eletromagnetismo clássico diz que essa interação é regida pela lei de Coulomb, ou seja, a energia potencial de interação é (15) V Coulomb ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r , com k ≈ 9×109N m2/C2 a constante de Coulomb. Esse comportamento é exatamente o que se obtém na eletrodinâmica quântica a partir do diagrama da Figura 26(a), como já discutido na seção 2.7.3. Ou seja, a teoria eletromagnética clássica está contida na QED como primeira aproximação, ao ignorarmos todos diagramas que contenham laços. Mas há vários outros processos também presentes na QED, como o ilustrado na Figura 26(b), que contribuem para a mediação da interação entre as cargas, e que portanto fornecem “correções quânticas” à predição da teoria clássica. Esses processos estão sempre presentes, independentemente de a interação ser macroscópica ou não. Quer dizer, é impossível “desligarmos” esses processos tipicamente quânticos e observarmos apenas os processos clássicos. Sendo assim, por que esses efeitos quânticos não são comumente observados em nosso dia a dia? Por que a lei de Coulomb é uma boa aproximação para interações macroscópicas? E, ainda mais importante: o quão pequenas têm que ser as distâncias envolvidas para que esses efeitos quânticos se manifestem mais perceptivelmente? Podemos responder essa questão recorrendo novamente ao conceito de virtualidade das partículas intermediárias, elaborado na seção 2.7.3. Naquela ocasião, definimos o “grau de virtualidade” de uma partícula de energia E, momento p→ e massa m como uma medida do quanto ela viola a relação relativística de massa-energia-momento, i.e. (16) virtualidade ≡ E 2 - | p → | 2 ⁢ c 2 - m 2 ⁢ c 4 . Assim, tudo se passa como se a partícula virtual tivesse uma massa diferente da correspondente partícula real. Por exemplo, é como se um elétron virtual tivesse massa diferente de me ≈ 9.1×10−31 kg. Uma partícula real é aquela para a qual o lado direito da equação (16) se anula. Figura 26 Dois processos possíveis de mediação da interação entre as cargas q e Q. (a) Diagrama responsável pela interação descrita no eletromagnetismo clássico. (b) Uma correção quântica oriunda da interação mútua entre o fóton e as excitações do campo eletrônico, que altera a propagação do fóton. Por incluir uma modificação na propagação do fóton, esse diagrama induz uma modificação da lei de Coulomb para a interação entre partículas carregadas. Isso também pode ser interpretado como uma alteração na “carga elétrica efetiva” das partículas interagentes. Interações de longa distância são mediadas predominantemente por fótons de baixa virtualidade, o que por sua vez implica em uma alta virtualidade para o par elétron-pósitron da Figura 26(b)25. Isso faz com que os efeitos desse diagrama sejam atenuados em comparação com o da Figura 26(a). Assim, para grandes distâncias, a interação é regida essencialmente pela lei de Coulomb, como esperado. A que distâncias a contribuição do diagrama com laço se torna relevante? Ora, só existe uma escala de energia característica desse processo, que é a energia de repouso do par elétron-pósitron, 2mec2. Essa energia está naturalmente associada, na teoria quântica, a uma escala de distância da ordem26 (17) r ˜ = ℏ c 2 m e c 2 = ( constante de Planck ) × ( velocidade da luz ) ( energia de repouso do par e + e - ) ∼ 2 × 10 − 13 m . O fato de essa escala de distância, característica do processo da Figura 26(b), envolver a constante de Planck e a velocidade da luz mostra que se trata de um efeito caracteristicamente quântico e relativístico. Como já poderíamos antecipar, trata-se de uma escala de distância associada ao comprimento de onda de um fóton com energia 2mec2. Nota-se que r~ é cerca de duas ordens de magnitude menor do que o típico raio atômico, portanto as partículas interagentes devem estar de fato muito próximas para que a modificação na propagação do fóton pela criação de pares intermediários seja perceptível. Essas previsões são confirmadas quando computamos as correções quânticas ao potencial de Coulomb para r≳r~ devido ao diagrama da Figura 26(b), resultando no chamado potencial de Uehling, (18) V ⁢ ( r ) = k ⁢ Q ⁢ q r ⁢ ( 1 + α 2 ⁢ π ⁢ ( r ~ r ) 3 / 2 ⁢ e - r / r ~ + … ) . Aqui, α ≈ 1/137 é uma constante que dita a intensidade da interação eletromagnética27, e r~ é a distância característica ao processo quântico da Figura 26(b) que dá origem a essa correção. É fácil ver que, para distâncias muito maiores do que essa escala característica, r≫r~, o potencial de Uehling da equação (18) reduz-se ao potencial de Coulomb, como esperado. As reticências indicam que existem ainda outras correções advindas de processos ainda mais complicados, e que só serão notáveis a distâncias ainda menores. Essas correções quânticas devido à criação de pares elétron-pósitron virtuais em torno de uma carga elétrica podem ser interpretadas fisicamente como oriundas de uma blindagem da carga devido a um efeito de polarização do vácuo, como ilustrado na Figura 27. Suponhamos, por exemplo, que a partícula ao centro da figura seja um elétron. Devido a processos como os da Figura 26(b), em torno desse elétron existe uma multitude de pares elétron-pósitron virtuais que atuam como minúsculos dipolos, efetivamente reduzindo a densidade de carga do elétron e, portanto, a intensidade de sua interação eletromagnética com outras cargas. Diz-se que o elétron está sempre “vestido”, de modo que, quando dois elétrons interagem, a densidade de carga efetiva da interação é a da nuvem ilustrada na Figura 27, e não do elétron “nu” (ilustrado no centro da figura). Porém, à medida que os elétrons são lançados um contra o outro a mais altas energias, a interação se dá a distâncias cada vez menores, até que eventualmente (quando a energia do centro de massa for Ec.m.≳2mec2) um elétron começa a penetrar a nuvem de polarização do outro e enxerga uma maior carga efetiva, o que faz com que o comportamento da interação seja diferente do Coulombiano. O “raio efetivo” dessa nuvem de polarização em torno do elétron é a escala característica r~ associada ao diagrama 26(b), como já discutido anteriormente. Figura 27 Efeito de blindagem da carga do elétron devido aos pares elétron-pósitron virtuais. Fonte: cortesia de © INFN, Laboratori Nazionali di Frascati [62]. Essa variação da carga efetiva do elétron com a distância é, de fato, observada. Em processos que envolvem interações entre elétrons a altas energias, tudo se passa como se a carga do elétron fosse de fato maior do que a que observamos em nosso mundo de baixas energias. Uma pergunta plausível, neste momento, seria: e qual é, então, a carga do elétron “nu”? A resposta é que a carga do elétron tende a infinito à medida que a distância entre as cargas interagentes diminui. É claro que uma carga infinita não faz sentido fisicamente, e esse comportamento já nos indica que, a partir de uma certa escala de energia, essa descrição do elétron e suas interações em termos de partículas e campos já não é mais aplicável. Isso é análogo ao caso em que a descrição contínua de um sólido ou fluido deixa de ser válida a partir de certas escalas de distância, quando a estrutura atômico-molecular da matéria se torna relevante, e novos graus de liberdade precisam ser incluídos na descrição do sistema. Questões sobre o que é e quais são as propriedades de um elétron ‘‘nu’’ não podem ainda ser resolvidas conclusivamente, e é mais provável que, a partir de uma determinada escala de energia, a pergunta sequer faça sentido, pois o próprio conceito de ‘‘elétron’’ como hoje o entendemos deve ser modificado28. Uma importante consequência desse efeito de polarização do vácuo é o deslocamento de Lamb entre os níveis de energia dos orbitais 2S1/2 e 2P1/2 do átomo de hidrogênio. Se a interação elétron-núcleo ocorresse apenas via diagrama da Figura 26(a), esses orbitais seriam degenerados (i.e. possuiriam a mesma energia). No entanto, experimentos cuidadosos mostraram que há uma transição entre eles, correspondendo à emissão de um fóton de frequência ∼1057 MHz. Na QED, esse valor é predito corretamente com grande precisão levando-se em conta que o elétron no orbital S é capaz de penetrar o núcleo atômico29 e, com isso, sentir os efeitos do termo anômalo do potencial de Uehling. Isso não ocorre no orbital P, para o qual o potencial eletromagnético é simplesmente o potencial de Coulomb. Portanto, o nível de energia do orbital S fica ligeiramente deslocado do orbital P, dando origem a uma possível transição eletrônica que é, de fato, observada. A obtenção do valor correto para o deslocamento Lamb por meio do formalismo da QED constitui ainda um dos maiores triunfos dessa teoria, e um forte indicativo de seu poder preditivo. quando convertemos uma energia característica de um processo na escala de comprimento à qual ele está tipicamente associado. Essa relação também pode ser explorada, junto à atividade proposta anteriormente, na seção A.3 A.3. Dualidade onda-partícula e o laboratório SIRIUS O SIRIUS (Figura 31) é o novo acelerador de partículas brasileiro, localizado no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) em Campinas, e que tem por objetivo contribuir para o estudo da estrutura de materiais e até mesmo de moléculas. Ao produzir fótons altamente energéticos, ele pode ser usado essencialmente como um microscópio extremamente potente, capaz de discernir distâncias muito inferiores às acessíveis por um microscópio usual, que funcione à base de luz visível. Isso porque a menor distância d que um instrumento ótico pode discernir está associada ao comprimento da onda λ incidente sobre o objeto que se deseja observar, que por sua vez está associado à energia do fóton E via (A1) d ∼ λ = h ⁢ c E ≈ 1.24 × 10 - 6 ⁢ eV ⋅ m E . Figura 31 Sirius, o novo laboratório de luz síncrotron brasileiro, localizado no Laboratório Nacional de Luz Síncroton (LNLS) em Campinas. Fonte: LNLS/CNPEM. No Sirius, um feixe de elétrons é acelerado em torno de uma circunferência de 518.4 m, e, por se tratarem de cargas elétricas aceleradas, emitem radiação eletromagnética de diversas frequências – chamada radiação síncrotron. Essa radiação é separada e coletada em 13 diferentes canais (chamados linhas de luz), cada um com intensidades e energias características, e é usada para “fotografar” objetos em alta resolução. Para se ter uma ideia das capacidades desse laboratório, podemos considerar a linha de luz Sapucaia, em que o feixe de luz é otimizado para energias de 12 keV. O(a) docente pode propor que os(as) estudantes estimem a escala de comprimento mínima que pode ser discernida por essa fonte, usando a relação (A1), e citem alguns tipos de objetos que podem ser estudados nessa linha de luz. É fácil ver que a resolução estimada é suficiente para enxergar subestruturas da ordem de 10−10 m, portanto essa linha de luz é apropriada ao estudo de moléculas ou polímeros. Essa discussão também ajuda a construir a compreensão de que experimentos a mais altas energias estão associados à “sondagem” de distâncias cada vez menores, o que fica claro da relação (A1). É por isso que, se queremos estudar a estrutura elementar da matéria, precisamos de aceleradores de partículas cada vez mais potentes. , para discutir por que precisamos de aceleradores cada vez mais potentes, que realizem colisões a energias cada vez mais altas, para explorarmos a física microscópica, i.e. para entendermos como a matéria se comporta a distâncias cada vez menores.

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    L.H. Sasseron e T.N. de Souza, Investigações em Ensino de Ciências 24, 139 (2019).
  • 73.
    A.F. Faria e A.M. Vaz, Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências 21, e10545 (2019).
  • 74.
    J.D. Finn, School engagement and students at risk (National Center for Education Statistics, Washington, 1993).
  • 75.
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  • 76.
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  • 77.
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  • 78.
    J.E. Brophy, em Advances in motivation and achievement: enhancing motivation, editado por M.L. Maehr e D.A. Kleiber (JAI Press, Greenwich, 1987).
  • 79.
    C. Ames, Journal of Educational Psychology 84, 261 (1992).
  • 80.
    C.S. Dweck e E.L. Legget, Psychological Review 95, 256 (1988).
  • 81.
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  • 82.
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  • 83.
    S. DasSarma e E.W. Schwieterman, International Journal of Astrobiology 20, 1 (2018).
  • 84.
    http://www.ieee.org.br/wp-content/uploads/2014/05/energia-solar-fotovoltaica-terceira-geracao.pdf, acessado em 05/03/2021.
    » http://www.ieee.org.br/wp-content/uploads/2014/05/energia-solar-fotovoltaica-terceira-geracao.pdf
  • 85.
    C.T. Machado e F.S. Miranda, Rev. Virtual Quim. 7, 126 (2015).
  • 86.
    Brasil. Agência Nacional de Energia Elétrica. Atlas de energia elétrica do Brasil, 2a ed. (Brasília, 2002).
  • 1
    A teoria vigente que rege as interações fundamentais entre as partículas elementares, o chamado “Modelo Padrão da Física de Partículas”, tem se consolidando há décadas após passar por vários testes experimentais, dentre eles a recente descoberta do bóson de Higgs em 2012, predito pela teoria. Entretanto, já é sabido que o Modelo precisa ser estendido, pois falha em prever corretamente diversas observações empíricas, como o excesso de matéria sobre antimatéria no Universo, a existência de matéria escura e a massa dos neutrinos, além de não conter uma descrição quântica da interação gravitacional nem ser capaz de explicar as hierarquias de escalas de massa que aparecem na teoria. Tratam-se de diversos problemas em aberto e tópicos de pesquisa ativa na área, e, por isso mesmo, excelentes para serem abordados em sala de aula como tópicos de leitura e discussão.
  • 2
    Da sigla em inglês para Quantum Electrodynamics.
  • 3
    PET é sigla em inglês para Tomografia por Emissão de Pósitrons.
  • 4
    Mais precisamente, o experimento de Thomson de 1897 [3232. J.J. Thomson, Philosophical Magazine Series 5, 293 (1897).] propiciou a medição apenas da razão carga/massa do elétron, obtendo a mencionada diferença frente ao valor conhecido dessa razão para um íon de hidrogênio (i.e. um próton). No entanto, Thomson inferiu que a discrepância fosse devido à menor massa do elétron com base em outras propriedades dos raios catódicos, como sua maior capacidade de penetração ao propagar-se em um gás. Foi apenas em outro experimento, realizado em 1899 [3333. J.J. Thomson, Philosophical Magazine Series 5, 547 (1899).], que Thomson conseguiu mostrar que a carga do elétron é igual à do próton, e que portanto a diferença entre as razões carga/massa deve-se unicamente a uma diferença entre suas massas.
  • 5
    Antigo acrônimo da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire em francês), o maior laboratório de Física de Partículas do mundo, localizado em Genebra, Suíça, em sua fronteira com a França.
  • 6
    Note que a terceira lei de Newton deve ser válida para a lei de Coulomb, que envolve uma configuração estática de cargas, a fim de que haja conservação do momento linear total. Por outro lado, no caso da força magnética sobre uma carga se movendo, parte do momento é carregado pelo próprio campo eletromagnético, i.e. por fótons, e portanto a soma das forças que uma carga exerce sobre a outra em geral não se anula.
  • 7
    No caso da gravitação, a dependência da força com a massa inercial é devido à observação da universalidade da aceleração de queda livre. No caso da Lei de Coulomb, trata-se de uma definição da carga elétrica, que é medida justamente através da força atuante sobre ela quando posta a interagir com uma carga teste.
  • 8
    Uma simulação interativa interessante para esse propósito encontra-se na ref. [3434. https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulation/charges-and-fields, acessado em 05/03/2021.
    https://phet.colorado.edu/pt_BR/simulati...
    ].
  • 9
    O leitor mais familiarizado com a teoria da relatividade geral já deve ter se defrontado com a afirmação de que a gravitação é consequência da geometria do espaço-tempo. Isso significa que o campo gravitacional é a métrica espaço-temporal, que, ao ser quantizada, dá origem ao gráviton enquanto partícula mediadora, do mesmo modo que o fóton advém da quantização do campo eletromagnético, como discutiremos na seção 2.7 2.7. Eletrodinâmica Quântica 2.7.1. O campo eletromagnético quântico A introdução do conceito de fóton implica, em um primeiro momento, em uma ambiguidade na descrição da radiação eletromagnética, que passa a ser ao mesmo tempo tratada como oscilação de um campo clássico e como ente com propriedades quânticas11. Como o caráter quântico dos fótons poderia emergir da propagação de um campo clássico? Essa inconsistência aponta para a necessidade de se quantizar o campo eletromagnético, i.e. descrevê-lo inteiramente de acordo com o paradigma quântico. A teoria quântica que descreve a interação entre partículas carregadas (por ex. elétrons) e o campo eletromagnético quantizado é chamada de Eletrodinâmica Quântica (Quantum Electrodynamics ou QED em inglês). Na QED, o campo eletromagnético passa a ser visto como uma ‘‘superfície’’ tridimensional12 vibratória que preenche todo o volume do espaço, análoga à superfície de um instrumento musical de percussão, como a pele de um tambor. À parte da dimensionalidade -- o campo preenche todo o espaço, enquanto a pele percussiva é plana, bidimensional --, a única (e crucial) distinção se deve ao caráter clássico das vibrações do instrumento musical e ao caráter quântico do campo quantizado13. A partir dessa analogia, e da compreensão de suas limitações, pode-se entender conceitos fundamentais da QED (e de Teorias Quânticas de Campos em geral). Primeiramente, assim como a superfície percussiva possui um estado em que não há quaisquer vibrações e nenhum som é emitido, também o campo quântico possui um estado fundamental, que é chamado de estado de vácuo (a motivação para essa nomenclatura ficará clara a seguir). No entanto, note que, por se tratar de um objeto quântico, não é possível afirmar que o campo no estado fundamental está em repouso. O princípio da incerteza garante que, mesmo no estado fundamental, há vibrações do campo, associadas à chamada “energia de ponto-zero”. Isso significa que o vácuo quântico tem energia, fato que tem consequências observáveis e aplicações práticas/tecnológicas, tais como: o efeito Casimir, que consiste na atração de duas placas metálicas, eletricamente neutras, imersas no vácuo. A atração se deve à modificação da energia do vácuo quântico na presença das placas. Mais especificamente, quanto mais próximas as placas, menor a energia do vácuo na região por elas limitadas; o processo de emissão espontânea de um fóton por um átomo no estado excitado, que dá origem aos espectros atômicos. No formalismo de Schrödinger da mecânica quântica, todas as camadas eletrônicas do átomo correspondem a estados estacionários, e a probabilidade de transição entre eles é nula. A transição do elétron entre camadas, e a consequente emissão de um fóton, só ocorre devido à interação do elétron com o vácuo eletromagnético quântico; por possuir energia, a relatividade geral de Einstein garante que o vácuo quântico gravita . Essa energia do vácuo age como uma constante cosmológica, contribuindo para a expansão acelerada do Universo. Entretanto, quando se compara a previsão teórica para a energia do vácuo quântico com o valor da constante cosmológica medido com base em observações da expansão do Universo, há uma discrepância de 120 ordens de magnitude! Ou seja, trata-se da pior previsão da história da Física! Esse é o chamado problema da constante cosmológica, ainda sem solução [54, 55]. Além do estado fundamental, uma superfície vibratória pode, obviamente, oscilar de diversas maneiras. Dentre elas, destacam-se os chamados modos normais de vibração, associados a ondas estacionárias, em que todos os pontos da superfície oscilam com a mesma frequência, como exemplificado ilustrativamente na Figura 16. Em um instrumento musical, um modo normal está associado a uma nota musical específica: quando se ataca a pele de um tambor, ela vibra em um modo normal e emite som da frequência para a qual o instrumento foi previamente afinado. No caso de um campo quântico, um modo normal de vibração corresponde a uma partícula de energia e momento definidos. Note o caráter explicitamente dual dessa descrição, que traça paralelos diretos entre partículas com energia definida e modos de oscilação de determinada frequência. O fato de a vibração não estar localizada em nenhuma região, mas ocorrer em todo o espaço ocupado pelo campo, como ilustrado na Figura 16, está de acordo com o esperado pelo princípio da incerteza de Heisenberg quando aplicado a uma partícula cujo momento linear é conhecido precisamente. Figura 16 Momentos distintos de um ciclo oscilatório associado a um modo normal de vibração para uma superfície bidimensional. No caso de um instrumento de percussão, esse padrão corresponderia a uma nota musical (i.e. uma frequência sonora) específica. Para um campo quântico, corresponde a uma partícula com energia e momento específicos. Fonte: adaptado de Wikimedia Commons/Domínio público. Essa interpretação de partículas como excitações do campo em modos normais de vibração justifica, ainda, a nomenclatura de vácuo para o estado fundamental, por corresponder ao caso em que o número de partículas se anula. Por fim, enfatiza-se que a mesma interpretação se aplica a partículas materiais: o elétron também é um modo normal de vibração de um campo fundamental, que podemos chamar de campo eletrônico ou campo do elétron. Isso explica, aliás, por que todos elétrons do Universo são idênticos: todos são vibrações de um único campo fundamental. O Modelo Padrão da Física de Partículas, embasado no formalismo de Teoria Quântica de Campos, é ao mesmo tempo uma teoria de partículas e uma teoria de interação entre campos. 2.7.2. Fótons virtuais como mediadoresda interação eletromagnética Em discussões anteriores (vide seções 2.4.2 e 2.5), foi apresentada a ideia de que a matéria não interage por contato direto entre seus constituintes, mas à distância, mediada por campos de interação, como o campo eletromagnético. Sob a perspectiva da QED, isso se traduz como a ausência de autointeração do campo de elétrons. Ao invés disso, a interação direta do campo eletrônico se dá com outro(s) campo(s), e a repulsão entre dois elétrons nada mais é do que um efeito colateral da interação de ambos com um campo intermediário. Esse processo de interação na QED está representado esquematicamente na Figura 17. Os dois picos mais protuberantes, de cor laranja, representam elétrons, i.e. excitações do campo eletrônico14, e o campo de fundo, de cor verde, corresponde ao campo eletromagnético. Devido à interação entre os dois campos, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz uma “nuvem” de excitações do campo eletromagnético ao seu redor, como na Figura 17(a). À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético (b), causando a mútua repulsão (c). Figura 17 (a) Dois elétrons (picos mais protuberantes, de cor laranja) afastados um do outro. Devido à interação entre o campo de elétrons e o campo eletromagnético, um elétron nunca existe isoladamente: sua presença induz excitações do campo fotônico ao seu redor. (b) À medida que os elétrons se aproximam, intensifica-se a troca de energia-momento entre ambos mediada por excitações do campo eletromagnético, causando a mútua repulsão. (c) Elétrons novamente distantes após a interação. Dá-se o nome de fóton virtual a qualquer excitação do campo eletromagnético que não corresponde a um modo normal de vibração, tais como as excitações do campo eletromagnético ilustradas na Figura 17. Um fóton virtual é, portanto, um estado não-estacionário, não necessariamente associado à propagação de uma onda, e portanto bastante diferente de um fóton real, como ficará ainda mais claro a seguir. Entretanto, justifica-se chamá-la de fóton por se tratar de uma vibração do campo eletromagnético, e, para distinguí-la de um fóton observável, usa-se essa adjetivação de virtual15. Note que há fótons virtuais sendo trocados em todas as três etapas da interação, representados pelas pequenas perturbações do campo eletromagnético entre os dois elétrons nas Figuras 17(a), (b) e (c). Mas a contribuição do fóton virtual ao espalhamento é mais significativa quando os elétrons estão mais próximos um do outro, como representado na Figura 17(b). Essa discussão será retomada em mais detalhes na seção 2.7.3 a seguir. Cabe ressaltar que, apesar de termos definido anteriormente um elétron como uma excitação do campo eletrônico, o que realmente se observa é o conjunto de excitações do campo eletrônico e do campo eletromagnético ao seu redor: diz-se que o elétron nunca é visto “nu”, mas está sempre “vestido” de uma nuvem de partículas virtuais. Esse fato será novamente discutido e melhor explorado na seção 2.9 a seguir. Ressalta-se, ainda, que a Figura 17 é apenas uma representação esquemática da interação, uma alusão semiclássica a um processo que é fundamentalmente quântico. O simples fato de desenhar as oscilações do campo pressupõe que saibamos a posição de cada ponto dessa superfície no espaço, em desacordo com o princípio da incerteza. Entretanto, ilustrar um campo quântico é impossível, e a representação acima, apesar de incompleta, fornece uma boa intuição sobre o processo de interação entre (excitações de) campos. Ainda relacionado às limitações da figura, note que, assim como a presença do elétron causa excitações do campo eletromagnético, estes fótons virtuais também induzem excitações do campo eletrônico, que induzem outras oscilações fotônicas, e assim sucessivamente. Ou seja, em torno das oscilações do campo eletromagnético dever-se-ia também ilustrar oscilações do campo eletrônico, e em torno dessas ilustrar outras excitações do campo eletromagnético, etc. A Figura 17 representa, portanto, apenas a primeira ordem de uma série de outros processos que poderiam ocorrer na presença de dois elétrons. Como se trata de um sistema quântico, não é possível dizer qual desses processos realmente ocorre: o resultado da interação é uma superposição quântica de todas essas possibilidades. Aqui o(a) docente pode fazer uma alusão direta ao experimento da fenda dupla, em que não é possível afirmar por qual fenda a partícula passa: a interferência é resultado da superposição das duas possibilidades de trajetórias, cada uma passando por uma fenda. 2.7.3. Diagramas de Feynman Outra maneira de representar a interação entre elétrons é através de um diagrama de Feynman, como na Figura 18. Aqui, o eixo vertical representa a dimensão espacial, e o eixo horizontal é a passagem do tempo. Representa-se, aqui, o mesmo processo ilustrado na Figura 17 anterior: dois elétrons interagindo pela troca de um fóton virtual. Entretanto, não é correto ler esse diagrama como se um dos elétrons (digamos, o elétron da parte superior da figura) tivesse emitido o fóton, e o outro (da parte inferior) o tivesse absorvido. Pois o processo oposto, em que o elétron inferior emitiu e o superior absorveu o fóton, é igualmente possível. E, se há dois processos intermediários possíveis, a mecânica quântica garante que a contribuição total aos processos físicos é a soma das contribuições dos processos intermediários. A Figura 19 mostra que o diagrama de Feynman da Figura 18 representa a soma (i.e. a superposição quântica) das duas ordenações temporais possíveis para a emissão e absorção do fóton intermediário [57, 58, 59]. Ou seja, a Figura 18 ilustra apenas que, em primeira ordem, esse processo ocorre mediante a troca de um fóton virtual, sem representar como esse processo de fato ocorre no espaço-tempo. Figura 18 Diagrama de Feynman ilustrando a interação entre dois elétrons mediada pela troca de um fóton virtual. Os pontos que conectam os elétrons ao fóton são chamados de vértices do diagrama. Figura 19 A interação entre elétrons pela troca de um fóton virtual deve levar em conta as duas possibilidades de ordenamento temporal, em que um elétron emite e o outro absorve o fóton trocado. Para compreender melhor a diferença entre fótons reais e virtuais, consideremos o balanço de energia-momento em um ponto de “emissão/absorção” do fóton no diagrama, i.e. em um de seus vértices. Sejam (E,p→) e (E′,p→′) a energia e momento linear de um elétron da Figura 18 (por ex., o elétron da parte superior do diagrama) antes e depois da interação (i.e. à esquerda e à direita do vértice, respectivamente), e sejam (Eγ,p→γ) a energia e momento do fóton virtual. A conservação de energia e momento na absorção/emissão do fóton impõe que (9) E = E γ + E ′ , (10) p → = p → γ + p → ′ , logo (11) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = ( E - E ′ ) 2 - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 . Como um fóton tem massa mγ = 0, esperar-se-ia, da relação relativística de energia-momento16, que (12) E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = m γ 2 ⁢ c 4 = 0 ⁢ ? No entanto, em um espalhamento de elétrons não há nada que vincule E a E′ ou p→ a p→′ a priori17 (tratam-se de variáveis livres do problema), de maneira que, em geral, o lado direito da equação (11) não se anula. Isso significa que um fóton virtual em geral não satisfaz a relação relativística de energia-momento. Ou, dito de outra forma, é como se a partícula virtual pudesse ter massa diferente da massa observada para excitações normais do campo em questão. Essa é outra importante distinção entre partículas reais e virtuais. Essa violação da equação (12) não é um problema, contanto que esteja dentro da margem de incerteza associada à energia e ao momento do fóton virtual. Pelo princípio da incerteza, a precisão com que se pode determinar a energia de um sistema (ΔE) é limitada pelo tempo disponível para ele interagir com um possível aparato medidor (Δt), assim como a incerteza em seu momento (Δp) cresce à medida que se reduz a região do espaço a que ele esteja restrito (Δx). Isso pode ser expresso matematicamente por meio das famosas relações de incerteza (13) Δ ⁢ E ⁢ Δ ⁢ t ≥ ℏ 2 , Δ ⁢ p ⁢ Δ ⁢ x ≥ ℏ 2 , com ℏ ≈ 1.05×10−34 kg m2/s a constante de Planck reduzida18. Assim, quanto menor for o tempo de vida de uma excitação de um campo, e/ou quanto menor for seu alcance espacial, maior será a incerteza associada à sua energia-momento, e portanto maior será a margem para uma aparente violação da equação (12). Mais especificamente, o espalhamento descrito pelo diagrama da Figura 18 é mediado por fótons de todas as possíveis virtualidades, e a interação final resulta da soma de todas as contribuições. Entretanto, para grandes distâncias entre as partículas interagentes, a sobreposição dos fótons virtuais resulta em uma interferência destrutiva (exatamente no sentido de interferência de ondas), de modo que quanto maior a virtualidade dos fótons mediadores, menores serão seus impactos no resultado final da interação. Assim, a grandes distâncias, apenas fótons de baixa virtualidade contribuem significativamente. Reciprocamente, a menores distâncias, a contribuição dos fótons de maior virtualidade também se torna relevante. Uma discussão muito detalhada desse efeito, ao mesmo tempo em que é acessível ao público geral, pode ser encontrada na ref. [57], cuja leitura é fortemente recomendada para uma maior compreensão da QED e um complemento da discussão aqui apresentada. O argumento exposto acima nos fornece uma maneira de compreender o comportamento da Lei de Coulomb sob uma perspectiva microscópica da interação eletromagnética. Consideremos o caso de um elétron espalhado elasticamente por uma carga muito mais pesada, e que portanto permanece aproximadamente estática, como esquematizado na Figura 20. Um exemplo é um experimento de difração de elétrons, ao estilo dos experimentos de Rutherford-Geiger-Marsden que levaram à descoberta do núcleo atômico19. Nesse caso, a energia cinética do elétron não varia (por se tratar de espalhamento elástico) e a equação (11) fica (14) virtualidade ≡ E γ 2 - | p → γ | 2 ⁢ c 2 = - | p → - p → ′ | 2 ⁢ c 2 = - 4 ⁢ | p → | 2 ⁢ c 2 ⁢ sin 2 ⁡ θ 2 , que define o “grau de virtualidade” do fóton através da medida de violação da relação relativística de energia-momento. Nessa equação, θ é o ângulo entre o feixe espalhado e a direção do feixe incidente (vide legenda da Figura 20), que varia entre θ = 0 (quando não há desvio) e θ = π (quando o feixe volta na mesma direção e sentido oposto ao incidente). Figura 20 Diagrama de Feynman para um espalhamento elástico por uma carga estática. Define-se o ângulo θ como o ângulo entre o momento final (p→′) e inicial do elétron (p→), medindo o desvio relativamente à direção do feixe incidente. Ele não aparece na figura, pois um diagrama de Feynman representa apenas uma esquematização do processo que contribui para a interação, e não ilustra como o espalhamento ocorre, de fato, no espaço-tempo. Veja comentário no início da seção 2.7.3, bem como a Figura 19. Nota-se que, quanto maior o ângulo θ de espalhamento relativo ao feixe incidente (i.e. quanto maior for a alteração do estado de movimento do elétron devido à interação), maior é a virtualidade, e portanto, pelo argumento anterior, menor deve ser o alcance dessa interação. Ou seja, o elétron só é desviado significativamente de sua trajetória incidente se ele se aproximar muito da outra carga. Por outro lado, um espalhamento em que o momento linear do elétron pouco varia, p→≈p→′ e θ ≈ 0, está associado a fótons que satisfazem a relação energia-momento em boa aproximação, e portanto podem mediar interações a longas distâncias. Posto de outra forma: quanto mais o elétron se aproxima de outra carga, maior poderá ser a virtualidade dos fótons trocados entre elas, e maior será o desvio da trajetória do elétron; ao passo que, se as cargas estão distantes, os fótons devem satisfazer a equação (12) em boa aproximação, o que corresponde, pela equação (14), a um desvio pequeno de trajetória. Esse é justamente o comportamento clássico da interação eletrostática: quanto mais distantes as cargas, menor é a força e, consequentemente, menor a variação do momento linear da partícula teste. O argumento acima apresenta uma explicação para esse fenômeno em nível microscópico. É possível mostrar que a relação de virtualidade dada pela equação (14) dá origem a uma energia potencial de interação do tipo V(r)∼1/r, que é justamente a energia potencial associada à lei de Coulomb. Note, ainda, que todos os fótons que contribuem para a Lei de Coulomb são virtuais. Uma outra maneira de refrasear a argumentação acima é a seguinte. Um fóton real, não massivo, contém apenas duas possíveis polarizações, que são transversais à direção de propagação20. Por outro lado, a violação da equação (12) implica que um fóton virtual possui uma terceira polarização, dita longitudinal, que não está associada a um grau de liberdade que se propaga. De fato, é possível mostrar que esse grau de liberdade longitudinal atua como mensageiro da Lei de Coulomb [59]. Segue-se que quanto maior for a virtualidade do fóton, maior é a contribuição da polarização longitudinal, e mais intensa a interação Coulombiana, como concluímos acima. a seguir. Muitos detalhes a respeito das propriedades dos grávitons e de suas interações ainda são desconhecidos, porque ainda não conseguimos construir uma teoria consistente da gravitação quântica, que unifique os princípios da mecânica quântica e da relatividade geral. No entanto, se a relatividade geral for, de fato, a descrição correta da gravitação macroscópica, então certamente o gráviton deve ser não-massivo. A busca por essa quantização da gravitação constitui um dos maiores problemas ainda em aberto da Física de Altas Energias.
  • 10
    De acordo com nosso entendimento atual, existem somente quatro interações fundamentais: a gravitacional, a eletromagnética, e as interações nucleares fraca e forte.
  • 11
    Note que essa ambiguidade não está associada à dualidade onda-partícula. O problema acima exposto diz respeito à impossibilidade de um mesmo objeto possuir um caráter clássico e quântico, simultaneamente. Já a dualidade onda-partícula é introduzida justamente como superação dos conceitos clássicos de “onda” e “partícula”, que não se aplicam a objetos quânticos.
  • 12
    Mais precisamente, uma hipersuperfície.
  • 13
    Tecnicamente, tanto a superfície sonora quanto o campo da QED podem ser descritos como uma coleção de osciladores harmônicos, mas no primeiro caso os osciladores são clássicos, e no segundo são osciladores quânticos.
  • 14
    Caso esses elétrons possuíssem momento bem definido, essas distribuições deveriam se espalhar por todo o plano da figura. Aqui, no entanto, tratam-se de pacotes de onda localizados em uma região do espaço, o que implica em uma incerteza no momento.
  • 15
    Existe um acalorado debate na literatura a respeito da existência ou inexistência de partículas virtuais. Para uma discussão a esse respeito, cf. ref. [5656. G. Jaeger, Entropy 21, 141 (2019).].
  • 16
    Não é necessário discutir extensamente sobre a teoria da relatividade especial para introduzir essa relação aos estudantes. Para os propósitos desta discussão, é suficiente dizer que a relação Newtoniana de energia-momento, E = p2/2m = mv2/2, é modificada para E2 = p2c2 + m2c4, de modo a incluir a energia de repouso. De fato, quando não há energia cinética, p=0, a relação relativística reduz-se à conhecida fórmula de Einstein E = mc2.
  • 17
    A relação relativística de energia-momento relaciona E a p e E′ a p através de
    E 2 - | p | 2 c 2 = m e 2 c 4 = E 2 - | p | 2 c 2 ,
    que podemos usar para reescrever o lado direito da equação (11) como
    E γ 2 - | p γ | 2 c 2 = 2 m e 2 c 4 - 2 ( E E - p p ) ,
    que em geral não é igual a zero.
  • 18
    Essa constante é característica da teoria quântica. Sempre que ela aparece, é indício de que há algum fenômeno quântico subjacente.
  • 19
    O experimento de Rutherford-Geiger-Marsden foi realizado com partículas α, ao invés de elétrons, mas a argumentação independe da natureza da carga teste, contanto que o espalhamento seja elástico.
  • 20
    Ou seja, o fato de a luz ser uma onda transversal advém do fato de o fóton não ter massa.
  • 21
    Vale enfatizar que essa superposição entre propagação de elétrons e pósitrons só se anula quando x e x + Δx estão fora do cone de luz um do outro. Quando ΔxcΔt, a interferência entre elétron e pósitron não é totalmente destrutiva, de modo a (felizmente) ser possível a transmissão de informação nesse caso.
  • 22
    Algumas partículas são as suas próprias antipartículas, como é o caso dos fótons.
  • 23
    É fácil mostrar, por conservação de energia-momento, que um par elétron-pósitron não pode resultar de um único fóton não-massivo, devendo portanto existir pelo menos dois fótons no estado inicial de um processo de criação de pares. Para um fóton virtual, o processo γe+ + e é permitido.
  • 24
    Inicialmente Dirac relutou em propor a existência de uma nova partícula, e supôs que os “antielétrons” que apareciam como soluções de sua equação eram os prótons. A exorbitante diferença entre as massas do elétron e do próton logo desmentiu essa hipótese, e, para a sorte de Dirac, Anderson detectou o pósitron poucos anos depois, corroborando o sucesso da descrição do elétron por Dirac.
  • 25
    Um exercício interessante consiste em aplicar as leis de conservação de energia e momento aos vértices do diagrama da Figura 25 para mostrar que o par elétron-pósitron só pode ser real se
    E γ 2 - | p γ | 2 c 2 ( 2 m e c 2 ) 2 .
  • 26
    Veja o apêndice A.4 A.4. Unidades naturais A Física de Partículas lida com fenômenos em escalas subatômicas, envolvendo ordens de grandeza muito díspares daquelas com que estamos familiarizados no dia a dia. Por isso, é difícil adquirir uma intuição acurada das quantidades físicas relevantes em termos das unidades do Sistema Internacional (metro, segundo, grama, etc.). Nesse caso é mais conveniente usar um outro sistema de unidades, chamado “sistema natural de unidades”, que será objeto de discussão nessa atividade. Mais especificamente, a proposta principal da atividade a seguir é discutir o papel das constantes universais na Natureza como fatores de conversão entre grandezas físicas que possuem uma relação íntima entre si, mas que foram inicialmente consideradas distintas no desenvolvimento histórico das teorias científicas. Um sistema natural de unidades é aquele em que essas grandezas intimamente relacionadas são tratadas como tal, em pé de igualdade. A discussão pode se iniciar com a constatação de que, por se tratar de uma teoria quântica relativística, duas constantes fundamentais aparecem frequentemente nas expressões das grandezas físicas computadas em Física de Partículas: ℏ ≃ 1.055 × 10 − 34 J ⋅ s ( constante de Planck 2 π ) , c ≃ 2.998 × 10 8 m/s ( velocidade da luz no vácuo ) . O(A) professor(a) pode, então, questionar os(as) estudantes por que essas constantes possuem esses valores específicos. O que esses números significam, de fato? A discussão é longa e profunda, mas um ponto que deve ser tocado é que esses números são específicos a um sistema de unidades em particular, e que, em outro sistema, os números seriam outros. Deve ficar claro aos(às) estudantes que isso não significa que o valor da constante muda. O que muda é a sua representação, que vai depender do sistema de unidades: expressar a velocidade da luz em milhas por hora resultará em um valor numérico diferente do citado acima, mas isso certamente não significa que a velocidade da luz foi alterada de alguma maneira. Essa discussão inicial abre margem para a questão: seria possível escolher um sistema de unidades em que ℏ = 1 e c = 1? Deve ficar claro, aqui, que esses valores são adimensionais. Isso pode introduzir alguma confusão na turma: como pode uma grandeza com dimensão de “metro/segundo” converter-se em uma constante adimensional? Podemos igualar unidades de comprimento e unidades de tempo? Se sim, o que isso significa? As respostas a essas perguntas são bastante profundas e, em última instância, essa discussão pode até mesmo ser utilizada para introduzir à turma alguns princípios básicos da relatividade especial. Para iniciar o debate, o(a) docente pode propor o seguinte problema. “Imagine, por um momento, que decidamos medir comprimentos, larguras e alturas usando unidades (e dimensões!) diferentes para cada uma dessas direções espaciais. Explique por que devem existir fatores de conversão entre essas unidades, e discuta suas propriedades. Discuta por que essa decisão, mais do que artificial, é antinatural.” O(a) docente pode pedir que os(as) estudantes criem nomes para as diferentes unidades de comprimento, largura e altura a serem usadas no exemplo, bem como fatores de conversão entre elas. O importante é concluir que usar unidades distintas não faz sentido, porque sempre podemos fazer uma rotação do objeto e converter largura em altura, altura em comprimento, e assim por diante (vide Figura 32). Se usamos unidades diferentes para cada dimensão espacial, sempre que rotacionássemos um objeto teríamos que usar fatores de conversão para reescrever suas dimensões nas unidades apropriadas. Como rotações não alteram o tamanho dos objetos, esses fatores de conversão seriam “constantes fundamentais da Natureza”. A escolha mais conveniente seria, portanto, fazer com que tais fatores de conversão sejam iguais à unidade (ou seja, fatores iguais a 1). Figura 32 Se utilizássemos unidades e dimensões distintas para medir altura, largura, e comprimento, sempre que fizéssemos a rotação de um objeto teríamos que recalcular suas dimensões. Como rotações não alteram o tamanho do objeto, esse cálculo envolveria fatores de conversão universais. A escolha mais conveniente é aquela em que esses fatores são todos unitários, ou seja, medimos todos os lados dos objetos usando as mesmas unidades. A universalidade da velocidade da luz nos indica, de igual modo, que espaço e tempo são dimensões distintas de um único ente: o espaço-tempo. E a conversão entre elas é feita pela propagação da luz, que oferece, aqui, o análogo à rotação espacial do objeto no exemplo da presente figura. Emendando essa conclusão, o professor pode então lançar a seguinte provocação: “A velocidade da luz no vácuo, c, é uma constante universal, com cujo valor quaisquer observadores sob quaisquer circunstâncias no Universo concordam. Podemos, portanto, considerar c como um fator de conversão, análogo ao caso da discussão anterior. Repetindo a argumentação acima, a que conclusões podemos chegar baseado na constância da velocidade da luz?” Em analogia direta à discussão anterior, a conclusão é que a propagação da luz constitui um processo físico universal que conecta tempo e espaço (análogo à rotação dos objetos no exemplo anterior, Figura 32). A constância da velocidade da luz indica que tempo e espaço são dimensões distintas de um mesmo objeto: o espaço-tempo. Portanto, é mais natural lidarmos com unidades em que c=1 e espaço e tempo são tratados indistintamente. Por fim, o(a) docente pode estender a analogia à outra constante universal: a constante de Planck. “Analogamente, que conclusões físicas podemos extrair da constância de ℏ?” A conclusão importante, aqui, é que ℏ conecta o conceito de energia a espaço e tempo. Essa conexão foi utilizada na seção 2.9 quando convertemos uma energia característica de um processo na escala de comprimento à qual ele está tipicamente associado. Essa relação também pode ser explorada, junto à atividade proposta anteriormente, na seção A.3, para discutir por que precisamos de aceleradores cada vez mais potentes, que realizem colisões a energias cada vez mais altas, para explorarmos a física microscópica, i.e. para entendermos como a matéria se comporta a distâncias cada vez menores. para uma atividade elucidando a relação entre energia e distâncias que emerge naturalmente no paradigma quântico.
  • 27
    É a chamada “constante de estrutura fina”, uma grandeza adimensional definida a partir da carga elétrica elementar e, da constante de Coulomb k, da velocidade da luz c e da constante de Planck reduzida ℏ, e é dada por αke2/ℏc.
  • 28
    É esperado que, a distâncias da ordem do comprimento de Planck, ℓP∼10−35 m, a interação gravitacional se torne relevante em nível quântico. A descrição desses efeitos tipicamente exige reformulações de nossos conceitos de partículas e campos, como nas chamadas teorias de cordas, ou uma discretização do próprio espaço-tempo, como no formalismo de spin foams e gravitação quântica de laços.
  • 29
    Para um elétron no orbital S, a probabilidade de encontrá-lo na região do núcleo atômico é não-nula. Isso não ocorre para nenhum outro orbital eletrônico, e portanto apenas os orbitais S são afetados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2021
  • Revisado
    13 Maio 2021
  • Aceito
    16 Maio 2021
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