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Demonstrações simples de desigualdades de Bell

Simple demonstrations of Bell inequalities

Resumos

A desigualdade de Bell expôs um dos aspectos mais fundamentais da mecânica quântica: a teoria é incompatível com a forma usual de se interpretar conceitos básicos como realidade e localidade. Embora o argumento original de Bell não seja de difícil compreensão, existem maneiras mais acessíveis de demonstrar desigualdades similares. Neste artigo apresentamos duas dessas demonstrações, propostas por Nick Herbert e Asher Peres, ambas muito simples e, ao que parece, relativamente pouco conhecidas apesar de seu interesse pedagógico. Também discutimos como a localidade e elementos de realidade descritos por variáveis ocultas se manifestam nessas demonstrações.

Palavras-chave:
Desigualdade de Bell; teorema de Bell; realismo; localidade


Bell’s inequality exposed one of the most fundamental aspects of quantum mechanics: the theory is incompatible with the usual way of interpreting basic concepts such as reality and locality. Although Bell’s original argument is not difficult to follow, there are more accessible ways to demonstrate similar inequalities. In this article we present two of these proofs, proposed by Nick Herbert and Asher Peres, both very simple and, it seems, relatively little known despite their pedagogical interest. We also discuss how locality and elements of reality described by hidden variables are introduced in these proofs.

Keywords:
Bell’s inequality; Bell’s theorem; realism; locality


1. Introdução

O Prêmio Nobel em Física de 2022 foi concedido a John Clauser, Alain Aspect e Anton Zeilinger “por experimentos com fótons emaranhados, demonstrando a violação de desigualdades de Bell e iniciando a ciência da informação quântica” [1[1] THE NOBEL PRIZE, The Nobel Prize in Physics 2022, disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/physics/2022/summary/
https://www.nobelprize.org/prizes/physic...
]. A premiação contemplou trabalhos que evidenciaram algumas das características mais estranhas da mecânica quântica, exibidas quando duas ou mais partículas estão em estados emaranhados. Aspectos básicos de nossa visão de mundo são colocados em questão em tais situações, como a ideia de que existe uma realidade física com propriedades bem definidas mesmo quando ninguém está observando essas propriedades – uma noção aparentemente óbvia conhecida como “realismo”. Os experimentos citados pelo comitê Nobel mostraram que manter essa concepção realista da natureza tem um preço: o abandono da ideia de “localidade”, ou seja, de que nenhum tipo de influência pode se propagar instantaneamente de um ponto a outro no espaço. Nas palavras de Clauser e Abner Shimony [2[2] J.F. Clauser e A. Shimony, Reports on Progress in Physics 41, 1881 (1978).], após esses experimentos devemos “ou abandonar a filosofia realista mantida pela maioria dos cientistas, ou revisar dramaticamente nosso conceito de espaço-tempo”.

Para compreender que conflito pode haver entre a mecânica quântica e nossa concepção usual de realidade, é conveniente começar pelo exame de uma situação simples da física clássica: uma partícula em movimento. O estado dessa partícula em um dado instante é completamente caracterizado por sua posição r e velocidade v, e qualquer grandeza física A associada a ela pode ser definida como uma função A(r,v) dessas variáveis. Por exemplo, a energia da partícula é dada por E(r,v)=mv2/2+V(r) e seu momento angular é L(r,v)=mr×v. Uma partícula clássica tem posição e velocidade a cada instante, o que significa que qualquer grandeza física A(r,v) terá sempre um valor bem definido. Podemos até não conhecer esse valor, mas ele existe e pode ser descoberto fazendo-se uma medida de A. Portanto, na física clássica a medida revela algo que já existia antes da medida ser realizada.

Na mecânica quântica a situação parece bem diferente. O estado de um sistema físico é caracterizado a cada instante por um “vetor de estado” ψ, e as grandezas físicas associadas ao sistema não são funções desse vetor de estado. Não existe uma função A(ψ) que determine o valor da grandeza A quando o sistema encontra-se no estado ψ. Em geral esse vetor de estado representa uma superposição dos diferentes valores que A pode assumir, e a mecânica quântica não prevê qual deles será encontrado em uma medida. A teoria fornece apenas a probabilidade da medida resultar em cada um dos possíveis valores de A. De acordo com a mecânica quântica, a medição não revela um valor preexistente da grandeza A; tal valor sequer existe objetivamente na ausência da medida. Como escreveu Werner Heisenberg, “é impossível retornar à ideia de um mundo real objetivo cujas menores partes existem objetivamente no mesmo sentido em que pedras e árvores existem, independentemente de nós as observarmos ou não” [3[3] W. Heisenberg, Physics and Philosophy (Harper & Brothers, New York, 1958), p.129.]. Outro pioneiro da mecânica quântica, Pascual Jordan, enfatizou que “observações não apenas perturbam o que vai ser medido, elas o produzem!” [4[4] M. Jammer, The Philosophy of Quantum Mechanics (Wiley, New York, 1974), p.161.]. Concepções como essas já foram descritas como “uma (não)visão de (não)mundo, se jamais houve alguma” [5[5] N.D. Mermin, New Literary History 23, 855 (1992).].

Uma forma de compatibilizar a mecânica quântica com alguma noção de realidade objetiva é através da introdução de “variáveis ocultas”, parâmetros que escapam ao controle nos experimentos e determinam o resultado de medidas das quantidades físicas. Em uma teoria de variáveis ocultas, o estado do sistema é caracterizado a cada instante pelo vetor de estado ψ e pelos parâmetros ocultos λ (pode haver mais de um, nesse caso λ representa o conjunto deles). O valor de qualquer grandeza física A associada ao sistema é dado por uma função A(ψ,λ), ou seja, o valor de A está bem determinado mesmo na ausência de uma observação. Os parâmetros suplementares são incluídos de maneira que a teoria de variáveis ocultas reproduza as previsões da mecânica quântica – por exemplo, a probabilidade de se obter um certo resultado em uma medida deve estar associada à distribuição estatística dos valores de λ.

Em 1964 John Bell demonstrou um teorema que restringiu tremendamente as teorias de variáveis ocultas. Bell mostrou que nenhuma teoria de variáveis ocultas local poderia reproduzir todas as previsões da mecânica quântica [6[6] J.S. Bell, Physics 1, 195 (1964).]. A localidade a que se refere o teorema entrou no argumento de Bell de maneira peculiar. Ele imaginou uma situação na qual duas partículas espacialmente separadas têm, cada uma, alguma de suas propriedades físicas medida. Bell supôs que os valores encontrados nessas medidas eram determinados por variáveis ocultas e fez uma hipótese extra, muito razoável, relacionada à localidade: o resultado da observação de certa propriedade em uma das partículas não pode depender de qual propriedade está sendo observada simultaneamente na outra partícula. Com essas suposições Bell obteve uma desigualdade numérica envolvendo correlações entre as observações, válida em qualquer teoria local de variáveis ocultas. Em seguida ele mostrou que a mecânica quântica prevê violações dessa desigualdade – em outras palavras, mostrou que apenas teorias não-locais podem ser consideradas quando se deseja descrever um sistema quântico com base em variáveis ocultas.

Exposições didáticas da demonstração originalmente dada por Bell a seu teorema podem ser encontradas em livros-texto (por exemplo [7[7] D.J. Griffiths e D.F. Schroeter, Introduction to Quantum Mechanics (Cambridge Univ. Press, Cambridge, 2018), 3a ed., 8[8] K. Gottfried e T.M. Yan, Quantum Mechanics: Fundamentals (Springer, New York, 2003), 2a ed.]) e publicações em periódicos dedicados ao ensino de física [9[9] R. Wagner, N.W. Lima e S. Duarte, Revista Brasileira de Ensino de Física 44, e20220116 (2022).]. No presente artigo descrevemos duas demonstrações que diferem da original e se destacam pela simplicidade, a primeira proposta por Nick Herbert [10[10] N. Herbert, American Journal of Physics 43, 315 (1975).] e a segunda por Asher Peres [11[11] A. Peres, American Journal of Physics 46, 745 (1978).]. As duas demonstrações levam a desigualdades distintas entre si e da apresentada por Bell em 1964. Todas essas variantes fazem parte de um conjunto maior de desigualdades equivalentes, chamadas coletivamente de ‘desigualdades de Bell’.

O artigo está organizado da seguinte maneira. Na seção2 2. Experimento de Bell com fótons O experimento imaginado por Bell na demonstração de seu teorema envolvia duas partículas de spin 1/2 no estado singleto. Nesta seção descreveremos uma variante desse experimento, usando pares de fótons (também num estado singleto). Os fótons são emitidos em sentidos opostos por uma fonte situada entre dois detetores, 𝒜 e ℬ. Os detetores medem a polarização linear de cada fóton ao longo de eixos nas direções α e β, como ilustrado na Figura1. Os ângulos α e β podem ser alterados, desde que os eixos permaneçam sobre o plano ortogonal à direção de propagação dos fótons. Se um fóton chega a 𝒜 e é observado com polarização paralela à direção α, o valor rα=+1 é registrado pelo detetor. Se a polarização for ortogonal à direção α, o valor registrado é rα=-1. O mesmo ocorre no detetor ℬ: os valores rβ=±1 correspondem às polarizações paralela e ortogonal à direção β. Figura 1: O experimento de Bell com pares de fótons emitidos por uma fonte. Os detetores 𝒜 e ℬ medem a polarização dos fótons ao longo de eixos nas direções α e β, respectivamente. Os fótons produzidos pela fonte não têm, individualmente, uma polarização bem definida. Para quaisquer ângulos α e β cada detetor registrará, em média, o mesmo número de fótons com polarizações paralela e ortogonal. Em termos de probabilidades isso significa que (1) P ± ⁢ ( α ) = P ± ⁢ ( β ) = 1 / 2 , onde P±⁢(α) é a probabilidade do fóton ser observado com polarização rα=±1 no detetor 𝒜 e P±⁢(β) é a correspondente probabilidade em ℬ. Podemos considerar também as probabilidades conjuntas das polarizações em um par. Por exemplo, definimos P+-⁢(α,β) como a probabilidade de um dos fótons ser observado em 𝒜 com rα=+1 (polarização paralela a α) e o outro ser observado em ℬ com rβ=-1 (polarização perpendicular a β). As outras combinações de resultados têm probabilidades P-+⁢(α,β), P++⁢(α,β) e P--⁢(α,β), com definições análogas à de P+-. No experimento de Bell as polarizações dos fótons em um par estão correlacionadas. Em particular, vamos supor que quando os eixos de 𝒜 e ℬ têm orientações coincidentes essa correlação é perfeita: se um fóton é observado com uma dada polarização (paralela ou perpendicular ao eixo do detetor), o outro fóton será encontrado com a mesma polarização no segundo detetor.1 Isso implica que para α=β as probabilidades conjuntas serão (2) P + + ⁢ ( α , α ) = P - - ⁢ ( α , α ) = 1 / 2 , P + - ⁢ ( α , α ) = P - + ⁢ ( α , α ) = 0 . Para ângulos não coincidentes, as probabilidades Pi⁢j⁢(α,β) podem ser calculadas via um argumento semiclássico baseado na lei de Malus [13]. A ideia é a seguinte. Pela lei de Malus, se um feixe de luz não polarizada passa por um filtro de polarização alinhado com a direção α (o ‘polarizador’) e em seguida atravessa um filtro semelhante alinhado à direção β (o ‘analisador’), a intensidade final do feixe será I = I 0 ⁢ cos 2 ⁡ ( β - α ) onde I0 é a intensidade da luz proveniente do polarizador. Interpretada em termos de fótons, a lei de Malus diz que a probabilidade de um fóton com polarização paralela a α ser observado com polarização paralela a β é dada por cos2⁡(β-α). No experimento de Bell, os detetores 𝒜 e ℬ podem ser imaginados como um sistema polarizador-analisador. Já vimos que se um fóton é observado em 𝒜 com polarização paralela a α, então o outro fóton tem necessariamente a mesma polarização, ou seja, 𝒜 age como polarizador do segundo fóton. O detetor ℬ, por sua vez, atua como um analisador e a probabilidade do fóton que incide sobre ele ser observado com polarização paralela a β deve ser a prevista pela lei de Malus. O mesmo raciocínio vale para polarizações perpendiculares aos eixos dos detetores 𝒜 e ℬ. Portanto, temos (3) P + + ⁢ ( α , β ) = P - - ⁢ ( α , β ) = 1 2 ⁢ cos 2 ⁡ ( α - β ) . Como Pi+⁢(α,β)+Pi-⁢(α,β)=Pi⁢(α)=1/2, temos também que (4) P + - ⁢ ( α , β ) = P - + ⁢ ( α , β ) = 1 2 ⁢ sen 2 ⁢ ( α - β ) . As mesmas probabilidades (3) e (4) podem ser obtidas com a mecânica quântica, aplicando-se a regra de Born a um vetor de estado consistente com as condições (1) e (2). O cálculo é um pouco mais complicado que o baseado na lei de Malus e está detalhado, por exemplo, em [14]. apresentamos o experimento proposto por Bell para testar sua desigualdade. Em seguida usamos esse experimento como base para expor as demonstrações de Herbert (seção3 3. A demonstração de Herbert Discutiremos nesta seção a demonstração do teorema de Bell apresentada por Nick Herbert2 no artigo Cryptographic approach to hidden variables[10]. O argumento é baseado no experimento com fótons descrito na seção2. Para facilitar a compreensão, faremos como Kuttner e Rosemblum [16] e representaremos a variável oculta associada à polarização por meio de ‘varetas’ ligadas aos fótons. É a orientação espacial dessas varetas que determina o resultado de medidas da polarização. As medidas são realizadas pelos detetores 𝒜 e ℬ, cujas ‘janelas’ permitem a passagem de varetas orientadas em certas direções (fótons com polarização ‘paralela’ ao eixo do detetor) e impedem a passagem das demais varetas (fótons com polarização ‘perpendicular’). Os fótons são emitidos aos pares pela fonte e os membros de um par têm suas varetas orientadas na mesma direção. A Figura2 ilustra essa representação realista do experimento de Bell. Figura 2: O experimento de Bell em uma interpretação realista. Cada fóton carrega uma ‘vareta’ que representa a variável oculta associada à polarização. Os discos são detetores com orientações ajustáveis, com ‘janelas’ que deixam passar varetas com direções próximas a essa orientação (fótons de polarização paralela) e impedem a passagem das demais (fótons de polarização perpendicular) [16]. Apesar de seu apelo intuitivo, é importante não interpretar literalmente o modelo geométrico apresentado na Figura2. As varetas nos fótons e as janelas nos detetores são apenas símbolos visuais para uma regra matemática que associa o valor da variável oculta ao resultado da medida de polarização. Para demonstrar a desigualdade de Bell vamos analisar o experimento da Figura2 em quatro configurações diferentes, descritas a seguir. Configuração 1: Nesse primeiro formato os dois detetores estão alinhados ao longo da mesma direção, que chamaremos vertical, conforme mostrado na Figura3 (a escolha da direção é irrelevante, o importante é que os detetores estejam alinhados entre si). Após muitas medidas, os resultados de 𝒜 e ℬ são comparados. Como as varetas dos fótons em um par têm a mesma orientação, é fácil prever que toda vez que um fóton passar pelo detetor 𝒜, seu par também passará por ℬ e toda vez que um fóton não passar por 𝒜, seu par também não passará por ℬ. A sequência de registros dos fótons nos dois detetores será, portanto, idêntica. O mesmo deve ocorrer para qualquer orientação dos detetores, desde que essas sejam iguais. O resultado corresponde, é claro, à condição (2), que deve ser satisfeita por experimentos de Bell. Figura 3: A configuração 1, na qual os eixos dos detetores 𝒜 e ℬ estão alinhados com a vertical. Configuração 2: Essa configuração é análoga à anterior, mas desta vez o detetor 𝒜 é colocado a um ângulo θ em relação à vertical, conforme mostra a Figura4. Nesse caso, um fóton que anteriormente passaria por 𝒜 agora pode não mais atravessar o detetor. Da mesma forma, um fóton que na configuração 1 não passaria por 𝒜, agora tem certa chance de fazer isso. Novamente, depois de muitas medidas, os resultados dos dois detetores são comparados. É claro que agora eles não serão idênticos: devem aparecer discrepâncias entre os registros de um mesmo par. Chamaremos 𝒫⁢(θ) à probabilidade de ocorrência dessas discrepâncias. Figura 4: A configuração 2, com o eixo do detetor 𝒜 a um ângulo θ da vertical. Configuração 3: Nessa situação, o detetor ℬ é colocado a um ângulo θ em relação à vertical enquanto 𝒜 volta a ficar alinhado com a vertical. Como esse arranjo é equivalente ao anterior, devemos encontrar correlações semelhantes às da configuração 2, ou seja, a probabilidade de 𝒜 e ℬ registrarem polarizações diferentes também deve ser dada por 𝒫⁢(θ). Configuração 4: Agora ambos os detetores são girados por um ângulo θ em relação à vertical, mas em sentidos opostos, como mostra a Figura5. Devemos esperar que, em relação à situação original, uma fração 𝒫⁢(θ) dos fótons tenha destino diferente em cada detetor, pois foi o que ocorreu nas configurações 2 e 3. Mas o que será encontrado quando os registros dos dois detetores forem comparados? À primeira vista, poderíamos pensar que a probabilidade de discrepância seria 2⁢𝒫⁢(θ), a soma das probabilidades encontradas nos experimentos 2 e 3. Entretanto, esse raciocínio não é correto, pois ignora que se houver alteração nos registros dos dois fótons de um mesmo par encontraremos uma concordância, não uma discordância. A possibilidade de ocorrerem duplas mudanças faz com que o número de discrepâncias entre os resultados de 𝒜 e ℬ na configuração 4 seja menor, ou no máximo igual, à soma daquelas encontradas nas configurações 2 e 3. Figura 5: A configuração 4, com os eixos dos detetores 𝒜 e ℬ nas direções θ e -θ em relação à vertical. Podemos expressar o resultado acima como uma restrição sobre a função 𝒫⁢(θ). Para isso vamos supor que o detetor 𝒜 é girado por um ângulo 2⁢θ, enquanto ℬ permanece alinhado com a vertical. Nesse caso a probabilidade de encontrar discrepâncias nos registros de fótons, na forma como foi definida na configuração 2, deve ser 𝒫⁢(2⁢θ). Como não há nenhuma orientação privilegiada no experimento, essa deve ser a mesma probabilidade das discrepâncias encontradas na configuração 4, que já vimos ser menor ou igual a 2⁢𝒫⁢(θ). Portanto, a função 𝒫⁢(θ) deve ser tal que (5) 𝒫 ⁢ ( 2 ⁢ θ ) ≤ 2 ⁢ 𝒫 ⁢ ( θ ) . Essa é uma desigualdade de Bell, que identificaremos como Bell-Herbert. É importante perceber como a hipótese de localidade foi usada para obter a desigualdade. A demonstração foi baseada na suposição de que o número de fótons que deixaram de passar pelo detetor 𝒜 (cujo eixo fora rotacionado) é idêntico ao número de discrepâncias entre os registros de 𝒜 e ℬ (cujo eixo permaneceu inalterado). Esse pressuposto só é válido, entretanto, se o resultado de uma medida em ℬ for independente da orientação escolhida para o detetor 𝒜. Como as medidas são simultâneas e os detetores estão distantes um do outro, isso corresponde à noção de localidade descrita na seção1. Para verificar se a mecânica quântica é compatível com a desigualdade de Bell-Herbert, notemos que as probabilidades introduzidas na seção2 determinam 𝒫⁢(θ), (6) 𝒫 ⁢ ( θ ) = P + - ⁢ ( θ , 0 ) + P - + ⁢ ( θ , 0 ) , de modo que, utilizando a equação (4), (7) 𝒫 ⁢ ( θ ) = sen 2 ⁢ θ . Substituindo esse resultado na desigualdade (5) obtemos (8) sen 2 ⁢ θ ⁢ ( cos 2 ⁡ θ - 1 / 2 ) ≤ 0 . É fácil notar que no intervalo 0∘<θ<45∘ a função sen2⁢θ⁢(cos2⁡θ-1/2) é estritamente positiva, o que contradiz a desigualdade. Portanto a probabilidade 𝒫⁢(θ) prevista pela mecânica quântica viola a desigualdade de Bell-Herbert, ou seja, não pode ser reproduzida por nenhuma teoria realista e local. ) e Peres (seção4 4. A demonstação de Peres A segunda demonstração do teorema de Bell que discutiremos foi dada por Asher Peres em um artigo intitulado Unperformed experiments have no results[11]. Novamente, nosso ponto de partida será o experimento de Bell apresentado na seção2. Vamos supor que o experimento foi realizado com os eixos dos detetores alinhados às direções α e β e que as polarizações foram medidas em um número muito grande de pares de fótons, com os correspondentes valores de rα e rβ registrados. Com esses registros podemos construir a ‘função de correlação’ das medidas, definida como a média dos produtos rα⁢rβ computados para cada par de fótons, (9) ⟨ r α ⁢ r β ⟩ = 1 N ⁢ ∑ n = 1 N r α ⁢ ( n ) ⁢ r β ⁢ ( n ) , onde N é o número de pares observados e rα⁢(n), rβ⁢(n) são os registros da n-ésima medida. A função de correlação desempenhará papel central no argumento que desenvolveremos a seguir. Para obter a desigualdade de Bell, imaginemos o que teria acontecido se os detetores 𝒜 e ℬ tivessem sido alinhados em outras direções, por exemplo, α′ e β′. É importante notar que o experimento não foi realizado com esses alinhamentos, de modo que não temos como precisar quais seriam os resultados rα′ e rβ′ dessas medidas imaginárias. Tudo o que sabemos é que, se tivessem sido realizadas, as medidas de rα′ e rβ′ só poderiam resultar em±1. Consideremos então, para os fótons do n-ésimo par detetado, a quantidade S⁢(n) dada por (10) S ⁢ ( n ) = r α ⁢ ( n ) ⁢ r β ⁢ ( n ) + r α ⁢ ( n ) ⁢ r β ′ ⁢ ( n ) + r α ′ ⁢ ( n ) ⁢ r β ⁢ ( n ) - r α ′ ⁢ ( n ) ⁢ r β ′ ⁢ ( n ) . Não é possível determinar S⁢(n), pois não medimos os valores de rα′⁢(n) e rβ′⁢(n). Entretanto, se sustentarmos a ideia de uma realidade objetiva, esses valores devem existir mesmo que não tenham sido medidos e isso é suficiente para demonstrar que S⁢(n) pode ter apenas dois valores: +2 ou -2. A demostração é simples, basta escrever S⁢(n) na forma (11) S ⁢ ( n ) = r α ⁢ ( r β + r β ′ ) + r α ′ ⁢ ( r β - r β ′ ) e observar que: (I) apenas uma das duas parcelas do lado direito pode ser diferente de zero, e (II) a parcela não nula vale +2 ou -2. Como algumas vezes teremos S=+2 e em outras S=-2, a média ⟨S⟩ dessa quantidade sobre os N pares de fótons deve necessariamente estar entre esses dois números, ou seja, (12) | ⟨ S ⟩ | ≤ 2 . Com as definições (9) e (10), vemos que ⟨S⟩ pode ser escrita como (13) ⟨ S ⟩ = ⟨ r α ⁢ r β ⟩ + ⟨ r α ⁢ r β ′ ⟩ + ⟨ r α ′ ⁢ r β ⟩ - ⟨ r α ′ ⁢ r β ′ ⟩ de modo que a desigualdade (12) torna-se (14) | ⟨ r α ⁢ r β ⟩ + ⟨ r α ⁢ r β ′ ⟩ + ⟨ r α ′ ⁢ r β ⟩ - ⟨ r α ′ ⁢ r β ′ ⟩ | ≤ 2 . Essa é mais uma desigualdade de Bell, conhecida como desigualdade de Clauser-Horne-Shimony-Holt [17], geralmente abreviada para CHSH. É interessante notar que a demonstração acima não faz menção explícita a variáveis ocultas, apenas à ideia que quantidades físicas têm um valor mesmo quando não estão sendo medidas. Isso sugere que as desigualdades de Bell não dependem obrigatoriamente de uma relação determinista entre a variável oculta e a quantidade física, expressa numa função como A⁢(ψ,λ). Essa relação pode ser estatística – nada impede que a variável λ determine apenas a probabilidade da quantidade A ter um certo valor no momento da medida.3 Para algumas desigualdades de Bell o importante é que esse valor exista mesmo que a medida não seja feita. O papel da localidade na demonstração de Peres também merece comentário, pois pode ter passado despercebido. A hipótese de localidade, ou seja, da independência dos resultados de um detetor em relação à quantidade que está sendo medida no outro, foi usada na demonstração quando, por exemplo, descrevemos o n-ésimo registro no detetor 𝒜 como rα⁢(n). Isso pressupõe que o resultado depende apenas do par específico que está sendo observado, identificado por n, e da quantidade medida em 𝒜, a polarização relativa ao eixo α. Se o resultado dessa medida dependesse do ângulo β com que a polarização no mesmo par é medida em ℬ, deveríamos ter escrito o registro em 𝒜 como rα⁢(n,β). Da mesma forma, os registros em ℬ deveriam ser rβ⁢(n,α). É fácil ver que essas modificações tornariam inviável a fatoração realizada em (11) e impediriam a demonstração da desigualdade. Vamos agora verificar se a mecânica quântica é consistente com a desigualdade de Bell-CHSH. Para isso podemos recorrer às probabilidades Pi⁢j⁢(α,β) definidas na seção2 e escrever a função de correlação como (15) ⟨ r α ⁢ r β ⟩ = P + + ⁢ ( α , β ) + P - - ⁢ ( α , β ) - P + - ⁢ ( α , β ) - P - + ⁢ ( α , β ) . Utilizando as probabilidades dadas pelas equações (3) e (4), obtemos então que a função de correlação quântica é (16) ⟨ r α ⁢ r β ⟩ = cos 2 ⁡ ( α - β ) - sen 2 ⁢ ( α - β ) = cos ⁡ 2 ⁢ ( α - β ) . Para testar se essa previsão quântica leva a violações da desigualdade de Bell-CHSH, vamos considerar uma situação particularmente simples, na qual α=β=0, α′=θ/2 e β′=-θ/2. Nessa configuração as quatro funções de correlação que compõem a desigualdade são ⟨rα⁢rβ⟩=1, ⟨rα⁢rβ′⟩=⟨rα′⁢rβ⟩=cos⁡θ e ⟨rα′⁢rβ′⟩=cos⁡2⁢θ. Substituindo essas funções em (14), após algum rearranjo a desigualdade ganha a forma (17) | 1 + cos ⁡ θ ⁢ ( 1 - cos ⁡ θ ) | ≤ 1 . Como cos⁡θ⁢(1-cos⁡θ) é estritamente positivo no intervalo 0∘<θ<90∘, é fácil ver que para esses ângulos a mecânica quântica viola a desigualdade de Bell-CHSH. Novamente chegamos à conclusão de Bell: nenhuma teoria realista e local pode reproduzir as previsões da mecânica quântica. ). Finalmente, o interesse pedagógico dessas demonstrações é discutido na seção5 5. Comentários Neste artigo procuramos apresentar as demonstrações mais simples que conhecemos de desigualdades de Bell. É claro que simplicidade é um conceito subjetivo. Por isso, ou por desconhecimento, é possível que tenhamos ignorado demonstrações ainda mais claras. De qualquer forma as duas demonstrações descritas no artigo sugerem que é possível abordar de maneira muito acessível um dos aspectos mais fundamentais da mecânica quântica, que tradicionalmente é reservado (se tal) a cursos avançados. Uma vantagem de apresentar as duas demonstrações é que a comparação entre seus diferentes argumentos pode ser instrutiva. Por exemplo, descrevemos a demonstração de Herbert de maneira quase visual, enfatizando o papel da variável oculta representada pelas varetas de polarização. Já na abordagem de Peres as variáveis ocultas sequer são mencionadas; apenas supõe-se que elementos de realidade estão associados à polarização dos fótons, não necessariamente vinculados de maneira determinista a parâmetros adicionais. Outra vantagem de ter duas demonstrações é que com elas chegamos a duas desigualdades distintas. Isso mostra que existem muitas desigualdades de Bell, todas equivalentes no sentido que são violadas por previsões da mecânica quântica. Um ponto que deve ser comentado é nossa opção por apresentar o experimento de Bell com pares de fótons, não com partículas de spin 1/2. A última opção é a mais comum, seguindo o tratamento original do próprio Bell, mas nesse caso a análise quântica do experimento exige algum conhecimento da álgebra do spin 1/2. No caso do experimento com fótons, vimos que a discussão pode ser simplificada por um argumento semiclássico baseado na lei de Malus, que reproduz perfeitamente o resultado obtido pela mecânica quântica. Como esse argumento pode ser acompanhado por estudantes que já tenham passado por cursos introdutórios de ótica, adaptamos a demonstração de Peres (desenvolvida para spin 1/2) e adotamos o experimento com fótons como ponto de partida nas duas demonstrações. É conveniente destacar também que a simplicidade das demonstrações pode ajudar a evitar incompreensões comuns sobre o teorema de Bell. Uma dessas é que qualquer teoria de variáveis ocultas, local ou não, seria incompatível com a mecânica quântica. Como ressaltamos ao descrever os argumentos de Herbert e Peres, a localidade é condição essencial para obtenção de desigualdades de Bell, embora nem sempre isso seja imediatamente percebido. Existem outras demonstrações simples do teorema de Bell que poderiam ter sido incluídas no artigo. Uma particularmente interessante foi sugerida por Eugene Wigner [19] em 1970 e posteriormente ganhou diferentes versões [20, 21], a ponto de ser reduzida à análise de um simples desenho [22]. A abordagem de Wigner não foi apresentada aqui pois já é descrita em um livro-texto muito utilizado [23] e em artigo didático publicado recentemente [24]. Para finalizar, voltemos ao Prêmio Nobel em Física de 2022. As desigualdades de Bell mostraram como experimentos poderiam decidir entre a mecânica quântica e qualquer teoria de variáveis ocultas apoiada nas noções de realismo e localidade. Os físicos contemplados com o Nobel realizaram esses experimentos, encontrando evidências inequivocamente favoráveis à mecânica quântica. Com isso eles trouxeram a investigação de questões filosóficas fundamentais para dentro do laboratório e, com seus resultados, abalaram ideias que por muito tempo formaram a base de nossa compreensão do mundo físico. Foi um prêmio mais que merecido. .

2. Experimento de Bell com fótons

O experimento imaginado por Bell na demonstração de seu teorema envolvia duas partículas de spin 1/2 no estado singleto. Nesta seção descreveremos uma variante desse experimento, usando pares de fótons (também num estado singleto). Os fótons são emitidos em sentidos opostos por uma fonte situada entre dois detetores, 𝒜 e . Os detetores medem a polarização linear de cada fóton ao longo de eixos nas direções α e β, como ilustrado na Figura1. Os ângulos α e β podem ser alterados, desde que os eixos permaneçam sobre o plano ortogonal à direção de propagação dos fótons. Se um fóton chega a 𝒜 e é observado com polarização paralela à direção α, o valor rα=+1 é registrado pelo detetor. Se a polarização for ortogonal à direção α, o valor registrado é rα=-1. O mesmo ocorre no detetor : os valores rβ=±1 correspondem às polarizações paralela e ortogonal à direção β.

Figura 1:
O experimento de Bell com pares de fótons emitidos por uma fonte. Os detetores 𝒜 e medem a polarização dos fótons ao longo de eixos nas direções α e β, respectivamente.

Os fótons produzidos pela fonte não têm, individualmente, uma polarização bem definida. Para quaisquer ângulos α e β cada detetor registrará, em média, o mesmo número de fótons com polarizações paralela e ortogonal. Em termos de probabilidades isso significa que

(1) P ± ( α ) = P ± ( β ) = 1 / 2 ,

onde P±(α) é a probabilidade do fóton ser observado com polarização rα=±1 no detetor 𝒜 e P±(β) é a correspondente probabilidade em .

Podemos considerar também as probabilidades conjuntas das polarizações em um par. Por exemplo, definimos P+-(α,β) como a probabilidade de um dos fótons ser observado em 𝒜 com rα=+1 (polarização paralela a α) e o outro ser observado em com rβ=-1 (polarização perpendicular a β). As outras combinações de resultados têm probabilidades P-+(α,β), P++(α,β) e P--(α,β), com definições análogas à de P+-.

No experimento de Bell as polarizações dos fótons em um par estão correlacionadas. Em particular, vamos supor que quando os eixos de 𝒜 e têm orientações coincidentes essa correlação é perfeita: se um fóton é observado com uma dada polarização (paralela ou perpendicular ao eixo do detetor), o outro fóton será encontrado com a mesma polarização no segundo detetor.1 1 As polarizações serão as mesmas (+⁣+ ou -⁣-) se o par de fótons estiver num estado singleto de paridade positiva. Em um singleto de paridade negativa as polarizações serão ortogonais entre si (+⁣- ou -⁣+) [12]. Isso implica que para α=β as probabilidades conjuntas serão

(2) P + + ( α , α ) = P - - ( α , α ) = 1 / 2 , P + - ( α , α ) = P - + ( α , α ) = 0 .

Para ângulos não coincidentes, as probabilidades Pij(α,β) podem ser calculadas via um argumento semiclássico baseado na lei de Malus [13[13] A. Aspect, em: Quantum [Un]Speakables – From Bell to Quantum Information, editado por R.A. Bertlmann e A. Zeilinger (Springer, Berlin, 2002), p. 119.]. A ideia é a seguinte. Pela lei de Malus, se um feixe de luz não polarizada passa por um filtro de polarização alinhado com a direção α (o ‘polarizador’) e em seguida atravessa um filtro semelhante alinhado à direção β (o ‘analisador’), a intensidade final do feixe será

I = I 0 cos 2 ( β - α )

onde I0 é a intensidade da luz proveniente do polarizador. Interpretada em termos de fótons, a lei de Malus diz que a probabilidade de um fóton com polarização paralela a α ser observado com polarização paralela a β é dada por cos2(β-α). No experimento de Bell, os detetores 𝒜 e podem ser imaginados como um sistema polarizador-analisador. Já vimos que se um fóton é observado em 𝒜 com polarização paralela a α, então o outro fóton tem necessariamente a mesma polarização, ou seja, 𝒜 age como polarizador do segundo fóton. O detetor , por sua vez, atua como um analisador e a probabilidade do fóton que incide sobre ele ser observado com polarização paralela a β deve ser a prevista pela lei de Malus. O mesmo raciocínio vale para polarizações perpendiculares aos eixos dos detetores 𝒜 e . Portanto, temos

(3) P + + ( α , β ) = P - - ( α , β ) = 1 2 cos 2 ( α - β ) .

Como Pi+(α,β)+Pi-(α,β)=Pi(α)=1/2, temos também que

(4) P + - ( α , β ) = P - + ( α , β ) = 1 2 sen 2 ( α - β ) .

As mesmas probabilidades (3) e (4) podem ser obtidas com a mecânica quântica, aplicando-se a regra de Born a um vetor de estado consistente com as condições (1) e (2). O cálculo é um pouco mais complicado que o baseado na lei de Malus e está detalhado, por exemplo, em [14[14] R. Liboff, Introductory Quantum Mechanics (Addison-Wesley, San Francisco, 2002), 4a ed.].

3. A demonstração de Herbert

Discutiremos nesta seção a demonstração do teorema de Bell apresentada por Nick Herbert2 2 Herbert é um dos ‘hippies que salvaram a Física’, ver [15]. no artigo Cryptographic approach to hidden variables[10[10] N. Herbert, American Journal of Physics 43, 315 (1975).]. O argumento é baseado no experimento com fótons descrito na seção2 2. Experimento de Bell com fótons O experimento imaginado por Bell na demonstração de seu teorema envolvia duas partículas de spin 1/2 no estado singleto. Nesta seção descreveremos uma variante desse experimento, usando pares de fótons (também num estado singleto). Os fótons são emitidos em sentidos opostos por uma fonte situada entre dois detetores, 𝒜 e ℬ. Os detetores medem a polarização linear de cada fóton ao longo de eixos nas direções α e β, como ilustrado na Figura1. Os ângulos α e β podem ser alterados, desde que os eixos permaneçam sobre o plano ortogonal à direção de propagação dos fótons. Se um fóton chega a 𝒜 e é observado com polarização paralela à direção α, o valor rα=+1 é registrado pelo detetor. Se a polarização for ortogonal à direção α, o valor registrado é rα=-1. O mesmo ocorre no detetor ℬ: os valores rβ=±1 correspondem às polarizações paralela e ortogonal à direção β. Figura 1: O experimento de Bell com pares de fótons emitidos por uma fonte. Os detetores 𝒜 e ℬ medem a polarização dos fótons ao longo de eixos nas direções α e β, respectivamente. Os fótons produzidos pela fonte não têm, individualmente, uma polarização bem definida. Para quaisquer ângulos α e β cada detetor registrará, em média, o mesmo número de fótons com polarizações paralela e ortogonal. Em termos de probabilidades isso significa que (1) P ± ⁢ ( α ) = P ± ⁢ ( β ) = 1 / 2 , onde P±⁢(α) é a probabilidade do fóton ser observado com polarização rα=±1 no detetor 𝒜 e P±⁢(β) é a correspondente probabilidade em ℬ. Podemos considerar também as probabilidades conjuntas das polarizações em um par. Por exemplo, definimos P+-⁢(α,β) como a probabilidade de um dos fótons ser observado em 𝒜 com rα=+1 (polarização paralela a α) e o outro ser observado em ℬ com rβ=-1 (polarização perpendicular a β). As outras combinações de resultados têm probabilidades P-+⁢(α,β), P++⁢(α,β) e P--⁢(α,β), com definições análogas à de P+-. No experimento de Bell as polarizações dos fótons em um par estão correlacionadas. Em particular, vamos supor que quando os eixos de 𝒜 e ℬ têm orientações coincidentes essa correlação é perfeita: se um fóton é observado com uma dada polarização (paralela ou perpendicular ao eixo do detetor), o outro fóton será encontrado com a mesma polarização no segundo detetor.1 Isso implica que para α=β as probabilidades conjuntas serão (2) P + + ⁢ ( α , α ) = P - - ⁢ ( α , α ) = 1 / 2 , P + - ⁢ ( α , α ) = P - + ⁢ ( α , α ) = 0 . Para ângulos não coincidentes, as probabilidades Pi⁢j⁢(α,β) podem ser calculadas via um argumento semiclássico baseado na lei de Malus [13]. A ideia é a seguinte. Pela lei de Malus, se um feixe de luz não polarizada passa por um filtro de polarização alinhado com a direção α (o ‘polarizador’) e em seguida atravessa um filtro semelhante alinhado à direção β (o ‘analisador’), a intensidade final do feixe será I = I 0 ⁢ cos 2 ⁡ ( β - α ) onde I0 é a intensidade da luz proveniente do polarizador. Interpretada em termos de fótons, a lei de Malus diz que a probabilidade de um fóton com polarização paralela a α ser observado com polarização paralela a β é dada por cos2⁡(β-α). No experimento de Bell, os detetores 𝒜 e ℬ podem ser imaginados como um sistema polarizador-analisador. Já vimos que se um fóton é observado em 𝒜 com polarização paralela a α, então o outro fóton tem necessariamente a mesma polarização, ou seja, 𝒜 age como polarizador do segundo fóton. O detetor ℬ, por sua vez, atua como um analisador e a probabilidade do fóton que incide sobre ele ser observado com polarização paralela a β deve ser a prevista pela lei de Malus. O mesmo raciocínio vale para polarizações perpendiculares aos eixos dos detetores 𝒜 e ℬ. Portanto, temos (3) P + + ⁢ ( α , β ) = P - - ⁢ ( α , β ) = 1 2 ⁢ cos 2 ⁡ ( α - β ) . Como Pi+⁢(α,β)+Pi-⁢(α,β)=Pi⁢(α)=1/2, temos também que (4) P + - ⁢ ( α , β ) = P - + ⁢ ( α , β ) = 1 2 ⁢ sen 2 ⁢ ( α - β ) . As mesmas probabilidades (3) e (4) podem ser obtidas com a mecânica quântica, aplicando-se a regra de Born a um vetor de estado consistente com as condições (1) e (2). O cálculo é um pouco mais complicado que o baseado na lei de Malus e está detalhado, por exemplo, em [14]. . Para facilitar a compreensão, faremos como Kuttner e Rosemblum [16[16] F. Kuttner e B. Rosenblum, The Physics Teacher 48, 124 (2010).] e representaremos a variável oculta associada à polarização por meio de ‘varetas’ ligadas aos fótons. É a orientação espacial dessas varetas que determina o resultado de medidas da polarização. As medidas são realizadas pelos detetores 𝒜 e , cujas ‘janelas’ permitem a passagem de varetas orientadas em certas direções (fótons com polarização ‘paralela’ ao eixo do detetor) e impedem a passagem das demais varetas (fótons com polarização ‘perpendicular’). Os fótons são emitidos aos pares pela fonte e os membros de um par têm suas varetas orientadas na mesma direção. A Figura2 ilustra essa representação realista do experimento de Bell.

Figura 2:
O experimento de Bell em uma interpretação realista. Cada fóton carrega uma ‘vareta’ que representa a variável oculta associada à polarização. Os discos são detetores com orientações ajustáveis, com ‘janelas’ que deixam passar varetas com direções próximas a essa orientação (fótons de polarização paralela) e impedem a passagem das demais (fótons de polarização perpendicular) [16[16] F. Kuttner e B. Rosenblum, The Physics Teacher 48, 124 (2010).].

Apesar de seu apelo intuitivo, é importante não interpretar literalmente o modelo geométrico apresentado na Figura2. As varetas nos fótons e as janelas nos detetores são apenas símbolos visuais para uma regra matemática que associa o valor da variável oculta ao resultado da medida de polarização.

Para demonstrar a desigualdade de Bell vamos analisar o experimento da Figura2 em quatro configurações diferentes, descritas a seguir.

Configuração 1: Nesse primeiro formato os dois detetores estão alinhados ao longo da mesma direção, que chamaremos vertical, conforme mostrado na Figura3 (a escolha da direção é irrelevante, o importante é que os detetores estejam alinhados entre si). Após muitas medidas, os resultados de 𝒜 e são comparados. Como as varetas dos fótons em um par têm a mesma orientação, é fácil prever que toda vez que um fóton passar pelo detetor 𝒜, seu par também passará por e toda vez que um fóton não passar por 𝒜, seu par também não passará por . A sequência de registros dos fótons nos dois detetores será, portanto, idêntica. O mesmo deve ocorrer para qualquer orientação dos detetores, desde que essas sejam iguais. O resultado corresponde, é claro, à condição (2), que deve ser satisfeita por experimentos de Bell.

Figura 3:
A configuração 1, na qual os eixos dos detetores 𝒜 e estão alinhados com a vertical.

Configuração 2: Essa configuração é análoga à anterior, mas desta vez o detetor 𝒜 é colocado a um ângulo θ em relação à vertical, conforme mostra a Figura4. Nesse caso, um fóton que anteriormente passaria por 𝒜 agora pode não mais atravessar o detetor. Da mesma forma, um fóton que na configuração 1 não passaria por 𝒜, agora tem certa chance de fazer isso. Novamente, depois de muitas medidas, os resultados dos dois detetores são comparados. É claro que agora eles não serão idênticos: devem aparecer discrepâncias entre os registros de um mesmo par. Chamaremos 𝒫(θ) à probabilidade de ocorrência dessas discrepâncias.

Figura 4:
A configuração 2, com o eixo do detetor 𝒜 a um ângulo θ da vertical.

Configuração 3: Nessa situação, o detetor é colocado a um ângulo θ em relação à vertical enquanto 𝒜 volta a ficar alinhado com a vertical. Como esse arranjo é equivalente ao anterior, devemos encontrar correlações semelhantes às da configuração 2, ou seja, a probabilidade de 𝒜 e registrarem polarizações diferentes também deve ser dada por 𝒫(θ).

Configuração 4: Agora ambos os detetores são girados por um ângulo θ em relação à vertical, mas em sentidos opostos, como mostra a Figura5. Devemos esperar que, em relação à situação original, uma fração 𝒫(θ) dos fótons tenha destino diferente em cada detetor, pois foi o que ocorreu nas configurações 2 e 3. Mas o que será encontrado quando os registros dos dois detetores forem comparados? À primeira vista, poderíamos pensar que a probabilidade de discrepância seria 2𝒫(θ), a soma das probabilidades encontradas nos experimentos 2 e 3. Entretanto, esse raciocínio não é correto, pois ignora que se houver alteração nos registros dos dois fótons de um mesmo par encontraremos uma concordância, não uma discordância. A possibilidade de ocorrerem duplas mudanças faz com que o número de discrepâncias entre os resultados de 𝒜 e na configuração 4 seja menor, ou no máximo igual, à soma daquelas encontradas nas configurações 2 e 3.

Figura 5:
A configuração 4, com os eixos dos detetores 𝒜 e nas direções θ e -θ em relação à vertical.

Podemos expressar o resultado acima como uma restrição sobre a função 𝒫(θ). Para isso vamos supor que o detetor 𝒜 é girado por um ângulo 2θ, enquanto permanece alinhado com a vertical. Nesse caso a probabilidade de encontrar discrepâncias nos registros de fótons, na forma como foi definida na configuração 2, deve ser 𝒫(2θ). Como não há nenhuma orientação privilegiada no experimento, essa deve ser a mesma probabilidade das discrepâncias encontradas na configuração 4, que já vimos ser menor ou igual a 2𝒫(θ). Portanto, a função 𝒫(θ) deve ser tal que

(5) 𝒫 ( 2 θ ) 2 𝒫 ( θ ) .

Essa é uma desigualdade de Bell, que identificaremos como Bell-Herbert.

É importante perceber como a hipótese de localidade foi usada para obter a desigualdade. A demonstração foi baseada na suposição de que o número de fótons que deixaram de passar pelo detetor 𝒜 (cujo eixo fora rotacionado) é idêntico ao número de discrepâncias entre os registros de 𝒜 e (cujo eixo permaneceu inalterado). Esse pressuposto só é válido, entretanto, se o resultado de uma medida em for independente da orientação escolhida para o detetor 𝒜. Como as medidas são simultâneas e os detetores estão distantes um do outro, isso corresponde à noção de localidade descrita na seção1 1. Introdução O Prêmio Nobel em Física de 2022 foi concedido a John Clauser, Alain Aspect e Anton Zeilinger “por experimentos com fótons emaranhados, demonstrando a violação de desigualdades de Bell e iniciando a ciência da informação quântica” [1]. A premiação contemplou trabalhos que evidenciaram algumas das características mais estranhas da mecânica quântica, exibidas quando duas ou mais partículas estão em estados emaranhados. Aspectos básicos de nossa visão de mundo são colocados em questão em tais situações, como a ideia de que existe uma realidade física com propriedades bem definidas mesmo quando ninguém está observando essas propriedades – uma noção aparentemente óbvia conhecida como “realismo”. Os experimentos citados pelo comitê Nobel mostraram que manter essa concepção realista da natureza tem um preço: o abandono da ideia de “localidade”, ou seja, de que nenhum tipo de influência pode se propagar instantaneamente de um ponto a outro no espaço. Nas palavras de Clauser e Abner Shimony [2], após esses experimentos devemos “ou abandonar a filosofia realista mantida pela maioria dos cientistas, ou revisar dramaticamente nosso conceito de espaço-tempo”. Para compreender que conflito pode haver entre a mecânica quântica e nossa concepção usual de realidade, é conveniente começar pelo exame de uma situação simples da física clássica: uma partícula em movimento. O estado dessa partícula em um dado instante é completamente caracterizado por sua posição r e velocidade v, e qualquer grandeza física A associada a ela pode ser definida como uma função A⁢(r,v) dessas variáveis. Por exemplo, a energia da partícula é dada por E⁢(r,v)=m⁢v2/2+V⁢(r) e seu momento angular é L⁢(r,v)=m⁢r×v. Uma partícula clássica tem posição e velocidade a cada instante, o que significa que qualquer grandeza física A⁢(r,v) terá sempre um valor bem definido. Podemos até não conhecer esse valor, mas ele existe e pode ser descoberto fazendo-se uma medida de A. Portanto, na física clássica a medida revela algo que já existia antes da medida ser realizada. Na mecânica quântica a situação parece bem diferente. O estado de um sistema físico é caracterizado a cada instante por um “vetor de estado” ψ, e as grandezas físicas associadas ao sistema não são funções desse vetor de estado. Não existe uma função A⁢(ψ) que determine o valor da grandeza A quando o sistema encontra-se no estado ψ. Em geral esse vetor de estado representa uma superposição dos diferentes valores que A pode assumir, e a mecânica quântica não prevê qual deles será encontrado em uma medida. A teoria fornece apenas a probabilidade da medida resultar em cada um dos possíveis valores de A. De acordo com a mecânica quântica, a medição não revela um valor preexistente da grandeza A; tal valor sequer existe objetivamente na ausência da medida. Como escreveu Werner Heisenberg, “é impossível retornar à ideia de um mundo real objetivo cujas menores partes existem objetivamente no mesmo sentido em que pedras e árvores existem, independentemente de nós as observarmos ou não” [3]. Outro pioneiro da mecânica quântica, Pascual Jordan, enfatizou que “observações não apenas perturbam o que vai ser medido, elas o produzem!” [4]. Concepções como essas já foram descritas como “uma (não)visão de (não)mundo, se jamais houve alguma” [5]. Uma forma de compatibilizar a mecânica quântica com alguma noção de realidade objetiva é através da introdução de “variáveis ocultas”, parâmetros que escapam ao controle nos experimentos e determinam o resultado de medidas das quantidades físicas. Em uma teoria de variáveis ocultas, o estado do sistema é caracterizado a cada instante pelo vetor de estado ψ e pelos parâmetros ocultos λ (pode haver mais de um, nesse caso λ representa o conjunto deles). O valor de qualquer grandeza física A associada ao sistema é dado por uma função A⁢(ψ,λ), ou seja, o valor de A está bem determinado mesmo na ausência de uma observação. Os parâmetros suplementares são incluídos de maneira que a teoria de variáveis ocultas reproduza as previsões da mecânica quântica – por exemplo, a probabilidade de se obter um certo resultado em uma medida deve estar associada à distribuição estatística dos valores de λ. Em 1964 John Bell demonstrou um teorema que restringiu tremendamente as teorias de variáveis ocultas. Bell mostrou que nenhuma teoria de variáveis ocultas local poderia reproduzir todas as previsões da mecânica quântica [6]. A localidade a que se refere o teorema entrou no argumento de Bell de maneira peculiar. Ele imaginou uma situação na qual duas partículas espacialmente separadas têm, cada uma, alguma de suas propriedades físicas medida. Bell supôs que os valores encontrados nessas medidas eram determinados por variáveis ocultas e fez uma hipótese extra, muito razoável, relacionada à localidade: o resultado da observação de certa propriedade em uma das partículas não pode depender de qual propriedade está sendo observada simultaneamente na outra partícula. Com essas suposições Bell obteve uma desigualdade numérica envolvendo correlações entre as observações, válida em qualquer teoria local de variáveis ocultas. Em seguida ele mostrou que a mecânica quântica prevê violações dessa desigualdade – em outras palavras, mostrou que apenas teorias não-locais podem ser consideradas quando se deseja descrever um sistema quântico com base em variáveis ocultas. Exposições didáticas da demonstração originalmente dada por Bell a seu teorema podem ser encontradas em livros-texto (por exemplo [7, 8]) e publicações em periódicos dedicados ao ensino de física [9]. No presente artigo descrevemos duas demonstrações que diferem da original e se destacam pela simplicidade, a primeira proposta por Nick Herbert [10] e a segunda por Asher Peres [11]. As duas demonstrações levam a desigualdades distintas entre si e da apresentada por Bell em 1964. Todas essas variantes fazem parte de um conjunto maior de desigualdades equivalentes, chamadas coletivamente de ‘desigualdades de Bell’. O artigo está organizado da seguinte maneira. Na seção2 apresentamos o experimento proposto por Bell para testar sua desigualdade. Em seguida usamos esse experimento como base para expor as demonstrações de Herbert (seção3) e Peres (seção4). Finalmente, o interesse pedagógico dessas demonstrações é discutido na seção5. .

Para verificar se a mecânica quântica é compatível com a desigualdade de Bell-Herbert, notemos que as probabilidades introduzidas na seção2 2. Experimento de Bell com fótons O experimento imaginado por Bell na demonstração de seu teorema envolvia duas partículas de spin 1/2 no estado singleto. Nesta seção descreveremos uma variante desse experimento, usando pares de fótons (também num estado singleto). Os fótons são emitidos em sentidos opostos por uma fonte situada entre dois detetores, 𝒜 e ℬ. Os detetores medem a polarização linear de cada fóton ao longo de eixos nas direções α e β, como ilustrado na Figura1. Os ângulos α e β podem ser alterados, desde que os eixos permaneçam sobre o plano ortogonal à direção de propagação dos fótons. Se um fóton chega a 𝒜 e é observado com polarização paralela à direção α, o valor rα=+1 é registrado pelo detetor. Se a polarização for ortogonal à direção α, o valor registrado é rα=-1. O mesmo ocorre no detetor ℬ: os valores rβ=±1 correspondem às polarizações paralela e ortogonal à direção β. Figura 1: O experimento de Bell com pares de fótons emitidos por uma fonte. Os detetores 𝒜 e ℬ medem a polarização dos fótons ao longo de eixos nas direções α e β, respectivamente. Os fótons produzidos pela fonte não têm, individualmente, uma polarização bem definida. Para quaisquer ângulos α e β cada detetor registrará, em média, o mesmo número de fótons com polarizações paralela e ortogonal. Em termos de probabilidades isso significa que (1) P ± ⁢ ( α ) = P ± ⁢ ( β ) = 1 / 2 , onde P±⁢(α) é a probabilidade do fóton ser observado com polarização rα=±1 no detetor 𝒜 e P±⁢(β) é a correspondente probabilidade em ℬ. Podemos considerar também as probabilidades conjuntas das polarizações em um par. Por exemplo, definimos P+-⁢(α,β) como a probabilidade de um dos fótons ser observado em 𝒜 com rα=+1 (polarização paralela a α) e o outro ser observado em ℬ com rβ=-1 (polarização perpendicular a β). As outras combinações de resultados têm probabilidades P-+⁢(α,β), P++⁢(α,β) e P--⁢(α,β), com definições análogas à de P+-. No experimento de Bell as polarizações dos fótons em um par estão correlacionadas. Em particular, vamos supor que quando os eixos de 𝒜 e ℬ têm orientações coincidentes essa correlação é perfeita: se um fóton é observado com uma dada polarização (paralela ou perpendicular ao eixo do detetor), o outro fóton será encontrado com a mesma polarização no segundo detetor.1 Isso implica que para α=β as probabilidades conjuntas serão (2) P + + ⁢ ( α , α ) = P - - ⁢ ( α , α ) = 1 / 2 , P + - ⁢ ( α , α ) = P - + ⁢ ( α , α ) = 0 . Para ângulos não coincidentes, as probabilidades Pi⁢j⁢(α,β) podem ser calculadas via um argumento semiclássico baseado na lei de Malus [13]. A ideia é a seguinte. Pela lei de Malus, se um feixe de luz não polarizada passa por um filtro de polarização alinhado com a direção α (o ‘polarizador’) e em seguida atravessa um filtro semelhante alinhado à direção β (o ‘analisador’), a intensidade final do feixe será I = I 0 ⁢ cos 2 ⁡ ( β - α ) onde I0 é a intensidade da luz proveniente do polarizador. Interpretada em termos de fótons, a lei de Malus diz que a probabilidade de um fóton com polarização paralela a α ser observado com polarização paralela a β é dada por cos2⁡(β-α). No experimento de Bell, os detetores 𝒜 e ℬ podem ser imaginados como um sistema polarizador-analisador. Já vimos que se um fóton é observado em 𝒜 com polarização paralela a α, então o outro fóton tem necessariamente a mesma polarização, ou seja, 𝒜 age como polarizador do segundo fóton. O detetor ℬ, por sua vez, atua como um analisador e a probabilidade do fóton que incide sobre ele ser observado com polarização paralela a β deve ser a prevista pela lei de Malus. O mesmo raciocínio vale para polarizações perpendiculares aos eixos dos detetores 𝒜 e ℬ. Portanto, temos (3) P + + ⁢ ( α , β ) = P - - ⁢ ( α , β ) = 1 2 ⁢ cos 2 ⁡ ( α - β ) . Como Pi+⁢(α,β)+Pi-⁢(α,β)=Pi⁢(α)=1/2, temos também que (4) P + - ⁢ ( α , β ) = P - + ⁢ ( α , β ) = 1 2 ⁢ sen 2 ⁢ ( α - β ) . As mesmas probabilidades (3) e (4) podem ser obtidas com a mecânica quântica, aplicando-se a regra de Born a um vetor de estado consistente com as condições (1) e (2). O cálculo é um pouco mais complicado que o baseado na lei de Malus e está detalhado, por exemplo, em [14]. determinam 𝒫(θ),

(6) 𝒫 ( θ ) = P + - ( θ , 0 ) + P - + ( θ , 0 ) ,

de modo que, utilizando a equação (4),

(7) 𝒫 ( θ ) = sen 2 θ .

Substituindo esse resultado na desigualdade (5) obtemos

(8) sen 2 θ ( cos 2 θ - 1 / 2 ) 0 .

É fácil notar que no intervalo 0<θ<45 a função sen2θ(cos2θ-1/2) é estritamente positiva, o que contradiz a desigualdade. Portanto a probabilidade 𝒫(θ) prevista pela mecânica quântica viola a desigualdade de Bell-Herbert, ou seja, não pode ser reproduzida por nenhuma teoria realista e local.

4. A demonstação de Peres

A segunda demonstração do teorema de Bell que discutiremos foi dada por Asher Peres em um artigo intitulado Unperformed experiments have no results[11[11] A. Peres, American Journal of Physics 46, 745 (1978).]. Novamente, nosso ponto de partida será o experimento de Bell apresentado na seção2 2. Experimento de Bell com fótons O experimento imaginado por Bell na demonstração de seu teorema envolvia duas partículas de spin 1/2 no estado singleto. Nesta seção descreveremos uma variante desse experimento, usando pares de fótons (também num estado singleto). Os fótons são emitidos em sentidos opostos por uma fonte situada entre dois detetores, 𝒜 e ℬ. Os detetores medem a polarização linear de cada fóton ao longo de eixos nas direções α e β, como ilustrado na Figura1. Os ângulos α e β podem ser alterados, desde que os eixos permaneçam sobre o plano ortogonal à direção de propagação dos fótons. Se um fóton chega a 𝒜 e é observado com polarização paralela à direção α, o valor rα=+1 é registrado pelo detetor. Se a polarização for ortogonal à direção α, o valor registrado é rα=-1. O mesmo ocorre no detetor ℬ: os valores rβ=±1 correspondem às polarizações paralela e ortogonal à direção β. Figura 1: O experimento de Bell com pares de fótons emitidos por uma fonte. Os detetores 𝒜 e ℬ medem a polarização dos fótons ao longo de eixos nas direções α e β, respectivamente. Os fótons produzidos pela fonte não têm, individualmente, uma polarização bem definida. Para quaisquer ângulos α e β cada detetor registrará, em média, o mesmo número de fótons com polarizações paralela e ortogonal. Em termos de probabilidades isso significa que (1) P ± ⁢ ( α ) = P ± ⁢ ( β ) = 1 / 2 , onde P±⁢(α) é a probabilidade do fóton ser observado com polarização rα=±1 no detetor 𝒜 e P±⁢(β) é a correspondente probabilidade em ℬ. Podemos considerar também as probabilidades conjuntas das polarizações em um par. Por exemplo, definimos P+-⁢(α,β) como a probabilidade de um dos fótons ser observado em 𝒜 com rα=+1 (polarização paralela a α) e o outro ser observado em ℬ com rβ=-1 (polarização perpendicular a β). As outras combinações de resultados têm probabilidades P-+⁢(α,β), P++⁢(α,β) e P--⁢(α,β), com definições análogas à de P+-. No experimento de Bell as polarizações dos fótons em um par estão correlacionadas. Em particular, vamos supor que quando os eixos de 𝒜 e ℬ têm orientações coincidentes essa correlação é perfeita: se um fóton é observado com uma dada polarização (paralela ou perpendicular ao eixo do detetor), o outro fóton será encontrado com a mesma polarização no segundo detetor.1 Isso implica que para α=β as probabilidades conjuntas serão (2) P + + ⁢ ( α , α ) = P - - ⁢ ( α , α ) = 1 / 2 , P + - ⁢ ( α , α ) = P - + ⁢ ( α , α ) = 0 . Para ângulos não coincidentes, as probabilidades Pi⁢j⁢(α,β) podem ser calculadas via um argumento semiclássico baseado na lei de Malus [13]. A ideia é a seguinte. Pela lei de Malus, se um feixe de luz não polarizada passa por um filtro de polarização alinhado com a direção α (o ‘polarizador’) e em seguida atravessa um filtro semelhante alinhado à direção β (o ‘analisador’), a intensidade final do feixe será I = I 0 ⁢ cos 2 ⁡ ( β - α ) onde I0 é a intensidade da luz proveniente do polarizador. Interpretada em termos de fótons, a lei de Malus diz que a probabilidade de um fóton com polarização paralela a α ser observado com polarização paralela a β é dada por cos2⁡(β-α). No experimento de Bell, os detetores 𝒜 e ℬ podem ser imaginados como um sistema polarizador-analisador. Já vimos que se um fóton é observado em 𝒜 com polarização paralela a α, então o outro fóton tem necessariamente a mesma polarização, ou seja, 𝒜 age como polarizador do segundo fóton. O detetor ℬ, por sua vez, atua como um analisador e a probabilidade do fóton que incide sobre ele ser observado com polarização paralela a β deve ser a prevista pela lei de Malus. O mesmo raciocínio vale para polarizações perpendiculares aos eixos dos detetores 𝒜 e ℬ. Portanto, temos (3) P + + ⁢ ( α , β ) = P - - ⁢ ( α , β ) = 1 2 ⁢ cos 2 ⁡ ( α - β ) . Como Pi+⁢(α,β)+Pi-⁢(α,β)=Pi⁢(α)=1/2, temos também que (4) P + - ⁢ ( α , β ) = P - + ⁢ ( α , β ) = 1 2 ⁢ sen 2 ⁢ ( α - β ) . As mesmas probabilidades (3) e (4) podem ser obtidas com a mecânica quântica, aplicando-se a regra de Born a um vetor de estado consistente com as condições (1) e (2). O cálculo é um pouco mais complicado que o baseado na lei de Malus e está detalhado, por exemplo, em [14]. .

Vamos supor que o experimento foi realizado com os eixos dos detetores alinhados às direções α e β e que as polarizações foram medidas em um número muito grande de pares de fótons, com os correspondentes valores de rα e rβ registrados. Com esses registros podemos construir a ‘função de correlação’ das medidas, definida como a média dos produtos rαrβ computados para cada par de fótons,

(9) r α r β = 1 N n = 1 N r α ( n ) r β ( n ) ,

onde N é o número de pares observados e rα(n), rβ(n) são os registros da n-ésima medida. A função de correlação desempenhará papel central no argumento que desenvolveremos a seguir.

Para obter a desigualdade de Bell, imaginemos o que teria acontecido se os detetores 𝒜 e tivessem sido alinhados em outras direções, por exemplo, α e β. É importante notar que o experimento não foi realizado com esses alinhamentos, de modo que não temos como precisar quais seriam os resultados rα e rβ dessas medidas imaginárias. Tudo o que sabemos é que, se tivessem sido realizadas, as medidas de rα e rβ só poderiam resultar em±1. Consideremos então, para os fótons do n-ésimo par detetado, a quantidade S(n) dada por

(10) S ( n ) = r α ( n ) r β ( n ) + r α ( n ) r β ( n ) + r α ( n ) r β ( n ) - r α ( n ) r β ( n ) .

Não é possível determinar S(n), pois não medimos os valores de rα(n) e rβ(n). Entretanto, se sustentarmos a ideia de uma realidade objetiva, esses valores devem existir mesmo que não tenham sido medidos e isso é suficiente para demonstrar que S(n) pode ter apenas dois valores: +2 ou -2. A demostração é simples, basta escrever S(n) na forma

(11) S ( n ) = r α ( r β + r β ) + r α ( r β - r β )

e observar que: (I) apenas uma das duas parcelas do lado direito pode ser diferente de zero, e (II) a parcela não nula vale +2 ou -2. Como algumas vezes teremos S=+2 e em outras S=-2, a média S dessa quantidade sobre os N pares de fótons deve necessariamente estar entre esses dois números, ou seja,

(12) | S | 2 .

Com as definições (9) e (10), vemos que S pode ser escrita como

(13) S = r α r β + r α r β + r α r β - r α r β

de modo que a desigualdade (12) torna-se

(14) | r α r β + r α r β + r α r β - r α r β | 2 .

Essa é mais uma desigualdade de Bell, conhecida como desigualdade de Clauser-Horne-Shimony-Holt [17[17] J.F. Clauser, M.A. Horne, A. Shimony e R.A. Holt, Physical Review Letters 23, 880 (1969).], geralmente abreviada para CHSH.

É interessante notar que a demonstração acima não faz menção explícita a variáveis ocultas, apenas à ideia que quantidades físicas têm um valor mesmo quando não estão sendo medidas. Isso sugere que as desigualdades de Bell não dependem obrigatoriamente de uma relação determinista entre a variável oculta e a quantidade física, expressa numa função como A(ψ,λ). Essa relação pode ser estatística – nada impede que a variável λ determine apenas a probabilidade da quantidade A ter um certo valor no momento da medida.3 3 E, de fato, Bell demonstrou em 1971 que seu teorema é válido mesmo para teorias (locais) de variáveis ocultas não deterministas [18]. Para algumas desigualdades de Bell o importante é que esse valor exista mesmo que a medida não seja feita.

O papel da localidade na demonstração de Peres também merece comentário, pois pode ter passado despercebido. A hipótese de localidade, ou seja, da independência dos resultados de um detetor em relação à quantidade que está sendo medida no outro, foi usada na demonstração quando, por exemplo, descrevemos o n-ésimo registro no detetor 𝒜 como rα(n). Isso pressupõe que o resultado depende apenas do par específico que está sendo observado, identificado por n, e da quantidade medida em 𝒜, a polarização relativa ao eixo α. Se o resultado dessa medida dependesse do ângulo β com que a polarização no mesmo par é medida em , deveríamos ter escrito o registro em 𝒜 como rα(n,β). Da mesma forma, os registros em deveriam ser rβ(n,α). É fácil ver que essas modificações tornariam inviável a fatoração realizada em (11) e impediriam a demonstração da desigualdade.

Vamos agora verificar se a mecânica quântica é consistente com a desigualdade de Bell-CHSH. Para isso podemos recorrer às probabilidades Pij(α,β) definidas na seção2 2. Experimento de Bell com fótons O experimento imaginado por Bell na demonstração de seu teorema envolvia duas partículas de spin 1/2 no estado singleto. Nesta seção descreveremos uma variante desse experimento, usando pares de fótons (também num estado singleto). Os fótons são emitidos em sentidos opostos por uma fonte situada entre dois detetores, 𝒜 e ℬ. Os detetores medem a polarização linear de cada fóton ao longo de eixos nas direções α e β, como ilustrado na Figura1. Os ângulos α e β podem ser alterados, desde que os eixos permaneçam sobre o plano ortogonal à direção de propagação dos fótons. Se um fóton chega a 𝒜 e é observado com polarização paralela à direção α, o valor rα=+1 é registrado pelo detetor. Se a polarização for ortogonal à direção α, o valor registrado é rα=-1. O mesmo ocorre no detetor ℬ: os valores rβ=±1 correspondem às polarizações paralela e ortogonal à direção β. Figura 1: O experimento de Bell com pares de fótons emitidos por uma fonte. Os detetores 𝒜 e ℬ medem a polarização dos fótons ao longo de eixos nas direções α e β, respectivamente. Os fótons produzidos pela fonte não têm, individualmente, uma polarização bem definida. Para quaisquer ângulos α e β cada detetor registrará, em média, o mesmo número de fótons com polarizações paralela e ortogonal. Em termos de probabilidades isso significa que (1) P ± ⁢ ( α ) = P ± ⁢ ( β ) = 1 / 2 , onde P±⁢(α) é a probabilidade do fóton ser observado com polarização rα=±1 no detetor 𝒜 e P±⁢(β) é a correspondente probabilidade em ℬ. Podemos considerar também as probabilidades conjuntas das polarizações em um par. Por exemplo, definimos P+-⁢(α,β) como a probabilidade de um dos fótons ser observado em 𝒜 com rα=+1 (polarização paralela a α) e o outro ser observado em ℬ com rβ=-1 (polarização perpendicular a β). As outras combinações de resultados têm probabilidades P-+⁢(α,β), P++⁢(α,β) e P--⁢(α,β), com definições análogas à de P+-. No experimento de Bell as polarizações dos fótons em um par estão correlacionadas. Em particular, vamos supor que quando os eixos de 𝒜 e ℬ têm orientações coincidentes essa correlação é perfeita: se um fóton é observado com uma dada polarização (paralela ou perpendicular ao eixo do detetor), o outro fóton será encontrado com a mesma polarização no segundo detetor.1 Isso implica que para α=β as probabilidades conjuntas serão (2) P + + ⁢ ( α , α ) = P - - ⁢ ( α , α ) = 1 / 2 , P + - ⁢ ( α , α ) = P - + ⁢ ( α , α ) = 0 . Para ângulos não coincidentes, as probabilidades Pi⁢j⁢(α,β) podem ser calculadas via um argumento semiclássico baseado na lei de Malus [13]. A ideia é a seguinte. Pela lei de Malus, se um feixe de luz não polarizada passa por um filtro de polarização alinhado com a direção α (o ‘polarizador’) e em seguida atravessa um filtro semelhante alinhado à direção β (o ‘analisador’), a intensidade final do feixe será I = I 0 ⁢ cos 2 ⁡ ( β - α ) onde I0 é a intensidade da luz proveniente do polarizador. Interpretada em termos de fótons, a lei de Malus diz que a probabilidade de um fóton com polarização paralela a α ser observado com polarização paralela a β é dada por cos2⁡(β-α). No experimento de Bell, os detetores 𝒜 e ℬ podem ser imaginados como um sistema polarizador-analisador. Já vimos que se um fóton é observado em 𝒜 com polarização paralela a α, então o outro fóton tem necessariamente a mesma polarização, ou seja, 𝒜 age como polarizador do segundo fóton. O detetor ℬ, por sua vez, atua como um analisador e a probabilidade do fóton que incide sobre ele ser observado com polarização paralela a β deve ser a prevista pela lei de Malus. O mesmo raciocínio vale para polarizações perpendiculares aos eixos dos detetores 𝒜 e ℬ. Portanto, temos (3) P + + ⁢ ( α , β ) = P - - ⁢ ( α , β ) = 1 2 ⁢ cos 2 ⁡ ( α - β ) . Como Pi+⁢(α,β)+Pi-⁢(α,β)=Pi⁢(α)=1/2, temos também que (4) P + - ⁢ ( α , β ) = P - + ⁢ ( α , β ) = 1 2 ⁢ sen 2 ⁢ ( α - β ) . As mesmas probabilidades (3) e (4) podem ser obtidas com a mecânica quântica, aplicando-se a regra de Born a um vetor de estado consistente com as condições (1) e (2). O cálculo é um pouco mais complicado que o baseado na lei de Malus e está detalhado, por exemplo, em [14]. e escrever a função de correlação como

(15) r α r β = P + + ( α , β ) + P - - ( α , β ) - P + - ( α , β ) - P - + ( α , β ) .

Utilizando as probabilidades dadas pelas equações (3) e (4), obtemos então que a função de correlação quântica é

(16) r α r β = cos 2 ( α - β ) - sen 2 ( α - β ) = cos 2 ( α - β ) .

Para testar se essa previsão quântica leva a violações da desigualdade de Bell-CHSH, vamos considerar uma situação particularmente simples, na qual α=β=0, α=θ/2 e β=-θ/2. Nessa configuração as quatro funções de correlação que compõem a desigualdade são rαrβ=1, rαrβ=rαrβ=cosθ e rαrβ=cos2θ. Substituindo essas funções em (14), após algum rearranjo a desigualdade ganha a forma

(17) | 1 + cos θ ( 1 - cos θ ) | 1 .

Como cosθ(1-cosθ) é estritamente positivo no intervalo 0<θ<90, é fácil ver que para esses ângulos a mecânica quântica viola a desigualdade de Bell-CHSH. Novamente chegamos à conclusão de Bell: nenhuma teoria realista e local pode reproduzir as previsões da mecânica quântica.

5. Comentários

Neste artigo procuramos apresentar as demonstrações mais simples que conhecemos de desigualdades de Bell. É claro que simplicidade é um conceito subjetivo. Por isso, ou por desconhecimento, é possível que tenhamos ignorado demonstrações ainda mais claras. De qualquer forma as duas demonstrações descritas no artigo sugerem que é possível abordar de maneira muito acessível um dos aspectos mais fundamentais da mecânica quântica, que tradicionalmente é reservado (se tal) a cursos avançados.

Uma vantagem de apresentar as duas demonstrações é que a comparação entre seus diferentes argumentos pode ser instrutiva. Por exemplo, descrevemos a demonstração de Herbert de maneira quase visual, enfatizando o papel da variável oculta representada pelas varetas de polarização. Já na abordagem de Peres as variáveis ocultas sequer são mencionadas; apenas supõe-se que elementos de realidade estão associados à polarização dos fótons, não necessariamente vinculados de maneira determinista a parâmetros adicionais. Outra vantagem de ter duas demonstrações é que com elas chegamos a duas desigualdades distintas. Isso mostra que existem muitas desigualdades de Bell, todas equivalentes no sentido que são violadas por previsões da mecânica quântica.

Um ponto que deve ser comentado é nossa opção por apresentar o experimento de Bell com pares de fótons, não com partículas de spin 1/2. A última opção é a mais comum, seguindo o tratamento original do próprio Bell, mas nesse caso a análise quântica do experimento exige algum conhecimento da álgebra do spin 1/2. No caso do experimento com fótons, vimos que a discussão pode ser simplificada por um argumento semiclássico baseado na lei de Malus, que reproduz perfeitamente o resultado obtido pela mecânica quântica. Como esse argumento pode ser acompanhado por estudantes que já tenham passado por cursos introdutórios de ótica, adaptamos a demonstração de Peres (desenvolvida para spin 1/2) e adotamos o experimento com fótons como ponto de partida nas duas demonstrações.

É conveniente destacar também que a simplicidade das demonstrações pode ajudar a evitar incompreensões comuns sobre o teorema de Bell. Uma dessas é que qualquer teoria de variáveis ocultas, local ou não, seria incompatível com a mecânica quântica. Como ressaltamos ao descrever os argumentos de Herbert e Peres, a localidade é condição essencial para obtenção de desigualdades de Bell, embora nem sempre isso seja imediatamente percebido.

Existem outras demonstrações simples do teorema de Bell que poderiam ter sido incluídas no artigo. Uma particularmente interessante foi sugerida por Eugene Wigner [19[19] E. Wigner, American Journal of Physics 38, 1005 (1970).] em 1970 e posteriormente ganhou diferentes versões [20[20] F.J. Belinfante, A Survey of Hidden-Variables Theories (Pergamon, Oxford, 1973)., 21[21] B. d’Espagnat, Scientific American 241, 158 (1979).], a ponto de ser reduzida à análise de um simples desenho [22[22] R.R. Machado, Demonstrações do Teorema de Bell, Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2013).]. A abordagem de Wigner não foi apresentada aqui pois já é descrita em um livro-texto muito utilizado [23[23] J.J. Sakurai, Modern Quantum Mechanics (Addison-Wesley, Reading, 1994), 1a ed.] e em artigo didático publicado recentemente [24[24] J. Pinochet e D. Rojas-Líbano, Revista Brasileira de Ensino de Física 38, e3303 (2016).].

Para finalizar, voltemos ao Prêmio Nobel em Física de 2022. As desigualdades de Bell mostraram como experimentos poderiam decidir entre a mecânica quântica e qualquer teoria de variáveis ocultas apoiada nas noções de realismo e localidade. Os físicos contemplados com o Nobel realizaram esses experimentos, encontrando evidências inequivocamente favoráveis à mecânica quântica. Com isso eles trouxeram a investigação de questões filosóficas fundamentais para dentro do laboratório e, com seus resultados, abalaram ideias que por muito tempo formaram a base de nossa compreensão do mundo físico. Foi um prêmio mais que merecido.

Referências

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    R. Liboff, Introductory Quantum Mechanics (Addison-Wesley, San Francisco, 2002), 4a ed.
  • [15]
    D. Kaiser, How the Hippies Saved Physics: Science, Counterculture, and the Quantum Revival (Norton, New York, 2011).
  • [16]
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  • [22]
    R.R. Machado, Demonstrações do Teorema de Bell, Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2013).
  • [23]
    J.J. Sakurai, Modern Quantum Mechanics (Addison-Wesley, Reading, 1994), 1a ed.
  • [24]
    J. Pinochet e D. Rojas-Líbano, Revista Brasileira de Ensino de Física 38, e3303 (2016).
  • 1
    As polarizações serão as mesmas (++ ou --) se o par de fótons estiver num estado singleto de paridade positiva. Em um singleto de paridade negativa as polarizações serão ortogonais entre si (+- ou -+) [12[12] C.N. Yang, Physical Review 77, 242 (1950).].
  • 2
    Herbert é um dos ‘hippies que salvaram a Física’, ver [15[15] D. Kaiser, How the Hippies Saved Physics: Science, Counterculture, and the Quantum Revival (Norton, New York, 2011).].
  • 3
    E, de fato, Bell demonstrou em 1971 que seu teorema é válido mesmo para teorias (locais) de variáveis ocultas não deterministas [18[18] J.S. Bell, em: Proceedings of the 49th International School of Physics Enrico Fermi: Foundations of Quantum Mechanics, editado por B. d’Espagnat (Academic, New York, 1971) p. 171.].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2022
  • Aceito
    09 Dez 2022
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