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Uma proposta de medida de g inspirada em exercício de texto didático do professor Moysés Nussenzveig

A g measurement proposal inspired by a textbook problem from professor Moysés Nussenzveig

Resumos

A determinação da aceleração de queda livre é uma prática comum em laboratórios didáticos de Física. Neste trabalho, apresentamos uma proposta experimental para medir a aceleração da gravidade baseada em um exercício do livro didático de Mecânica do professor Moysés Nussenzveig. Essa determinação é realizada através do movimento de um carro sobre um trilho de ar inclinado, e possui discrepância da ordem de 0,5%.

Palavras-chave:
Física experimental; mecânica; aceleração de queda livre; fotogate


Determining the free fall acceleration is a common practice in Physics didactic laboratories. In this work, we present an experimental proposal to measure the acceleration of gravity based on an problem from professor Moysés Nussenzveig’s Mechanics textbook. This determination is carried out using the movement of a glider on an inclined air track, and has discrepancy of the order of 0.5%.

Keywords:
Experimental physics; mechanics; free fall acceleration; photogate


1. Introdução

A determinação da aceleração da gravidade (g) é uma prática comum em laboratórios didáticos de nível superior, e muitas são as propostas para a sua determinação disponíveis na literatura. Na referência [1[1] H. Cordova e A.C. Tort, Rev. Bras. Ens. Fis, 38, e2308 (2016).], o valor deg é determinado com um desvio percentual relativo de 0,1% usando uma placa Arduino para medir o tempo de queda de uma esfera largada de uma altura predefinida. Os autores destacam que a proposta do Arduino é diferenciada porque a eletrônica permite medir com precisão intervalos de tempo na faixa de milissegundos e que para alturas inferiores a 1 metro, os efeitos da resistência do ar e outros efeitos espúrios podem ser desprezados. No trabalho [2[2] E.P. Moraes Corveloni, E.S. Gomes, A.R. Sampaio, A.F. Mendes, V.L.L. Costa e R.C. Viscovini, Rev. Bras. Ens. Fis, 31, 3504 (2009).], as posições de um corpo em queda livre foram medidas através de fotos sequenciais (30/s), e g foi determinado com um desvio percentual relativo de aproximadamente 1,74%, a partir do ajuste de uma parábola aos dados da posição em função do tempo. No artigo [3[3] N. Suwanpayak, S. Sutthiyan, K. Kulsirirat, P. Srisongkram, C. Teeka e P. Buranasiri, J. Phys.: Conf. Series, 1144, 012001 (2018).], é feita uma comparação de quatro métodos de determinação de g e suas discrepâncias: queda livre (0,41%), pêndulo simples (1,43%), pêndulo físico (10,91%) e máquina de Atwood (6,73%). Portanto, resultados que favorecem a medida de g nos experimentos de queda livre. Os autores do trabalho [4[4] J. Kuhn e P. Vogt, Eur. J. of Phys. Education, 4, 16, (2013).] empregam diferentes métodos para determinar a aceleração da gravidade na sala de aula de física usando aparatos comuns e os diversos sensores presentes nos smartphones mais modernos: som, pressão, luminosidade, campo magnético e acelerômetros. Contudo, dependendo do software utilizado para aquisição e análise dos dados registrados, os resultados podem diferir bastante do esperado e até mesmo superar uma margem de 10%, o que não seria adequado para laboratórios didáticos. Em [5[5] E. Kluk e J.L. Lopez, The Phys. Teacher, 30, 48, (1992).], sugere-se que não sejam utilizados experimentos com planos inclinados para a medida de g, tendo como argumento mais significativo a dificuldade de se medir de forma acurada o ângulo de inclinação do trilho de ar, além dos efeitos relacionados ao atrito no contato do carrinho com o ar e com o próprio trilho e por fim a própria configuração dos fotogates utilizados para as medidas de tempo. A proposta desses autores é a utilização de uma aparato que utiliza um único sensor de tempo a fim de se obter uma medida de g com uma discrepância inferior a 1%.

Neste trabalho, propomos um experimento para medida de g utilizando um trilho de ar levemente inclinado e com resultados bastante satisfatórios quanto à facilidade de montagem, execução do experimento e acurácia. O experimento proposto tem como base uma adaptação de um exercício apresentado no livro do eminente professor Moysés Nussenzveig [6[6] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Edgard Blucher, Rio de Janeiro, 2004).], o qual permite o cálculo da aceleração da gravidade medindo os instantes de tempo em que o corpo passa por um ponto fixo no movimento de subida e descida ao longo de um lançamento vertical. Para simplificar a realização experimental e aumentar a acurácia das medidas de tempo, propomos realizar o movimento ao longo de um plano inclinado. No experimento proposto, as medidas de tempo assumem papel central para o cálculo da aceleração de queda livre e a aceleração do carrinho é deixada em segundo plano. Cabe destacar que o trabalho foi motivado a partir da necessidade de apresentar aos estudantes a distinção entre a aceleração do móvel (a) ao longo do plano inclinado e a aceleração de queda livre (g), durante os estudos de cinemática no laboratório de física. Na prática, há uma forte tendência por parte dos estudantes, em um primeiro contato com o experimento, de se afirmar que a aceleração do carrinho é g. Dessa forma, por se tratar de uma dúvida conceitual recorrente, vislumbra-se a necessidade de apresentar aos estudantes a relação a=gsen(θ). Entretanto, essa equação não é usualmente apresentada no módulo de cinemática, mas em dinâmica. Exceções são encontradas no livro do Randall [7[7] R.D. Knight, Física: Uma abordagem Estratégica (Bookman, Porto Alegre, 2009).] onde o autor já emprega o plano inclinado para uma discussão dessa equação no âmbito da cinemática. Outro ponto relevante a ser mostrado é que o valor calculado para a aceleração não depende da velocidade inicial do móvel, embora experimentos não bem executados terminem por prejudicar o entendimento por parte dos estudantes.

Na seção 2 2. Modelo Teórico e Aparato Experimental O experimento que propomos é baseado no enunciado da questão 12 do capítulo 2 do livro didático do professor Moysés Nussenzveig [6]: Um método possível para medir a aceleração da gravidade g consiste em lançar uma bolinha para cima num tubo onde se fez vácuo e medir com precisão os instantes t1 e t2 de passagem (na subida e na descida, respectivamente) por uma altura z conhecida, a partir do instante de lançamento. Mostre que (1) g = 2 ⁢ z t 1 ⁢ t 2 . Esse exercício pode ser resolvido escrevendo a equação horária do movimento uniformemente acelerado da bolinha para os dois instantes de tempo (t1 e t2) em que ela passa pela posição z, na subida e na descida: (2) z = υ 0 t 1 − g 2 t 1 2 e (3) z = υ 0 t 2 − g 2 t 2 2 . Eliminando-se a velocidade inicial (v0) do sistema de equações, e isolando-se g, obtém-se a resposta da questão, dada pela equação 1. Nossa proposta é uma adaptação deste exercício para a determinação da aceleração da gravidade pelo estudo do movimento de um carrinho em um plano inclinado de ângulo θ, em vez de na vertical. Nesse caso, desconsiderando-se qualquer forma de atrito, o corpo descreve um movimento retilíneo uniformemente variado com aceleração a=g⁢sen⁢(θ) e, fazendo a substituição na equação (1), obtemos (4) g = 2 ⁢ z sen ⁢ ( θ ) ⁢ t 1 ⁢ t 2 . Na Figura 1, é ilustrado o esquema do movimento do carro sobre o trilho de ar inclinado. O sensor A, no ponto mais baixo do trilho, foi escolhido como a origem do sistema de coordenadas, e o sensor B, em um ponto mais elevado, foi posicionado a uma distância conhecida z a partir do sensor A. O carro foi lançado da esquerda para a direita e o cronômetro era iniciado quando a frente da vela (b) do carro atravessava o sensor A. Durante o movimento de subida e descida do carro, os seguintes instantes de tempo são relevantes1: t0: Instante em que a frente da vela (b) do carro atravessa o sensor A, na subida. Nesse evento, temos (x,t)0=(0,0); t1: Instante em que a frente da vela (b) do carro atravessa o sensor B, na subida. Nesse evento, temos (x,t)1=(z,t1); t2: Instante em que a traseira da vela (a) do carro atravessa o sensor B na descida. Nesse evento, temos (x,t)2=(z+d,t2); Δt2: Intervalo que a vela do carro leva para atravessar o sensor B na descida, retornando à posição x=z. Nesse evento, temos (x,t)3=(z,t2+Δ⁢t2). Figura 1: Ilustração do movimento do carrinho na subida e descida ao passar pelos sensores A e B, posicionados na base e no topo de um plano inclinado. Os instantes de tempo são registrados pelos sensores de tempo devidamente configurados a fim de medir os tempos: t1, t2 e Δt2. Por conveniência, ilustramos o trilho na horizontal (aceleração = gsen(θ), orientada para a esquerda). No evento (3), o instante de tempo em que a vela do carro retorna à posição x=z é t=t2+Δ⁢t2, em razão da dimensão da vela do carro, d. Levando isso em consideração, a equação (4) assume a forma: (5) g = 2 ⁢ z ⁢ s ⁢ e ⁢ n ⁢ ( θ ) ⁢ t 1 ⁢ ( t 2 + Δ ⁢ t 2 ) . Utilizaremos a equação (5) para determinar a aceleração da gravidade a partir de medidas de tempo tomadas com os fotogates, enquanto a equação (4) será empregada em uma medida comparativa de g utilizando um cronômetro. , reapresentamos o exercício tal como proposto por Moysés Nussenzveig [6[6] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Edgard Blucher, Rio de Janeiro, 2004).] e fazemos as adaptações a fim de obter uma expressão para a determinação de g utilizando um plano inclinado. Na seção3 3. Procedimentos Experimentais O aparato experimental é composto por um trilho de ar com comprimento de 200 cm, um soprador de ar, dois sensores de tempo (fotogates), um carrinho e a interface de aquisição Cobra 3 da empresa PHYWE [8]. O carrinho de alumínio possui sobre ele uma vela com um comprimento d que é utilizada para disparar os fotogates. O tamanho da vela, medido com um paquímetro digital, foi de d=9,973 cm. Antes de realizar os lançamentos do carrinho para registro dos instantes de tempo, vemos da equação (5) que é preciso obter a distância entre os sensores (z) e a inclinação do trilho de ar em relação a horizontal (θ). Os valores de z foram medidos utilizando a própria marcação milimetrada disponível no trilho de ar. A medida de sen⁢(θ) pode ser realizada por trigonometria, com o uso de uma trena. Para maximizar a precisão da medida, consideramos um triângulo cuja hipotenusa corresponde a todo o comprimento do trilho de ar. O seno do ângulo será a razão entre a diferença de altura das extremidades do trilho de ar (em relação à bancada) e o seu comprimento. No entanto, a medida da inclinação do trilho de ar pode ser uma considerável fonte de incertezas experimentais [5]. Para realizar uma determinação mais confiável dessa grandeza, propomos um método que utiliza um dinamômetro (no caso, um sensor de força de alta resolução da Pasco [9]). O método para a medida do ângulo de inclinação do trilho de ar, ilustrado na Figura 2, consiste no registro da magnitude da força medida pelo sensor em duas situações: (i) carrinho suspenso por um fio na vertical: F1=m⁢g; (ii) carrinho amarrado por fio ao longo do trilho de ar: F2=m⁢g⁢sen⁢(θ). A razão entre as forças medidas nas duas situações fornece que F2/F1=sen⁢(θ), cujo valor calculado pode ser substituído diretamente na equação (5). O valor obtido por este método foi sen⁢(θ)=0,1002±0,0005, que equivale a um ângulo de aproximadamente 5,75∘. Por sua vez, a inclinação do trilho de ar medida por trigonometria (sem o uso do sensor de força) foi sen⁢(θ)=0,1015±0,0004. Figura 2: Ilustração do método utilizado para determinação da inclinação do trilho de ar utilizando um sensor de força. (a) Medida da força com o carrinho+vela na vertical; (b) Medida da força com o carrinho+vela sobre o trilho de ar inclinado. A razão entre as forças fornece sen(θ). Note que o carro pode ser impulsionado manualmente, pois a aceleração não dependerá da velocidade inicial do lançamento. Neste trabalho, o carro foi impulsionado com uma tira elástica amarrada a duas hastes fixas sobre a mesa, como um estilingue. Para explorar o potencial do método de determinação da aceleração da gravidade a partir da equação 1, fizemos medidas para 10 distâncias entre os sensores (z), conforme a coluna 2 da Tabela 1. Tabela 1: Resumo das dez configurações utilizadas na coleta de dados. A terceira coluna mostra os valores medidos da aceleração média (g¯) calculadas a partir da equação (3) com suas incertezas (σg¯), enquanto a quarta coluna mostra o desvio relativo (δg) para cada configuração. O carrinho foi lançado 10 vezes para cada configuração. Config. z (m) g¯±σg¯ (m/s2) δ g = | g ¯ - 9,78 | / 9,78 1 0,20 9,837 ± 0,002 0,58% 2 0,30 9,842 ± 0,002 0,63% 3 0,40 9,837 ± 0,001 0,59% 4 0,50 9,831 ± 0,001 0,52% 5 0,60 9,826 ± 0,001 0,47% 6 0,70 9,819 ± 0,001 0,40% 7 0,80 9,823 ± 0,001 0,44% 8 0,90 9,818 ± 0,002 0,39% 9 1,00 9,826 ± 0,002 0,47% 10 1,10 9,827 ± 0,002 0,48% , descrevemos a montagem experimental adotada e propomos algumas montagens alternativas. Na seção 4 4. Resultados Nas duas últimas colunas da Tabela 1, listamos a magnitude média da aceleração da gravidade (g¯) com sua incerteza (σg¯) e seu desvio relativo δg (discrepância em relação ao valor local, de 9,78 m/s2), para cada configuração. A média foi determinada sobre os 10 lançamentos da respectiva configuração e a incerteza pelo desvio padrão da média. É possível observar que os desvios relativos são sempre abaixo de 1%. De fato, a média das discrepâncias, bem como a discrepância da medida global, foram de 0,50%, consideradas bastante satisfatórias para um laboratório de mecânica de nível superior. Os resultados da Tabela 1 estão expressos graficamente na Figura 3. Cada medida é representada pela sua média e incerteza (marcadores pretos e quadrados). O marcador circular (em azul) representa a média e incerteza sobre os lançamentos de todas as configurações: g=(9,8287±0,0009) m/s2. O valor de referência (9,78 m/s2), tomado na cidade do Natal/RN, é representado por uma linha tracejada na figura. Figura 3: Medidas da aceleração para cada configuração (marcadores quadrados pretos) e para todas as configurações (marcador circular azul). A linha tracejada horizontal representa o valor de referência g = 9,78 m/s2 na cidade do Natal/RN. Na Figura 3, é possível notar que as acelerações de queda livre não concordam com o valor de referência, quando consideradas suas incertezas. Isso ocorre porque, embora as incertezas sistemáticas sejam pequenas (≲0,5%), as estatísticas são ainda menores (≲0,02%). A seguir, veremos algumas possibilidades para explicar essa discrepância. A inspeção da Figura 3, mostra que há uma tendência das determinações da aceleração da gravidade serem acima do valor esperado. Isso pode ser explicado, ao menos parcialmente, pelo atrito residual entre o carrinho e o trilho de ar. No movimento de subida, a força de atrito é para baixo, enquanto na descida, para cima, alterando ligeiramente os valores de aceleração nesses movimentos. Quando os trechos de subida e descida possuem o mesmo comprimento, o efeito do atrito residual na aceleração se torna desprezível [10, 11]. No entanto, a trajetória do carrinho neste experimento não é simétrica: ele percorre uma distância maior subindo do que descendo, o que pode contribuir para a tendência de se superestimar o valor de g. Outra fonte de incerteza sistemática consiste na determinação do ângulo de inclinação do trilho de ar. Fazendo a propagação da incerteza de sen⁢(θ) para g na equação 5 e, lembrando que a inclinação foi medida com o auxílio de um dinamômetro (ver Figura 2), obtemos: (6) σ g = g ⁢ σ sen ⁢ ( θ ) sen ⁢ ( θ ) = g ⁢ 1 F 1 2 + 1 F 2 2 ⁢ σ F , onde F1 e F2 são as forças medidas pelo dinamômetro e σF a sua incerteza. Substituindo os valores para o experimento (F1=1,853 N, F2=0,186 N e σF=σF1=σF2≃10-3), além de g=9,78 m/s2, obtemos que a determinação no ângulo introduz uma incerteza em g de aproximadamente 0,05 m/s2. Se levarmos em conta mais essa fonte de incerteza em nossos resultados, obtemos a Figura 4. Dessa figura, pode-se notar que as medidas de g estão marginalmente de acordo com o valor esperado. Figura 4: Medidas da aceleração para cada configuração, levando em conta incerteza sistemática na determinação da inclinação do trilho de ar (ver equação 6). A linha tracejada horizontal representa o valor de referência g = 9,78 m/s2 na cidade do Natal/RN. Por fim, os próprios fotogates podem introduzir incertezas sistemáticas [12]. Para efeito de comparação, e para simular a situação em que não se dispõe de sensores ópticos e dinamômetro, realizamos também o cálculo de g a partir da medida dos intervalos de tempo t1 e t2 utilizando um cronômetro de celular, e a inclinação do trilho por trigonometria. Foram feitos dez lançamentos na situação em que a distância entre os sensores foi de 85 cm. Utilizando a equação4, obtivemos g=(10,4±0,3) m/s2, o que é bastante razoável para os propósitos de um laboratório de ensino. Apesar da maior discrepância, a realização desse simples experimento captura um aspecto didático importante: os valores obtidos para g em cada lançamento não aumentam com o aumento do impulso aplicado ao carrinho. Isso pode ser explorado em sala de aula na discussão do diagrama de forças que atuam sobre o carrinho, e para trabalhar a diferença entre os conceitos de aceleração e velocidade. , apresentamos os resultados das medidas de g, enquanto na seção 5 5. Discussão Neste trabalho, propomos um procedimento experimental para realizar a medida da aceleração da gravidade inspirado em uma questão do livro texto de Mecânica do Moysés Nussenzveig [6]. Um carrinho é lançado para subir um trilho de ar inclinado, passando por dois fotogates em um movimento de ida e volta. A expressão utilizada para determinar g depende da distância entre os sensores, dos tempos de subida e descida e da inclinação do trilho de ar, como mostrada na equação5. Foram realizadas medidas para várias distâncias entre os sensores (ver Tab. 1), e estas resultaram em determinações de g com discrepância menor do que 1%. Esse experimento se mostra vantajoso porque não requer um equipamento específico para ser replicado, sendo de fácil execução. Os tempos medidos durante o movimento de subida e descida são relativamente longos, o que facilita o manuseio por parte dos estudantes. O método empregado para a medida do ângulo também é interessante, pois apresenta aos estudantes formas alternativas de pensar sobre um problema específico do livro texto do Moysés e como pode ser modificado sem perder seu propósito. Para o professor, é uma forma de mostrar aos estudantes que o carro, ao ser lançamento manualmente com diferentes velocidades iniciais, não altera o valor medido para a aceleração, uma vez que o valor determinado para a aceleração da gravidade é calculado com uma precisão ≲0,02% e discrepância ≲0,6%. Vale ressaltar que esse experimento pode ser realizado com equipamentos alternativos, com uma correspondente perda em precisão e acurácia. Por exemplo, na ausência de fotogates, é possível tirar proveito de que a equação 5 não depende de intervalos curtos de tempo (como na determinação de velocidades) o que permite usar um cronômetro manual. Finalmente, temos expectativa de que este experimento possa ser empregado como alternativa a outros experimentos convencionais de determinação da aceleração da gravidade. discutimos os resultados obtidos.

2. Modelo Teórico e Aparato Experimental

O experimento que propomos é baseado no enunciado da questão 12 do capítulo 2 do livro didático do professor Moysés Nussenzveig [6[6] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Edgard Blucher, Rio de Janeiro, 2004).]:

Um método possível para medir a aceleração da gravidade g consiste em lançar uma bolinha para cima num tubo onde se fez vácuo e medir com precisão os instantes t1 e t2 de passagem (na subida e na descida, respectivamente) por uma altura z conhecida, a partir do instante de lançamento. Mostre que

(1) g = 2 z t 1 t 2 .

Esse exercício pode ser resolvido escrevendo a equação horária do movimento uniformemente acelerado da bolinha para os dois instantes de tempo (t1 e t2) em que ela passa pela posição z, na subida e na descida:

(2) z = υ 0 t 1 g 2 t 1 2 e

(3) z = υ 0 t 2 g 2 t 2 2 .

Eliminando-se a velocidade inicial (v0) do sistema de equações, e isolando-se g, obtém-se a resposta da questão, dada pela equação 1.

Nossa proposta é uma adaptação deste exercício para a determinação da aceleração da gravidade pelo estudo do movimento de um carrinho em um plano inclinado de ângulo θ, em vez de na vertical. Nesse caso, desconsiderando-se qualquer forma de atrito, o corpo descreve um movimento retilíneo uniformemente variado com aceleração a=gsen(θ) e, fazendo a substituição na equação (1), obtemos

(4) g = 2 z sen ( θ ) t 1 t 2 .

Na Figura 1, é ilustrado o esquema do movimento do carro sobre o trilho de ar inclinado. O sensor A, no ponto mais baixo do trilho, foi escolhido como a origem do sistema de coordenadas, e o sensor B, em um ponto mais elevado, foi posicionado a uma distância conhecida z a partir do sensor A. O carro foi lançado da esquerda para a direita e o cronômetro era iniciado quando a frente da vela (b) do carro atravessava o sensor A. Durante o movimento de subida e descida do carro, os seguintes instantes de tempo são relevantes1 1 Dependendo da interface e configurações utilizadas, os instantes de tempo medidos diretamente podem ser diferentes. :

  • t0: Instante em que a frente da vela (b) do carro atravessa o sensor A, na subida. Nesse evento, temos (x,t)0=(0,0);

  • t1: Instante em que a frente da vela (b) do carro atravessa o sensor B, na subida. Nesse evento, temos (x,t)1=(z,t1);

  • t2: Instante em que a traseira da vela (a) do carro atravessa o sensor B na descida. Nesse evento, temos (x,t)2=(z+d,t2);

  • Δt2: Intervalo que a vela do carro leva para atravessar o sensor B na descida, retornando à posição x=z. Nesse evento, temos (x,t)3=(z,t2+Δt2).

Figura 1:
Ilustração do movimento do carrinho na subida e descida ao passar pelos sensores A e B, posicionados na base e no topo de um plano inclinado. Os instantes de tempo são registrados pelos sensores de tempo devidamente configurados a fim de medir os tempos: t1, t2 e Δt2. Por conveniência, ilustramos o trilho na horizontal (aceleração = gsen(θ), orientada para a esquerda).

No evento (3), o instante de tempo em que a vela do carro retorna à posição x=z é t=t2+Δt2, em razão da dimensão da vela do carro, d. Levando isso em consideração, a equação (4) assume a forma:

(5) g = 2 z s e n ( θ ) t 1 ( t 2 + Δ t 2 ) .

Utilizaremos a equação (5) para determinar a aceleração da gravidade a partir de medidas de tempo tomadas com os fotogates, enquanto a equação (4) será empregada em uma medida comparativa de g utilizando um cronômetro.

3. Procedimentos Experimentais

O aparato experimental é composto por um trilho de ar com comprimento de 200 cm, um soprador de ar, dois sensores de tempo (fotogates), um carrinho e a interface de aquisição Cobra 3 da empresa PHYWE [8[8] PHYWE series of publications, Laboratory Experiment Physics, disponível em: https://yunus.hacettepe.edu.tr/ tatar/dersler/fiz301/FIZ-301/Fiz301%20Kuantum_Lab/PHYWE%20EXP/LEP/LEP1305_11_15.pdf, acessado em 27/02/2023.
https://yunus.hacettepe.edu.tr/ tatar/de...
]. O carrinho de alumínio possui sobre ele uma vela com um comprimento d que é utilizada para disparar os fotogates. O tamanho da vela, medido com um paquímetro digital, foi de d=9,973 cm.

Antes de realizar os lançamentos do carrinho para registro dos instantes de tempo, vemos da equação (5) que é preciso obter a distância entre os sensores (z) e a inclinação do trilho de ar em relação a horizontal (θ). Os valores de z foram medidos utilizando a própria marcação milimetrada disponível no trilho de ar. A medida de sen(θ) pode ser realizada por trigonometria, com o uso de uma trena. Para maximizar a precisão da medida, consideramos um triângulo cuja hipotenusa corresponde a todo o comprimento do trilho de ar. O seno do ângulo será a razão entre a diferença de altura das extremidades do trilho de ar (em relação à bancada) e o seu comprimento. No entanto, a medida da inclinação do trilho de ar pode ser uma considerável fonte de incertezas experimentais [5[5] E. Kluk e J.L. Lopez, The Phys. Teacher, 30, 48, (1992).]. Para realizar uma determinação mais confiável dessa grandeza, propomos um método que utiliza um dinamômetro (no caso, um sensor de força de alta resolução da Pasco [9[9] PASCO Instruction Sheet, Force Sensor, disponível em: https://cdn.pasco.com/product_document/PASPORT-Force-Sensor-Manual-PS-2104.pdf, acessado em 27/02/2023.
https://cdn.pasco.com/product_document/P...
]). O método para a medida do ângulo de inclinação do trilho de ar, ilustrado na Figura 2, consiste no registro da magnitude da força medida pelo sensor em duas situações: (i) carrinho suspenso por um fio na vertical: F1=mg; (ii) carrinho amarrado por fio ao longo do trilho de ar: F2=mgsen(θ). A razão entre as forças medidas nas duas situações fornece que F2/F1=sen(θ), cujo valor calculado pode ser substituído diretamente na equação (5). O valor obtido por este método foi sen(θ)=0,1002±0,0005, que equivale a um ângulo de aproximadamente 5,75. Por sua vez, a inclinação do trilho de ar medida por trigonometria (sem o uso do sensor de força) foi sen(θ)=0,1015±0,0004.

Figura 2:
Ilustração do método utilizado para determinação da inclinação do trilho de ar utilizando um sensor de força. (a) Medida da força com o carrinho+vela na vertical; (b) Medida da força com o carrinho+vela sobre o trilho de ar inclinado. A razão entre as forças fornece sen(θ).

Note que o carro pode ser impulsionado manualmente, pois a aceleração não dependerá da velocidade inicial do lançamento. Neste trabalho, o carro foi impulsionado com uma tira elástica amarrada a duas hastes fixas sobre a mesa, como um estilingue. Para explorar o potencial do método de determinação da aceleração da gravidade a partir da equação 1, fizemos medidas para 10 distâncias entre os sensores (z), conforme a coluna 2 da Tabela 1.

Tabela 1:
Resumo das dez configurações utilizadas na coleta de dados. A terceira coluna mostra os valores medidos da aceleração média (g¯) calculadas a partir da equação (3) com suas incertezas (σg¯), enquanto a quarta coluna mostra o desvio relativo (δg) para cada configuração. O carrinho foi lançado 10 vezes para cada configuração.

4. Resultados

Nas duas últimas colunas da Tabela 1, listamos a magnitude média da aceleração da gravidade (g¯) com sua incerteza (σg¯) e seu desvio relativo δg (discrepância em relação ao valor local, de 9,78 m/s2), para cada configuração. A média foi determinada sobre os 10 lançamentos da respectiva configuração e a incerteza pelo desvio padrão da média. É possível observar que os desvios relativos são sempre abaixo de 1%. De fato, a média das discrepâncias, bem como a discrepância da medida global, foram de 0,50%, consideradas bastante satisfatórias para um laboratório de mecânica de nível superior.

Os resultados da Tabela 1 estão expressos graficamente na Figura 3. Cada medida é representada pela sua média e incerteza (marcadores pretos e quadrados). O marcador circular (em azul) representa a média e incerteza sobre os lançamentos de todas as configurações: g=(9,8287±0,0009) m/s2. O valor de referência (9,78 m/s2), tomado na cidade do Natal/RN, é representado por uma linha tracejada na figura.

Figura 3:
Medidas da aceleração para cada configuração (marcadores quadrados pretos) e para todas as configurações (marcador circular azul). A linha tracejada horizontal representa o valor de referência g = 9,78 m/s2 na cidade do Natal/RN.

Na Figura 3, é possível notar que as acelerações de queda livre não concordam com o valor de referência, quando consideradas suas incertezas. Isso ocorre porque, embora as incertezas sistemáticas sejam pequenas (0,5%), as estatísticas são ainda menores (0,02%). A seguir, veremos algumas possibilidades para explicar essa discrepância.

A inspeção da Figura 3, mostra que há uma tendência das determinações da aceleração da gravidade serem acima do valor esperado. Isso pode ser explicado, ao menos parcialmente, pelo atrito residual entre o carrinho e o trilho de ar. No movimento de subida, a força de atrito é para baixo, enquanto na descida, para cima, alterando ligeiramente os valores de aceleração nesses movimentos. Quando os trechos de subida e descida possuem o mesmo comprimento, o efeito do atrito residual na aceleração se torna desprezível [10[10] J.C. Amato e R.E. Williams, The Phys. Teacher, 48, 322, (2010)., 11[11] A. Bessa, P.C. Ferreira e R. Lisboa, Eur. J. Phys., 42, 055003, (2021).]. No entanto, a trajetória do carrinho neste experimento não é simétrica: ele percorre uma distância maior subindo do que descendo, o que pode contribuir para a tendência de se superestimar o valor de g.

Outra fonte de incerteza sistemática consiste na determinação do ângulo de inclinação do trilho de ar. Fazendo a propagação da incerteza de sen(θ) para g na equação 5 e, lembrando que a inclinação foi medida com o auxílio de um dinamômetro (ver Figura 2), obtemos:

(6) σ g = g σ sen ( θ ) sen ( θ ) = g 1 F 1 2 + 1 F 2 2 σ F ,

onde F1 e F2 são as forças medidas pelo dinamômetro e σF a sua incerteza. Substituindo os valores para o experimento (F1=1,853 N, F2=0,186 N e σF=σF1=σF210-3), além de g=9,78 m/s2, obtemos que a determinação no ângulo introduz uma incerteza em g de aproximadamente 0,05 m/s2. Se levarmos em conta mais essa fonte de incerteza em nossos resultados, obtemos a Figura 4. Dessa figura, pode-se notar que as medidas de g estão marginalmente de acordo com o valor esperado.

Figura 4:
Medidas da aceleração para cada configuração, levando em conta incerteza sistemática na determinação da inclinação do trilho de ar (ver equação 6). A linha tracejada horizontal representa o valor de referência g = 9,78 m/s2 na cidade do Natal/RN.

Por fim, os próprios fotogates podem introduzir incertezas sistemáticas [12[12] E.P. Mosca e J.P. Ertel, Am. J. Phys., 57, 840, (1989).].

Para efeito de comparação, e para simular a situação em que não se dispõe de sensores ópticos e dinamômetro, realizamos também o cálculo de g a partir da medida dos intervalos de tempo t1 e t2 utilizando um cronômetro de celular, e a inclinação do trilho por trigonometria. Foram feitos dez lançamentos na situação em que a distância entre os sensores foi de 85 cm. Utilizando a equação4, obtivemos g=(10,4±0,3) m/s2, o que é bastante razoável para os propósitos de um laboratório de ensino. Apesar da maior discrepância, a realização desse simples experimento captura um aspecto didático importante: os valores obtidos para g em cada lançamento não aumentam com o aumento do impulso aplicado ao carrinho. Isso pode ser explorado em sala de aula na discussão do diagrama de forças que atuam sobre o carrinho, e para trabalhar a diferença entre os conceitos de aceleração e velocidade.

5. Discussão

Neste trabalho, propomos um procedimento experimental para realizar a medida da aceleração da gravidade inspirado em uma questão do livro texto de Mecânica do Moysés Nussenzveig [6[6] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Edgard Blucher, Rio de Janeiro, 2004).]. Um carrinho é lançado para subir um trilho de ar inclinado, passando por dois fotogates em um movimento de ida e volta. A expressão utilizada para determinar g depende da distância entre os sensores, dos tempos de subida e descida e da inclinação do trilho de ar, como mostrada na equação5. Foram realizadas medidas para várias distâncias entre os sensores (ver Tab. 1), e estas resultaram em determinações de g com discrepância menor do que 1%.

Esse experimento se mostra vantajoso porque não requer um equipamento específico para ser replicado, sendo de fácil execução. Os tempos medidos durante o movimento de subida e descida são relativamente longos, o que facilita o manuseio por parte dos estudantes. O método empregado para a medida do ângulo também é interessante, pois apresenta aos estudantes formas alternativas de pensar sobre um problema específico do livro texto do Moysés e como pode ser modificado sem perder seu propósito. Para o professor, é uma forma de mostrar aos estudantes que o carro, ao ser lançamento manualmente com diferentes velocidades iniciais, não altera o valor medido para a aceleração, uma vez que o valor determinado para a aceleração da gravidade é calculado com uma precisão 0,02% e discrepância 0,6%. Vale ressaltar que esse experimento pode ser realizado com equipamentos alternativos, com uma correspondente perda em precisão e acurácia. Por exemplo, na ausência de fotogates, é possível tirar proveito de que a equação 5 não depende de intervalos curtos de tempo (como na determinação de velocidades) o que permite usar um cronômetro manual.

Finalmente, temos expectativa de que este experimento possa ser empregado como alternativa a outros experimentos convencionais de determinação da aceleração da gravidade.

Agradecimentos

RFEB agradece apoio via bolsa PIBIC-UFRN. ABB agradece apoio via bolsa do CNPQ.

Referências

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    H. Cordova e A.C. Tort, Rev. Bras. Ens. Fis, 38, e2308 (2016).
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    N. Suwanpayak, S. Sutthiyan, K. Kulsirirat, P. Srisongkram, C. Teeka e P. Buranasiri, J. Phys.: Conf. Series, 1144, 012001 (2018).
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    E. Kluk e J.L. Lopez, The Phys. Teacher, 30, 48, (1992).
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    H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Mecânica (Edgard Blucher, Rio de Janeiro, 2004).
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    » https://yunus.hacettepe.edu.tr/ tatar/dersler/fiz301/FIZ-301/Fiz301%20Kuantum_Lab/PHYWE%20EXP/LEP/LEP1305_11_15.pdf
  • [9]
    PASCO Instruction Sheet, Force Sensor, disponível em: https://cdn.pasco.com/product_document/PASPORT-Force-Sensor-Manual-PS-2104.pdf, acessado em 27/02/2023.
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  • [10]
    J.C. Amato e R.E. Williams, The Phys. Teacher, 48, 322, (2010).
  • [11]
    A. Bessa, P.C. Ferreira e R. Lisboa, Eur. J. Phys., 42, 055003, (2021).
  • [12]
    E.P. Mosca e J.P. Ertel, Am. J. Phys., 57, 840, (1989).
  • 1
    Dependendo da interface e configurações utilizadas, os instantes de tempo medidos diretamente podem ser diferentes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2023
  • Revisado
    28 Abr 2023
  • Aceito
    28 Abr 2023
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