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A degenerescência do gás de elétrons e sua importância em Astrofísica

The electron gas degeneracy and its importance in Astrophysics

Resumos

Apresentamos uma discussão elementar do regime quântico de um gás de elétrons e suas aplicações à Evolução Estelar, com a ideia de contribuir para uma abordagem física deste importante estado da matéria nos primeiros anos das carreiras de Ciências.

Palavras-chave:
Gás de elétrons; estrelas; equilíbrio hidrostático


We present an elementary discussion of the quantum regime of an electron gas and its applications in Stellar Evolution, with the ideia of contributing to a more physical approach to this important state of matter in the first years of Science careers.

Keywords:
Electron gas; stars; hydrostatic equilibrium


1. Introdução

Quase toda a Astrofísica do século 20 se desenvolveu de forma “simbiótica” com a chamada Física Moderna. Não seria possível ter chegado tão longe sem o auxílio e o alicerce da Relatividade, a Mecânica Quântica, a Física Nuclear e a Mecânica Estatística. Em particular, a Teoria da Evolução Estela rconseguiu se estabelece como um todo usufruindo destes avanços, somados ao extraordinário desenvolvimento da instrumentação. Hoje a Evolução Estelar explica grande parte da estrutura e evolução de todas as estrelas conhecidas e seus vínculos evolutivos, embora existam “cabos soltos” e incertezas,como em qualquer atividade científica análoga [1[1] J.E. Horvath, Fundamentos da Evolução Estelar, Supernovas e Estrelas Compactas (Livraria da Física, São Paulo, 2011).].

Em outras publicações [2[2] J.E. Horvath, Rev. Bras. Ensino Fís. 35, 4501(2013).] temos nos referido ao descompasso entre o ensino da Física e o da sua herdeira e parceira, a Astronomia. O mero fato de continuarmos em situação precária para o ensino de Relatividade e Física Quântica elementares no Ensino Médio mostra que não houve realmente sucesso na integração destes temas, que continuam sendo olhado sem boa medida como “fronteiras a desbravar” pelo professor, e não acabam de emplacar como um corpus mínimo de conhecimentos/conceitos para os alunos. Com a Astronomia a situação é ainda pior, e embora exista uma salutar inserção de vários temas importantes na nova Base Nacional Comum Curricular [3[3] http://basenacionalcomum.mec.gov.br/, acessado em 10/02/2022.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/...
], é difícil prever se a integração destes temas com o resto das Ciências permitirá, de fato, uma exposição integral e consistente dos mesmos.

Como exemplo importante destas limitações, e motivo principal destetrabalho, resulta claro que a noção de limites físicos à aplicação de ideias e formulações continua praticamente alheia aos alunos. A insistência na Física Clássica (que é tratada e depois retomada nos ciclos escolares) parece ter um efeito anestésico, e tudo o que se baseia em conceitos não clássicos dificilmente é assimilado. Por exemplo, o mundo microfísico é praticamente desconhecido dos estudantes, e esta deficiência se estende no tempo, na sua vida universitária posterior, ao menos nos primeiros anos. Depois de ter ministrado em repetidas ocasiões palestras sobre Astrofísica Estelar e objetos compactos nos cursos de Extensão do IAG-USP, o autor pôde constatar o expressivo número de estudantes de Ciências e Engenharia da USP e outros centros vários que nunca haviam sido expostos a uma discussão do caráter extremo da matéria no domínio da degenerescência quântica, e de fato até houve às vezes uma atitude de contestação porparte de alguns ao ouvir a afirmação de que a temperatura não determina a pressão nesse regime. Para muitos alunos é incompreensível que a agitação térmica resulte irrelevante quando comparada com a compressão (fato que evidencia o caráter quântico da matéria), possivelmente porque durante anos ficaram focados somente no gás ideal, sem tomar conhecimento do regime no qual ele não é mais uma aproximação válida.

Resulta assim imperativo tentar uma exposição que não se baseie na tradicional discussão formal da funções de distribuição, mas que tente atingir os fundamentos físicos deste tipo de situação extrema para os professores e os estudantes do Ensino Médio e Superior. A discussão formal é muito importante e não pode ser substituída, mas uma primeira abordagem mais similar às dos cursos de Física Básica prepararia talvez o terreno para uma melhor compreensão global, e aumentaria o interesse em aprofundar as razões pelas quais este regime extremo é fundamental. De fato, boa parte dos desenvolvimentos na Astrofísica Estelar posteriores à vida da estrela na Sequência Principal (estágio descrito no começo de Seção4 4. A Degenerescência Eletrônica na Evolução Estelar A maior parte da vida das estrelas acontece dentro da chamada Sequência Principal. A Sequência Principal é definida como o lugar geométrico no diagrama de Hertzprung-Russell (HR) correspondente a todas as estrelas que fusionam hidrogênio em hélio para manter sua estrutura. Uma discussão do diagrama HR e da Sequência Principal pode ser encontrada na Ref. [9]. As estrelas na Sequência Principal estão constituídas de uma mistura de gás perfeito com radiação, onde a primeira componente é sempre muito dominante. Basta com que a pressão de radiação ganhe importância para que a estrela deixe de ser estável [10]. Porém, depois de ficar na Sequência Principal por um tempo muito longo, as estrelas do tipo solar deixam essa região ao não conseguir mais sustentar reações nucleares que produzem energia, como mostraram Schoenberg e Chandrasekhar [11]. Isto não leva a um colapso, mas sim a uma contração denominada quase-hidrostática onde a região central ou caroço aumenta sua densidade e temperatura. A questão é se este aumento da densidade ρ∝R-3 (onde R é o raio do caroço), muito mais importante que o aumento da temperatura, pode levar os elétrons ao regime quântico descrito anteriormente. Podemos estudar esta possibilidade com o auxílio da Fig.4 para entender a questão da degenerescência das regiões centrais das estrelas do tipo solar. Da teoria da Evolução Estelar [1, 9] sabemos que na chamada Sequência Principal inferior (M≤2,2⁢M⊙), as estrelas desenvolvem um caroço cada vez mais rico em hélio, produto da fusão nuclear dos ciclos próton-próton que a sustentam [1]. Este caroço é coberto por um envelope onde praticamente não acontecem reações nucleares (além de 0,4⁢R⊙ na Fig.1), e desta forma é importante entender apossível entrada do caroço no regime degenerado quando a estrela para de produzir fusões e o caroço se contrai de forma quase-hidrostática como dito anteriormente, aumentando a densidade, a qual já é bastante alta até mesmo dentro da Sequência Principal (Fig.1). As isotermas genéricas da matéria no interior do caroço são as curvas em vermelho da Fig.4, a região mais à esquerda é dominada pela pressão de radiação, mas sabemos que é irrelevante porque a densidade precisaria ser muito baixa para que este regime tenha sentido físico. Já a região do “gás perfeito”, uma linha reta a 45∘ em coordenadas logarítmicas, é a mais relevante para os caroços das estrelas normais como o Sol. Figure 4 Um caroço estelar em contração pode ser detido pela degenerescência eletrônica se sua evolução o leva a intersectar a curva preta que delimita a “região proibida”. Este é o caso do caroço de massa M1 quando chega no ponto marcado com o quadrado. Porém, se a massa for maior, a degenerescência dos elétrons não joga nenhum papel, e o caroço pode se equilibrar com a pressão do gás perfeito (caso do M2) já que quando a densidade é muito alta, os elétrons ficam relativísticos, a inclinação diminui e as curvas ficam paralelas, ou seja, a condição de equilíbrio hidrostático não têm mais solução. A cruz preta marca a última massa onde é possível o equilíbrio da gravitação com o gás de elétrons degenerado, precisamente a famosa “massa de Chandrasekhar”. Consideremos agora as trajetórias neste plano de dois caroços de massas diferentes M1 e M2 com M1<M2. No estágio pós-Sequência Principal, o caroço menor atravessa as isotermas porque esquenta enquanto contrai lentamente. Mas num ponto a densidade é tão alta que acontece o descrito na Fig.2, e os elétrons no caroço ficam degenerados. A contração se detém quando atingida a densidade correspondente ao quadradinho preto, porque a pressão de degenerescência resiste à gravitação e o caroço não pode “entrar” na região da direita (“região proibida pelo Princípio de Exclusão). O ponto de máxima compressão é a interseção da trajetória tracejada com a curva P∝ρ5/3. No entanto, um caroço de maior massa, tal como o M2, embora também atravesse as isotermas ao esquentar, nunca interesecta a borda da região proibida porque a inclinação da borda desta última muda para P∝ρ4/3 para uma densidade alta o suficiente. Como resultado, a degenerescência eletrônica não se estabelece, a contração do caroço não se detém, e este continua esquentando e adensando. O símbolo da cruzinha preta é o último ponto onde as trajetórias genéricas se bifurcam: antes dele existe equilíbrio do caroço degenerado, depois este equilíbrio é impossível e a contração continua. A massa do caroço correspondente à densidade da cruz preta é a chamada “massa de Chandrasekhar”. ) dependem do regime de degenerescência quântica [4[4] J.E. Horvath, Astrofísica de Altas Energias (Edusp, São Paulo, 2020).], que será objeto da nossa discussão a seguir.

2. A Física Básica da Degenerescência Eletrônica

Na matéria normal com uma densidade similar à da água, 1gcm-3 (na Astronomia as unidades de longe mais utilizadas são as do sistema cgs por razões históricas e de conveniência), os núcleos atômicos de dimensão 1fm10-13cm são ordens de grandeza menores que o tamanho típico dos orbitais eletrônicos 1Å10-8cm. A distância inter-núcleos típica é assim da ordem de δ=105fm. Porém, ao longo da evolução de uma estrela o núcleo central pode se adensar substancialmente, já que a gravitação é “incansável”, e as equações de equilíbrio hidrostático mostram que a densidade cresce muito no centro (Fig.1) conforme aumenta a idade da estrela.

Figure 1
A distribuição de densidade no interior do Sol hoje. A densidade central é de umas 160 vezes a média, e aumenta conforme o Sol envelhece porque o hélio inerte vai se acumulando, mas a pressão exercida precisa manter o equilíbrio hidrostático. Quando as reações nucleares ficam impossíveis (limite de Schoenberg-Chandrasekhar), a estrela sai da Sequência Principal e seu núcleo se contrai, aumentando ainda mais a densidade. Assim, a densidade central ρC cresce com o tempo, e a região central pode entrar no regime quântico.

Assim, é necessário considerar nos interiores estelares distâncias inter-núcleos muito menores para densidades centrais ρC>103gcm-3. Nestas densidades, as nuvens eletrônicas começam a ficar em contato (Fig.2).

Figure 2
a) Um gás qualquer (no caso, o carbono) mantém as nuvens eletrônicas separadas se a densidade for da ordem de 1gcm-3; mas quando a densidade aumenta por causa da evolução da estrela, é possível que as nuvens entrem em contato, como mostrado em (b), e os elétrons mostrem sua natureza quântica.
Figure 3
A plataforma do trem nas horas de pico como analogia da distribuição de elétrons no regime quântico, vide texto.

Desta forma os elétrons são “forçados” finalmente a manifestar seu caráter quântico, já que segundo o Princípio de Exclusão de Pauli, não podem ocupar os mesmos estados de energia. Esta ideia dos “estados de energia” é puramente quântica e deve ser reforçada junto aos estudantes, já que não há nada assim na Física Clássica onde a energia forma um contínuo, sem restrições. A passagem do regime clássico para o quântico é a chave para entender a pressão de degenerescência.

Uma apresentação analógica dos estados de energia dos elétrons e o Princípio de Pauli pode ser exemplificada pela plataforma de um trem (Fig.3). Com alguma licença de linguagem, e sempre lembrando que é uma analogia, os “estados” de menor energia acessíveis aos passageiros (aqueles perto da beira da plataforma) estão todos ocupados nas horas de pico. No caso mais extremo, os passageiros não podem se movimentar, tal como os elétrons numa distribuição degenerada onde os estados de energia mais baixos estão ocupados. Enquanto isso, os passageiros longe da beira da plataforma têm energia maior (se movimentam muito mais para conseguir um lugar). Mas empurrar para chegar a embarcar leva a uma resistência: ao“apertar” os elétrons que preenchemtodos os estados, aparece uma pressão de degenerescência, o resultado físico decorrente da existência do Princípio de Pauli. Na analogia da plataforma, sabemos que ela corresponde à impossibilidade de “furar” a barreira de pessoas à frente, já que existe uma resistência evidente.

3. A Derivação Mais Elementar da Equação de Estado do Gás de Elétrons Degenerado

Em 1926 Eddington, ao saber da confirmação do pequeno raio de Sirius B, com massa comparável à do Sol, escreveu no seu livro clássico The internal constitution of the stars[5[5] A.S. Eddington, The internal constitution of the stars (Cambridge University Press, Cambridge, 1988).] que era temerário pensar que nessas densidades, estimadas das medidas em 2000 vezes a do chumbo ou mais, um gás se comportaria de forma ideal. Mas Eddington nunca aprofundou ou elaborou esta afirmação. Esta inferência observacional de valores muito altos para a densidade, nos quais um gás ideal não resulta um modelo viável, levou à consideração do comportamento da matéria no regime quântico, na época recém estabelecido [6[6] R.H. Fowler, Monthly Notices of the Royal Astronomical Society 87, 114 (1926).].

A seguir veremos como é possível obter uma equação de estado válida para esse regime a partir de considerações elementares, de olho na compreensão da estrutura estelar decorrente.

Consideremos uma esfera com N elétrons confinados em um volume V. O espaço físico acessível para cada um deles é da ordem de Δx(VN)1/3 (por simplicidade em uma dimensão, e sem levar em conta de momento fatores numéricos da ordem de 1). A hipótese dos elétrons terem entradono regime quântico equivale a dizer que estão agora sujeitos ao Princípio de Incerteza e ΔxΔp. Assim seu impulso típico será da ordem de

(1) Δ p Δ x N 1 / 3 V 1 / 3 .

A energia cinética média EK, resulta, no regime não relativístico

(2) E K = Δ p 2 2 m 2 N 2 / 3 V 2 / 3 m .

Multiplicando pelo número de elétrons obtemos de imediato a energia interna U

(3) U = N E K 2 N 5 / 3 V 2 / 3 m .

Agora, de forma totalmente geral, a Termodinâmica nos permite encontrar a pressão (variável de estado do gás) diferenciando a energia interna U respeito do volume a entropia constante, já que esta energia interna é um dos potenciais termodinâmicos do sistema [7[7] S.R.A. Salinas, Introdução à Física Estatística (EDUSP, São Paulo, 2013).]. Ou seja, Pe=-UV|S=cte com o resultado

(4) P e = k 2 N 5 / 3 V 5 / 3 m ,

onde k é uma constante numérica, ou seja, Pen5/3 (já que a densidade é n=N/V) tal como afirmado sem demonstração em muitos tratamentos encontrados em textos de Astronomia. Além da temperatura não aparecer (reflexo de que a agitação térmica não mais determina o comportamento dos elétrons, outro ponto a insistir com os estudantes), vemos também outro fato importante: como a pressão é proporcional à constante de Planck ao quadrado 2, a pressão de degenerescência não existiria sem a Mecânica Quântica. Tudo isso está presente no trabalho de R. H. Fowler de 1926 [6[6] R.H. Fowler, Monthly Notices of the Royal Astronomical Society 87, 114 (1926).], o primeiro que vinculou as anãs brancas com a Teoria Quântica, relevante nesse regime de densidade extrema.

Este cálculo é simples e completamente geral. Se houvéssemos considerado os elétrons ultra-relativísticos com EK=pc, teríamos obtido Pen4/3. Estas duas formas são os limites de baixa e alta densidade do gás de elétrons degenerado, e constituem a base do cálculo de estrutura das anãs brancas de Chandrasekhar, quem unificou a estrutura estelar newtoniana usando uma única expressão politrópica Pe=KρΓ para a equação de estado, que se reduz nos dois limites (relativístico, alta densidade e não relativístico, baixa densidade) aos resultados exatos [8[8] S. Chandrasekhar, An Introduction to the Study of Stellar Structure (Dover, New York, 2010).].

4. A Degenerescência Eletrônica na Evolução Estelar

A maior parte da vida das estrelas acontece dentro da chamada Sequência Principal. A Sequência Principal é definida como o lugar geométrico no diagrama de Hertzprung-Russell (HR) correspondente a todas as estrelas que fusionam hidrogênio em hélio para manter sua estrutura. Uma discussão do diagrama HR e da Sequência Principal pode ser encontrada na Ref. [9[9] J.E. Horvath, As estrelas na sala de aula: uma abordagem para o Ensino da Astronomia Estelar (Livraria da Física, São Paulo, 2019).]. As estrelas na Sequência Principal estão constituídas de uma mistura de gás perfeito com radiação, onde a primeira componente é sempre muito dominante. Basta com que a pressão de radiação ganhe importância para que a estrela deixe de ser estável [10[10] M. Bandecchi, J.E. Horvath e P.S. Bretones, Rev. Bras. Ensino Fís. 41, e20180250 (2019).]. Porém, depois de ficar na Sequência Principal por um tempo muito longo, as estrelas do tipo solar deixam essa região ao não conseguir mais sustentar reações nucleares que produzem energia, como mostraram Schoenberg e Chandrasekhar [11[11] M. Schoenberg e S. Chandrasekhar, Astrophys. J. 96, 161 (1942).]. Isto não leva a um colapso, mas sim a uma contração denominada quase-hidrostática onde a região central ou caroço aumenta sua densidade e temperatura. A questão é se este aumento da densidade ρR-3 (onde R é o raio do caroço), muito mais importante que o aumento da temperatura, pode levar os elétrons ao regime quântico descrito anteriormente.

Podemos estudar esta possibilidade com o auxílio da Fig.4 para entender a questão da degenerescência das regiões centrais das estrelas do tipo solar. Da teoria da Evolução Estelar [1[1] J.E. Horvath, Fundamentos da Evolução Estelar, Supernovas e Estrelas Compactas (Livraria da Física, São Paulo, 2011)., 9[9] J.E. Horvath, As estrelas na sala de aula: uma abordagem para o Ensino da Astronomia Estelar (Livraria da Física, São Paulo, 2019).] sabemos que na chamada Sequência Principal inferior (M2,2M), as estrelas desenvolvem um caroço cada vez mais rico em hélio, produto da fusão nuclear dos ciclos próton-próton que a sustentam [1[1] J.E. Horvath, Fundamentos da Evolução Estelar, Supernovas e Estrelas Compactas (Livraria da Física, São Paulo, 2011).]. Este caroço é coberto por um envelope onde praticamente não acontecem reações nucleares (além de 0,4R na Fig.1), e desta forma é importante entender apossível entrada do caroço no regime degenerado quando a estrela para de produzir fusões e o caroço se contrai de forma quase-hidrostática como dito anteriormente, aumentando a densidade, a qual já é bastante alta até mesmo dentro da Sequência Principal (Fig.1). As isotermas genéricas da matéria no interior do caroço são as curvas em vermelho da Fig.4, a região mais à esquerda é dominada pela pressão de radiação, mas sabemos que é irrelevante porque a densidade precisaria ser muito baixa para que este regime tenha sentido físico. Já a região do “gás perfeito”, uma linha reta a 45 em coordenadas logarítmicas, é a mais relevante para os caroços das estrelas normais como o Sol.

Figure 4
Um caroço estelar em contração pode ser detido pela degenerescência eletrônica se sua evolução o leva a intersectar a curva preta que delimita a “região proibida”. Este é o caso do caroço de massa M1 quando chega no ponto marcado com o quadrado. Porém, se a massa for maior, a degenerescência dos elétrons não joga nenhum papel, e o caroço pode se equilibrar com a pressão do gás perfeito (caso do M2) já que quando a densidade é muito alta, os elétrons ficam relativísticos, a inclinação diminui e as curvas ficam paralelas, ou seja, a condição de equilíbrio hidrostático não têm mais solução. A cruz preta marca a última massa onde é possível o equilíbrio da gravitação com o gás de elétrons degenerado, precisamente a famosa “massa de Chandrasekhar”.

Consideremos agora as trajetórias neste plano de dois caroços de massas diferentes M1 e M2 com M1<M2. No estágio pós-Sequência Principal, o caroço menor atravessa as isotermas porque esquenta enquanto contrai lentamente. Mas num ponto a densidade é tão alta que acontece o descrito na Fig.2, e os elétrons no caroço ficam degenerados. A contração se detém quando atingida a densidade correspondente ao quadradinho preto, porque a pressão de degenerescência resiste à gravitação e o caroço não pode “entrar” na região da direita (“região proibida pelo Princípio de Exclusão). O ponto de máxima compressão é a interseção da trajetória tracejada com a curva Pρ5/3.

No entanto, um caroço de maior massa, tal como o M2, embora também atravesse as isotermas ao esquentar, nunca interesecta a borda da região proibida porque a inclinação da borda desta última muda para Pρ4/3 para uma densidade alta o suficiente. Como resultado, a degenerescência eletrônica não se estabelece, a contração do caroço não se detém, e este continua esquentando e adensando. O símbolo da cruzinha preta é o último ponto onde as trajetórias genéricas se bifurcam: antes dele existe equilíbrio do caroço degenerado, depois este equilíbrio é impossível e a contração continua. A massa do caroço correspondente à densidade da cruz preta é a chamada “massa de Chandrasekhar”.

5. O Equilíbrio Hidrostático e as Massas das Anãs Brancas

As anãs brancas são descritas pela gravitação newtoniana, sem necessidade de recorrer à Relatividade Geral ainda, ao menos se as massas não são extremas. Espera-se que as estrelas do tipo solar com até 8M na Sequência Principal produzam anãs brancas, que decorrem dos “caroços” anteriormente descritos depois da expulsão final do envelope. A equação fundamental que descreve o estado mecânico do gás é a chamada equação de equilíbrio hidrostático para uma esfera auto-gravitante

(5) d P d r = - G m ρ r 2 ,

onde m(r) é a massa encerrada no raio r. A solução da eq. (5) em termos da função pressão P(r) diz que a estrela está em um balanço exato entre as forças de pressão e a gravitação, que pode ser escrito genericamente como Pi=Pgrav”, no nosso caso Pi=Pe já que as outras contribuições são muito pequenas. Aqui temos colocado aspas para “pressão gravitacional”, uma expressão puramente formal que resulta de variar a energia respeito do volume que esta ocupa [6[6] R.H. Fowler, Monthly Notices of the Royal Astronomical Society 87, 114 (1926).]. A P é uma quantidade com dimensões de pressão que representa a gravitação, oposta às pressões da matéria, definida para fazer transparente a ideia do equilíbrio estelar.

O cálculo desta “pressão gravitacional” Pgrav-EgravV é imediato. Escrevendo a energia gravitacional de uma esfera em função do volumeV

(6) E grav = - 3 5 ( 4 π 3 ) 1 / 3 G M 2 V 1 / 3 ,

chegamos a

(7) P grav - E grav V = C M 2 / 3 ρ 4 / 3 ,

com C=G5(4π3)1/3. Escalonando para valores de referência temos finalmente

(8) P grav = 2.6 × 10 33 ( M M ) 2 / 3 ( ρ ρ 0 ) 4 / 3 e r g c m 3 .

Assim, o equilíbrio hidrostático é possível porque a inclinação do logaritmo da Pe não-relativística é 5/3 (Fig.4). Mas quando os elétrons começam a ficar relativísticos, ou seja,quando a massa total da esfera/estrela cresce, Pen4/3, as curvas ficam paralelas e as soluções (estrelas) deixam de existir. Existe um valor máximo da massa para a existência de soluções, a chamada massa de Chandrasekhar, mas não pode ser determinada com este cálculo esquemático. Porém, as densidades onde as curvas ficam paralelas podem ser obtidas de igualar as expressões (8) e a Pe no limite não relativístico, e resultam em 109gcm-3, valores consistentes com os cálculos mais detalhados.

A Fig.5 mostra finalmente as soluções numéricas exatas da equação de equilíbrio hidrostático (5) nos dois limites, o não relativístico e o ultra-relativístico. No meio dos dois, a equação de estado não pode ser reduzida a uma potência simples, o cálculo é mais complexo e interpola entre os dois limites.

Figure 5
As soluções da equação de equilíbrio hidrostático utilizando um gás de elétrons não relativístico (azul) são válidas até 0.5M aproximadamente. Para massas maiores, o limite ultra-relativístico é o mais adequado. A massa de Chandrasekhar onde as soluções deixam de existir é a linha pontilhada vertical vermelha [2[2] J.E. Horvath, Rev. Bras. Ensino Fís. 35, 4501(2013).].

Para uma compreensão física aprofundada, é possível examinar o argumento de Landau (1932) que ilumina a questão da massa máxima obtida por Chandrasekhar extremizando a energia total de forma simples, e obtém um valor numérico bem próximo do exato numericamente calculado [1[1] J.E. Horvath, Fundamentos da Evolução Estelar, Supernovas e Estrelas Compactas (Livraria da Física, São Paulo, 2011)., 4[4] J.E. Horvath, Astrofísica de Altas Energias (Edusp, São Paulo, 2020)., 12[12] S. Shapiro e S.L. Teukolsky, Black Holes, White Dwarfs and Neutron Stars. The Physics of Compact Objects (J. Wiley and Sons, New York, 1984).].

6. Conclusões

Temos apresentado uma discussão básica do regime quântico de degenerescência eletrônica, e suas consequências para a Evolução Estelar de estrelas do tipo solar (Sequência Principal inferior) e as anãs brancas. Acreditamos que a semelhança formal e conceitual com as abordagens dos cursos de Física elementar deve contribuir para melhorar a recepção e aproveitamento por parte dos alunos. Isto porque nos cursos de Física o primeiro contato com estes temas acontece muito tarde na carreira, dificilmente as estrelas são colocadas como exemplo, e os estudantes nem sempre conseguem ganhar uma compreensão efetiva da Física envolvida. É claro que a forma “habitual” de discutir a distribuição de Fermi-Dirac e suas consequências deve ser mantida e aprofundada, porque fundamenta formalmente com rigor a Física mais intuitiva e simples aqui descrita. Mas a apresentação do destino do Sol como exemplo deste fenômeno e a comparação com as estrelas de maior massa, antes da discussão dos remanescentes (anãs brancas), estas últimas “pura” degenerescência eletrônica, pode ajudar em muito para esta aproximação inicial.

Referências

  • [1]
    J.E. Horvath, Fundamentos da Evolução Estelar, Supernovas e Estrelas Compactas (Livraria da Física, São Paulo, 2011).
  • [2]
    J.E. Horvath, Rev. Bras. Ensino Fís. 35, 4501(2013).
  • [3]
    http://basenacionalcomum.mec.gov.br/, acessado em 10/02/2022.
    » http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
  • [4]
    J.E. Horvath, Astrofísica de Altas Energias (Edusp, São Paulo, 2020).
  • [5]
    A.S. Eddington, The internal constitution of the stars (Cambridge University Press, Cambridge, 1988).
  • [6]
    R.H. Fowler, Monthly Notices of the Royal Astronomical Society 87, 114 (1926).
  • [7]
    S.R.A. Salinas, Introdução à Física Estatística (EDUSP, São Paulo, 2013).
  • [8]
    S. Chandrasekhar, An Introduction to the Study of Stellar Structure (Dover, New York, 2010).
  • [9]
    J.E. Horvath, As estrelas na sala de aula: uma abordagem para o Ensino da Astronomia Estelar (Livraria da Física, São Paulo, 2019).
  • [10]
    M. Bandecchi, J.E. Horvath e P.S. Bretones, Rev. Bras. Ensino Fís. 41, e20180250 (2019).
  • [11]
    M. Schoenberg e S. Chandrasekhar, Astrophys. J. 96, 161 (1942).
  • [12]
    S. Shapiro e S.L. Teukolsky, Black Holes, White Dwarfs and Neutron Stars. The Physics of Compact Objects (J. Wiley and Sons, New York, 1984).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2022
  • Revisado
    04 Abr 2022
  • Aceito
    18 Abr 2022
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