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Alguns antecedentes medievais da cinemática moderna

Some medieval antecedents of modern kinematics

Resumos

Este trabalho trata das primeiras formulações teóricas da Cinemática, realizadas sobretudo no século XIV, no Merton College da Universidade de Oxford e na Universidade de Paris. Mostramos como os pensadores de Oxford definiram explicitamente o problema cinemático e elaboraram uma estrutura teórica para o tratamento quantitativo do movimento, ressaltando-se os conceitos de velocidade e aceleração. Destacamos os importantes resultados obtidos nesses estudos, como os Teoremas da Velocidade Média e da Distância Percorrida, aplicáveis a movimentos com aceleração constante. Vemos que, nas mãos dos pensadores da Universidade de Paris, o tratamento matemático adquiriu um amadurecimento, com a introdução de representações gráficas, a partir das quais os resultados puderam ser mais facilmente extraídos. Vemos também que, apesar de os estudos conduzidos em Oxford se caracterizarem por uma abordagem essencialmente teórica e abstrata, os desenvolvimentos realizados em Paris, pouco tempo após, marcaram-se por uma preocupação maior de aplicação do formalismo a problemas concretos, como por exemplo o movimento de queda livre e o da rotação de corpos rígidos.

Palavras-chave
História da Física; Ensino de Física; Mecânica; Cinemática; Física Medieval


This work deals with the first theoretical formulations of Kinematics, carried out mainly in the fourteenth century, at Merton College, University of Oxford, and at the University of Paris. We show how Merton’s scholars explicitly defined the kinematic problem and elaborated a theoretical framework for the quantitative treatment of movement, emphasizing the concepts of speed and acceleration. We highligth some important results obtained by these researches, such as the Theorem of Average Speed and the Theorem of Distance Traveled, both applicable to motions with constant acceleration. We see that, in the hands of the thinkers of the University of Paris, mathematical treatment acquired a greater maturity, with the introduction of graphic representations, from which the results could be more easily drawn. We also see that, despite the studies conducted at Oxford being characterized by an essentially theoretical and abstract approach, the developments carried out in Paris, shortly afterwards, were marked by a greater concern for an application of formalism to concrete problems, such as the motion of free fall and the rotation of rigid bodies.

Keywords
History of Physics; Mechanics; Kinematics; Medieval Physics


1. Introdução

Nos textos sobre história da Física é muitíssimo frequente encontrarmos o ponto de vista de que a obra de Galileu possui um caráter radicalmente inaugural, retirando somente de seu gênio inegável todos os elementos necessários à edificação de uma verdadeira ciência do movimento. Não se pode, é claro, sem uma indiscutível violação histórica, negar a Galileu o mérito de sistematizar os conceitos fundamentais de uma, de fato, nova mecânica, cuja formulação, apresentada na obra Discurso sobre Duas Novas Ciências , não foi corrigida pelos estudos posteriores, ainda que tenha sido imensamente alargada pelas ferramentas do cálculo infinitesimal, elaboradas poucas décadas mais tarde. Entretanto, talvez haja nessa negação intransigente de qualquer tipo de vinculação genética de sua contribuição científica muito da concepção romântica do intelecto genial, produzindo a história de nossa cultura por saltos e rupturas drásticas.

A essa visão épica da história do pensamento, contudo, opõe-se outra, que considera a ciência como construção gradual e coletiva, sem que se retire dos grandes vultos intelectuais seu papel de destaque. Dentro dessa perspectiva, podemos facilmente imaginar que, por mais genial que tenha sido, a obra de Galileu não foi uma criação a partir do nada Clagett-Oresme 1. M. Clagett, Nicole Oresme and the Medieval Geometry Qualities and Motions (University of Wisconsin Press, Madison, 1968).. Com efeito, de forma suficientement geral a história registra as etapas de uma evolução da ciência, que flui em ritmos variados, ora mais discretos, ora mais violentos, mas sempre contínuos. O caso do desenvolvimento da Mecânica não parece escapar a esse aspecto evolutivo.

Por outro lado, trata-se de um senso comum imaginar o período da Idade Média Ocidental como uma época nula em termos de desenvolvimentos científicos, particularmente da Física. Contudo, talvez para nossa surpresa, é lá que vamos encontrar muitos elementos de discussões embrionárias de nosso entendimento atual da Mecânica. Lá encontramos a elaboração gradativa de uma linguagem e de conceitos fundamentais, em uma formulação que viria a ser adotada em muitos pontos pelo próprio Galileu, de maneira quase textual.

Essa análise da gênese e da formação dos conceitos é de muito proveito, não somente para os estudiosos do Ensino de Física, como para os docentes em geral, que, em sua prática diária, se deparam com as dificuldades de entendimento por parte dos estudantes de algumas noções que a muitos pareceriam imediatas. A história mostra que essas noções estão longe disso. São construções complexas, cheias de sutilezas, mas cuja complexidade é escondida pela familiaridade que parecem ter para nós.

Apresentamos aqui, portanto, um pequeno levantamento histórico dos primórdios do desenvolvimento da Cinemática no período medieval. Encontramos aí as dificuldades de definição e caracterização precisa de elementos básicos da descrição mecânica, como, por exemplo, o de velocidade, hoje tão imediato, mas que parece ter sido explicitamente definido justamente naquele período, porém não antes.

No panorama dos estudos cinemáticos da Idade Média tardia se destacam dois polos intelectuais: as Universidades de Oxford, notadamente os estudiosos do Merton College, e a Universidade de Paris. Verificamos como, sob paradigmas completamente distintos dos nossos, esses pensadores se debruçaram sobre a formulaçao de uma análise quantitativa do movimento, obtendo alguns resultados cinemáticos bem notáveis, como o chamado Teorema da Velocidade Média, e apontando uma representação gráfica a partir da qual diversos desses resultados são concluídos de forma bastante direta.

Na primeira seção após a introdução, fazemos uma brevíssima exposição da Física aristotélica, apresentando o paradigma dentro do qual todos os estudos medievais foram conduzidos e sem conhecimento dos quais muito das problemáticas tratadas não podem ser compreendidas. Destacamos o fato de que encontramos na Física de Aristóteles os enunciados cinemáticos mais antigos de cujas fontes dispomos.

Na seção 3 3. Os Primórdios da Representação Geométrica do Movimento O século XII assistiu a um fenômeno cultural que foi batizado pelos historiadores de um primeiro Renascimento Intelectual, anterior em mais de duzentos anos àquele outro período que se popularizou por essa denominação. Isso se deu sobretudo a partir de dois elementos principais: o nascimento das Universidades e o chegada ao Ocidente cristão de uma enorme variedade de obras científicas e filosóficas, tanto da antiguidade grega como árabes [7, 8]. Destacam-se nesse cenário o conjunto das obras de Aristóteles, notadamente, em termos de nosso interesse, da Física . Esse imenso influxo de conhecimentos produziu proporcional impacto no pensamento medieval, impulsionando o interesse em áreas do saber que pouco, ou nada, haviam se desenvolvido na Europa Ocidental após o colapso da civilização romana. No que se refere à Física, no século XIV dois centros de estudos se tornaram proeminentes: primeiramente, a Universidade de Oxford; logo em seguida, a Universidade de Paris [5]. Os desenvolvimentos lá obtidos não se mantiveram restritos; pelo contrário, também no século XIV temos registros nas universidades italianas, bem como na Universidade de Praga, de estudos baseados nos trabalhos dos pensadores do Merton College de Oxford [5, 6, 7, 8, 9]. Esses primeiros estudos cinemáticos foram baseados na Física de Aristóteles, porém dela diferiram de forma muito significativa. Como vimos, o objeto da Física aristotélica eram os movimentos, no sentido mais amplo que o termo possuía no pensamento grego: não apenas as mudanças de lugar, mas também as chamadas mudanças qualitativas e quantitativas. No entanto, essa ciência era uma formulação essencialmente qualitativa; segundo Aristóteles, a matemática não encontrava lugar em uma descrição dos fenômenos do mundo terrestre. De fato, a concepção de Aristóteles era a única base mais substancial sobre a qual os pensadores medievais poderiam apoiar uma retomada dos estudos do mundo físico. No entanto, eles nela introduziram elementos de análise quantitativa, ausentes da formulação aristotélica original, a chamada doutrina da “latitudes das formas” [10]. Aparentemente, esse conceito surgiu pela primeira vez no âmbito dos estudos médicos de Galeno – século II de nossa Era –, associado à ideia de que a constituição humana se estabelece por estados que veriam gradativamente desde a plena saúde, em um extremo, até a morte, no outro extremo, passando por graus intermediários de menor saúde, inclusive uma zona cinzenta, à qual não se pode atribuir uma condição saudável, porém tampouco uma condição doentia. Na teoria médica de Galeno, esses estados de saúde estão associados às proporções de quatro “humores”(fluidos corporais), naturalmente presentes no organismo: sangue, fleuma, bílis negra e bílis amarela. Uma proporção balanceada significa uma condição saudável do organismo; já o excesso ou carência de um deles implica uma condição doentia. Podem existir margens de variação nessas proporções sem que o indivíduo adoeça, mas a vida humana não sobrevive além de determinados limites, que constituem as(os) “latitudes”(valores) extremas(os) que as qualidades (humores) podem assumir no organismo sem comprometer a vida. A teoria de Galeno incorporava também a doutrina aristotélica das quatro qualidades opostas fundamentais: quente e frio, úmido e seco. Cada um dos humores teria diferentes qualidades: o sangue seria quente e úmido; a fleuma, fria e úmida; a bílis amarela, quente e seca, e a bílis negra, fria e seca. Conforme houvesse excesso ou déficit de um desses fluidos, o organismo assumiria uma gama de estados frios ou quentes, úmidos ou secos. O pensamento medieval introduziu então uma abordagem quantitativa a essas variações e associou a essa sucessão de estados intermediários um continuum geométrico; as diversas latitudes das qualidades constituíam pontos desse continuum , variando entre os extremos admissíveis. Formou-se a partir daí um embrião de representação gráfica das variações nos valores das diversas qualidades. apresentamos as primeiras ideias de representação geométrica do movimento, através da chamada doutrina da latitude das formas, que formará a base dos estudos medievais sobre o tema.

Na seção 4 4. Os Estudos Cinemáticos do Merton College de Oxford Entre os estudiosos de Oxford que se dedicaram ao estudo da Cinemática destacam-se os nomes de Thomas Bradwardine (1290–1349), William Heytesbury (c.1313–1371/1372), Richard Swineshead (dados incertos) e John Dumbleton (1310–1349). Com esses pensadores já se apresentaram alguns primeiros elementos que viriam a constituir a mecânica moderna. O primeiro desses elementos foi uma distinção clara entre o estudo do movimento segundo suas causas, calcado antes de tudo em uma relação entre as forças atuantes e a velocidade do móvel – e por isso chamada de Dinâmica –, e um estudo do movimento segundo suas características em si mesmas, por eles denominado de Cinemática . Na verdade, essa distinção já começou a se esboçar entre os comentadores de Aristóteles, notadamente os árabes Averroes e Avempace. Embora não tenhamos o comentário original de Avempace sobre a Física de Aristóteles, temos dele as citações do próprio Averroes. Em seu livro Física , Aristóteles afirma que a velocidade de um corpo que se move através de um meio material é inversamente proporcional à densidade desse meio, de tal modo que, se houvesse vácuo e, consequentemente, nenhuma resistência ao movimento, a velocidade desse movimento seria infinita (Livro IV-Cap.8, p. 215a apud [6]). A partir da citação de Averroes, sabemos que Avempace criticou essa tese [11, 12]. Para ele, a velocidade do móvel seria proporcional não à razão, mas à diferença entre a força motriz e a força resistente que sobre ele agem. A densidade do meio afetaria diretamente apenas essa última. Dessa maneira, a ausência de resistência não introduziria qualquer inconsistência lógica à dinâmica do movimento. Avempace, porém, aqui levanta uma interessante questão, pois ele diz que não se segue que a proporção do movimento de uma e mesma pedra na água, em relação a seu movimento no ar, é a proporção da densidade da água para a densidade do ar, a não ser na suposição de que o movimento da pedra leva algum tempo somente porque ela é movida através de um meio. E se essa hipótese fosse verdadeira, seria então o caso de que nenhum movimento requereria tempo, salvo se alguém lhe resistisse – pois o meio parece resistir à coisa movida. E se fosse assim, então os corpos celestes, que não encontram qualquer meio resistente, seriam movidos instantaneamente. E ele diz que a proporção da raridade da água em relação à raridade do ar está na proporção do retardo ocorrendo ao corpo movente na água em relação ao retardo ocorrendo no ar…. E se concedermos o que ele disse, então a demonstração de Aristóteles será falsa; porque, se a proporção da raridade de um meio em relação à raridade do outro é como a proporção do retardo acidental do movimento em um deles para o retardo ocorrendo no outro, e não como a proporção do movimento, ele mesmo, não se seguirá que aquilo que é movido no vácuo seria movido em um instante; porque, nesse caso, seria subtraido do movimento apenas o retardo afetando-o em razão do meio, e seu movimento natural permaneceria. E todo movimento envolve tempo; logo, aquilo que é movido no vácuo é necessariamente movido no tempo e com o movimento divisível; e nada impossível se seguiria. (Averroes, Comentários sobre a Física de Aristóteles (Texto 71), apud [12]). Para Avempace, pois, a ideia de movimento não é indissociável de meio material; o único requisito lógico para a inteligibilidade dessa ideia é o conceito de uma extensão espacial percorrida em certo tempo. Em outras palavras, Avempace concebe uma abordagem cinemática do problema. Averroes criticava essa posição de Avempace e, pelo contrário, sustentava na íntegra a tese aristotélica da impossibilidade do vazio. Esse debate se transmitiu ao Ocidente cristão: o filósofo São Tomás de Aquino adotou posições próximas à de Avempace, ao passo que Alberto Magno e Egídio Romano mantiveram-se ao lado de Averroes e do aristotelismo ortodoxo. Mas contra esse argumento de Aristóteles levantam-se várias dificuldades. A primeira delas é que não parece que se siga de que, se houvesse movimento no vácuo, ele não teria proporção em sua velocidade com o movimento que ocorresse no pleno. Pois qualquer movimento que seja possui uma determinada velocidade, em virtude da proporção entre a potência do motor em relação ao corpo movente, mesmo que não houvesse qualquer resistência. E isso é evidente tanto por exemplos como pela razão. Por exemplo, no caso dos corpos celestes, a cujo movimento nada resiste; apesar disso sua velocidade é determinada, de acordo com um tempo finito. (S. Tomás de Aquino, In octo libros Physicorum Aristotelis Expositio , Lib. IV, Lect. II, apud [12]) Os filósofos franciscanos do século XIV, Roger Bacon e Duns Scotus também se perfilaram ao lado de Avempace, encampando a tese que São Tomás de Aquino tornou decisiva em defesa de Avempace – a de que o caráter essencial do movimento está ligado a uma extensão percorrida em certo tempo, ao passo que a resistência que eventualmente lhe é oposta é apenas um elemento acidental. A distinção esboçada entre abordagem Cinemática e Dinâmica foi explicitada na obra De Motu , atribuída a Richard Swineshead: Tendo falado de maneira genérica em relação à medida da velocidade com respeito à causa, devemos agora ver sua medida com respeito aos efeitos (apud [5], p. 243), bem como na obra de 1328, Tratado sobre as Proporções de Velocidades em Movimentos , de Thomas Bradwardine, cujos terceiro e quarto capítulo tratam, respectivamente e de modo distinto, das “proporções das velocidades no movimento com relação às forças dos motores e das coisas movidas”, ou seja, uma abordagem dinâmica, e “com relação às magnitudes da coisa movida e do espaço percorrido”, isto é, um tratamento cinemático. De resto, a caracterização cinemática aparece de forma explícita em uma obra denominada Do Continuum , também atribuída a Bradwardine: 3. Um contínuo sucessivo é um contínuo cujas partes são sucessivas em relação ao antes e o depois(…)11. Movimento é um contínuo sucessivo medido por tempo. (Apud [5], p. 230). Na verdade, a ideia de se analisarem movimentos locais (deslocamentos) sob o ponto de vista quantitativo não é, absolutamente, original. Ela está presente na antiguidade grega, a começar pela Física de Aristóteles, em cujo livro VII o filósofo estabelece relações comparativas entre movimentos distintos, em termos de distâncias espaciais e tempo. Ainda na Grécia antiga, outros trabalhos, como De Spera (Sphaera) mota , de um autor chamado Autolycus de Pitane, escrita por volta de 310 A.C., além de obras de Arquimedes, apresentaram relações quantitativas dessa natureza. No entanto, repisemos, os gregos somente compararam dimensões espaciais a espaciais, e temporais a temporais. Nesse quesito, a originalidade dos medievais reside sobretudo na introdução de um elemento novo, a saber, a explicitação de uma grandeza velocidade, quantitativamente determinável [5]. Na realidade, os estudiosos de Oxford desenvolveram toda uma série de conceitos necessários ao tratamento cinemático do movimento, nem sempre empregando a mesma linguagem hoje utilizada, mas sempre de uma forma em que é possível estabelecer uma correspondência com os significados modernos, a começar por uma definição mais precisa do próprio conceito de velocidade. Os oxfordianos estabeleceram uma classificação dos movimentos locais. Cunharam o termo “diformes” para os movimentos em que, diferentemente dos uniformes, em tempos iguais não são percorridas distâncias iguais. Dentro dessa categoria, definiram os chamados “uniformemente diformes”, aqueles em que, em tempos iguais, há incrementos iguais nos graus de movimento (velocidade). Particularmente no que se refere à ideia de velocidade, os estudiosos do Merton College desdobraram seu significado em diferentes denominações. Além do termo velocidade, eles empregavam os termos “qualidade de movimento” ou “velocidade qualitativa”, “quantidade de movimento” ou “velocidade quantitativa”, e, ainda, “graus de movimento”, com significados distintos: em alguns casos, sutilmente distintos, em outros, substancialmente. A distinção entre “qualitativo” e “quantitativo” guarda relação com a ideia de grandezas intensivas e extensivas, expressas originalmente como “quantidades virtuais” ou intensivas, e quantidades “corporais ou dimensionais”. As quantidades intensivas se referem aos valores de uma grandeza em cada ponto, ao passo que as extensivas se referem aos efeitos acumulativos da grandeza, somados por toda a extensão em que essa grandeza se faz presente. Nesse sentido, a ideia de velocidade qualitativa corresponde à velocidade em certo instante, ao passo que a velocidade quantitativa corresponde à distância percorrida ao final de certo tempo – aparentemente os medievais não faziam distinção entre os conceitos de distância percorrida e deslocamento, como nós hoje fazemos. Já o termo “graus de movimento” representaria o valor numérico da grandeza velocidade. Essa distinção entre velocidade quantitativa e qualitativa surge de forma mais clara com uma representação gráfica, introduzida por volta de 1350, conforme veremos adiante. O movimento diforme (variado), em que a velocidade muda, coloca justamente o desafio da definição e determinação da velocidade instante a instante. A solução encontrada pelos estudiosos de Oxford, explicitada tanto por Heytesbury quanto por Swineshead, foi defini-la em termos de uma distância percorrida, mais precisamente a extensão percorrida em certo tempo caso o objeto tivesse prosseguido uniformemente com a velocidade que possuía no instante citado. Em Do Movimento , manuscrito atribuído a R. Swineshead, temos: O motivo de que a velocidade desse movimento [diforme] seja medido por uma linha descrita é esse: a todo grau de velocidade em um movimento local (isto é, de velocidade qualitativa ou instantânea) corresponde uma distância linear que seria descrita em certo tempo, assumindo-se um movimento durante todo o tempo com esse mesmo grau. (Apud [5], p. 243). Já em Regras para Solução de Sofismas , de W. Heytesbury, encontramos: Em um movimento não uniforme, a velocidade em qualquer instante será medida (attendetur) pelo caminho que seria descrito pelo ponto mais rápido se, em um período de tempo, ele fosse movido uniformemente com o mesmo grau de velocidade (uniformiter illo gradu velocitatis) com o qual era movido no referido instante, qualquer que seja ele. (Apud [5], p. 236). Vale dizer que, em sua obra Discurso sobre duas novas Ciências , Galileu ainda aplica essa mesma forma de determinação da velocidade. Assim, podemos conceber que o movimento é uniformemente e continuamente acelerado quando, em iguais períodos de tempo, iguais incrementos de rapidez são adicionados… Para colocar a matéria de maneira mais clara, se o corpo móvel continuasse seu movimento com o mesmo grau de momento de velocidade (gradus seu momentum velocitatis) que adquiriu ao final do primeiro intervalo de tempo, e continuasse a se mover uniformemente com esse grau de velocidade, então seu movimento seria duas vezes mais lento do que aquele que teria caso sua velocidade (gradus celeritatis) tivesse sido adquirida em dois intervalos de tempo. (Apud [5], p. 236), e ainda Disso claramente se segue que tal velocidade instantânea e não uniforme (velocitas instantanea) não é medida pela distância percorrida, mas pela distância que seria percorrida por tal ponto, caso ele se movesse uniformemente por tal ou tal período de tempo com a mesma velocidade com a qual era movido no instante assinalado. (Apud [5], p. 236). Na verdade, o que se observa é que, na ausência da ferramenta do cálculo diferencial, capaz de estabelecer uma definição precisa de velocidade instantânea, torna-se um desafio aparentemente insolúvel determinar a velocidade de outra maneira que não a proposta em Merton. Os estudiosos do Merton também explicitaram uma grandeza denominada aceleração. Embora a ideia de um movimento de ritmo variável fosse discutida desde a antiguidade, em particular na obra de Strato, citada no Comentários sobre a Física de Aristóteles , do também grego Simplício, o tratamento dado naquela época era sempre em termos de espaços percorridos e tempos.1] É natural imaginarmos que o conceito de aceleração não tenha sido elaborado pelos antigos, na ausência da formalização do próprio conceito de velocidade. Dado esse passo, os estudiosos de Merton já eram capazes de tratar explicitamente a questão. Novamente em W. Heytesbury, Regras para Solução de Sofismas , temos: 1-Pois um movimento qualquer é uniformemente acelerado (uniformiter intenditur) se, em qualquer uma das iguais partes de tempo, ele adquire um igual incremento (latitudo) de velocidade. E tal movimento é uniformemente desacelerado se, em cada uma das iguais partes de tempo, ele perde um igual incremento de velocidade. Mas um movimento é não uniformemente acelerado quando adquire ou perde um maior incremento de velocidade em uma parte do tempo do que em outra igual. (Apud [5], p. 237), enquanto no fragmento De Motu , atribuído a Swineshead, encontramos Deve-se saber também, assim como a aceleração (intensio motus) está relacionada (se habet) à velocidade, a velocidade está relacionada ao espaço; pois, assim como o espaço é adquirido na velocidade, a velocidade é adquirida na aceleração. Logo, assim como no caso do movimento local uniforme onde a velocidade é medida pela máxima linha descrita por algum ponto [em dado tempo], a aceleração é medida pelo máximo incremento (latitudo) de velocidade adquirido em certo tempo. (Apud [5], p. 244). , nos dedicamos à apresentação dos estudos conduzidos no Merton College da Universidade de Oxford, no śéculo XIV. Vemos como esses estudos constituem a primeira elaboração, propriamente dita, da Cinemática, e como até mesmo a explicitação da natureza do problema cinemático, como estudo do movimento em si e não de suas causas, surgiu nesse período.

Na seção 5 5. Os Teoremas da Velocidade Média e da Distância Percorrida Os estudiosos do Merton College enunciaram dois importantes teoremas iniciais da Cinemática: os chamados Teoremas da Velocidade Média e da Distância Percorrida. O Teorema da Velocidade Média afirma que, em um movimento uniformemente acelerado, ao final de certo tempo a distância percorrida teria sido a mesma caso o móvel, em lugar de um movimento diforme, realizasse um movimento uniforme, com um valor de velocidade igual ao valor possuído no instante exatamente intermediário dos instantes inicial e final, correspondentes ao movimento real. O enunciado mais antigo desse teorema parece ter sido proposto por Heytesbury, em torno de 1335, na obra Regras para soluções de Sofismas . Pois, caso comece do grau zero ou de algum outro grau finito, todo incremento de latitude (isto é, incremento da velocidade ou diferença de velocidade), desde que seja adquirido ou perdido uniformemente, corresponderá ao seu grau médio. Assim, o corpo movente, adquirindo ou perdendo uniformemente essa latitude (incremento) durante certo período de tempo, atravessará uma distância exatamente igual àquela que atravessaria em igual período de tempo, caso fosse movido com seu grau médio de velocidade…Pois cada movimento, como um todo, completado no período total de tempo, corresponde a seu grau médio – a saber, ao grau que teria possuído no instante médio de tempo. (Apud [5], p. 263). Entre a data acima e 1350 várias foram as provas apresentadas para o Teorema da Velocidade Média. Suas datas são relativamente incertas [5]. Apresentaremos aqui uma demonstração elaborada por Heytesbury, nas Regras . Na demonstração, Heytesbury propõs quatro objetos se movendo, A, B, C e D: o primeiro se movimenta uniformemente, durante uma hora, com velocidade igual à metade de certo valor V; o segundo se movimenta durante meia hora, com aceleração uniforme, partindo de V/2 até chegar à velocidade V; C se movimenta por meia hora, também com aceleração uniforme, porém decrescendo de velocidade, desde V/2 até 0; por fim, D se movimenta durante toda a hora, com aceleração uniforme, indo de velocidade 0 até V, ao final do intervalo. Primeiramente, Heytesbury argumenta que B, durante a meia hora em que se movimenta, anda a mesma distância que D, em sua meia hora final. Por outro lado, também argumenta que um corpo em movimento uniformemente acelerado, partindo de uma velocidade 0 até V, percorrerá ao final de um tempo T a mesma distância que um corpo desacelerando, também uniformemente, no mesmo tempo, de V até 0. Com base nisso, Heytesbury afirma que C percorre, em sua meia hora de movimento, a mesma distância que D percorre, em sua primeira metade. Sendo assim, a soma das distâncias percorridas por B e C é igual à distância percorrida por D, ao final da hora completa. No entanto, se B e C tivessem permanecido com os valores iniciais de velocidade, em ambos os casos V/2 – que é a velocidade de A –, cada qual teria percorrido durante a meia hora de seu movimento o mesmo que A nesse tempo, ou seja, teriam percorrido, somados os seus movimentos, a mesma distância que A na hora completa. Na verdade, suas velocidades variaram, mas variaram simetricamente em relação ao valor médio, de tal modo que a distância que um percorreu a mais do que A, o outro percorreu exatamente a menos. Desta maneira, a soma total das distâncias percorridas por B e C é igual à distância percorrida por A, com velocidade uniforme V/2. Como a soma de B e C é igual tanto à distância percorrida por D quanto por A, essas duas últimas são iguais, de modo que o teorema está demonstrado. Já o Teorema das Distâncias Percorridas afirma que, em um movimento uniformemente acelerado, se tomarmos certo intervalo de tempo, a distância percorrida pelo móvel na primeira metade desse intervalo estará para a distância percorrida na segunda metade na razão de 1:3. Esse teorema parece ter surgido pela primeira vez na obra Probationes Conclosionum , de autor incerto, mas que é possível que seja de Heytesbury. Apresentaremos aqui a prova elaborada por Swineshead, em seu tratado Regras sobre os movimentos locais , que contém sofisticados elementos de argumentaçao, que, por sua vez, sugerem o uso implícito de raciocínios infinitesimais. Apresentemos, então, os passos dessa demonstração, em linguagem modernizada, tal como recuperado por Marshall Clagett a partir dos manuscritos originais [5]. Primeiramente, Swineshead considera uma partição do intervalo de tempo T, subdividindo-ao em duas metades. Em seguida, toma a metade final e sobre ela refaz a divisão, repetindo o processo sucessivamente. Matematicamente, escreveríamos (1) T = t + t 2 + t 4 + t 8 + t 16 + … ⁢ … . onde t=T2. Em seguida, Swineshead considera que cada parcela dessas ainda representa um intervalo de tempo finito. Dessa forma, subdivide cada um deles em n intervalos iguais, fazendo n tender ao infinito. Assim, podemos escrever a primeira parcela como (2) t = Δ ⁢ t 11 + Δ ⁢ t 12 + Δ ⁢ t 13 + ⋯ + Δ ⁢ t 1 ⁢ n t / 2 = Δ ⁢ t 21 + Δ ⁢ t 22 + Δ ⁢ t 23 + ⋯ + Δ ⁢ t 2 ⁢ n t / 4 = Δ ⁢ t 31 + Δ ⁢ t 32 + Δ ⁢ t 33 + ⋯ + Δ ⁢ t 3 ⁢ n … ⁢ … ⁢ … Como cada intervalo da partição é subdividido em número n igual de subintervalos, um subintervalo de um intervalo guardará em relação ao subintervalo do intervalo imediatamente anterior a mesma proporção que esses intervalos guardam entre si, isto é, um fator 2. Assim, podemos escrever (3) Δ ⁢ t 11 = 2 ⁢ Δ ⁢ t 21 Δ ⁢ t 12 = 2 ⁢ Δ ⁢ t 22 … ⁢ … . (4) Δ ⁢ t 31 = 2 ⁢ Δ ⁢ t 21 Δ ⁢ t 32 = 2 ⁢ Δ ⁢ t 22 … ⁢ … e assim por diante. Swineshead parte então para uma análise das velocidades. Ele estabelece que, da natureza do movimento uniformemente desacelerado, a velocidade guarda uma relação com os tempos análoga a (4), ou seja, (5) v 11 = 2 ⁢ v 21 v 12 = 2 ⁢ v 22 … ⁢ … . (6) v 31 = 2 ⁢ v 21 v 32 = 2 ⁢ v 22 … ⁢ … Há nesse ponto dois aspectos que precisam de explicação. Em primeiro lugar, Swineshead parece tomar como evidente o comportamento acima da velocidade em movimentos com aceleração uniforme. Na verdade, isso precisa de confirmação. Por outro lado, parece implícito no raciocínio que, pela magnitude dos subintervalos tij, com n tendendo para infinito, devemos tomar a velocidade em cada um deles como constante. Aí reside uma das grandes sutilezas do raciocínio. Verifiquemos, então, – de maneira anacrônica, ressalte-se – a primeira parte, isto é, que as velocidades no movimento em questão se comportam da forma descrita em (6). Para tanto, consideremos um movimento uniformemente desacelerado, partindo de certa velocidade V até zero, em um intervalo T. Façamos uma partição de T conforme a receita acima. Façamos agora um gráfico desse movimento (Figura 1): Figura 1 A figura representa um movimento uniformemente desacelerado, de um valor v de velocidade até 0, em um tempo T. Os instantes t1i e t2i representam o início dos i-ésimos subintervalos correspondentes ao primeiro e segundo intervalos. Por semelhança entre os triângulos retângulos de hipotenusas AB e AC, escrevemos: (7) v 1 ⁢ i v 21 = T - t 1 ⁢ i T 2 - t 2 ⁢ i Chamemos de Δt o tamanho do subintervalo do primeiro intervalo. Como t1i é o i-ésimo subintervalo, temos t1i = i.Δt, e t2i = i.Δt/2. Substituindo esses valores em (7), temos (8) v 1 ⁢ i v 21 = T - i . Δ ⁢ t T 2 - i ⁢ Δ ⁢ t 2 = 2 , confirmando para os dois primeiros intervalos a relação entre velocidades admitida por Swineshead. Para os demais intervalos, a validade segue-se imediatamente a (8). Nesse ponto, Swineshead aplica para cada subintervalo a relação sij = vijtij, própria do movimento uniforme. Isso faz sentido dentro do raciocínio de que, ao fazermos o número de subintervalos tender a infinito, o tamanho de cada um deles vai a zero, admitindo, portanto, a consideração de um movimento aproximadamente uniforme. Sendo assim, temos, por exemplo, (9) s 11 s 21 = v 11 v 21 ⁢ t 11 t 21 = 4 , já que t11 = 2t21 e v11 = 2v21. De (9) podemos imediatamente concluir que as distâncias percorridas nos primeiros dois intervalos da partição estão na relação (10) S 1 = 4 ⁢ S 2 S 2 = 4 ⁢ S 3 … ⁢ … ⁢ … Temos, então, a distância total percorrida (11) S = S 1 + S 2 + S 3 + … ⁢ … , e a distância percorrida na segunda metade (12) S I ⁢ I = S 2 + S 3 + S 4 + … ⁢ … , Aplicando as relações (10) em (13), temos (13) S = 4 ⁢ S 2 + 4 ⁢ S 3 + 4 ⁢ S 4 + … ⁢ … , ou seja, S = 4SII, isto é, a distância percorrida na segunda metade do trajeto é igual a um quarto da distância total. Portanto, a relação entre as distâncias percorridas na primeira e na segunda metades é de 3:1, demonstrando, então, o teorema! Uma vez demonstrado esse teorema, em seguida Swineshead faz uma prova do Teorema da Velocidade Média por redução ao absurdo: admite que a velocidade equivalente – em termos de distância percorrida – não seja a média aritmética das velocidades inicial e final e mostra que, se assim fosse, o teorema anterior, já demonstrado, seria violado. damos destaque a um importante resultado obtido pelos pesquisadores do Merton College: o chamado Teorema da Velocidade Média, referente à equivalência em termos de deslocamentos efetuados em certo intervalo de tempo entre um movimento uniformente acelerado e um movimento uniforme, realizado com uma velocidade exatamente igual ao valor intermediário entre as velocidades dos extremos do intervalo considerado. Lembremos que esse resultado foi recuperado por Galileu em sua obra Discurso sobre duas novas ciências e aplicado à descrição do movimento de queda livre dos corpos, válida em uma hipotética situação de resistência nula do ar.

Nos defrontamos na seção 6 6. Nicole Oresme Ainda no século XIV, o tratamento cinemático sofreu uma nova evolução nas mãos do francês Nicole Oresme (c. 1323–1382), professor da Universidade de Paris. A grande contribuição de Oresme foi a representação gráfica das medidas de uma grandeza intensiva e da quantidade extensiva associada. Não se pode dizer que a representação gráfica das grandezas tenha sido obra plenamente original de Oresme. A datação de manuscritos mostra que um monge franciscano italiano, de nome Giovanni di Casali, utilizou uma representação dessa natureza em sua obra Sobre a velocidade do movimento de alteração , reak de 1346: Essas coisas qualitativas podem ser exemplificadas. Pois algo uniformemente quente é completamente equivalente a um paralelogramo retangular, construído entre duas linhas paralelas [AB e CD]. Então, qualquer parte desse retângulo é tão grande (lata) quanto qualquer outra, pois a latitude de cada parte dessas é medida pela base. Do mesmo modo, uma “quentura”[aspas nossas] uniformemente diforme é, em todo lugar, equivalente a um triângulo [ABC] [reto?]; seria uma quentura uniformemente diforme terminado em zero em um dos extremos [ponto A]. (Apud [5], p. 383). Uma importante distinção na representação gráfica proposta por Casali é a de que, contrariamente ao que seria adotado por Oresme, a intensidade da qualidade em cada ponto é representada por segmentos horizontais – segundo a tradição recém criada –, e não verticais, ao passo que os pontos aos quais são atribuídos esses valores estão distribuídos nas verticais. A representação gráfica se torna mais clara com Oresme. Como dissemos, ele aplica sobre ela uma rotação de noventa graus, representando na linha horizontal seja a extensão do corpo analisado, seja o intervalo de tempo considerado, enquanto na linha vertical representa a intensidade da grandeza considerada em cada ponto ou em cada instante. Logo, tal intensão deve ser imaginada por linhas; e, mais convenientemente e verdadeiramente, por linhas aplicadas ao sujeito, erguidas perpendicularmente a ele. (Apud [5], p. 348). Como exemplo dessa representação apresentamos na Figura 2] dois retângulos de mesma altura tendo, porém, bases diferentes. A altura dos retângulos corresponde à velocidade qualitativa, em movimentos cuja velocidade seja constante, ao passo que a base representa os intervalos de tempo diferentes em que ocorrem os dois movimentos. As diferentes áreas dos retângulos representam o que os medievais chamavam de quantidade de movimento e que, para nós, significaria o deslocamento realizado. Figura 2 Nas figuras da esquerda e do centro temos dois retângulos. As alturas AB e CD dos retângulos representam a velocidade qualitativa (instantânea) em cada instante. Como elas se mantêm constantes em todo o tempo, as figuras representam dois movimentos uniformes. Entretanto, as áreas, que representam as distâncias percorridas (velocidade quantitativa), são diferentes, pois as bases são diferentes, correspondendo a intervalos de tempo distintos. Já na figura da direita, a linha vertical EF varia linearmente ao longo do tempo, caracterizando um movimento uniformemente diforme. Podemos tomar como outro exemplo um movimento uniformemente diforme. Nesse caso, a representação gráfica da velocidade mostra uma reta inclinada. Supondo-se que o móvel tenha partido do repouso, teríamos a figura de um triângulo. Evidentemente a velocidade qualitativa, medida pelo segmento vertical unindo o ponto da base à reta inclinada, aumenta de instante para instante. Já a velocidade quantitativa é representada pela área do triângulo. O tratamento de Oresme é geral, para movimentos quaisquer, não somente locais. É uma abordagem gráfica das variações de qualidade. Em vários pontos, no entanto, ele é específico em relação à representação de velocidades e distâncias percorridas. De posse de sua representação gráfica, Oresme demonstra com extrema simplicidade o Teorema do Velocidade Média de Merton. De fato, consideremos um movimento uniformemente diforme, representado por um triângulo retângulo ABC, como na Figura 3]: Figura 3 A figura mostra um triângulo ABC, representando um movimento uniformemente diforme. O segmento inclinado representa as velocidades nos instantes de tempo entre A e B. O ponto E divide BC ao meio. A linha BC representa o comportamento da velocidade ao longo do movimento, entre os instantes A e B. Já o retângulo representa um movimento uniforme, com valor de velocidade correspondente ao ponto F. Como F divide AC ao meio, a velocidade desse movimento uniforme seria igual à média aritmética dos valores inicial e final da velocidade do movimento real. Para Oresme, a área sob a figura representa a distância percorrida no movimento. É imediato ver que a área do retângulo ABFG é igual à área do triângulo ABC, de tal forma que a distância percorrida no movimento diforme será a mesma que a percorrida pelo movimento uniforme dotado de um valor de velocidade igual à média dos valores extremos do movimento real. O teorema fica, portanto, facilmente demonstrado. Seja uma qualidade imaginável por um triângulo ABC, que seja uniformemente diforme, e termine a um grau 0 do ponto B; e seja D o ponto médio da linha do sujeito. O grau desse ponto médio, ou sua intensão, é imaginado pela linha DE. Logo, a qualidade que é uniforme ao grau DE por todo o sujeito é imaginável pelo quadrilátero AFGB, como ficou claro com o décimo capítulo da parte I. E é evidente, pela vigésima sexta [proposição] do primeiro [livro], que os dois pequenos triângulos EFC e EGB são iguais. Portanto, o triângulo maior, BAC, que designa a qualidade uniformemente diforme, e o quadrilátero AFGB, que designaria a qualidade uniforme ao grau do ponto médio, são iguais. Logo, as qualidades imagináveis por um triângulo desse tipo e um quadrilátero são iguais; como foi proposto. (Apud [5], p. 359). Da mesma forma, Oresme demonstrou também o Teorema das Distâncias, generalizando-o. A Figura 4] novamente mostra a representação gráfica da velocidade de um movimento uniformemente diforme. Os pontos E e F são os pontos médios dos segmentos BC e AB, respectivamente. Sendo assim, os triângulos ADF, BDF, BDE e CDE são todos congruentes, já que têm dois lados iguais e o ângulo entre eles igual (reto). Assim sendo, a soma das áreas percorridas na segunda metade do intervalo de tempo é o triplo da área percorrida na primeira metade. O Teorema da Distância fica, então, demonstrado. Figura 4 A demonstração do Teorema das Distâncias por Oresme. com um amadurecimento do tratamento quantitativo do movimento, através da introdução dos primeiros elementos da representação gráfica, sobretudo com o estudioso parisiense Nicole Oresme. De posse dessa abordagem gráfica, Oresme produz novas demonstrações dos resultados obtidos em Oxford e, em certos pontos, lhes generaliza, como é o caso do teorema a respeito das distâncias percorridas em intervalos de tempos iguais em um movimento uniformemente variado.

Na seção 7 7. O Problema Cinemático da Queda dos Corpos na Idade Média Diferentemente dos pensadores de Oxford, que se concentraram nos aspectos abstratos do tratamento matemático do movimento, os estudiosos parisienses parecem mais preocupados com a relação entre esse tratamento e a realidade empírica. Particularmente, observamos uma tentativa de classificar o movimento de queda livre dos corpos em termos das categorias e conceitos elaborados a partir de Merton [3]. Em seus comentários sobre o livro II da obra Dos Céus e do Mundo de Aristóteles, Nicole Oresme aborda a questão do comportamento da velocidade de um corpo em queda livre [3]. Em relação a isso, ele aponta duas possibilidades, a saber: que a velocidade aumente linearmente com o tempo até o infinito ou então que aumente em direção a um valor limite. Entre essas duas opções Oresme faz sua escolha pela primeira: Que algo seja “continuamente acelerado” pode ser entendido de duas maneiras. Primeiramente, assim: uma adição de velocidade ocorre por partes iguais, ou equivalentemente. Por exemplo, nessa hora ele é movido com alguma velocidade, e na segunda duas vezes mais rápido, e na terceira três vezes mais rápido, etc. Da mesma forma [tal adição pode ser feita] em partes proporcionais de tempo. E, dessa maneira, uma velocidade infinita se seguiria caso procedêssemos ao infinito, pois qualquer velocidade dada seria excedida dessa maneira [de aumento]. Na segunda maneira, adição de velocidade pode ser imaginada não por partes iguais, mas por partes continuamente proporcionais e menores, de modo que, se a velocidade fosse de um grau, em seguida [seria] 1 + 1/2 graus, e, então, 1 + 1/2 + 1/4 graus, etc. Por este modo, uma velocidade dupla (isso é, uma de 2 graus) jamais seria excedida, mesmo se procedêssemos ao infinito. Agora, em se tratando da questão em tela [da aceleração de corpos em queda], a velocidade em um movimento de um corpo pesado aumenta da primeira forma e não da segunda (Apud [5], p. 554). Assim como Oresme, em seus comentários sobre Aristóteles Alberto de Saxônia também trata o problema [3], fazendo sua opção pela primeira possibilidade. Alberto ainda cogita outras alternativas de comportamento da velocidade: de maneira convergente, com o tempo decorrido; de maneira convergente com a distância percorrida, ou, finalmente, aumento linear com a distância percorrida. Pode-se entender o movimento aumentado intensivamente [isto é, sua velocidade aumentada] de duas maneiras: (1) a primeira [divergentemente] dobrando-se, triplicando-se, quadruplicando-se, e assim por diante; e (2) de outra maneira [convergentemente], de forma que , em primeio lugar, (primo) há uma certa velocidade, e, então, em segundo lugar (secundo) é adicionado a ela algum grau de velocidade; então, em terceiro lugar, é adicionada a metade desse grau; em quarto lugar, um quarto desse grau, e assim por diante. Então seja essa a primeira conclusão: se o aumento da velocidade ocorresse do primeiro modo [divergentemente], então ela se tornaria infinita … . Segunda conclusão: se a velocidade fosse aumentada da segunda forma [isto é, convergentemente]. não seria necessário que ela se tornasse infinita. Antes, ela poderia, em dado caso, ser aumentada indefinidamente (in infinitum) e, apesar disso, nunca atingir o triplo [uma vez que poderia, por exemplo, convergir para uma velocidade menor do que o triplo ou mesmo o dobro, ou ainda uma vez e meia o valor original] … . Terceira conclusão: o movimento natural enfim, isto é, em direção ao fim e não imediatamente no fim – quando começa e corre para o fim – é aumentado da segunda[? deveria ser “primeira”] maneira. Isso é óbvio, pois, de outra forma, um corpo pesado a uma distância infinita não seria movido com uma velocidade infinita antes que chegasse ao centro [do Mundo]. Aristóteles diz o contrário. Mas deve-se saber que o movimento natural não acelera pelo dobro, pelo triplo, e assim por diante, de tal modo que na primeira parte proporcional da hora seja uma certa velocidade e, na segunda parte proporcional da hora, duas vezes mais rápida, e, assim por diante. Nem tampouco o movimento acelera de tal forma que na primeira parte proporcional do espaço percorrido, por exemplo, a primeira metade desse espaço, seria uma certa velocidade, e, após a segunda parte proporcional do espaço ter sido percorrida, seria uma velocidade duas vezes maior, e assim por diante. Pois então se seguiria que movimento algum, que durasse qualquer tempo, tão pequeno quanto desejássemos, atingiria antes do fim qualquer grau de velocidade que fosse. Mas isso é falso… Por conseguinte, na terceira conclusão se compreende que a velocidade é aumentada pelo dobro, pelo triplo, etc., de tal forma que quando algum espaço tiver sido percorrido por esse [movimento], ele possuirá certa velocidade, e quando o dobro do espaço tiver sido percorrido por ele, ele será duas vezes mais rápido, e quando o triplo do espaço tiver sido percorrido, será três vezes mais rápido, e assim sucessivamente… (Alberto de Saxônia, Questões sobre os Livros De Caelo de Aristóteles, apud [5], p. 565–566). Deve-se reparar na concepção equivocada da dependência da velocidade linear em relação à distância percorrida e não ao tempo. Alguns autores medievais parecem se referir indistintamente a uma dependência linear em relação ao tempo e à distância percorrida, como se fossem equivalentes [5], o que é errado. Vale enfatizar que a dependência linear da velocidade com a distância percorrida é uma ideia que permeou os estudos do movimentode queda dos corpos durante muito tempo. Até mesmo Galileu incorreu nesse equívoco, antes que o corrigisse e elaborasse a solução correta do problema [13]. Por fim, devemos acrescentar que, em 1555, o espanhol Domingo de Soto fez uma correlação entre o movimento uniformemente diforme descrito pelos estudiosos de Merton e o movimento de queda livre dos corpos, aplicando sobre ele o Teorema da Velocidade Média, deduzido para aquele caso. Trata-se, segundo Alistair Crombie [2], da primeira associação desse tipo de que se tem certeza, antecipando a intuição de Galileu em mais de cinquenta anos. mencionamos a abordagem cinemática parisiense de um problema concreto, a saber, o da queda livre dos corpos. Veremos o entendimento de Oresme e de Alberto de Saxônia, esse último, ao que tudo indica, muito influenciado pelo primeiro. Em nenhunma das duas abordagens já se percebe uma associação direta com o movimento uniformemente acelerado, desenvolvido teoricamente em Oxford, e, logo em seguida, em Paris. Essa identificação só ocorrerá, pela primeira vez, em meados do século XVI, com o espanhol Domingo de Soto [22. A.C. Crombie, Medieval and Early Modern Science, V. II (Doubleday Anchor Books, Garden City, 1959)., 33. W.A. Wallace, Isis 59, 384 (1968)., 44. E.J. Dijksterhuis, The Mechanization of the World Picture (Oxford University Press, Oxford, 1961).].

Na última seção, tratamos do problema da descrição cinemática da rotação de corpos. Vemos que aí a complexidade conceitual da questão parece ter oferecido grandes dificuldades aos pensadores medievais, de tal modo que os desenvolvimentos obtidos foram muito incipientes. Vale notar, entretanto, as primeiras formulações do conceito de velocidade angular, distinto da ideia de velocidade (linear), como elemento importante para abordagem do problema.

2. A Física de Aristóteles e os Primeiros Esboços Cinemáticos

A Física de Aristóteles é a ciência dos movimentos terrestres. No entanto, naquele contexto o termo movimento não tem o mesmo significado que tem para nós. Para Aristóteles, os corpos terrestres sofrem mudanças de quatro modalidades: mudanças de lugar, que ele denominava de mudanças locais; acentuação ou atenuação de suas características, bem como aumento ou dimuição de tamanho, chamadas por ele de mudanças quantitativas; alterações de características não essenciais do ser, chamadas de mudanças qualitativas, e, por fim, mudanças na essência do ser, descaracterizando sua identidade fundamental, denominadas de geração e corrupção. Aristóteles reservava o termo movimento às três primeiras categorias de mudanças, em que a essência do ser se preservava. O movimento era, portanto, um processo que se dava dentro dos limites do ser, evitando, assim, as contradições lógicas envolvidas na ideia de uma passagem do ser ao não ser.

Para Aristóteles, toda mudança tem causa. Entretanto, novamente o termo causa assume na obra do filósofo significado diverso do modo como o entendemos hoje. Para ele, causa significa tudo aquilo que determina o processo. Assim sendo, na medida em que o processo é protagonizado pelo ser, ele considera os elementos que determinam o ser como causa do processo. Segundo ele, todo objeto material tem uma matéria de que é feito e uma forma, que reúne as características essenciais que fazem daquele ser aquilo que ele é. Deste modo, Aristóteles classifica esses dois elementos, matéria e forma, como causas do processo que se dá com esse ser, denominando-as causa material e causa formal, respectivamente. Além dessas modalidades de causa, Aristóteles identifica outras duas. A primeira delas é a que ele chama de causa eficiente, que corresponde ao agente que produz o fenômeno. Essa é a modalidade que guarda uma correspondência direta com o significado de causa que a Física atual assume. Por último, Aristóteles considera que nenhuma mudança ocorre de forma gratuita; todo processo tem uma finalidade a ser cumprida. Essa finalidade foi denominada por ele de causa final.

Aristóteles estabeleceu ainda uma categorização dos movimentos segundo outro critério, qual seja: existem processos que ocorrem espontaneamente, pois faz parte da natureza do ser evoluir daquela maneira. Ele denominou esses movimentos de naturais. Por outro lado, há processos que não são próprios da essência do ser, não representam uma tendência natural determinada por sua forma; para que ocorram, é preciso uma ação externa. Aristóteles denominou esses movimentos de violentos ou forçados.

Um exemplo típico da distinção entre movimentos naturais e forçados pode ser encontrado no caso de um objeto sólido, como uma pedra. Para Aristóteles, o Cosmos era uma estrutura rigidamente organizada, em que cada ser material possuía um lugar previamente determinado segundo sua natureza. A matéria terrestre era composta de uma combinação de quatro elementos básicos: terra, água, ar e fogo – concepção do filósofo Empédocles, que Aristóteles incorporou a seu sistema. O lugar natural do elemento terra era o centro do Universo, formando uma esfera central, que, aliás, constituía nosso Planeta. Os demais elementos formavam camadas concêntricas, nessa ordem: água, ar e fogo. Aristóteles atribuía a esses elementos duas propriedades fundamentais e opostas: peso (gravidade) e leveza, que significavam, no primeiro caso, uma tendência natural de se dirigir ao centro do Universo, e, no segundo caso, de se afastar desse centro. Terra e água seriam elementos pesados; ar e fogo elementos leves. Essa distinção se reflete nas diferentes disposições reservadas aos quatro elementos na organização prévia do Cosmos.

Pois bem, quando abandonamos uma pedra de alguma altura acima do solo, ela tenderá naturalmente a ir em direção à Terra, pois busca espontaneamente restabelecer a ordem cósmica perturbada por seu levantamento do solo. Trata-se, portanto, de um movimento natural, na medida em que determinado pela própria natureza do objeto. Se, no entanto, lançarmos essa pedra para cima, esse movimento de afastamento da Terra será contrário a sua tendência natural, ou seja, será um movimento violento.

Como bem estabeleceu Aristóteles, um movimento violento exige a ação permanente de um agente externo, por meio de uma força. Para o filósofo, nenhuma força pode agir senão por contato direto. Ora, no caso, o único agente material com o qual a pedra está em contato é o ar. Assim, será ele a causa eficiente, responsável pela força impulsionadora do movimento.

Aqui intervém um importante elemento do sistema aristotélico: a impossibilidade lógica da existência do vácuo. Segundo Aristóteles, a velocidade de um movimento será tão maior quanto menor for a resistência que o meio lhe oponha. Por sua vez, essa resistência será tão menor quanto mais “sutil” (menos denso) seja esse meio. Na situação extrema de ausência de meio, a velocidade do movimento seria infinita, o que seria um absurdo. Desta forma, por esse raciocínio concluiríamos que a hipótese de ausência de meio é absurda, pois conduz a consequências absurdas.

Retornando ao problema do movimento de projétil, na concepção aristotélica a dianteira do objeto expulsa o ar que está à frente, ocupando seu lugar e tendendo a criar um espaço vazio atrás de si. Como a existência de um vácuo seria impossível, o ar se desloca para ocupar esse espaço vacante, impulsionando, assim, o objeto para frente.

É importante observar que essa explicação constituiu o ponto mais vulnerável de toda a construção doutrinal de Aristóteles, em tudo mais extremamente sistêmica, articulada e lógica. Foi a esse ponto que foram dirigidas as primeiras críticas ao sistema do filósofo grego.

Os livros VI e VII da Física de Aristóteles contêm aqueles que são considerados como os mais antigos enunciados cinemáticos existentes cujas fontes podem ser consultadas. Há enunciados talvez mais antigos, mas que são citados de segunda mão e que não podem ser confirmados pelas fontes originais [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).].

Nas passagens contidas nos livros citados, Aristóteles estabelece uma comparação entre movimentos locais, estabelecendo relações de rapidez e lentidão entre eles. Segundo sua definição:

Uma vez que qualquer magnitude pode ser dividida em outras magnitudes (pois foi demonstrado que nada contínuo pode ser composto de constituintes atômicos), segue-se que, sePé mais rápido do queQ, ele i) cobrirá uma distância maior no mesmo tempo; ii) cobrirá a mesma distância em um tempo menor; iii) cobrirá uma maior distância em um tempo menor. Mais rápido foi definido dessa maneira. (Livro VI, Cap. II, apud [66. Aristotle, Physics (Harvard University Press, Cambridge, 1934).], p. 103).

Esses enunciados formaram a base das análises subsequentes surgidas na Grécia Antiga, assim como dos estudos medievais na área, que abordaremos logo adiante.

É muito importante frisarmos alguns pontos. Primeiramente, Aristóteles, assim como nenhum outro grego, não define diretamente a velocidade como a razão entre distâncias e tempos; ele estabelece comparações entre distâncias percorridas em dois movimentos distintos, bem como entre os intervalos de tempo correspondentes. Afinal, para o pensamento antigo, o requisito essencial para a validade de uma comparação quantitativa entre magnitudes de grandezas era o de que fossem grandezas de mesma natureza.

No livro VII da Física , Aristóteles aprofunda essa discussão, problematizando a possibilidade de comparação entre movimentos em geral. Como vimos, o termo movimento na ciência aristotélica tem significado amplo. Há movimentos de diferentes naturezas, conforme as três categorias assinaladas: qualitativo, quantitativo e local. Para Aristóteles, movimentos de categorias distintas jamais podem ser comparados; são de gêneros diferentes.

Contudo, mesmo dentro do gênero “movimento local”, Aristóteles identifica a impossibilidade de comparação entre espécies diferentes de movimento. Ele cita explicitamente a possível comparação entre um movimento retilíneo e outro curvilíneo. Ainda que, nesse caso, as grandezas quantificadas no processo sejam distâncias, o filósofo grego assinala a necessidade de distinção entre as duas espécies de movimento e a consequente incomensurabilidade entre eles.

3. Os Primórdios da Representação Geométrica do Movimento

O século XII assistiu a um fenômeno cultural que foi batizado pelos historiadores de um primeiro Renascimento Intelectual, anterior em mais de duzentos anos àquele outro período que se popularizou por essa denominação. Isso se deu sobretudo a partir de dois elementos principais: o nascimento das Universidades e o chegada ao Ocidente cristão de uma enorme variedade de obras científicas e filosóficas, tanto da antiguidade grega como árabes [77. E. Grant, The Foundations of Modern Science in the Middle Ages (Cambridge University Press, Cambridge, 1996)., 88. E. Grant, Physical Sciences in the Middle Ages (John Wiley & Sons, Hoboken, 1971).]. Destacam-se nesse cenário o conjunto das obras de Aristóteles, notadamente, em termos de nosso interesse, da Física .

Esse imenso influxo de conhecimentos produziu proporcional impacto no pensamento medieval, impulsionando o interesse em áreas do saber que pouco, ou nada, haviam se desenvolvido na Europa Ocidental após o colapso da civilização romana. No que se refere à Física, no século XIV dois centros de estudos se tornaram proeminentes: primeiramente, a Universidade de Oxford; logo em seguida, a Universidade de Paris [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).]. Os desenvolvimentos lá obtidos não se mantiveram restritos; pelo contrário, também no século XIV temos registros nas universidades italianas, bem como na Universidade de Praga, de estudos baseados nos trabalhos dos pensadores do Merton College de Oxford [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959)., 66. Aristotle, Physics (Harvard University Press, Cambridge, 1934)., 77. E. Grant, The Foundations of Modern Science in the Middle Ages (Cambridge University Press, Cambridge, 1996)., 88. E. Grant, Physical Sciences in the Middle Ages (John Wiley & Sons, Hoboken, 1971)., 99. A. Maier, On the Threshold of Exact Science – Selected writings of Anneliese Maier on Late Medieval Natural Philosophy (University of Pennsylvania Press, Philadelphia, 1982).].

Esses primeiros estudos cinemáticos foram baseados na Física de Aristóteles, porém dela diferiram de forma muito significativa. Como vimos, o objeto da Física aristotélica eram os movimentos, no sentido mais amplo que o termo possuía no pensamento grego: não apenas as mudanças de lugar, mas também as chamadas mudanças qualitativas e quantitativas. No entanto, essa ciência era uma formulação essencialmente qualitativa; segundo Aristóteles, a matemática não encontrava lugar em uma descrição dos fenômenos do mundo terrestre.

De fato, a concepção de Aristóteles era a única base mais substancial sobre a qual os pensadores medievais poderiam apoiar uma retomada dos estudos do mundo físico. No entanto, eles nela introduziram elementos de análise quantitativa, ausentes da formulação aristotélica original, a chamada doutrina da “latitudes das formas” [1010. J.E. Murdoch e E.D. Sylla, em: Science in the Middle Ages , editado por D.C. Lindberg (University of Chicago Press, Chicago, 1978).].

Aparentemente, esse conceito surgiu pela primeira vez no âmbito dos estudos médicos de Galeno – século II de nossa Era –, associado à ideia de que a constituição humana se estabelece por estados que veriam gradativamente desde a plena saúde, em um extremo, até a morte, no outro extremo, passando por graus intermediários de menor saúde, inclusive uma zona cinzenta, à qual não se pode atribuir uma condição saudável, porém tampouco uma condição doentia.

Na teoria médica de Galeno, esses estados de saúde estão associados às proporções de quatro “humores”(fluidos corporais), naturalmente presentes no organismo: sangue, fleuma, bílis negra e bílis amarela. Uma proporção balanceada significa uma condição saudável do organismo; já o excesso ou carência de um deles implica uma condição doentia. Podem existir margens de variação nessas proporções sem que o indivíduo adoeça, mas a vida humana não sobrevive além de determinados limites, que constituem as(os) “latitudes”(valores) extremas(os) que as qualidades (humores) podem assumir no organismo sem comprometer a vida.

A teoria de Galeno incorporava também a doutrina aristotélica das quatro qualidades opostas fundamentais: quente e frio, úmido e seco. Cada um dos humores teria diferentes qualidades: o sangue seria quente e úmido; a fleuma, fria e úmida; a bílis amarela, quente e seca, e a bílis negra, fria e seca. Conforme houvesse excesso ou déficit de um desses fluidos, o organismo assumiria uma gama de estados frios ou quentes, úmidos ou secos.

O pensamento medieval introduziu então uma abordagem quantitativa a essas variações e associou a essa sucessão de estados intermediários um continuum geométrico; as diversas latitudes das qualidades constituíam pontos desse continuum , variando entre os extremos admissíveis. Formou-se a partir daí um embrião de representação gráfica das variações nos valores das diversas qualidades.

4. Os Estudos Cinemáticos do Merton College de Oxford

Entre os estudiosos de Oxford que se dedicaram ao estudo da Cinemática destacam-se os nomes de Thomas Bradwardine (1290–1349), William Heytesbury (c.1313–1371/1372), Richard Swineshead (dados incertos) e John Dumbleton (1310–1349). Com esses pensadores já se apresentaram alguns primeiros elementos que viriam a constituir a mecânica moderna.

O primeiro desses elementos foi uma distinção clara entre o estudo do movimento segundo suas causas, calcado antes de tudo em uma relação entre as forças atuantes e a velocidade do móvel – e por isso chamada de Dinâmica –, e um estudo do movimento segundo suas características em si mesmas, por eles denominado de Cinemática . Na verdade, essa distinção já começou a se esboçar entre os comentadores de Aristóteles, notadamente os árabes Averroes e Avempace. Embora não tenhamos o comentário original de Avempace sobre a Física de Aristóteles, temos dele as citações do próprio Averroes.

Em seu livro Física , Aristóteles afirma que a velocidade de um corpo que se move através de um meio material é inversamente proporcional à densidade desse meio, de tal modo que, se houvesse vácuo e, consequentemente, nenhuma resistência ao movimento, a velocidade desse movimento seria infinita (Livro IV-Cap.8, p. 215a apud [66. Aristotle, Physics (Harvard University Press, Cambridge, 1934).]). A partir da citação de Averroes, sabemos que Avempace criticou essa tese [1111. E.A. Moody, Journal of the History of Ideas 13, 375 (1951)., 1212. E.A. Moody, Franciscan Studies 9, 417 (1949).]. Para ele, a velocidade do móvel seria proporcional não à razão, mas à diferença entre a força motriz e a força resistente que sobre ele agem. A densidade do meio afetaria diretamente apenas essa última. Dessa maneira, a ausência de resistência não introduziria qualquer inconsistência lógica à dinâmica do movimento.

Avempace, porém, aqui levanta uma interessante questão, pois ele diz que não se segue que a proporção do movimento de uma e mesma pedra na água, em relação a seu movimento no ar, é a proporção da densidade da água para a densidade do ar, a não ser na suposição de que o movimento da pedra leva algum tempo somente porque ela é movida através de um meio. E se essa hipótese fosse verdadeira, seria então o caso de que nenhum movimento requereria tempo, salvo se alguém lhe resistisse – pois o meio parece resistir à coisa movida. E se fosse assim, então os corpos celestes, que não encontram qualquer meio resistente, seriam movidos instantaneamente. E ele diz que a proporção da raridade da água em relação à raridade do ar está na proporção do retardo ocorrendo ao corpo movente na água em relação ao retardo ocorrendo no ar…. E se concedermos o que ele disse, então a demonstração de Aristóteles será falsa; porque, se a proporção da raridade de um meio em relação à raridade do outro é como a proporção do retardo acidental do movimento em um deles para o retardo ocorrendo no outro, e não como a proporção do movimento, ele mesmo, não se seguirá que aquilo que é movido no vácuo seria movido em um instante; porque, nesse caso, seria subtraido do movimento apenas o retardo afetando-o em razão do meio, e seu movimento natural permaneceria. E todo movimento envolve tempo; logo, aquilo que é movido no vácuo é necessariamente movido no tempo e com o movimento divisível; e nada impossível se seguiria. (Averroes, Comentários sobre a Física de Aristóteles (Texto 71), apud [1212. E.A. Moody, Franciscan Studies 9, 417 (1949).]).

Para Avempace, pois, a ideia de movimento não é indissociável de meio material; o único requisito lógico para a inteligibilidade dessa ideia é o conceito de uma extensão espacial percorrida em certo tempo. Em outras palavras, Avempace concebe uma abordagem cinemática do problema.

Averroes criticava essa posição de Avempace e, pelo contrário, sustentava na íntegra a tese aristotélica da impossibilidade do vazio. Esse debate se transmitiu ao Ocidente cristão: o filósofo São Tomás de Aquino adotou posições próximas à de Avempace, ao passo que Alberto Magno e Egídio Romano mantiveram-se ao lado de Averroes e do aristotelismo ortodoxo.

Mas contra esse argumento de Aristóteles levantam-se várias dificuldades. A primeira delas é que não parece que se siga de que, se houvesse movimento no vácuo, ele não teria proporção em sua velocidade com o movimento que ocorresse no pleno. Pois qualquer movimento que seja possui uma determinada velocidade, em virtude da proporção entre a potência do motor em relação ao corpo movente, mesmo que não houvesse qualquer resistência. E isso é evidente tanto por exemplos como pela razão. Por exemplo, no caso dos corpos celestes, a cujo movimento nada resiste; apesar disso sua velocidade é determinada, de acordo com um tempo finito. (S. Tomás de Aquino, In octo libros Physicorum Aristotelis Expositio , Lib. IV, Lect. II, apud [1212. E.A. Moody, Franciscan Studies 9, 417 (1949).])

Os filósofos franciscanos do século XIV, Roger Bacon e Duns Scotus também se perfilaram ao lado de Avempace, encampando a tese que São Tomás de Aquino tornou decisiva em defesa de Avempace – a de que o caráter essencial do movimento está ligado a uma extensão percorrida em certo tempo, ao passo que a resistência que eventualmente lhe é oposta é apenas um elemento acidental.

A distinção esboçada entre abordagem Cinemática e Dinâmica foi explicitada na obra De Motu , atribuída a Richard Swineshead:

Tendo falado de maneira genérica em relação à medida da velocidade com respeito à causa, devemos agora ver sua medida com respeito aos efeitos (apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 243),

bem como na obra de 1328, Tratado sobre as Proporções de Velocidades em Movimentos , de Thomas Bradwardine, cujos terceiro e quarto capítulo tratam, respectivamente e de modo distinto, das “proporções das velocidades no movimento com relação às forças dos motores e das coisas movidas”, ou seja, uma abordagem dinâmica, e “com relação às magnitudes da coisa movida e do espaço percorrido”, isto é, um tratamento cinemático.

De resto, a caracterização cinemática aparece de forma explícita em uma obra denominada Do Continuum , também atribuída a Bradwardine:

3. Um contínuo sucessivo é um contínuo cujas partes são sucessivas em relação ao antes e o depois(…)11. Movimento é um contínuo sucessivo medido por tempo. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 230).

Na verdade, a ideia de se analisarem movimentos locais (deslocamentos) sob o ponto de vista quantitativo não é, absolutamente, original. Ela está presente na antiguidade grega, a começar pela Física de Aristóteles, em cujo livro VII o filósofo estabelece relações comparativas entre movimentos distintos, em termos de distâncias espaciais e tempo. Ainda na Grécia antiga, outros trabalhos, como De Spera (Sphaera) mota , de um autor chamado Autolycus de Pitane, escrita por volta de 310 A.C., além de obras de Arquimedes, apresentaram relações quantitativas dessa natureza. No entanto, repisemos, os gregos somente compararam dimensões espaciais a espaciais, e temporais a temporais. Nesse quesito, a originalidade dos medievais reside sobretudo na introdução de um elemento novo, a saber, a explicitação de uma grandeza velocidade, quantitativamente determinável [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).].

Na realidade, os estudiosos de Oxford desenvolveram toda uma série de conceitos necessários ao tratamento cinemático do movimento, nem sempre empregando a mesma linguagem hoje utilizada, mas sempre de uma forma em que é possível estabelecer uma correspondência com os significados modernos, a começar por uma definição mais precisa do próprio conceito de velocidade.

Os oxfordianos estabeleceram uma classificação dos movimentos locais. Cunharam o termo “diformes” para os movimentos em que, diferentemente dos uniformes, em tempos iguais não são percorridas distâncias iguais. Dentro dessa categoria, definiram os chamados “uniformemente diformes”, aqueles em que, em tempos iguais, há incrementos iguais nos graus de movimento (velocidade).

Particularmente no que se refere à ideia de velocidade, os estudiosos do Merton College desdobraram seu significado em diferentes denominações. Além do termo velocidade, eles empregavam os termos “qualidade de movimento” ou “velocidade qualitativa”, “quantidade de movimento” ou “velocidade quantitativa”, e, ainda, “graus de movimento”, com significados distintos: em alguns casos, sutilmente distintos, em outros, substancialmente.

A distinção entre “qualitativo” e “quantitativo” guarda relação com a ideia de grandezas intensivas e extensivas, expressas originalmente como “quantidades virtuais” ou intensivas, e quantidades “corporais ou dimensionais”. As quantidades intensivas se referem aos valores de uma grandeza em cada ponto, ao passo que as extensivas se referem aos efeitos acumulativos da grandeza, somados por toda a extensão em que essa grandeza se faz presente. Nesse sentido, a ideia de velocidade qualitativa corresponde à velocidade em certo instante, ao passo que a velocidade quantitativa corresponde à distância percorrida ao final de certo tempo – aparentemente os medievais não faziam distinção entre os conceitos de distância percorrida e deslocamento, como nós hoje fazemos. Já o termo “graus de movimento” representaria o valor numérico da grandeza velocidade. Essa distinção entre velocidade quantitativa e qualitativa surge de forma mais clara com uma representação gráfica, introduzida por volta de 1350, conforme veremos adiante.

O movimento diforme (variado), em que a velocidade muda, coloca justamente o desafio da definição e determinação da velocidade instante a instante. A solução encontrada pelos estudiosos de Oxford, explicitada tanto por Heytesbury quanto por Swineshead, foi defini-la em termos de uma distância percorrida, mais precisamente a extensão percorrida em certo tempo caso o objeto tivesse prosseguido uniformemente com a velocidade que possuía no instante citado.

Em Do Movimento , manuscrito atribuído a R. Swineshead, temos:

O motivo de que a velocidade desse movimento [diforme] seja medido por uma linha descrita é esse: a todo grau de velocidade em um movimento local (isto é, de velocidade qualitativa ou instantânea) corresponde uma distância linear que seria descrita em certo tempo, assumindo-se um movimento durante todo o tempo com esse mesmo grau. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 243).

Já em Regras para Solução de Sofismas , de W. Heytesbury, encontramos:

Em um movimento não uniforme, a velocidade em qualquer instante será medida (attendetur) pelo caminho que seria descrito pelo ponto mais rápido se, em um período de tempo, ele fosse movido uniformemente com o mesmo grau de velocidade (uniformiter illo gradu velocitatis) com o qual era movido no referido instante, qualquer que seja ele. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 236).

Vale dizer que, em sua obra Discurso sobre duas novas Ciências , Galileu ainda aplica essa mesma forma de determinação da velocidade.

Assim, podemos conceber que o movimento é uniformemente e continuamente acelerado quando, em iguais períodos de tempo, iguais incrementos de rapidez são adicionados… Para colocar a matéria de maneira mais clara, se o corpo móvel continuasse seu movimento com o mesmo grau de momento de velocidade (gradus seu momentum velocitatis) que adquiriu ao final do primeiro intervalo de tempo, e continuasse a se mover uniformemente com esse grau de velocidade, então seu movimento seria duas vezes mais lento do que aquele que teria caso sua velocidade (gradus celeritatis) tivesse sido adquirida em dois intervalos de tempo. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 236),

e ainda

Disso claramente se segue que tal velocidade instantânea e não uniforme (velocitas instantanea) não é medida pela distância percorrida, mas pela distância que seria percorrida por tal ponto, caso ele se movesse uniformemente por tal ou tal período de tempo com a mesma velocidade com a qual era movido no instante assinalado. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 236).

Na verdade, o que se observa é que, na ausência da ferramenta do cálculo diferencial, capaz de estabelecer uma definição precisa de velocidade instantânea, torna-se um desafio aparentemente insolúvel determinar a velocidade de outra maneira que não a proposta em Merton.

Os estudiosos do Merton também explicitaram uma grandeza denominada aceleração. Embora a ideia de um movimento de ritmo variável fosse discutida desde a antiguidade, em particular na obra de Strato, citada no Comentários sobre a Física de Aristóteles , do também grego Simplício, o tratamento dado naquela época era sempre em termos de espaços percorridos e tempos.1 1 Embora não disponhamos mais dos originais de Strato, não se encontra na tradução inglesa dos Comentários de Simplício qualquer referência ao uso do termo aceleração. ]

É natural imaginarmos que o conceito de aceleração não tenha sido elaborado pelos antigos, na ausência da formalização do próprio conceito de velocidade. Dado esse passo, os estudiosos de Merton já eram capazes de tratar explicitamente a questão.

Novamente em W. Heytesbury, Regras para Solução de Sofismas , temos:

1-Pois um movimento qualquer é uniformemente acelerado (uniformiter intenditur) se, em qualquer uma das iguais partes de tempo, ele adquire um igual incremento (latitudo) de velocidade. E tal movimento é uniformemente desacelerado se, em cada uma das iguais partes de tempo, ele perde um igual incremento de velocidade. Mas um movimento é não uniformemente acelerado quando adquire ou perde um maior incremento de velocidade em uma parte do tempo do que em outra igual. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 237),

enquanto no fragmento De Motu , atribuído a Swineshead, encontramos

Deve-se saber também, assim como a aceleração (intensio motus) está relacionada (se habet) à velocidade, a velocidade está relacionada ao espaço; pois, assim como o espaço é adquirido na velocidade, a velocidade é adquirida na aceleração. Logo, assim como no caso do movimento local uniforme onde a velocidade é medida pela máxima linha descrita por algum ponto [em dado tempo], a aceleração é medida pelo máximo incremento (latitudo) de velocidade adquirido em certo tempo. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 244).

5. Os Teoremas da Velocidade Média e da Distância Percorrida

Os estudiosos do Merton College enunciaram dois importantes teoremas iniciais da Cinemática: os chamados Teoremas da Velocidade Média e da Distância Percorrida.

O Teorema da Velocidade Média afirma que, em um movimento uniformemente acelerado, ao final de certo tempo a distância percorrida teria sido a mesma caso o móvel, em lugar de um movimento diforme, realizasse um movimento uniforme, com um valor de velocidade igual ao valor possuído no instante exatamente intermediário dos instantes inicial e final, correspondentes ao movimento real. O enunciado mais antigo desse teorema parece ter sido proposto por Heytesbury, em torno de 1335, na obra Regras para soluções de Sofismas .

Pois, caso comece do grau zero ou de algum outro grau finito, todo incremento de latitude (isto é, incremento da velocidade ou diferença de velocidade), desde que seja adquirido ou perdido uniformemente, corresponderá ao seu grau médio. Assim, o corpo movente, adquirindo ou perdendo uniformemente essa latitude (incremento) durante certo período de tempo, atravessará uma distância exatamente igual àquela que atravessaria em igual período de tempo, caso fosse movido com seu grau médio de velocidade…Pois cada movimento, como um todo, completado no período total de tempo, corresponde a seu grau médio – a saber, ao grau que teria possuído no instante médio de tempo. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 263).

Entre a data acima e 1350 várias foram as provas apresentadas para o Teorema da Velocidade Média. Suas datas são relativamente incertas [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).]. Apresentaremos aqui uma demonstração elaborada por Heytesbury, nas Regras .

Na demonstração, Heytesbury propõs quatro objetos se movendo, A, B, C e D: o primeiro se movimenta uniformemente, durante uma hora, com velocidade igual à metade de certo valor V; o segundo se movimenta durante meia hora, com aceleração uniforme, partindo de V/2 até chegar à velocidade V; C se movimenta por meia hora, também com aceleração uniforme, porém decrescendo de velocidade, desde V/2 até 0; por fim, D se movimenta durante toda a hora, com aceleração uniforme, indo de velocidade 0 até V, ao final do intervalo.

Primeiramente, Heytesbury argumenta que B, durante a meia hora em que se movimenta, anda a mesma distância que D, em sua meia hora final. Por outro lado, também argumenta que um corpo em movimento uniformemente acelerado, partindo de uma velocidade 0 até V, percorrerá ao final de um tempo T a mesma distância que um corpo desacelerando, também uniformemente, no mesmo tempo, de V até 0. Com base nisso, Heytesbury afirma que C percorre, em sua meia hora de movimento, a mesma distância que D percorre, em sua primeira metade. Sendo assim, a soma das distâncias percorridas por B e C é igual à distância percorrida por D, ao final da hora completa.

No entanto, se B e C tivessem permanecido com os valores iniciais de velocidade, em ambos os casos V/2 – que é a velocidade de A –, cada qual teria percorrido durante a meia hora de seu movimento o mesmo que A nesse tempo, ou seja, teriam percorrido, somados os seus movimentos, a mesma distância que A na hora completa.

Na verdade, suas velocidades variaram, mas variaram simetricamente em relação ao valor médio, de tal modo que a distância que um percorreu a mais do que A, o outro percorreu exatamente a menos. Desta maneira, a soma total das distâncias percorridas por B e C é igual à distância percorrida por A, com velocidade uniforme V/2. Como a soma de B e C é igual tanto à distância percorrida por D quanto por A, essas duas últimas são iguais, de modo que o teorema está demonstrado.

Já o Teorema das Distâncias Percorridas afirma que, em um movimento uniformemente acelerado, se tomarmos certo intervalo de tempo, a distância percorrida pelo móvel na primeira metade desse intervalo estará para a distância percorrida na segunda metade na razão de 1:3. Esse teorema parece ter surgido pela primeira vez na obra Probationes Conclosionum , de autor incerto, mas que é possível que seja de Heytesbury. Apresentaremos aqui a prova elaborada por Swineshead, em seu tratado Regras sobre os movimentos locais , que contém sofisticados elementos de argumentaçao, que, por sua vez, sugerem o uso implícito de raciocínios infinitesimais.

Apresentemos, então, os passos dessa demonstração, em linguagem modernizada, tal como recuperado por Marshall Clagett a partir dos manuscritos originais [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).].

Primeiramente, Swineshead considera uma partição do intervalo de tempo T, subdividindo-ao em duas metades. Em seguida, toma a metade final e sobre ela refaz a divisão, repetindo o processo sucessivamente. Matematicamente, escreveríamos

(1) T = t + t 2 + t 4 + t 8 + t 16 + .

onde t=T2.

Em seguida, Swineshead considera que cada parcela dessas ainda representa um intervalo de tempo finito. Dessa forma, subdivide cada um deles em n intervalos iguais, fazendo n tender ao infinito. Assim, podemos escrever a primeira parcela como

(2) t = Δ t 11 + Δ t 12 + Δ t 13 + + Δ t 1 n t / 2 = Δ t 21 + Δ t 22 + Δ t 23 + + Δ t 2 n t / 4 = Δ t 31 + Δ t 32 + Δ t 33 + + Δ t 3 n

Como cada intervalo da partição é subdividido em número n igual de subintervalos, um subintervalo de um intervalo guardará em relação ao subintervalo do intervalo imediatamente anterior a mesma proporção que esses intervalos guardam entre si, isto é, um fator 2. Assim, podemos escrever

(3) Δ t 11 = 2 Δ t 21 Δ t 12 = 2 Δ t 22 .
(4) Δ t 31 = 2 Δ t 21 Δ t 32 = 2 Δ t 22

e assim por diante.

Swineshead parte então para uma análise das velocidades. Ele estabelece que, da natureza do movimento uniformemente desacelerado, a velocidade guarda uma relação com os tempos análoga a (4), ou seja,

(5) v 11 = 2 v 21 v 12 = 2 v 22 .
(6) v 31 = 2 v 21 v 32 = 2 v 22

Há nesse ponto dois aspectos que precisam de explicação. Em primeiro lugar, Swineshead parece tomar como evidente o comportamento acima da velocidade em movimentos com aceleração uniforme. Na verdade, isso precisa de confirmação. Por outro lado, parece implícito no raciocínio que, pela magnitude dos subintervalos tij, com n tendendo para infinito, devemos tomar a velocidade em cada um deles como constante. Aí reside uma das grandes sutilezas do raciocínio.

Verifiquemos, então, – de maneira anacrônica, ressalte-se – a primeira parte, isto é, que as velocidades no movimento em questão se comportam da forma descrita em (6).

Para tanto, consideremos um movimento uniformemente desacelerado, partindo de certa velocidade V até zero, em um intervalo T. Façamos uma partição de T conforme a receita acima.

Façamos agora um gráfico desse movimento (Figura 1):

Figura 1
A figura representa um movimento uniformemente desacelerado, de um valor v de velocidade até 0, em um tempo T. Os instantes t1i e t2i representam o início dos i-ésimos subintervalos correspondentes ao primeiro e segundo intervalos.

Por semelhança entre os triângulos retângulos de hipotenusas AB e AC, escrevemos:

(7) v 1 i v 21 = T - t 1 i T 2 - t 2 i

Chamemos de Δt o tamanho do subintervalo do primeiro intervalo. Como t1i é o i-ésimo subintervalo, temos t1i = it, e t2i = it/2. Substituindo esses valores em (7), temos

(8) v 1 i v 21 = T - i . Δ t T 2 - i Δ t 2 = 2 ,

confirmando para os dois primeiros intervalos a relação entre velocidades admitida por Swineshead. Para os demais intervalos, a validade segue-se imediatamente a (8).

Nesse ponto, Swineshead aplica para cada subintervalo a relação sij = vijtij, própria do movimento uniforme. Isso faz sentido dentro do raciocínio de que, ao fazermos o número de subintervalos tender a infinito, o tamanho de cada um deles vai a zero, admitindo, portanto, a consideração de um movimento aproximadamente uniforme.

Sendo assim, temos, por exemplo,

(9) s 11 s 21 = v 11 v 21 t 11 t 21 = 4 ,

já que t11 = 2t21 e v11 = 2v21.

De (9) podemos imediatamente concluir que as distâncias percorridas nos primeiros dois intervalos da partição estão na relação

(10) S 1 = 4 S 2 S 2 = 4 S 3

Temos, então, a distância total percorrida

(11) S = S 1 + S 2 + S 3 + ,

e a distância percorrida na segunda metade

(12) S I I = S 2 + S 3 + S 4 + ,

Aplicando as relações (10) em (13), temos

(13) S = 4 S 2 + 4 S 3 + 4 S 4 + ,

ou seja, S = 4SII, isto é, a distância percorrida na segunda metade do trajeto é igual a um quarto da distância total. Portanto, a relação entre as distâncias percorridas na primeira e na segunda metades é de 3:1, demonstrando, então, o teorema!

Uma vez demonstrado esse teorema, em seguida Swineshead faz uma prova do Teorema da Velocidade Média por redução ao absurdo: admite que a velocidade equivalente – em termos de distância percorrida – não seja a média aritmética das velocidades inicial e final e mostra que, se assim fosse, o teorema anterior, já demonstrado, seria violado.

6. Nicole Oresme

Ainda no século XIV, o tratamento cinemático sofreu uma nova evolução nas mãos do francês Nicole Oresme (c. 1323–1382), professor da Universidade de Paris. A grande contribuição de Oresme foi a representação gráfica das medidas de uma grandeza intensiva e da quantidade extensiva associada.

Não se pode dizer que a representação gráfica das grandezas tenha sido obra plenamente original de Oresme. A datação de manuscritos mostra que um monge franciscano italiano, de nome Giovanni di Casali, utilizou uma representação dessa natureza em sua obra Sobre a velocidade do movimento de alteração , reak de 1346:

Essas coisas qualitativas podem ser exemplificadas. Pois algo uniformemente quente é completamente equivalente a um paralelogramo retangular, construído entre duas linhas paralelas [AB e CD]. Então, qualquer parte desse retângulo é tão grande (lata) quanto qualquer outra, pois a latitude de cada parte dessas é medida pela base.

Do mesmo modo, uma “quentura”[aspas nossas] uniformemente diforme é, em todo lugar, equivalente a um triângulo [ABC] [reto?]; seria uma quentura uniformemente diforme terminado em zero em um dos extremos [ponto A]. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 383).

Uma importante distinção na representação gráfica proposta por Casali é a de que, contrariamente ao que seria adotado por Oresme, a intensidade da qualidade em cada ponto é representada por segmentos horizontais – segundo a tradição recém criada –, e não verticais, ao passo que os pontos aos quais são atribuídos esses valores estão distribuídos nas verticais.

A representação gráfica se torna mais clara com Oresme. Como dissemos, ele aplica sobre ela uma rotação de noventa graus, representando na linha horizontal seja a extensão do corpo analisado, seja o intervalo de tempo considerado, enquanto na linha vertical representa a intensidade da grandeza considerada em cada ponto ou em cada instante.

Logo, tal intensão deve ser imaginada por linhas; e, mais convenientemente e verdadeiramente, por linhas aplicadas ao sujeito, erguidas perpendicularmente a ele. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 348).

Como exemplo dessa representação apresentamos na Figura 2] dois retângulos de mesma altura tendo, porém, bases diferentes. A altura dos retângulos corresponde à velocidade qualitativa, em movimentos cuja velocidade seja constante, ao passo que a base representa os intervalos de tempo diferentes em que ocorrem os dois movimentos. As diferentes áreas dos retângulos representam o que os medievais chamavam de quantidade de movimento e que, para nós, significaria o deslocamento realizado.

Figura 2
Nas figuras da esquerda e do centro temos dois retângulos. As alturas AB e CD dos retângulos representam a velocidade qualitativa (instantânea) em cada instante. Como elas se mantêm constantes em todo o tempo, as figuras representam dois movimentos uniformes. Entretanto, as áreas, que representam as distâncias percorridas (velocidade quantitativa), são diferentes, pois as bases são diferentes, correspondendo a intervalos de tempo distintos. Já na figura da direita, a linha vertical EF varia linearmente ao longo do tempo, caracterizando um movimento uniformemente diforme.

Podemos tomar como outro exemplo um movimento uniformemente diforme. Nesse caso, a representação gráfica da velocidade mostra uma reta inclinada. Supondo-se que o móvel tenha partido do repouso, teríamos a figura de um triângulo. Evidentemente a velocidade qualitativa, medida pelo segmento vertical unindo o ponto da base à reta inclinada, aumenta de instante para instante. Já a velocidade quantitativa é representada pela área do triângulo.

O tratamento de Oresme é geral, para movimentos quaisquer, não somente locais. É uma abordagem gráfica das variações de qualidade. Em vários pontos, no entanto, ele é específico em relação à representação de velocidades e distâncias percorridas.

De posse de sua representação gráfica, Oresme demonstra com extrema simplicidade o Teorema do Velocidade Média de Merton.

De fato, consideremos um movimento uniformemente diforme, representado por um triângulo retângulo ABC, como na Figura 3]:

Figura 3
A figura mostra um triângulo ABC, representando um movimento uniformemente diforme. O segmento inclinado representa as velocidades nos instantes de tempo entre A e B. O ponto E divide BC ao meio.

A linha BC representa o comportamento da velocidade ao longo do movimento, entre os instantes A e B. Já o retângulo representa um movimento uniforme, com valor de velocidade correspondente ao ponto F. Como F divide AC ao meio, a velocidade desse movimento uniforme seria igual à média aritmética dos valores inicial e final da velocidade do movimento real.

Para Oresme, a área sob a figura representa a distância percorrida no movimento. É imediato ver que a área do retângulo ABFG é igual à área do triângulo ABC, de tal forma que a distância percorrida no movimento diforme será a mesma que a percorrida pelo movimento uniforme dotado de um valor de velocidade igual à média dos valores extremos do movimento real. O teorema fica, portanto, facilmente demonstrado.

Seja uma qualidade imaginável por um triângulo ABC, que seja uniformemente diforme, e termine a um grau 0 do ponto B; e seja D o ponto médio da linha do sujeito. O grau desse ponto médio, ou sua intensão, é imaginado pela linha DE. Logo, a qualidade que é uniforme ao grau DE por todo o sujeito é imaginável pelo quadrilátero AFGB, como ficou claro com o décimo capítulo da parte I. E é evidente, pela vigésima sexta [proposição] do primeiro [livro], que os dois pequenos triângulos EFC e EGB são iguais. Portanto, o triângulo maior, BAC, que designa a qualidade uniformemente diforme, e o quadrilátero AFGB, que designaria a qualidade uniforme ao grau do ponto médio, são iguais. Logo, as qualidades imagináveis por um triângulo desse tipo e um quadrilátero são iguais; como foi proposto. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 359).

Da mesma forma, Oresme demonstrou também o Teorema das Distâncias, generalizando-o.

A Figura 4] novamente mostra a representação gráfica da velocidade de um movimento uniformemente diforme. Os pontos E e F são os pontos médios dos segmentos BC e AB, respectivamente. Sendo assim, os triângulos ADF, BDF, BDE e CDE são todos congruentes, já que têm dois lados iguais e o ângulo entre eles igual (reto). Assim sendo, a soma das áreas percorridas na segunda metade do intervalo de tempo é o triplo da área percorrida na primeira metade. O Teorema da Distância fica, então, demonstrado.

Figura 4
A demonstração do Teorema das Distâncias por Oresme.

7. O Problema Cinemático da Queda dos Corpos na Idade Média

Diferentemente dos pensadores de Oxford, que se concentraram nos aspectos abstratos do tratamento matemático do movimento, os estudiosos parisienses parecem mais preocupados com a relação entre esse tratamento e a realidade empírica. Particularmente, observamos uma tentativa de classificar o movimento de queda livre dos corpos em termos das categorias e conceitos elaborados a partir de Merton [33. W.A. Wallace, Isis 59, 384 (1968).].

Em seus comentários sobre o livro II da obra Dos Céus e do Mundo de Aristóteles, Nicole Oresme aborda a questão do comportamento da velocidade de um corpo em queda livre [33. W.A. Wallace, Isis 59, 384 (1968).]. Em relação a isso, ele aponta duas possibilidades, a saber: que a velocidade aumente linearmente com o tempo até o infinito ou então que aumente em direção a um valor limite. Entre essas duas opções Oresme faz sua escolha pela primeira:

Que algo seja “continuamente acelerado” pode ser entendido de duas maneiras. Primeiramente, assim: uma adição de velocidade ocorre por partes iguais, ou equivalentemente. Por exemplo, nessa hora ele é movido com alguma velocidade, e na segunda duas vezes mais rápido, e na terceira três vezes mais rápido, etc. Da mesma forma [tal adição pode ser feita] em partes proporcionais de tempo. E, dessa maneira, uma velocidade infinita se seguiria caso procedêssemos ao infinito, pois qualquer velocidade dada seria excedida dessa maneira [de aumento]. Na segunda maneira, adição de velocidade pode ser imaginada não por partes iguais, mas por partes continuamente proporcionais e menores, de modo que, se a velocidade fosse de um grau, em seguida [seria] 1 + 1/2 graus, e, então, 1 + 1/2 + 1/4 graus, etc. Por este modo, uma velocidade dupla (isso é, uma de 2 graus) jamais seria excedida, mesmo se procedêssemos ao infinito. Agora, em se tratando da questão em tela [da aceleração de corpos em queda], a velocidade em um movimento de um corpo pesado aumenta da primeira forma e não da segunda (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 554).

Assim como Oresme, em seus comentários sobre Aristóteles Alberto de Saxônia também trata o problema [33. W.A. Wallace, Isis 59, 384 (1968).], fazendo sua opção pela primeira possibilidade. Alberto ainda cogita outras alternativas de comportamento da velocidade: de maneira convergente, com o tempo decorrido; de maneira convergente com a distância percorrida, ou, finalmente, aumento linear com a distância percorrida.

Pode-se entender o movimento aumentado intensivamente [isto é, sua velocidade aumentada] de duas maneiras: (1) a primeira [divergentemente] dobrando-se, triplicando-se, quadruplicando-se, e assim por diante; e (2) de outra maneira [convergentemente], de forma que , em primeio lugar, (primo) há uma certa velocidade, e, então, em segundo lugar (secundo) é adicionado a ela algum grau de velocidade; então, em terceiro lugar, é adicionada a metade desse grau; em quarto lugar, um quarto desse grau, e assim por diante.

Então seja essa a primeira conclusão: se o aumento da velocidade ocorresse do primeiro modo [divergentemente], então ela se tornaria infinita … .

Segunda conclusão: se a velocidade fosse aumentada da segunda forma [isto é, convergentemente]. não seria necessário que ela se tornasse infinita. Antes, ela poderia, em dado caso, ser aumentada indefinidamente (in infinitum) e, apesar disso, nunca atingir o triplo [uma vez que poderia, por exemplo, convergir para uma velocidade menor do que o triplo ou mesmo o dobro, ou ainda uma vez e meia o valor original] … .

Terceira conclusão: o movimento natural enfim, isto é, em direção ao fim e não imediatamente no fim – quando começa e corre para o fim – é aumentado da segunda[? deveria ser “primeira”] maneira. Isso é óbvio, pois, de outra forma, um corpo pesado a uma distância infinita não seria movido com uma velocidade infinita antes que chegasse ao centro [do Mundo]. Aristóteles diz o contrário.

Mas deve-se saber que o movimento natural não acelera pelo dobro, pelo triplo, e assim por diante, de tal modo que na primeira parte proporcional da hora seja uma certa velocidade e, na segunda parte proporcional da hora, duas vezes mais rápida, e, assim por diante. Nem tampouco o movimento acelera de tal forma que na primeira parte proporcional do espaço percorrido, por exemplo, a primeira metade desse espaço, seria uma certa velocidade, e, após a segunda parte proporcional do espaço ter sido percorrida, seria uma velocidade duas vezes maior, e assim por diante. Pois então se seguiria que movimento algum, que durasse qualquer tempo, tão pequeno quanto desejássemos, atingiria antes do fim qualquer grau de velocidade que fosse. Mas isso é falso… Por conseguinte, na terceira conclusão se compreende que a velocidade é aumentada pelo dobro, pelo triplo, etc., de tal forma que quando algum espaço tiver sido percorrido por esse [movimento], ele possuirá certa velocidade, e quando o dobro do espaço tiver sido percorrido por ele, ele será duas vezes mais rápido, e quando o triplo do espaço tiver sido percorrido, será três vezes mais rápido, e assim sucessivamente… (Alberto de Saxônia, Questões sobre os Livros De Caelo de Aristóteles, apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 565–566).

Deve-se reparar na concepção equivocada da dependência da velocidade linear em relação à distância percorrida e não ao tempo. Alguns autores medievais parecem se referir indistintamente a uma dependência linear em relação ao tempo e à distância percorrida, como se fossem equivalentes [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], o que é errado. Vale enfatizar que a dependência linear da velocidade com a distância percorrida é uma ideia que permeou os estudos do movimentode queda dos corpos durante muito tempo. Até mesmo Galileu incorreu nesse equívoco, antes que o corrigisse e elaborasse a solução correta do problema [1313. A. Koyré, Études Galiléennes (Hermann, Paris, 1966).].

Por fim, devemos acrescentar que, em 1555, o espanhol Domingo de Soto fez uma correlação entre o movimento uniformemente diforme descrito pelos estudiosos de Merton e o movimento de queda livre dos corpos, aplicando sobre ele o Teorema da Velocidade Média, deduzido para aquele caso. Trata-se, segundo Alistair Crombie [22. A.C. Crombie, Medieval and Early Modern Science, V. II (Doubleday Anchor Books, Garden City, 1959).], da primeira associação desse tipo de que se tem certeza, antecipando a intuição de Galileu em mais de cinquenta anos.

8. O Problema da Rotação

Embora o estudo cinemático do movimento tenha sido conduzido em Oxford por filósofos e lógicos fundamentalmente interessados em questões de ordem abstrata [1414. D.C. Lindberg, The Beginnings of Western Science (University of Chicago Press, Chicago, 2007).], nem sempre as preocupações que levaram à abordagem dos problemas estiveram desconectadas de questões concretas. Por exemplo, o desafio do tratamento quantitativo ao movimento de rotação de corpos, entre outras possíveis motivações, certamente se relacionava à rotação das esferas celestes cristalinas e homocêntricas de Aristoteles [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).].

Um dos primeiros a se ocupar do problema de um corpo (a rigidez parece implícita) em rotação foi Gerard de Bruxelas. Uma dificuldade por ele enfrentada no tratamento do problema era como caracterizar a rapidez ou lentidão do movimento, tendo em vista que as partes do corpo se moviam a velocidades diferentes.

Gerard considerou então a seguinte questão: seja um segmento de reta cuja uma das extremidades se mantém fixa, enquanto o restante se move; qual a velocidade do movimento do segmento?

Sabemos hoje que essa pergunta, assim formulada, não tem resposta, na medida em que não há uma velocidade (linear) única que caracterize a rotação. Essa impossiblidade não era, no entanto, óbvia para os primeiros estudiosos da questão. Em particular, Gerard formulou um critério que definia a grandeza em questão. Esse critério pode ser enunciado da seguinte maneira: considerando-se a área descrita em certo tempo pelo segmento em rotação, qual seria a velocidade que produziria uma área equivalente, caso o corpo descrevesse uma translação (segundo nosso vocabulário) e não uma rotação? A partir desse raciocínio, Gerard chegou à conclusão de que a velocidade característica do movimento corresponderia à do ponto médio do segmento.

Por sua vez, Thomas Bradwardine divergiu desse tratamento. Segundo ele, a velocidade característica do movimento seria a do ponto que se movesse mais rápido. Se pensarmos nas esferas cristalinas – na verdade, camadas esféricas –, e em seus raios, veremos que, se o interesse for a determinação da velocidade dos pontos de sua superfície, então, de fato, o foco da análise estará direcionado à extremidade do segmento, que, de fato, é o ponto que se movimenta mais rápido na rotação.

O tratamento da questão sofreu uma importante evolução com Alberto de Saxônia (1316–1390). Alberto identificou no problema da rotação de um segmento em torno de um ponto fixo ou eixo a necessidade de uma distinção fundamental: a diferenciação no tratamento de um movimento retilíneo e de um movimento circular; na verdade, ele utiliza uma expressão “descrever um circuito”, para caracterizar o conjunto de movimentos circulares descritos pelos pontos do segmento em rotação [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).]. Para Alberto de Saxônia, deve-se introduzir uma medida do ângulo descrito em certo tempo pelos pontos pertencentes ao segmento em rotação, diferenciando essa velocidade da distância percorrida por eles ao longo do círculo que descrevem, tal como tipicamente era considerado em termos de velocidade.

LIVRO VI, Questão 5: Busca-se, em quinto lugar como (penes quid) a velocidade do movimento circular é medida (attendatur)…. Na questão precedente viu-se como a velocidade do movimento local retilinear é medida em relação aos efeitos. Gostaríamos agora de investigar o mesmo com relação ao movimento circular. Nessa matéria há duas coisas a serem consideradas: a saber, “movimento” e “circuito”(circuitus). Embora eles possam representar a mesma coisa, ainda assim são diferentes conforme a conotação e a natureza (rationem). Pois descrever um “circuito” acrescenta à conotação de movimento [a ideia de] descrever um ângulo em torno de um centro ou eixo, em torno do qual o movimento ocorre. Logo, é muito possível que duas coisas descrevam um circuito (circuire) igualmente rápido e, apesar disso serem movidas com diferente rapidez, e vice-versa. De onde, se dois pontos são designados, nomeadamente, a no círculo equinocial, e b, próximo ao polo, a e b descrevem um circuito de forma igualmente rápida em torno do eixo do mundo, e, mesmo assim, não são movidos com a mesma rapidez, pois os pontos próximos ao equinocial se movem mais depressa que os pontos próximos ao polo. Logo, é possível admitir que um movimento seja mais rápido que outro [com relação à velocidade curvilínea], mas que não seja um circuito (circuitionem) mais rápido que o outro. (Apud [55. M. Clagett, Science of Mechanics in the Middle Ages (University of Wisconsin Press, Madison, 1959).], p. 223).

Vemos, no entanto, a partir dessa citação que a solução do problema da rotaçaõ está apenas esboçada. É verdade que Alberto de Saxônia introduz a importante análise da velocidade angular. Todavia, ele está ainda preso à ideia de que faça sentido a definição de uma velocidade (tradicional) coletiva para o movimento do corpo, cujos pontos, na realidade, têm velocidades distintas, defendendo, contra Gerard de Bruxelas e outros, e em consonância com Bradwardine, que os pontos mais velozes caracterizem a velocidade do movimento. Parece que não há muita clareza da distinção entre movimento do corpo e movimento dos pontos do corpo.

Trata-se, pois, de uma etapa ainda muito incipiente da análise do problema.

9. Conclusão

A Idade Média tardia recebeu um enorme aporte de conhecimentos, associados às traduções de várias obras filosóficas e científicas da antiguidade grega até então desconhecidas para o Ocidente. Destaca-se, nesse contexto, a extensa obra de Aristóteles e de seus comentadores árabes, em especial para nossos interesses a Física . Essa redescoberta impulsionou um período de grande atividade intelectual, hoje chamado pelos historiadores do período de Renascimento do Século XII.

Entre os diversos estudos realizados figura a primeira elaboração de uma teoria cinemática do movimento. Ainda que desenvolvida no interior de um paradigma aristotélico, em que o conceito de movimento possuía uma amplitude bem maior do que o significado atual, abrangendo as diversas formas de mudança a que estão sujeitos os seres materiais, sem que, no entanto, haja uma desfiguração de sua essência, a abordagem medieval trouxe ao problema a novidade de um tratamento fundamentalmente matemático, praticamente ausente no pensamento de Aristóteles. Essa abordagem matemática se ancorou na ideia de uma gradualidade quantificável dos processos de mudança, expressa pela chamada doutrina da “latitude das formas”. Esses estudos, ocorridos primordialmente no século XIV, tiveram nas Universidades de Oxford e Paris seus verdadeiros polos. Vimos como, na primeira metade do século, um grupo de filósofos e lógicos do Merton College de Oxford especificou com clareza a natureza do tratamento cinemático, ao chamar a atenção para a distinção entre as duas modalidades de estudo do movimento, a saber, quanto a suas causas e quanto a suas manifestações em si mesmas. Esses estudiosos estabeleceram uma estrutura conceitual básica a partir do qual tornou-se possível o aprofundamento dos primeiros esboços cinemáticos presentes na Física de Aristóteles e nos trabalhos gregos subsequentes. Deve-se dar destaque à formulação explícita dos conceitos de velocidade e aceleração, que, embora talvez pareçam, a uma primeira mirada, profundamente intuitivos, somente naquele século encontraram sua formalização, pelas mãos dos mertonianos. Esse fato, por si só, revela a nós, docentes, as complexidades ocultas mesmo na assimilação das noções mais introdutórias de nossa ciência, contribuindo para que se busquem novas formas de abordagem didática, capazes de tornar o aprendizado da Mecânica um processo mais efetivo.

Vimos como os estudiosos de Merton foram capazes de deduzir alguns importantes resultados cinemáticos referentes aos hoje chamados movimentos uniformemente variados – na época chamados de uniformemente diformes– : os Teoremas da Velocidade Média e da Distância Percorrida, ambos que encontrarão sua mais alta notoriedade no século XVII, através da obra de Galileu.

Os estudos cinemáticos iniciados em Oxford prosseguiram em Paris. Aí, sobretudo com Nicole Oresme, a abordagem matemática ganhou em amadurecimento com a introdução de uma representação gráfica, a partir da qual os resultados de Merton foram não somente redemonstrados, mas em alguns casos também generalizados. Notamos que, se em Oxford a ênfase na abordagem era essencialmente conceitual e teórica, através da elaboração de um formalismo e de seus desdobramentos, em Paris vemos já uma maior aplicação dessa estrutura teórica em situações concretas, como o problema da queda livre dos corpos. Ainda assim, nesse quesito, o passo decisivo da identificação desse movimento com um movimento uniformemente acelerado não foi efetuada. Isso ainda aguardaria cerca de dois séculos, aparentemente com o espanhol Domingo de Soto.

Por fim, analisamos os primeiros passos da descrição do movimento de rotação, com Gerard de Bruxelas, no século XIII, e, novamente, os estudiosos de Merton, em especial, Thomas Bradwardine. A dificuldade de compreensão da natureza complexa do movimento coletivo do corpo rígido, distinto do movimento individual das partes, parece ter oferecido grandes obstáculos ao desenvolvimento da questão, de tal forma que o caráter equivocado da própria formulação do problema, em termos de uma velocidade linear – inexistente – representativa do corpo, não foi superado. Encontramos apenas uma primeira intuição do papel a ser desempenhado pela velocidade angular, que, com o “parisiense” Alberto de Saxônia, adquiriu sua primeira conceituação clara.

Apêndice

Apêndice

References

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    D.C. Lindberg, The Beginnings of Western Science (University of Chicago Press, Chicago, 2007).
  • 1
    Embora não disponhamos mais dos originais de Strato, não se encontra na tradução inglesa dos Comentários de Simplício qualquer referência ao uso do termo aceleração.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2021
  • Revisado
    25 Mar 2021
  • Aceito
    31 Mar 2021
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