Acessibilidade / Reportar erro

Reinventando o método de Eratóstenes

Reinventing Eratosthenes’ method

Resumos

No final do século III a.C. o polímata grego Eratóstenes de Cirene realizou a mais célebre estimativa do perímetro da Terra. Para tanto ele se valeu do fato de as cidades de Alexandria e Siena estarem aproximadamente no mesmo meridiano (mesma longitude), bem como do fato de no dia do solstício de verão (no hemisfério norte) o Sol, ao meio-dia, estar a pino em Siena. No presente trabalho generalizamos, de forma aproximada, o método de Eratóstenes para o caso em que as localidades estejam separadas tanto em latitude quanto em longitude. Além disso, no modelo proposto, não é necessário Sol a pino ao meio-dia local em nenhuma das duas cidades. Realizamos três experimentos, ou seja, trabalhamos com três pares de cidades: Goiânia e Juiz de Fora, Goiânia e Maraú e Goiânia e Bragança Paulista. Esperamos que o artigo venha a ser utilizado por professores de Física, Astronomia, Geografia e/ou Matemática.

Palavras-chave:
Circunferência da Terra; Raio da Terra; Posidônio de Apameia; Grécia Antiga; Astronomia


At the end of the 3rd century BC the Greek polymath Eratosthenes of Cyrene made the most famous estimation of the Earth’s perimeter. For this he made use of the fact that the cities of Alexandria and Syene were approximately on the same meridian (same longitude), as well as the fact that on of the summer solstice (in the northern hemisphere) the Sun, at noon, is directly overhead in Syene. In the present work we generalized, in an approximate way, the method of Eratosthenes for the case which the localities are separated both in latitude and longitude. Furthermore, in the proposed model, it is not necessary to have the Sun, at local noon, directly overhead in any city. We carried out three experiments, that is, we worked with three pairs of cities: Goiânia and Juiz de Fora, Goiânia and Maraú and Goiânia and Bragança Paulista. We hope that the article will be used by teachers of Physics, Astronomy, Geography and/or Mathematics.

Keywords
Circumference of the Earth; Earth Radius; Posidonius of Apameia; Ancient Greece; Astronomy


1. Introdução

A escola pitagórica, séculos VI a IV a.C., é tradicionalmente reconhecida como tendo sido a primeira a indicar a esfericidade da Terra e a ordem geométrica do Cosmos [1[1] T. Heath, The Copernicus of Antiquity: Aristarchus of Samos (Macmillan, London, 1920).]. Entre outros argumentos, partindo da concepção de Terra esférica, com os corpos celestes girando em torno da Terra, fica fácil de explicar o porquê de a sombra da Terra, projetada na Lua durante um eclipse lunar, ser circular. Uma vez dada a forma da Terra, é natural que a pergunta seguinte seja: qual seria então o raio da Terra? Ou, de forma equivalente, qual seria o perímetro da Terra? Essa pergunta foi respondida de forma engenhosa por Eratóstenes de Cirene no final do século III a.C..

O que sabemos sobre a vida de Eratóstenes? Praticamente nada. Podemos citar apenas três eventos com relativa certeza: (i) ele nasceu no final do primeiro quarto do século III a.C., na cidade grega de Cirene (norte da África); (ii) quando jovem, mudou-se para Atenas e lá entrou em contato com as escolas filosóficas; (iii) por volta dos 40 anos, ele foi nomeado tutor real pelo rei Ptolomeu III e bibliotecário chefe do museu (ou Templo das musas) de Alexandria, posto que manteve até o fim da vida, no início do século II a.C.. [2[2] D.W. Roller, Eratosthenes’ Geography (Princeton University Press, Princeton, 2010).]

Eratóstenes escreveu o livro “Medidas do Mundo”, onde descreveu o método que usou para estimar o tamanho do perímetro da Terra. Infelizmente, essa obra se perdeu ao longo dos séculos. Assim, o que sabemos sobre seu método vem de comentadores posteriores. Eratóstenes também escreveu o livro, em três volumes, “Geográfica”, onde ele foi o primeiro a mapear o mundo usando paralelos (linhas circulares paralelas ao equador) e meridianos (linhas circulares que passam por ambos os polos). Também esse livro se perdeu ao longo do tempo. Por esses dois livros, Eratóstenes pode ser considerado o fundador da Geografia enquanto disciplina. [3[3] R.P. Crease, Os 10 Mais Belos Experimentos Científicos (Zahar, Rio de Janeiro, 2006).]

A menos de pequenas variantes, a descrição, digamos padrão, do experimento de Eratóstenes para estimar o perímetro da Terra inicia-se com a informação de que ao meio-dia, do dia do solstício de verão (no hemisfério norte), na cidade de Siena (atual Assuã, no sul do Egito) o Sol encontra-se a pino, ou seja, no ponto mais alto do céu, iluminando por completo o fundo dos poços e fazendo com que hastes verticais não projetem sombras, Figura 1. Eratóstenes vivia em Alexandria e sabia que ao meio-dia, do dia do solstício de verão, em sua cidade, uma haste vertical projetava uma sobra. Ele também sabia que as duas cidades ficavam, aproximadamente, no mesmo meridiano (mesma longitude) e que a distância D entre elas era estimada em 5.000 estádios. Uma vez que o Sol está muito distante da Terra, essa diferença, pensou ele, poderia ser usada para estimar o perímetro da Terra. Quanto ao Sol estar muito distante da Terra vale lembrar que Aristarco de Samos, contemporâneo mais velho de Eratóstenes, estimou que o Sol está cerca de 19 vezes mais distante da Terra do que a Lua [1[1] T. Heath, The Copernicus of Antiquity: Aristarchus of Samos (Macmillan, London, 1920)., 4[4] L.V. Freitas, R.M. Santucci e I.A. Marques, Rev. Bras. Ens. Fís. 43, e20210062 (2021).].

Figura 1:
Representação dos raios solares incidindo sobre as cidades de Siena e Alexandria ao meio-dia do dia do solstício de verão (no hemisfério norte).

De posse da medida do tamanho da sombra e do tamanho da haste, Eratóstenes concluiu que os raios solares faziam um ângulo de 7,2 com a vertical em Alexandria, Figura 1. A partir da geometria da situação, temos então que a distância angular entre Alexandria e Siena também será 7,2. Logo, o perímetro da Terra será 250.000 estádios. Ao contrário da atualidade, onde dividimos o círculo em 360 partes, Eratóstenes o dividia em 60 partes. Assim, ele ajustou seu valor para 252.000 estádios, o qual, dividido por 60, resulta 4.200 estádios.

Embora a maioria das reproduções atuais do experimento de Eratóstenes [5[5] L.O.A. Azevedo, O.S. Ribeiro, N.C. Costa, E.H.C.P. Sinnecker e M. Gandelman, Rev. Bras. Ens. Fís. 44, e20210354 (2022)., 6[6] R. Langhi, Cad. Bras. Ens. Fís. 34, 6 (2017)., 7[7] M. Longhorn e S. Hughes, Physics Education 50, 175 (2015)., 8[8] A.J.J. Santos, M.R. Voelzke e M.S.T. Araújo, Cad. Bras. Ens. Fís. 29, 1137 (2012)., 9[9] A. Van Helden, Measuring the Universe Cosmic Dimensions: From Aristarchus to Halley (The University of Chicago Press, Chicago, 1985).], inclusive a apresentada no presente trabalho, meçam o tamanho da sombra de uma vareta ou pêndulo e determinem o ângulo dos raios solares com a vertical, é provável que Eratóstenes tenha se valido de outro procedimento experimental e/ou teórico, talvez utilizando um relógio solar em forma de semiesfera [3[3] R.P. Crease, Os 10 Mais Belos Experimentos Científicos (Zahar, Rio de Janeiro, 2006)., 10[10] B.R. Goldstein, Historia Mathematica 11, 411 (1984)., 11[11] I. Fischer, Quarterly Journal of the Royal Astronomical Society 16, 152 (1975).]. Por exemplo, seja uma tigela semiesférica, de 1 metro de raio, com uma haste vertical, de 1 metro de comprimento, posta no centro da tigela, Figura 2. Uma sombra que cubra um arco de, aproximadamente, 12,6 centímetros de comprimento será, aproximadamente, equivalente a 1/50 do perímetro do círculo. Esse valor, na montagem padrão do experimento, equivale ao ângulo de 360/50=7,2. Por outro lado, uma sombra que cubra um arco de cerca de 12,5 centímetros de comprimento será equivalente a 1/(50,4) do perímetro do círculo. Temos que 50,4 vezes 5.000 estádios resultará 252.000 estádios. Vale lembrar que não sabemos, de fato, qual foi o procedimento utilizado por Eratóstenes.

Figura 2:
Corte transversal de uma tigela semiesférica, com uma haste vertical em seu centro. Provavelmente Eratóstenes tenha utilizado uma tigela similar.

Salientamos que, se os astrônomos gregos já não tivessem introduzido de antemão o paradigma da Terra esférica, os resultados de Eratóstenes também poderiam ser interpretados no contexto da Terra plana, como destacaram os sábios chineses da antiguidade no livro “Huainanzi” [3[3] R.P. Crease, Os 10 Mais Belos Experimentos Científicos (Zahar, Rio de Janeiro, 2006).]. Nesse caso, o comprimento da sombra em Alexandria poderia ser usado para estimar a distância, em linha reta, do Sol até a cidade de Siena.

O estádio é uma unidade de medida de comprimento relacionada ao tamanho de uma pista de corrida do mundo grego. Como o tamanho das pistas de corrida na antiguidade podia variar de cidade para cidade, o valor do estádio, em metros, também podia variar. Desta forma, não sabemos, de fato, qual seria o verdadeiro comprimento do estádio usado por Eratóstenes [2[2] D.W. Roller, Eratosthenes’ Geography (Princeton University Press, Princeton, 2010)., 12[12] A. Diller, Isis 40, 6 (1949).], de forma que não temos condições de avaliar a precisão do valor do perímetro da Terra que ele obteve. Além disso, o valor de 5.000 estádios entre as cidades é, antes de mais nada, uma estimativa em valores “redondos”, não uma medida precisa. Contudo, o que podemos afirmar é que o resultado de Eratóstenes está correto no sentido geométrico de o perímetro ser, aproximadamente, 50, ou 50,4, vezes a distância entre Alexandria e Siena, seja qual for o valor dessa distância.

Convém destacar que Eratóstenes não foi o primeiro a realizar uma estimativa do perímetro da Terra na antiguidade. Arquimedes de Siracusa, contemporâneo pouco mais velho que Eratóstenes, em seu tratado “O contador de areia”, cita “que alguns tentaram [] provar que o referido perímetro é de cerca de 300.000 estádios” [13[13] D.M. Cataneo e I.A. Marques, Sitientibus Série Ciências Físicas 18, scf20221813 (2022).]. Não sabemos como esses “alguns” teriam realizado tal façanha. Além disso, também nesse caso, não sabemos o valor do estádio referido por Arquimedes.

Eratóstenes também não foi o último. O filósofo estoico Posidônio de Apameia, no início do século I a.C., também estimou o perímetro da Terra. As obras de Posidônio se perderam ainda na antiguidade, assim o pouco que sabemos sobre seus trabalhos vem exclusivamente de comentadores posteriores, os quais nem sempre são coerentes entre si. Segundo as descrições que chegaram até nós, Posidônio teria observado que a estrela Canopeia (a estrela mais brilhante da constelação de Carina e segunda mais brilhante do céu noturno) apresentava altura máxima em torno de 7,5 em Alexandria, ao passo que em Rodes (onde Posidônio residia) ela, no máximo, tangenciava o horizonte. Sabendo que Rodes e Alexandria estão aproximadamente no mesmo meridiano (mesma longitude), e tomando a distância entre as duas cidades como sendo 3.750 estádios (ou 5.000 estádios, em uma variante da história), ele chegou ao valor de 180.000 estádios (ou 240.000 estádios, na variante da história) para o perímetro da Terra. Mais uma vez, como não sabemos, em metros, o valor do estádio, a comparação direta com o resultado de Eratóstenes não se aplica de forma simples. [11[11] I. Fischer, Quarterly Journal of the Royal Astronomical Society 16, 152 (1975)., 12[12] A. Diller, Isis 40, 6 (1949)., 14[14] DICTIONARY OF SCIENTIFIC BIOGRAPHY, Posidonius (Scribner, New York, 1981), v. 11.]

No presente trabalho generalizamos, de forma aproximada, o método de Eratóstenes para o caso em que as localidades estejam separadas tanto em latitude quanto em longitude. Além disso, no modelo proposto, não é necessário Sol a pino ao meio-dia local em nenhuma das duas cidades. Nesse momento, é oportuno destacar que Sol a pino significa que o Sol está no Zênite, ou seja, no ponto mais alto do céu. Já meio-dia local significa que o Sol está no ponto mais alto de sua trajetória diária. Desta forma, na maioria das vezes, o Sol não estará a pino ao meio-dia local.

Realizamos três experimentos, ou seja, trabalhamos com três pares de cidades: Goiânia e Juiz de Fora, Goiânia e Maraú e Goiânia e Bragança Paulista. Esperamos que o artigo venha a ser utilizado por professores de Física, Astronomia, Geografia e/ou Matemática.

2. Metodologia

Conforme indicado na Introdução, no presente trabalho generalizamos, de forma aproximada, o método de Eratóstenes para o caso em que as localidades estejam separadas tanto em latitude quanto em longitude, Figura 3. Denotamos por φ a diferença entre as longitudes e por ψ a diferença entre as latitudes. Na Figura 3, o arco BC será dado por Rψ e o arco AC será dado aproximadamente por Rφ, onde R é o raio médio da Terra. Em nossa generalização, utilizamos duas aproximações: a primeira, como posto anteriormente, diz respeito ao arco AC; a segunda, diz respeito ao triângulo esférico ABC, o qual aproximamos por um triângulo plano. Assim, do teorema de Pitágoras, a distância, DAB, entre os pontos A e B será dada por:

(1) D A B = R φ 2 + ψ 2 .

Figura 3:
Representação dos pontos A e B sobre a superfície de uma esfera.

Desta forma, dados os ângulos φ e ψ (em radianos) e a distância, DAB, entre as cidades, é possível determinar, de forma aproximada, a partir do modelo esférico descrito acima, o valor do raio médio da Terra.

A segunda aproximação será tão melhor quanto menor for a distância entre as duas localidades. Destacamos que a maior distância utilizada no trabalho foi menor do que 1.150km. Esse valor corresponde a menos de 3% do valor médio da circunferência da Terra, a qual é pouco maior do que 40.000km[15[15] D.R. Williams, Planetary Fact Sheet – Metric, disponível em: https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/factsheet/, acessado em 01/10/2022.
https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/fa...
].

Uma vez que qualquer ponto sobre a superfície da Terra gira 360 em 24 horas (ou 15 a cada 60 minutos), a diferença de longitude entre as duas cidades pode ser obtida a partir da diferença de horário do meio-dia local, o instante em que o Sol fica mais alto em sua trajetória diária. Para determinar o momento do meio-dia local em cada cidade utilizamos o software astronômico Stellarium 0.18.0 [16[16] F. Chéreau, Stellarium, disponível em: https://stellarium.org, acessado em 01/10/2022.
https://stellarium.org...
]. Para determinar a distância entre as duas cidades utilizamos a ferramenta Google Maps [17[17] GOOGLE, Google Maps, disponível em: https://google.com.br/maps, acessado em 01/10/2022.
https://google.com.br/maps...
], adotando 1km para o erro da medida.

Para a determinação da diferença de latitude, obtemos, ao meio-dia local, o ângulo entre os raios solares e a vertical na cidade A, δA, e na cidade B, δB, de forma que:

(2) ψ = | δ A - δ B | .

Para a determinação dos ângulos procedemos como na descrição padrão do experimento de Eratóstenes, ou seja, tomamos um prumo de altura H e, ao meio-dia local, determinamos o tamanho, S, de sua sobra, Figura 4.

Figura 4:
Representação do procedimento experimental para a determinação, ao meio-dia local, do ângulo δ entre os raios solares e a vertical.

Para a determinação do tamanho da sombra do prumo medimos, com um paquímetro, o diâmetro da base do cilindro e fotografamos a sombra ao meio-dia local. Nos experimentos utilizamos dois prumos, um cujo diâmetro do cilindro media 42,00mm e outro que media 52,00mm. As fotografias foram processadas com softwares de edição de imagens, aplicamos filtros de contraste e brilho de forma a melhorar a nitidez. Na Figura 5 mostramos um exemplo representativo, cuja foto original, sem o processamento, pode ser vista na Figura 8B. Nesse exemplo, a distância entre a base do cilindro e o início da sombra é de 662mm. Assim, o tamanho da sombra será S=662mm+21mm=683mm. Consideramos 1mm de erro nas medidas dos tamanhos das sombras, S, e das alturas, H.

Figura 5:
Exemplo representativo de processamento para as fotos das sombras dos prumos.

No trabalho realizamos três pares de medidas, ou seja, três experimentos. O experimento 1 foi realizado nas cidades de Goiânia-GO (localidade A: Latitude Sul 16,73880 e Longitude Oeste 49,26863) e Juiz de Fora-MG (localidade B: Latitude Sul 21,76930 e Longitude Oeste 43,36809) no dia 01/02/2021. Nesse dia, o meio-dia local foi às 12:31h em Goiânia e 12:07h em Juiz de Fora. A distância entre as duas localidades é DAB=(834±1)km. Destacamos que, nesse dia, ao meio-dia local, o Sol estava a pino na cidade de Goiânia. Assim, para melhorar a percepção da sombra, acoplamos um artefato auxiliar em forma de T na extremidade superior do prumo.

O experimento 2 foi realizado nas cidades de Goiânia-GO (localidade A, Latitude Sul 16,60391 e Longitude Oeste 49,25826) e Maraú-BA (localidade B, Latitude Sul 13,93180 e Longitude Oeste 38,94342) no dia 29/12/2020. Nesse dia, o meio-dia local foi às 12:19h em Goiânia e 11:38h em Maraú. A distância entre as duas localidades é DAB=(1.145±1)km.

O experimento 3 foi realizado nas cidades de Goiânia-GO (localidade A, Latitude Sul 16,61919 e Longitude Oeste 49,29749) e Bragança Paulista-SP (localidade B, Latitude Sul 22,96253 e Longitude Oeste 46,53954) no dia 20/07/2021. Nesse dia, o meio-dia local foi às 12:24h em Goiânia e 12:13h em Bragança. A distância entre as duas localidades é DAB=(762±1)km.

3. Resultados

3.1. Experimento 1: Goiânia/Juiz de Fora

A Figura 6 mostra as fotografias das sombras, ao meio-dia local, nas cidades de Goiânia e Juiz de Fora. Vemos que em Goiânia, Figura 6A, a sombra do artefato auxiliar em forma de T, que foi colocado na extremidade superior do prumo de altura HA=(600±1)mm, estava centrada no centro do prumo, indicando que o Sol estava a pino. Assim, os raios solares estavam paralelos à vertical, de forma que δA=0,0±0,1. Por outro lado, em Juiz de Fora, Figura 6B o prumo, de altura HB=(733±1)mm, produziu uma sobra de comprimento SB=(59±1)mm, de forma que δB=4,6±0,1. Assim, da Equação2, ψ=4,6±0,2. A diferença de tempo para os dois meios-dias locais foi de 24 minutos, o que leva ao valor φ=6,0±0,2. Logo, pela Equação1, o valor do raio da Terra no experimento 1 será: R1=(6,3±0,2)×103km, ou, em termos percentuais, R1=6,3×103km±3,2%.

Figura 6:
Fotografias das sombras, ao meio-dia local, em (A) Goiânia e (B) Juiz de Fora, no dia 01/02/2021.

3.2. Experimento 2: Goiânia/Maraú

A Figura 7 mostra as fotografias das sombras, ao meio-dia local, nas cidades de Goiânia e Maraú. Vemos que em ambas as cidades o Sol não se encontrava a pino. Em Goiânia, Figura 7A, o prumo, de altura HA=(733±1)mm, produziu uma sobra de comprimento SA=(85±1)mm, de forma que δA=6,6±0,1. Por outro lado, em Maraú, Figura 7B, o prumo, de altura HB=(795±1)mm, produziu uma sobra de comprimento SB=(131±1)mm, de forma que δB=9,4±0,1. Assim, da Equação2, ψ=2,8±0,2. A diferença de tempo para os dois meios-dias locais foi de 41 minutos, o que leva ao valor φ=10,2±0,2. Logo, pela Equação1, o valor do raio da Terra no experimento 2 será: R2=(6,2±0,1)×103km, ou, em termos percentuais, R2=6,2×103km±1,6%.

Figura 7:
Fotografias das sombras, ao meio-dia local, em (A) Goiânia e (B) Maraú, no dia 29/12/2020.

3.3. Experimento 3: Goiânia/Bragança Paulista

A Figura 8 mostra as fotografias das sombras, ao meio-dia local, nas cidades de Goiânia e Bragança Paulista. Vemos que em ambas as cidades o Sol não se encontrava a pino. Em Goiânia, Figura 8A, o prumo, de altura HA=(635±1)mm, produziu uma sobra de comprimento SA=(493±1)mm, de forma que δA=37,8±0,2. Por outro lado, em Bragança Paulista, Figura 8B, o prumo, de altura HB=(733±1)mm, produziu uma sobra de comprimento SB=(683±1)mm, de forma que δB=43,0±0,2. Assim, da Equação2, ψ=5,2±0,4. A diferença de tempo para os dois meios-dias locais foi de 11 minutos, o que leva ao valor φ=2,7±0,2. Logo, pela Equação1, o valor do raio da Terra no experimento 3 será: R3=(7,5±0,6)×103km, ou, em termos percentuais, R3=7,5×103km±8,0%.

Figura 8:
Fotografias das sombras, ao meio-dia local, em (A) Goiânia e (B) Bragança Paulista, no dia 20/07/2021.

3.4. Correção com a latitude

Conforme descrito na metodologia, os resultados anteriores são obtidos no contexto de duas aproximações. No entanto, se lançarmos mão da latitude da localidade mais ao norte (Goiânia nos experimentos 1 e 3 e Maraú no experimento 2), podemos eliminar a primeira das aproximações. Nesse caso, na Figura 3, o arco AC será dado por Rφcosα, onde α é o valor da latitude da localidade mais ao norte. Assim, mantendo a segunda aproximação, a do teorema de Pitágoras, a distância DAB entre os pontos A e B será dada por:

(3) D A B = R ( φ cos α ) 2 + ψ 2 .

Calculando o raio da Terra a partir da Equação3, temos que: R1L=(6,5±0,2)×103km, R2L=(6,4±0,2)×103km e R3L=(7,5±0,6)×103km, onde o índice superior ’L’ indica que usamos o valor da latitude no cálculo do raio da Terra. Vemos que a correção não alterou o resultado do experimento 3, ao passo que para os experimentos 1 e 2 elevou em cerca de 3% o valor médio do intervalo. Além disso, para o experimento 2, a correção gerou também aumento do valor da barra de erro.

4. Discussões

Segundo a National Aeronautics and Space Administration (NASA) [15[15] D.R. Williams, Planetary Fact Sheet – Metric, disponível em: https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/factsheet/, acessado em 01/10/2022.
https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/fa...
], o raio médio volumétrico da Terra vale RNASA=6,371×103km. Comparando esse valor com o resultado do experimento 1, R1=(6,3±0,2)×103km, vemos que nosso resultado, que possui barra de erro de 3,2%, está correto. Para o experimento 2, R2=(6,2±0,1)×103km, vemos que o valor RNASA não pertence ao intervalo obtido, no entanto, destacamos que a diferença percentual entre o valor de referência e o maior valor do intervalo obtido é de apenas 1,1%. Por fim, para o experimento 3, R3=(7,5±0,6)×103km, vemos que o valor RNASA também não pertence ao intervalo obtido. Nesse caso, a diferença percentual entre o valor de referência e o menor valor do intervalo obtido é de 8,3%. Ou seja, para o experimento 1 obtivemos o valor correto, com barra de erro de 3,2%, e para os experimentos 2 e 3 as diferenças em relação ao valor correto são menores do que 10%.

Comparando o valor RNASA=6,371×103km com o valor obtido após a correção com a latitude para o experimento 1, R1L=(6,5±0,2)×103km, vemos que nosso resultado continua estando correto. Para o experimento 2, R2L=(6,4±0,2)×103km, temos que, com a correção, o valor RNASA agora pertence ao intervalo obtido. Para o experimento 3, a correção com a latitude não gerou mudança no valor obtido, R3L=(7,5±0,6)×103km, continuamos com 8,3% de diferença percentual entre o valor de referência e o menor valor do intervalo obtido. Os resultados apresentados no trabalho indicam a consistência do modelo proposto e sua pertinência no contexto do Ensino de Ciência.

5. Conclusão

Tão logo os gregos da antiguidade desenvolveram a noção da Terra esférica, em oposição à visão tradicional da Terra plana, surgiu a questão de qual seria então o raio da Terra? Ou, de forma equivalente, qual seria o perímetro da Terra? No final do século III a.C. o polímata grego Eratóstenes de Cirene realizou a mais célebre estimativa do perímetro da Terra. Para tanto ele se valeu do fato de as cidades de Alexandria e Siena estarem, aproximadamente, no mesmo meridiano (mesma longitude), bem como do fato de no dia do solstício de verão (no hemisfério norte) o Sol, ao meio-dia, estar a pino em Siena. Eratóstenes estimou que o perímetro da Terra seria 252.000 estádios. Como não sabemos, em metros, o valor do estádio usado de fato por Eratóstenes, não comparamos seu resultado com o valor moderno.

No presente trabalho generalizamos, de forma aproximada, o método de Eratóstenes para o caso em que as localidades estejam separadas tanto em latitude quanto em longitude. Além disso, no modelo proposto, não é necessário Sol a pino ao meio-dia local em nenhuma das duas cidades. Realizamos três experimentos, ou seja, trabalhamos com três pares de cidades. O experimento 1 foi realizado nas cidades de Goiânia e Juiz de Fora. O experimento 2 foi realizado nas cidades de Goiânia e Maraú. O experimento 3 foi realizado nas cidades de Goiânia e Bragança Paulista.

O valor do raio da Terra obtido no experimento 1 é R1=(6,3±0,2)×103km. Comparando com o raio médio volumétrico da Terra, RNASA=6,371×103km, vemos que nosso resultado, que possui barra de erro de 3,2%, está correto. Para os experimentos 2 e 3 os valores obtidos são R2=(6,2±0,1)×103km e R3=(7,5±0,6)×103km, respectivamente. Para esses dois experimentos vemos que o valor RNASA não pertence ao intervalo obtido. No entanto, as diferenças em relação ao valor correto são menores do que 10%. Aplicando a correção com a latitude obtemos: R1L=(6,5±0,2)×103km, R2L=(6,4±0,2)×103km e R3L=(7,5±0,6)×103km. Assim, com a correção, o valor RNASA agora pertence aos intervalos obtidos nos experimentos 1 e 2. Para o experimento 3 a correção com a latitude não gerou mudança no valor obtido.

Dado o caráter pedagógico do trabalho, voltado ao Ensino de Ciências, bem como a simplicidade dos materiais utilizados, podemos dizer que todos os experimentos foram exitosos. Eles cumprem o objetivo de fomentar a discussão em torno da temática dos modelos físicos e geométricos para estimar as dimensões da Terra. Desta forma, esperamos que o artigo venha a ser utilizado por professores de Física, Astronomia, Geografia e/ou Matemática.

Referências

  • [1]
    T. Heath, The Copernicus of Antiquity: Aristarchus of Samos (Macmillan, London, 1920).
  • [2]
    D.W. Roller, Eratosthenes’ Geography (Princeton University Press, Princeton, 2010).
  • [3]
    R.P. Crease, Os 10 Mais Belos Experimentos Científicos (Zahar, Rio de Janeiro, 2006).
  • [4]
    L.V. Freitas, R.M. Santucci e I.A. Marques, Rev. Bras. Ens. Fís. 43, e20210062 (2021).
  • [5]
    L.O.A. Azevedo, O.S. Ribeiro, N.C. Costa, E.H.C.P. Sinnecker e M. Gandelman, Rev. Bras. Ens. Fís. 44, e20210354 (2022).
  • [6]
    R. Langhi, Cad. Bras. Ens. Fís. 34, 6 (2017).
  • [7]
    M. Longhorn e S. Hughes, Physics Education 50, 175 (2015).
  • [8]
    A.J.J. Santos, M.R. Voelzke e M.S.T. Araújo, Cad. Bras. Ens. Fís. 29, 1137 (2012).
  • [9]
    A. Van Helden, Measuring the Universe Cosmic Dimensions: From Aristarchus to Halley (The University of Chicago Press, Chicago, 1985).
  • [10]
    B.R. Goldstein, Historia Mathematica 11, 411 (1984).
  • [11]
    I. Fischer, Quarterly Journal of the Royal Astronomical Society 16, 152 (1975).
  • [12]
    A. Diller, Isis 40, 6 (1949).
  • [13]
    D.M. Cataneo e I.A. Marques, Sitientibus Série Ciências Físicas 18, scf20221813 (2022).
  • [14]
    DICTIONARY OF SCIENTIFIC BIOGRAPHY, Posidonius (Scribner, New York, 1981), v. 11.
  • [15]
    D.R. Williams, Planetary Fact Sheet – Metric, disponível em: https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/factsheet/, acessado em 01/10/2022.
    » https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/factsheet/
  • [16]
    F. Chéreau, Stellarium, disponível em: https://stellarium.org, acessado em 01/10/2022.
    » https://stellarium.org
  • [17]
    GOOGLE, Google Maps, disponível em: https://google.com.br/maps, acessado em 01/10/2022.
    » https://google.com.br/maps

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2022
  • Revisado
    09 Jun 2023
  • Aceito
    14 Jul 2023
Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: marcio@sbfisica.org.br