Acessibilidade / Reportar erro

Diferentes níveis de hipóteses científicas: uma proposta para discutir fatores epistêmicos e sociais das Ciências na formação de professores de Física a partir de fontes históricas

Different levels of scientific hypotheses: a proposal for discussing epistemic and social factors in Science Education for Physics teacher training based on historical sources

Resumos

Ao ensinar Física, principalmente na Educação Básica e no contexto de formação de professores, tem-se por objetivo ensinar, além dos conceitos físicos, aspectos sobre a natureza da ciência (o que é ciência, o que diferencia ciência de outras formas de conhecimento, como a ciência impacta a sociedade). Fazer isso é um enorme desafio, pois pode implicar uma escolha entre enfatizar elementos conceituais e matemáticos, ou fazer uma discussão mais filosófica. Nosso objetivo é apresentar uma proposta de análise de textos históricos com finalidade didática, a fim de permitir que se explore a Física (os aspectos conceituais e matemáticos) ao mesmo tempo em que são discutidos aspectos epistêmicos e sociais da ciência. Nesse sentido, propomos, neste artigo, uma alternativa para explorar a história com o objetivo de evidenciar um elemento pouco analisado sobre a natureza da Ciência: o papel das hipóteses científicas na construção do conhecimento. Assumimos que toda afirmação cujo conteúdo excede o conteúdo empírico de uma pesquisa pode ser considerada uma hipótese. Procurando estabelecer uma proposta de análise com fins didáticos, propomos uma categorização das hipóteses científicas quanto à natureza delas (cosmovisivas, ontológicas ou representacionais) e quanto ao papel lógico delas na construção da Ciência (axiomas iniciais, hipóteses assumidas posteriormente ou derivações). Por fim, exemplificamos a aplicação dessa estrutura na análise dos episódios históricos que deram origem à Equação do Calor e à Equação de Schrödinger, exemplos que poderiam ser adotados no contexto de formação de professores de Física, sugerindo que pesquisas pautadas pela proposta apresentada sejam desenvolvidas futuramente.

Palavras-chave:
Hipóteses; história da Ciência; natureza da Ciência


When we teach Physics, mainly in High School and in the context of teacher training, the aim is to teach, in addition to physical concepts, aspects of the nature of science (what is science, what differentiates science from other forms of knowledge, how science impacts society). Doing so is a huge challenge, as it may imply a choice between emphasizing more conceptual and mathematical elements, or making the discussion more philosophical. Our objective is to present a proposal for the analysis of historical texts with a didactic purpose, in order to allow the exploration of Physics (the conceptual and mathematical aspects) at the same time that epistemic and social aspects of science are discussed. In this sense, we propose, in this article, an alternative to explore history with the aim of highlighting a little analyzed element about the nature of Science: the role of scientific hypotheses in the construction of knowledge. We assume that every statement whose content exceeds the empirical content of a research can be considered a hypothesis. Seeking to establish an analysis proposal with didactic purposes, we propose a categorization of scientific hypotheses regarding their nature (cosmovisive, ontological or representational) and regarding their logical role in the construction of Science (initial axioms, hypotheses assumed later or derivations). Finally, we exemplify the application of this framework in the analysis of historical episodes that led to the Heat Equation and Schrödinger’s Equation, examples that could be adopted in the context of Physics teacher education, suggesting that research based on the proposed approach be developed in the future.

Keywords:
Hypotheses; history of Science; nature of Science


1. Introdução

Ensinar Física, de uma forma mais específica, e ciências, de forma mais geral, é uma atividade cada vez mais complexa – principalmente no que concerne à Educação Básica e à formação de professores. O crescimento da área de educação científica tem nos levado a ampliar nossas concepções sobre ensino e aprendizagem, de forma que a área de pesquisa em Ensino tem agregado às suas preocupações a abordagem de problemas sócio-científicos, questões étnico-raciais, elementos da história da Ciência, entre tantos outros aspectos. Hodson [1[1] D. Hodson, International Journal of Science Education 36, 2534 (2014).] evidencia essa ampliação quando vincula os objetivos do ensino de Ciências com quatro dimensões, quais são: i. aprender ciências, ii. aprender sobre ciências, iii. fazer ciência, e iv. abordar questões sócio-científicas. Essa complexificação das metas a serem atingidas nas salas de aula traz inúmeros desafios para o Ensino de Física, entre os quais o estabelecimento de modelos de ensino que de fato oportunizem aos estudantes alcançarem esses objetivos.

Cada uma das dimensões destacadas por Hodson implica uma série de elementos que dificilmente podem ser abordados em uma mesma atividade de ensino. Segundo o autor [1[1] D. Hodson, International Journal of Science Education 36, 2534 (2014)., p. 2537], aprender sobre ciências, por exemplo, envolve:

desenvolver uma compreensão das características da investigação científica, o papel e o status do conhecimento que ela gera, as circunstâncias sociais e intelectuais que cercam a origem e o desenvolvimento de teorias científicas importantes, as formas pelas quais a comunidade científica estabelece e monitora a prática profissional, incluindo conhecimento das convenções linguísticas para relatar, defender, escrutinar e validar reivindicações científicas, e consciência das complexas interações entre ciência, tecnologia, sociedade e meio ambiente.

Um currículo com um escopo tão extenso, como o próprio Hodson reconhece, necessariamente demanda uma ampla gama de atividades com diferentes enfoques. Uma alternativa neste contexto são unidades sobre a Natureza da Ciência (NdC), em que elementos epistêmicos e sociais possam ser mobilizados de forma entrelaçada, proporcionando a vinculação da atividade científica com elementos característicos do contexto em que os conhecimentos foram construídos, promovendo tanto o ensino de ciências como sobre ciências. É um desafio muito grande para os professores, com tempo tão exíguo, abordar esses aspectos sem abrir mão de aprofundar os aspectos conceituais e matemáticos da teoria, que são fundamentais para o desenvolvimento do pensamento científico.

Dentre as diversas abordagens possíveis de elementos sobre a NdC, a análise de episódios históricos é uma das mais exploradas. Com ela, pode-se evidenciar a influência dos paradigmas na evolução das ideias, explicitando o caráter humano do trabalho científico [2[2] W.F. McComas, em: Adapting Historical Knowledge Production to the Classroom, editado por P.V. Kokkotas, K.S. Malamitsa e A.A. Rizaki (Sense Publishers, Rotterdam, 2011)., p. 37]. Além disso, a incorporação da história da Ciência nessa perspectiva possibilita, a partir da discussão sobre as concepções dos cientistas do passado, suas controvérsias e decisões, o entendimento sobre o sentido e o significado dos conceitos científicos [3[3] P.V. Kokkotas e A.A. Rizaki, em: Adapting Historical Knowledge Production to the Classroom, editado por P.V. Kokkotas, K.S. Malamitsa e A.A. Rizaki (Sense Publishers, Rotterdam, 2011)., p. 61], ou seja, a aprendizagem de Ciências. Existem várias propostas teóricas para apresentar a NdC nesses episódios [4[4] D. Allchin, Canadian Journal of Science, Mathematics and Technology Education 17, 18 (2017)., 5[5] S. Erduran e Z. Dagher, Reconceptualizing the Nature of Science for Science Education: Scientific Knowledge, Practices and Other Family Categories. Contemporary Trends and Issues in Science Education (Springer, Berlin, 2014)., 6[6] W.F. McComas, em: Nature of science in science instruction, editado por W. F. McComas (Springer Nature, Switzerland, 2020).].

Procurando contribuir com a área por meio de mais uma alternativa para a abordagem da história da Ciência como um caminho para proporcionar a aprendizagem de Física e sobre Física, propomos aqui uma estrutura de análise de episódios históricos partindo da noção de hipótese científica. Esse conceito, apesar de controverso e pouco explorado na literatura, é central no fazer científico, como destaca Ronald Giere [7[7] R.N. Giere, em: Testing scientific theories, editado por J. Earman (University of Minnesota Press, Minneapolis, 1983)., p. 270]: “As visões sobre a natureza da evidência e seu papel na ciência dependem crucialmente das visões sobre a natureza das hipóteses e teorias.”. Assumimos que hipóteses são proposições científicas que vão além das evidências, são afirmações que generalizam o que é experienciável e dirigem o trabalho científico. Argumentamos então que parte do conhecimento científico é hipotética, e que o desenvolvimento dos conceitos, modelos e teorias da Ciência são fundamentados em hipóteses tanto sobre os eventos naturais como sobre a natureza da construção do conhecimento científico. Nessa perspectiva, a objetividade do conhecimento científico se constrói a partir do escrutínio das instanciações das hipóteses assumidas, o que demanda uma complexa rede de argumentos pautados por, entre outras coisas, debates fundamentados em corroborações empíricas.

As hipóteses científicas são, como mostramos neste artigo, frutos da interação entre o contexto social e histórico dos cientistas com as suas representações dos objetos e/ou eventos reais. Mais precisamente, a gênese das hipóteses científicas está na interação entre aspectos sociais e epistêmicos do trabalho científico. Identificar a origem e o tipo de hipótese que sustenta episódios históricos da Ciência, portanto, possibilita uma compreensão tanto das bases dos modelos e teorias científicas como das relações entre essas bases com elementos sociais. No contexto do ensino de Ciências, tal identificação possibilita tanto a aprendizagem de Ciências (e.g., aprendizagem dos significados e aplicações dos conceitos, modelos e teorias científicas) como sobre Ciências (e.g., aprendizagem sobre como o conhecimento científico é construído imerso em um contexto histórico e social).

A partir do significado assumido neste artigo, diversos tipos de proposições científicas podem ser denominadas de hipóteses. Algumas delas, como a de que a matemática é a linguagem mais simples e livre de erros e obscuridades, frequentemente assumida nos séculos XVIII e XIX, como será debatido adiante, claramente decorrem de concepções epistemológicas compartilhadas na comunidade científica. Outras, como a assunção de que os fenômenos do calor podem ser entendidos supondo que a matéria é constituída por elementos infinitesimais que interagem com seus vizinhos, podem parecer independentes do contexto social quando, como veremos adiante, podem não ser.

Procurando enfatizar o caráter social da construção do conhecimento, assim como os fundamentos que sustentam a Ciência, apresentamos neste artigo uma proposta de categorização didática de hipóteses científicas. Argumentamos que tal estruturação proporciona uma alternativa para a análise de episódios históricos em contextos educacionais que possibilita a explicitação das relações entre elementos sociais e epistêmicos no fazer científico, favorecendo a compreensão da Física e sobre a Física de forma integrada, proporcionando reflexões sobre os elementos objetivos e subjetivos do fazer científico concomitantemente. Estabelecendo três categorias de hipóteses (cosmovisivas, ontológicas e representacionais), discutimos a relação dessa proposta com discussões didáticas, e apresentamos algumas possibilidades de seu uso no contexto didático e ilustramos o papel delas em dois episódios históricos: a construção de equação geral do calor e o desenvolvimento da equação de Schrödinger. Entendemos que tal categorização em contextos didáticos é frutífera para a concretização de um ensino de Ciências que entrelace a aprendizagem de Ciências e a aprendizagem sobre Ciências.

2. Hipóteses Científicas e Modelos Científicos

A importância do conceito de hipótese é amplamente reconhecida na área de educação em Ciências [8[8] M. Kim, Y.J. Joung e H. Yoon, em: Issues and Challenges in Science Education Research, editado por K.C.D. Tan e M. Kim (Springer, Berlin, 2012)., 9[9] J. Park, International Journal of Science Education 28, 469 (2006)., 10[10] M. Wenham, International Journal of Science Education 15, 231 (1993).]. Seu papel na construção de explicações científicas, na metodologia científica, e na resolução de problemas tem sido muito debatido, principalmente em estudos focados na aprendizagem sobre elementos da NdC (e.g., [11[11] J. Gyllenpalm e P. Wickman, International Journal of Science Education 33, 1993 (2011)., 12[12] O. Ioannidou e S. Erduran, Science & Education 30, 345 (2021).]). Apesar da centralidade desse conceito no fazer científico, ele é um termo polissêmico.

No contexto da pesquisa em educação em Ciências, o entendimento de hipótese como explicação ou solução tentativa/sugerida tem sido o mais explorado [9[9] J. Park, International Journal of Science Education 28, 469 (2006)., 10[10] M. Wenham, International Journal of Science Education 15, 231 (1993).], ainda que esse conceito também seja frequentemente assumido como uma descrição ou predição [10[10] M. Wenham, International Journal of Science Education 15, 231 (1993).]. Em contextos informais, é comum o entendimento de que uma hipótese é um “palpite educado”, o que tem promovido confusões entre esse conceito e o termo predição, por exemplo [13[13] W.F. McComas, em: Nature of science in science instruction, editado por W.F. McComas (Springer Nature, Switzerland, 2020)., 14[14] P.K. Strode, The American Biology Teacher 77, 500 (2015).]. Neste artigo, assumimos uma posição próxima das concepções de filósofos da Ciência como Giere [15[15] R.N. Giere, Understanding scientific reasoning (Holt, Rinehart & Winston, Forth Worth, 1991).], Bunge [16[16] M. Bunge, Diccionario de Filosofía (Siglo XXI Editores, Ciudad de México, 2005).] e Abbagnano [17[17] N. Abbagnano, Dicionário de Filosofia (Martins Fontes, São Paulo, 2007).]. Para esses autores, hipóteses são proposições que vão além das evidências; são afirmações que excedem o conteúdo de eventos possivelmente experienciáveis. A afirmação de que a trajetória percorrida pela luz ao se propagar de um ponto a outro no espaço é aquela que minimiza o tempo despendido no percurso, por exemplo, que é conhecida como “Princípio de Fermat”, excede o conteúdo proveniente da experiência na medida em que generaliza o comportamento da luz. É, portanto, uma hipótese e, ao estabelecer um comportamento para todas as ondas eletromagnéticas, é, assim como qualquer enunciado universal, uma proposição incontrastável por meio de um número finito de experiências. Abbagnano [17[17] N. Abbagnano, Dicionário de Filosofia (Martins Fontes, São Paulo, 2007)., p. 500], em seu dicionário de filosofia, destaca tal propriedade argumentando que uma hipótese é um enunciado “que só pode ser comprovado, examinado e verificado indiretamente, através das suas consequências”. O autor complementa dizendo que “a característica da hipótese é que ela não inclui nem garantia de verdade nem a possibilidade de verificação direta”. Desse modo, o conhecimento científico se estabiliza na medida em que as consequências das hipóteses são examinadas, debatidas e contrastadas. De forma semelhante ao defendido por Popper [18[18] K. Popper, Conjecturas e Refutações (Editora da UnB, Brasília, 2008).], ainda que a teorização, nessa perspectiva, preceda a empiria, a empiria, focada na contrastação das consequências das hipóteses, possui papel relevante na legitimação do conhecimento.

Enunciados verificáveis diretamente, como costumam ser as predições científicas, não são, portanto, hipóteses na concepção que assumimos; o grau de verdade das hipóteses, independentemente do critério de significação adotado, é produto da contrastação das suas instanciações, ou seja, da sua aplicação em casos contrastáveis. A lei de Snell, por exemplo, dedutível do princípio de Fermat, pode ser entendida como uma instanciação dessa hipótese; no entanto, por ser uma afirmação científica geral, também é uma hipótese. É consequência dessa lei que os ângulos de incidência e de refração, medidos em laboratório, de um feixe estreito de luz que atinge um prisma se relacionam conforme as predições da lei. Destaca-se neste exemplo que as instanciações das hipóteses científicas se referem a eventos específicos, e a verificação em laboratório desses eventos proporciona uma corroboração empírica tanto para o princípio de Fermat quanto para a lei de Snell. Não se trata de uma suposta “prova” dessas hipóteses, mas da corroboração de uma das suas instanciações.

As implicações filosóficas da corroboração empírica das instanciações de uma hipótese podem ser fortemente dependentes do critério de significação assumido. Analisando o exemplo explorado, em abordagens pragmáticas, por exemplo, assumindo que as construções teóricas ganham o status de verdade na medida em que apresentam resultados satisfatórios [19[19] E.R. Cruz, Interações 15, 470 (2020).], a corroboração empírica da lei de Snell é um indício de que ela é verdadeira, mas tal concepção não implica qualquer compromisso com a perspectiva de que tal lei representa uma realidade objetiva, independente de um ser cognoscente. De modo distinto, em teorias da verdade por correspondência [19[19] E.R. Cruz, Interações 15, 470 (2020).], a corroboração da lei de Snell pode ser interpretada como um indício de que ela representa de forma aproximada uma realidade objetiva. Já em teorias de verdade por consenso, a lei de Snell é assumida como verdadeira na medida em que a comunidade científica passa a assumi-la como tal. As hipóteses, portanto, não são verdadeiras ou falsas objetivamente. O significado e o sentido delas é dependente de uma confluência de valores, crenças e atitudes de uma pessoa ou de uma comunidade.

Giere [7[7] R.N. Giere, em: Testing scientific theories, editado por J. Earman (University of Minnesota Press, Minneapolis, 1983)., p. 28] destaca que “todas as afirmações científicas gerais são hipóteses”. Indo ao encontro disso, Bunge [16[16] M. Bunge, Diccionario de Filosofía (Siglo XXI Editores, Ciudad de México, 2005)., p. 97] afirma que uma hipótese “abarca mais do que os dados sugerem ou confirmam”. Fica claro nessas afirmações que predições não são hipóteses nessa perspectiva, pois costumam tratar de enunciados sobre eventos singulares, como a evolução, por exemplo, de experimentos científicos. Fica claro também que o conhecimento científico é, em grande parte, hipotético. Isso não significa, no entanto, assumir que todo conhecimento científico possui o mesmo status. O empreendimento científico engloba muitos tipos de hipóteses. Algumas são amplamente corroboradas e, consequentemente, aceitas pela comunidade científica, como o princípio de Fermat é atualmente no campo da Física. Outras são cercadas de dúvidas e controvérsias, como foram as hipóteses sobre a essência da função de onda mobilizadas durante os debates travados entre Schrödinger e Heisenberg nos primórdios da Teoria Quântica.

A categorização das hipóteses científicas não se encerra com a avaliação do status de confiabilidade dos enunciados. Bunge [20[20] M. Bunge, La investigación científica: Su estrategia e su filosofía (Editora Ariel, Barcelona, 1989).], por exemplo, categoriza hipóteses em termos de, entre outras coisas, seus alcances, especificidades, origens e funções. Giere [15[15] R.N. Giere, Understanding scientific reasoning (Holt, Rinehart & Winston, Forth Worth, 1991).] diferencia as hipóteses teóricas das estatísticas e das causais. Poincaré [21[21] H. Poincaré, La Science et l’Hypothèse (Flammarion, Paris, 1902).], por sua vez, definiu categorias de hipóteses denominadas verificáveis, naturais, indiferentes e aparentes. Não está no escopo deste artigo dissertar sobre especificidades das categorizações desses autores. Uma proposta de categorização sintética, que abarca fatores epistêmicos e sociais, é exposta na próxima seção, a qual pode ser útil em processos de investigação histórica bem como para o uso na sala de aula. Para a continuidade deste artigo, no entanto, se faz necessária uma compreensão sobre o papel das hipóteses no desenvolvimento do conhecimento científico, particularmente na construção, no uso e na validação de modelos científicos.

Afirma-se que Lev Landau, físico agraciado com o Prêmio Nobel em 1962, teria dito que “a parte mais importante do fazer física é o conhecimento de aproximação” [22[22] O. Allanson, Theory of One-Dimensional Vlasov-Maxwell Equilibria (Springer International Publishing, 2018)., p. 1]. Indo ao encontro de Landau, Bunge [23[23] M. Bunge, Teoria e Realidade (Editora Perspectiva, São Paulo,1974)., p. 13] afirma que “a conquista conceitual da realidade começa, o que parece paradoxal, por idealizações”. Falamos em gases ideais, fluidos incompressíveis, campos uniformes, e em muitos outros construtos que só existem devido à criatividade dos cientistas na busca por representar, ainda que de forma simplificada, a realidade. Os meios isotrópicos representados na lei de Snell, por exemplo, são produtos de uma idealização pertinente para o campo da ótica e que é considerada adequada em condições específicas. A apreensão da realidade por parte dos cientistas passa, portanto, pela construção de modelos científicos fundamentados em descrições simplificadas de objetos e/ou eventos reais (ou supostos como tais).

Em uma perspectiva realista, os modelos científicos são, portanto, representações simplificadas da realidade, estabelecendo relações, usualmente formalizadas e exploradas por meio da linguagem matemática, entre variáveis e parâmetros. É preciso destacar aqui que tal perspectiva não implica na noção de que a realidade é plenamente acessível à Ciência, já que modelos científicos nunca são cópias da realidade, e sim representações dela. Giere [7[7] R.N. Giere, em: Testing scientific theories, editado por J. Earman (University of Minnesota Press, Minneapolis, 1983)., p. 23] sintetiza a importância desses modelos ao dizer que “entender a ciência requer saber algo sobre modelos e sobre como eles são usados”. O autor complementa dizendo que a assunção de que um modelo representa um fenômeno com suficiente precisão é uma hipótese teórica. Para ele, os cientistas não buscam avaliar se um modelo é verdadeiro, mas buscam avaliar se o modelo é adequado para representar um objeto e/ou evento com suficiente precisão, ou seja, buscam avaliar se é verdadeira a afirmação de que um modelo é verdadeiro. Dentro dessa perspectiva, que se aproxima de uma abordagem pragmática, assumir que o meio de propagação de um feixe de luz real pode ser representado como isotrópico é uma hipótese. Os cientistas, por sua vez, buscam avaliar se é verdadeira a afirmação de que a lei de Snell, que pressupõe essa hipótese, representa a refração de um feixe de luz entre dois meios específicos com suficiente precisão.

A importância das hipóteses na apreensão da realidade é tal que Bunge [16[16] M. Bunge, Diccionario de Filosofía (Siglo XXI Editores, Ciudad de México, 2005).] define uma teoria (específica ou geral) como um sistema hipotético-dedutivo, ou seja, como um conjunto de proposições composto por hipóteses e por suas consequências lógicas. Não se trata aqui de uma compreensão da construção do conhecimento científico como um processo linear, em que as hipóteses e suas consequências se organizam em uma relação hierárquica, em que as consequências são derivadas por meio do exclusivo uso da lógica baseada em princípios estabelecidos, em um processo desprovido de significado físico. Trata-se do entendimento de que os conhecimentos científicos se organizam, em grande parte, a partir de proposições hipotéticas e suas consequências lógicas. Por exemplo, a lei de Snell, imbricada no corpo de conhecimento da Teoria Eletromagnética, pode ser deduzida do princípio de Fermat (um axioma) e da idealização de meios isotrópicos, ou seja, ela pode ser entendida como uma consequência lógica de hipóteses básicas. Sintetizando esse processo, Bunge [22[22] O. Allanson, Theory of One-Dimensional Vlasov-Maxwell Equilibria (Springer International Publishing, 2018).] denomina de modelo conceitual a descrição simplificada que fundamenta a construção dos modelos científicos, ou seja, o objeto, repleto de idealizações e aproximações, que origina a representação produzida pelo modelo. A passagem de um feixe de luz de um meio para outro, por exemplo, pode ser representada por um modelo conceitual que considera os dois meios isotrópicos e o feixe de luz como um raio de luz. O uso de teorias gerais (e.g., a Teoria Eletromagnética) na construção de uma representação desses modelos conceituais dá origem, então, a modelos científicos (e.g., a lei de Snell).

Ingenuamente, pode-se pensar que a proposição de hipóteses científicas envolve um processo individual e racional, pautado essencialmente pelos conhecimentos prévios de quem investiga a realidade. Na verdade, as idealizações e aproximações assumidas nos modelos científicos são profundamente influenciadas pela história de um determinado campo de conhecimento. Por exemplo, Euclides de Alexandria fez importantes investigações sobre a reflexão da luz em espelhos pautado pela noção de raio de luz. Em decorrência dos seus estudos, seus modelos, assim como a hipótese de que feixes de luz podem ser representados como raios de luz, influenciaram grande parte dos matemáticos e filósofos da Grécia antiga [24[24] J.M.F. Bassalo, Caderno Catarinense de Ensino de Física 3, 138 (1986).]. A ótica geométrica se constitui então sustentada sobre a noção de raio de luz. Um cientista, nos dias de hoje, que assume essa idealização na construção de modelos teóricos não está, portanto, tomando uma decisão original, e sim dando continuidade a um campo de pesquisa, herdando hipóteses (incluindo idealizações) que foram propostas e exploradas muito tempo atrás.

Além disso, o fazer científico é dirigido também por hipóteses que, sobretudo, têm origem em concepções filosóficas amplamente debatidas por cientistas no decorrer da história; são hipóteses frequentemente fundamentadas em pressupostos metafísicos. Fermat, por exemplo, foi dirigido em seus estudos pela hipótese de que “o princípio da física é que a natureza realiza seus movimentos pelos caminhos mais simples” [25[25] C.C. Laranjeiras, J.L. Silva e J.R.N. Chiappin, Revista Brasileira de Ensino de Física 39, e4602 (2017)., p. 9]. Tais hipóteses, ainda que menos explícitas na difusão do conhecimento, fundamentam a heurística adotada pelos cientistas, desempenhando um papel central nos seus trabalhos.

A tomada de decisão sobre as hipóteses assumidas na construção dos modelos científicos é, portanto, resultado de uma complexa relação entre as características do objeto ou evento representado, as concepções do(s) cientista(s) que modela(m), e as teorias e visões de mundo hegemônicas nos diferentes períodos históricos. No contexto do ensino de Física, a discussão dessas hipóteses, acompanhada de debates sobre o caráter representacional do conhecimento, é uma alternativa promissora para se demonstrar a interação entre elementos sociais e individuais do trabalho científico, proporcionando situações que evidenciam o caráter humano do fazer científico, frutíferas para a aprendizagem da NdC.

3. Uma Proposta de Categorização das Hipóteses Científicas

Como discutimos, toda afirmação cujo conteúdo excede o conteúdo empírico de uma pesquisa pode ser considerada uma hipótese. Tal definição engloba, portanto, uma grande variedade de afirmações, com diferentes status epistêmicos e com diferentes relações com o contexto social. Nesse sentido, diferenciar as hipóteses em diferentes categorias pode ser uma ferramenta útil para entender o processo de criação científica bem como para comparar diferentes propostas teóricas. Ao analisar e interpretar as hipóteses presentes em um trabalho, consegue-se organizar melhor nosso entendimento sobre o próprio conteúdo do trabalho (fatores epistêmicos) bem como suas relações com aspectos extrínsecos à própria prática científica (fatores sociais ou culturais).

Nossa proposta é categorizar as hipóteses de duas formas diferentes: uma com relação à natureza da hipótese, e a outra com relação ao seu papel na estrutura lógica da Teoria. Com relação à natureza da hipótese, propomos que essas sejam classificadas em três tipos: hipóteses cosmovisivas, hipóteses ontológicas e hipóteses representacionais. Deve-se ter clareza, entretanto, que tais categorias não são rígidas nem fixas. Enquanto uma afirmação pode ser uma hipótese ontológica em um trabalho, ela pode ser considerada representacional em outro. Na verdade, em um mesmo trabalho, podemos ver o autor alternar o status de suas hipóteses, conforme exemplos que daremos a seguir.

3.1. Quanto à natureza das hipóteses: cosmovisivas, ontológicas e representacionais

Primeiramente, podemos classificar as hipóteses em dois grandes grupos. O primeiro grupo compreende todas as hipóteses que servem como pano de fundo para a pesquisa física sem tratar propriamente do fenômenos a ser estudado – chamamos esse conjunto de hipóteses cosmovisivas. No segundo grupo, há hipóteses específicas sobre o fenômeno a ser estudado; essas hipóteses dividem-se em ontológicas e representacionais, como é sintetizado na Figura 1.

Figura 1
Categorização de hipóteses científicas.

Hipóteses cosmovisivas são aquelas que não informam sobre um fenômeno específico, mas se comprometem com afirmações metafísicas ou epistemológicas em um contexto mais amplo. Por exemplo, “existe uma realidade objetiva”, “é possível conhecer a realidade”, “a matemática é a fonte mais confiável de conhecimento”, “o experimento é a única fonte confiável de conhecimento”. Tais afirmações não envolvem a descrição de um fenômeno específico ou uma classe de fenômenos. Elas indicam uma visão da realidade e como nos relacionamos com essa realidade. Assim, elas podem não aparecer explicitamente na teoria, mas guiam o processo de pesquisa. A escolha por privilegiar resultados experimentais ou por investir em determinados métodos matemáticos pode ser resultado de uma hipótese cosmovisiva.

Como afirma Bunge [20[20] M. Bunge, La investigación científica: Su estrategia e su filosofía (Editora Ariel, Barcelona, 1989).], toda física esconde uma metafísica. Isto é, as teorias científicas apresentam, de forma explícita ou implícita, uma visão sobre a realidade. Não somente isso, mas se comprometem com uma visão sobre o conhecimento e, se quisermos ir mais adiante, com certos valores éticos, políticos e estéticos. Como amplamente discutido na literatura, teorias científicas estão conectadas a cosmovisões [26[26] M.R. Matthews, Science, Worldviews and Education (Springer, Berlin, 2009).]. Não são apenas as teorias científicas, entretanto, que se comprometem com cosmovisões. As mais diferentes esferas da cultura também as apresentam, como as religiões, as doutrinas políticas, e cultura em geral (filmes, música, artes). Todos nós somos submetidos a cosmovisões em toda nossa vida. Nesse sentido, há questões de interesse da ciência que também são objeto de interesse de outras áreas sociais. Não somente a cosmovisão da ciência pode impactar a forma como a sociedade concebe o mundo, mas, também, a adoção de certas hipóteses cosmovisivas podem ser motivadas pelo momento cultural em que um cientista vive. A busca por unificação das teorias física em Einstein pode ter tido influência da cultura judaica; a visão “gestaltica” de Bohr em suas pesquisas no início da Teoria Quântica podem ter influência da filosofia de Harald Høffding; a busca de uma interpretação materialista e causal para Mecânica Quântica por Bohm pode ter influência de seus estudos marxistas, entre vários outros. O reconhecimento das hipóteses cosmovisivas, portanto, nos abre uma porta para discutirmos a relação entre ciência e cultura em uma forma mais ampla, considerando como o contexto sócio-histórico pode ter impactado a concepção de uma determinada teoria ou produção científica.

Obviamente, a identificação das relações entre contexto social e a construção da teoria é um processo complexo e que está submetido a um grau maior de subjetividade. Assim, reconhecer hipóteses cosmovisivas não é um processo objetivo, mas uma forma de explicitar possíveis influências culturais no pensamento dos cientistas. A identificação dessas hipóteses é tão melhor quanto melhores forem os registros históricos que a subsidia. Apenas para dar um exemplo, discutiremos no artigo a influência do positivismo no trabalho de Fourier, que aparece, por exemplo, em sua valorização da matemática. Alguém poderia argumentar que outros cientistas, como Galileu, também valorizavam a matemática e não eram positivistas. Então, como podemos afirmar que Fourier teve influência do positivismo? Há registros históricos concretos de que Fourier foi muito próximo de Auguste Comte, pai do positivismo. Em uma de suas obras, Comte inclui uma dedicatória a Fourier, como um exemplo de pensador sobre a Natureza que usa os princípios positivistas. Nesse caso, portanto, o uso de fontes primárias e secundárias nos ajudam a identificar as hipóteses cosmovisivas com maior segurança.

As hipóteses ontológicas, por sua vez, afastam-se das afirmações metafísicas e epistemológicas mais genéricas e se relaciona diretamente com os entes a serem descritos pelo modelo ou teoria. Afirmações sobre como um ente da realidade é ou sobre como ele deve se comportar são, na categorização que propomos, hipóteses ontológicas. Por exemplo, “o calor é um fluido”, “espaço e tempo são absolutos e independentes”, “a luz é um fenômeno ondulatório”, “a luz é um fenômeno corpuscular”, “o átomo é indivisível”.

Hipóteses ontológicas podem derivar tanto de fatores epistêmicos quanto sociais. Por exemplo, ao fazer um experimento que evidencia a difração da luz, os cientistas chegam na afirmação de que “a luz é um fenômeno ondulatório”. Podemos dizer que é a interpretação do fenômeno em conjugação com a teoria ondulatória que sugere a afirmação de que a luz é uma onda. Por outro lado, quando alguém afirma que a Terra é o centro do sistema planetário, tal afirmação pode ser fruto tanto de uma interpretação de sua observação pessoal (a Terra parece estar parada enquanto tudo move) quanto resultado do próprio sistema cultural, educacional ou religioso que ensina que a Terra está no centro. Assim, a relação de uma hipótese ontológica com o contexto social e com fatores epistêmicos depende de cada caso.

Por fim, temos as hipóteses representacionais, as quais envolvem uma transformação do fenômeno observado para que ele possa ser estudado à luz de uma teoria vigente. Por exemplo, “vamos considerar uma barra como sendo um objeto unidimensional”, “a massa do fio é muito pequena quando comparada com a do corpo suspenso”, “os efeitos de fronteira podem ser desprezados”, “não vamos considerar o atrito”, “não vamos considerar a resistência do ar”.

A diferença entre a hipótese ontológica e a representacional é que a primeira afirma como algo é ou deve se comportar enquanto a segunda afirma uma representação (simplificação ou transformação do fenômeno) para fins de análise teórica, reconhecendo que aquela característica não é algo essencial ao fenômeno. Nos exemplos citados, o cientista sabe que a barra não é um objeto unidimensional, mas, para o problema estudado, tal simplificação pode ser frutífera. Há casos, entretanto, que tal diferença não é tão nítida. Quando Einstein afirma que a luz é composta por partículas, ele está propondo que a luz é, de fato, assim ou que ela pode ser representada assim? Na verdade, o próprio autor parece oscilar entre essas duas posições no início de seu artigo:

[] fenômenos associados à produção ou conversão da luz podem ser melhor compreendidos se assumirmos que a energia da luz é distribuída de forma descontínua no espaço. De acordo com a hipótese a ser contemplada aqui, quando um raio de luz se propaga a partir de um ponto, a energia não se distribui continuamente em espaços sempre crescentes, mas consiste em um número finito de quanta de energia que se localizam em pontos no espaço, movem-se sem dividindo, e pode ser absorvido ou gerado apenas como um todo [27[27] A. Einstein, On a Heuristic Point of View Concernig the Production and Transformation of Light (1905), disponível em: https://einsteinpapers.press.princeton.edu/vol2-doc/185#, acessado em 11/04/2023.
https://einsteinpapers.press.princeton.e...
, p. 87].

Observamos que, inicialmente, Einstein apenas diz que fenômenos podem ser melhor entendidos se considerarmos a luz como sendo distribuída descontínuamente, ou seja, parece sugerir que é uma hipótese representacional, algo que propomos para entender melhor como a natureza funciona. Imediatamente na sequência, entretanto, Einstein afirma que a hipótese a ser assumida é que a luz consiste de quanta, uma hipótese ontológica.

Assim, quando queremos entender um trabalho histórico, a primeira tarefa que temos é examinar e analisar quais tipos de hipóteses estão presentes. Algumas questões, sintetizadas no Quadro 1, podem dirigir esse trabalho. Por exemplo, para a identificação das hipóteses cosmovisivas, podemos nos questionar sobre o que o autor afirma sobre a realidade e o conhecimento. Enquanto as hipóteses ontológicas e representacionais usualmente aparecem de forma explícita no texto, as hipóteses cosmovisivas podem ser mais difíceis de serem apreendidas, talvez demandando um estudo mais profundo sobre aquela obra e o contexto histórico em que foi produzida ou a leitura de fontes históricas secundárias. Além disso, pode-se questionar se as hipóteses ontológicas derivam de algum conhecimento teórico-empírico ou são fruto de noções culturais de uma época. Novamente, nesse caso, fontes históricas secundárias são importantes para ajudar na compreensão de um texto histórico. Pensando em termos de atividades didáticas, o professor tem papel fundamental em selecionar tanto os trechos históricos das fontes primárias como as fontes secundárias que podem ajudar os alunos a interpretar os textos que estão estudando.

Quadro 1:
Tipos de hipóteses e exemplos de questões que podem guiar a identificação delas.

3.2. Quanto ao papel lógico das hipóteses: axiomas iniciais, assumidos posteriormente e derivações

A segunda forma que propomos para classificar as hipóteses é de acordo com o papel lógico que elas desempenham na estrutura de uma produção científica. Em especial, temos hipóteses a priori (ou axiomas iniciais), assumidas como verdadeiras no início de um trabalho teórico; hipóteses de segunda, terceira ou qualquer ordem mais alta, que não são derivadas de hipóteses anteriores, mas que surgem apenas ao longo do trabalho teórico, por necessidades adicionais surgidas ao longo da resolução do próprio problema (o que chamamos de axiomas assumidos posteriormente), e derivações, que são afirmações obtidas a partir do desenvolvimento teórico-matemático com hipóteses anteriores. Essencialmente, a identificação do papel lógico das hipóteses é dirigida pela seguinte questão: A hipótese é assumida em que momento da derivação das ideias?

A classificação das hipóteses com relação à sua natureza nos permite identificar com diferentes afirmações em uma produção científica se relacionam com o contexto social ou com a própria elaboração epistêmica, bem como nos permite diferenciar os compromissos metafísicos e epistemológicos, as noções sobre como certos entes são e se comportam e o que é uma simples simplificação da realidade. Por outro lado, a classificação das hipóteses com relação ao seu papel na estrutura lógica da teoria nos permite diferenciar o que é assumido inicialmente, sem nenhuma derivação prévia, do que não possui derivação, mas surge somente ao longo do desenvolvimento como uma necessidade do próprio problema e o que é resultado de construções anteriores, não sendo uma afirmação totalmente nova; mas uma consequência lógica da teoria. Assim, quando nos deparamos com equações importantes da Física, como a relação entre momentum e comprimento de onda de de-broglie, a equação de Schrödinger ou as relações de incerteza de Heisenberg, podemos identificar, nos textos originais, que elas são derivações e não axiomas. Mais do que isso, podemos identificar quais foram os axiomas necessários para derivar tais equações e, assim, entender qual é a construção lógica por trás de cada afirmação científica. No Quadro 2, sintetizamos as categorias didáticas de hipóteses que propomos neste trabalho. Na próxima seção, exploramos tais categorias na análise de dois episódios históricos.

Quadro 2:
Diferentes tipos de hipóteses científicas.

4. Aplicando o Sistema de Classificação de Hipóteses no Contexto Didático e da Pesquisa em Ensino de Física

Conforme discutimos na introdução do artigo, a área de Ensino de Física e de Ensino de Ciências têm indicado reiteradamente a importância de ensinarmos não somente ciência mas sobre ciência nas aulas de Física, passando aos alunos uma concepção sobre o que é ciência, o que não é ciência, por que a ciência é confiável etc. Nesse sentido, muitos pesquisadores têm trabalhado no campo de desenvolver discussões sobre NdC no contexto didático e, em especial, usar a história como caminho para promover essa discussão.

Por outro lado, esse movimento pode, se realizado de forma inadvertida, implicar uma desvalorização dos próprios conteúdos das ciências. Ou seja, o raciocínio poderia ser: se precisamos investir tempo para discutir a natureza da ciência, perde-se tempo para discutir a própria Física. A nossa proposta vai justamente ao encontro da necessidade de promover propostas que viabilizem a discussão sobre NdC sem reduzir a discussão sobre os conceitos da Física. Ao mesmo tempo em que os alunos aprendem o que é a função de onda de Schrödinger, por exemplo, também discutem como a ciência funciona. Assim, o dispositivo construído tem potencial de contribuir para o entendimento da NdC e da própria Física. A defesa didática que estamos realizando, portanto, é de que introduzir episódios históricos da Física usando o dispositivo proposto contribui de duas formas: i. no entendimento da ciência, e ii. na compreensão da própria Física. A primeira contribuição é direta: ao discutir o papel das hipóteses na Ciência, bem como seus diferentes níveis, permitimos que os alunos discutam o processo de modelagem científica, bem como as possíveis influências que uma teoria recebe do seu contexto social sem, com isso, deixar de enfatizar que essa é uma construção hipotético-dedutiva, e, portanto, racional e confiável.

Entendemos que diferentes teorias de ensino e aprendizagem também fundamentam a ideia de que o uso da história da ciência, apresentada em um esquema lógico propício como o que apresentamos, pode ser uma caminho frutífero de aprendizagem.

Karam e Lima [28[28] R. Karam e N. Lima, em: Connecting Research in Physics Education with Teacher Education 3, editado por J. Guisasola e E. McLoughlin (The International Commission on Physics Education, Dublin, 2022)., p. 22] discutem, a partir de um texto pedagógico do fim do século XIX, que o uso de história possui vários benefícios para o aprendizado de Física: o aluno percebe a importância do esforço contínuo para conseguir entender o fenômeno (percebendo que aquelas ideias não são óbvias para ninguém); o aluno pode perceber também como nossas concepções iniciais podem falhar na descrição da realidade, o que reforça a importância a verificar se nosso entendimento está de acordo com as previsões experimentais; e, por fim, a história mostra que não basta fazer um único experimento para que um conceito seja estabelecido, então ela também adverte contra concepções ingênuas sobre o próprio aprendizado. Se fizermos uma análise dessa discussão à luz de debates contemporâneos, podemos afirmar que o estudo da história da ciência viabiliza no discente um desenvolvimento de sua metacognição, na medida em que ele passa a estudar a própria evolução do conhecimento, e não como ele está na sua forma pronta.

Karam [29[29] R. Karam, Revista Brasileira de Ensino de Ciências e Matemática 4, 1067 (2021).], entretanto, faz uma advertência: não é qualquer episódio e qualquer forma de história que permite aprender Física. O docente precisa escolher, previamente, um episódio em que haja uma discussão substancial de um assunto relevante e que seja de compreensão dos estudantes. Ainda que não seja fácil encontrar tais episódios, uma procura cuidadosa nos permite encontrar elementos que possam ser úteis para sala de aula (como mostraremos a seguir).

Nesse sentido, não só a escolha do episódio é importante, mas a forma como a história vai ser contada. Uma história enciclopédica ou pautada apenas em aspectos externos da ciência dificilmente contribui para o entendimento conceitual da teoria. Mas contar uma história organizada pela estrutura de hipóteses que fizemos, por exemplo, permite que os discentes invistam tempo organizando a estrutura lógica da teoria, entendendo seus diferentes elementos e como eles dialogam entre si no corpo da teoria. Assim, a apresentação de episódios históricos com o uso do quadro proposto tem potencial de viabilizar um entendimento do processo de desenvolvimento de um conceito científico, de forma organizada e estruturada, o que facilita o aprendizado.

Essa facilidade que o dispositivo analítico pode promover no aprendizado pode ser justificada primeiramente por meio da Teoria da Aprendizagem Significativa Crítica [30[30] M.A. Moreira, em: Aprendizagem Significativa Crítica (Porto Alegre, 2010), disponível em: https://www.if.ufrgs.br/~moreira/apsigcritport.pdf
https://www.if.ufrgs.br/~moreira/apsigcr...
]. Lima e Rosa [31[31] N. Lima e C. Rosa, Espaço Pedagógico 29, 484 (2022).] discutem detalhadamente como o uso da história da ciência viabiliza a aprendizagem significativa crítica. Os autores também apresentam um conjunto de cuidados didáticos a serem tomados para potencializar a possibilidade de aprendizagem significativa crítica. Entre elas, ressaltam que a abordagem histórica precisa ter uma apresentação consistente epistemologicamente. Isto é, toda discussão histórica enseja uma concepção sobre a ciência. Assim, precisamos ter explícita que concepção é essa. Nesse caso, o uso do dispositivo analítico que construímos é uma possibilidade de apresentar episódios históricos na aula de Física com a garantia de ter um quadro epistemológico construído para esse propósito.

Por fim, ainda ressaltamos que, no contexto da Teoria Antropológica do Didático, Chevallard ressalta que a origem da “perda de sentido” de uma obra decorre do desconhecimento da sua razão de ser (raison d’être) [32[32] Y. Chevallard, Journal de la Théorie Anthropologique du Didactique & Ingénierie Didactique du Développement (2009), disponível em: http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip/IMG/pdf/journal-tad-idd-2009-2010-3.pdf, acessado em 11/04/2023.
http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip...
], ou seja, decorre da ocultação da intenção que dirigiu a sua criação ou difusão em uma instituição específica, assim como do uso (ou usos) que se pretende fazer dela e da a utilidade que se reconhece nela. Uma alternativa para se resgatar uma razão de ser de um conhecimento é a análise histórica. Por exemplo, os alunos podem aprender a noção de função de onda de Schrödinger, mas por que Schrödinger pensou nisso? Quais eram suas preocupações? O que ele queria resolver? Normalmente, esses elementos não estão nos livros didáticos. Isso pode criar um obstáculo no aprendizado, uma vez que o aluno não consegue ver sentido para o estudo daquele conceito. Ao trazer a história da ciência, permitimos que essa raison d’être seja resgatada, o que permite ao discente atribuir sentido ao estudo do conceito e se engajar nas tarefas didáticas. Novamente, a forma de apresentar a história para que esse ganho de sentido ocorra depende do uso de um quadro epistemológico consistente que ressalta o processo de construção da teoria.

Assim, ressaltamos que, do ponto de vista didático, o uso de história da ciência a partir de uma concepção epistemológica consistente tem potencial de promover uma aprendizagem significativa e com sentido. Essa proposta deve ser levada de forma a promover engajamento e permitir que os alunos se dediquem ao estudo e análise dos episódios históricos. Uma apresentação histórica enciclopédica ou puramente propedêutica não garante a melhoria na aprendizagem.

A discussão apresentada neste artigo, em especial, demanda uma compreensão mais profunda e madura da ciência, o que é adequado no contexto de formação inicial e continuada de professores. A proposta pode ser usada em disciplinas específicas de História da Ciência, ou em unidades didáticas pontuais que tragam estudos históricos nas aulas de Física. Tanto no contexto didático quanto na própria pesquisa em Ensino de Física, a proposição epistemológica apresentada neste artigo pode ser utilizada com diferentes objetivos e em diferentes contextos. Em especial, apontamos algumas possibilidades:

  • i)

    Investigações históricas – embora esse não seja o foco do artigo, entendemos que a presente discussão pode ser utilizada em uma reconstrução da história dos conceitos científicos [33[33] H. Kragh, An Introduction to the historiography of science (Cambridge University Press, Cambridge, 1987).]. Assim, ao analisar trabalhos históricos, pode-se investigar as hipóteses presentes, classificá-las em seus diferentes tipos, e relacionar essa estrutura hipotética com o contexto social. Dessa forma, consegue-se avaliar que elementos de determinada proposição científica são oriundos de um contexto cultural e quais são internos ao desenvolvimento da própria comunidade científica. Tal visão permite uma integração da dimensão social e epistêmica do empreendimento científico.

  • ii)

    Narrativas didáticas – conforme defendido por Michael Matthews [34[34] N.W. Lima, Review of Science, Mathematics and ICT Education 15, 101 (2022).], o uso de história e filosofia da ciência no ensino de ciências não precisa, necessariamente, demandar uma metodologia e tempo exclusivos para sua apresentação. Todo professor de Física apresenta leis, teorias, modelos, hipóteses. Ele pode, ao longo dessa apresentação, fazer uma discussão sobre o significado desses termos epistemológicos. Da mesma forma, ao apresentar um determinado conceito, um professor pode explicar sua origem e desenvolvimento, explicando quais hipóteses (e de que tipos) estavam presentes. Por exemplo, em vez de simplesmente derivar a equação do calor, o professor pode discutir quais hipóteses foram assumidas por Fourier, quais eram as hipóteses cosmovisivas e ontológicas, como isso se relaciona com seu contexto, e quais eram suas hipóteses representacionais. No fim, a derivação levará à equação do calor; mas, além de conhecer a equação, os alunos entenderão os aspectos epistêmicos e sociais envolvidos em sua proposição original. O mesmo pode ser feito para qualquer outro conceito ou equação.

  • iii)

    Atividades didáticas de investigação histórica – uma alternativa metodológica seria pedir para que os alunos estudem partes de textos históricos e eles mesmos identifiquem as hipóteses e seus tipos. Isso pode ser feito em uma proposta de jogo epistêmico, como é proposto por Garik et al. [35[35] P. Garik, L. Garbayo, Y. Benétreau-Dupin, C. Winrich, A. Duffy, N. Gross, e M. Jariwala, Science & Education 24, 387 (2015).]. Pode-se apresentar uma matriz com os diferentes tipos de hipóteses e alguns trabalhos históricos sobre o mesmo conceito. Os alunos podem, então, identificar as hipóteses nos trabalhos históricos e preencher a matriz, comparando as diferentes proposições.

  • iv)

    Atividades didáticas com modelagem computacional – o papel das hipóteses representacionais no processo de modelagem computacional é frequentemente ressaltado em discussões sobre o uso de recursos computacionais no ensino de Ciências (e.g., [36[36] M. Develaki, Journal of Science Education and Technology 28, 353 (2019)., 37[37] I.M. Greca, E. Seoane e I. Arriassecq, Science & Education 23, 897 (2014).]). Menos frequente, no entanto, é o debate sobre a influência de aspectos sociais na tomada de decisão sobre as hipóteses a serem assumidas nos modelos, assim como sobre o papel das hipóteses ontológicas e cosmovisivas nesse processo. A ausência desse debate pode favorecer uma concepção de que a modelagem computacional é uma atividade puramente individual, e que os modelos científicos apresentados são frutos exclusivamente das decisões de quem modela. A exploração da modelagem computacional da perspectiva da proposta deste artigo possibilita uma articulação entre elementos vinculados tanto com o caráter representacional do conhecimento científico, a partir de reflexões sobre as idealizações e aproximações assumidas nos modelos computacionais, como com aspectos relacionados com a NdC, por meio de reflexões sobre as hipóteses cosmovisivas e ontológicas que fundamentam e/ou fundamentaram tais modelos.

Na sequência, apresentamos dois estudos históricos em que trabalhos originais são analisados a partir da proposição de classificação de hipóteses do presente artigo. Discutimos como a equação de calor de Fourier e a equação de Schrödinger foram desenvolvidas a partir de hipóteses mais básicas. Com isso, conseguimos mostrar os fatores epistêmicos e sociais envolvidos. Essas duas narrativas exemplificam a potencialidade do quadro teórico proposto, o qual pode ser usado em algumas das abordagens mencionadas anteriormente.

4.1. A Equação de calor de Fourier

Em 1822, o físico e matemático francês Jean-Baptiste Joseph Fourier publicou um dos mais marcantes livros da história da Termodinâmica: o Teoria Analítica do Calor [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822).]. É nessa obra que o autor propõe a conhecida Equação do Calor, uma equação diferencial parcial amplamente explorada em cursos de graduação. Com ela, representa-se a propagação de energia na forma de calor em sólidos, possibilitando a predição da evolução temporal da temperatura de corpos. Não está no escopo deste artigo deduzir a equação do calor de Fourier, que pode ser consultada, por exemplo, em Pifer e Aurani [39[39] A. Pifer e K.M. Aurani, Revista Brasileira de Ensino de Física 37, 1603 (2015).]. Nosso propósito aqui é destacar como as diferentes hipóteses assumidas por Fourier influenciaram no seu trabalho, assim como mostrar que o contexto de vida do autor pode ter sido determinante nas suas escolhas.

É consensual entre os cientistas hoje que o calor, alvo dos estudos de Fourier, é um processo de transferência de energia, e não uma propriedade dos corpos. No contexto europeu do século 18, no entanto, profundas discussões sobre a essência do calor dirigiram os trabalhos de alguns dos principais pesquisadores da época [40[40] U. Besson, em: International Handbook of Research in History, Philosophy and Science Teaching, editado por M.R. Matthews (Springer, Boston, 2014)., p. 245]. O entendimento do calor como um fluido rivalizava com uma perspectiva mecânica, em que o calor era concebido como o movimento de partículas de matéria, ainda que alguns autores defendessem posições intermediárias entre esses dois extremos. É inserido nesses debates que Fourier assumiu duas hipóteses primordiais para o seu trabalho: i. uma hipótese ontológica, de que o calor “compõem uma ordem especial de fenômenos, que não podem ser explicados pelos princípios de movimento e equilíbrio” [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 2], e ii. uma hipótese cosmovisiva, de que a matemática é “a linguagem mais universal e mais simples, mais livre de erros e obscuridades, isto é, mais digna de expressar as relações invariáveis das coisas naturais” [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 7]. Ainda que sejam duas hipóteses distintas, para Fourier elas eram profundamente vinculadas, como será exposto no que segue.

Fourier viveu no período que hoje denominamos de iluminismo, momento marcado pela valorização da razão, do conhecimento e da Ciência. Nessa época, em decorrência dos grandes avanços na área da análise matemática, existia uma grande confiança no uso da matemática como recurso para se representar o mundo. Pierre-Simon Laplace, por exemplo, um dos mais relevantes cientistas dessa época, desenvolveu argumentos supondo que “todos os efeitos da Natureza são apenas as consequências matemáticas de um pequeno número de leis imutáveis” [41[41] P.S. Laplace, Oeuvres de Laplace, Vol. VII: Théorie des probabilités (Imprimerie Royale, Paris, 1847)., p. cxxxix]. Fourier foi aluno de Laplace e de Joseph-Louis Lagrange, assim como foi professor da prestigiada Escola Politécnica de Paris, instituição fundada em pleno período iluminista. Inserido neste contexto, compartilhava do paradigma hegemônico de valorização da análise matemática. Argumentava que:

Se a matéria nos escapa, [] a análise matemática ainda pode se apoderar das leis desses fenômenos. [] ela [a análise matemática] os interpreta pela mesma linguagem, como que para atestar a unidade e simplicidade do plano do universo, e para tornar ainda mais evidente aquela ordem imutável que preside todas as causas naturais [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 8].

O valor atribuído por Fourier à análise matemática influenciou fortemente suas ações. Para ele, não bastava conhecer os resultados dos fenômenos do calor; a representação matemática desses eventos era entendida como fundamental:

Há muito tempo possuímos instrumentos engenhosos adaptados para medir muitos desses efeitos; observações valiosas foram coletadas; mas dessa maneira apenas resultados parciais se tornaram conhecidos, e não a demonstração matemática das leis que os incluem todos [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 2].

Somado a isso, Fourier foi muito influenciado por Auguste Comte, outra personalidade que frequentou a Escola Politécnica de Paris. A proximidade entre eles era tamanha que Comte dedicou um dos seus livros a Fourier. Referindo-se ao seu trabalho, ele disse: “De fato, nesta obra, cujo caráter filosófico é tão eminentemente positivo, descobrem-se as leis mais importantes e precisas dos fenômenos térmicos sem que o autor tenha sequer se perguntado sobre a natureza íntima do calor” [42[42] A. Comte e L. Debnath, International Journal of Mathematical Education in Science and Technology 43, 589 (2012)., p. 593].

Em suma, Fourier assume que os fenômenos do calor constituem uma classe de eventos que não são explicados pelos princípios de movimento e equilíbrio, mas abdica de uma hipótese sobre a natureza do calor para representar matematicamente esses fenômenos:

Da natureza do calor só se poderiam formular hipóteses incertas, mas o conhecimento das leis matemáticas a que estão sujeitos seus efeitos é independente de toda hipótese; requer apenas um exame atento dos principais fatos que as observações comuns indicaram e que foram confirmados por experimentos exatos [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 26].

Destaca-se ainda que a crença de Fourier na simplicidade das leis naturais transpassa todo o seu livro. Logo na introdução, ele diz: “As causas primárias são desconhecidas para nós; mas estão sujeitas a leis simples e constantes, que podem ser descobertas pela observação, sendo o seu estudo o objeto da filosofia natural” [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 1]. Talvez seja em função da sua busca por simplicidade que Fourier se baseie na lei de resfriamento de Newton, mesmo quando tal lei já era amplamente criticada pela comunidade científica da sua época [40[40] U. Besson, em: International Handbook of Research in History, Philosophy and Science Teaching, editado por M.R. Matthews (Springer, Boston, 2014).].

Essas hipóteses cosmovisivas de Fourier, de valorização da análise matemática e de prescindibilidade de uma hipótese sobre a natureza do calor, formam a base do Teoria Analítica do Calor. Cabe destacar, no entanto, que Fourier conhecia as hipóteses sobre calor e parecia se aproximar da concepção de calor como um tipo de radiação que podia ser emitida ou absorvida pelos corpos, semelhante às concepções adotadas por Edme Mariotte e Robert Hooke em experimentos para separar a “radiação calorífica” da luz [40[40] U. Besson, em: International Handbook of Research in History, Philosophy and Science Teaching, editado por M.R. Matthews (Springer, Boston, 2014).]. Tal posição fica clara, por exemplo, quando ele assume que “os raios de calor que escapam da superfície de um corpo passam livremente por espaços vazios de ar; eles são propagados também no ar atmosférico: suas direções não são perturbadas por agitações no ar intermediário: eles podem ser refletidos por espelhos de metal e coletados em seus focos” [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 30]. A influência positivista de Comte sobre Fourier, no entanto, pode ter o levado a crer que as leis matemáticas que regem os fenômenos do calor não repousavam sobre tais hipóteses. Ele disse: “Se examinarmos cuidadosamente as leis matemáticas que descrevem os efeitos do calor, veremos que a certeza dessas leis não se baseia em nenhuma hipótese física” [43[43] J.B.J. Fourier, Théorie du Mouvement de la Chaleur dans les Corps Solides, disponível em: https://www.cambridge.org/core/books/abs/oeuvres-de-fourier/theorie-du-mouvement-de-la-chaleur-dans-les-corps-solides-suite/795C423CDB7A123AA8F9F98E133CD951, acessado: 11/04/2023.
https://www.cambridge.org/core/books/abs...
, p. 30]. Pode-se entender, no entanto, que o próprio entendimento de que as leis do calor não se apoiam em qualquer hipótese sobre a natureza da Ciência representa uma perspectiva ontológica sobre o que é o calor, entendido como uma classe de fenômenos representável matematicamente de forma distinta dos fenômenos já conhecidos na sua época.

Pautado pelas hipóteses cosmovisivas e ontológicas já citadas, Fourier se debruça no desenvolvimento de equações matemáticas sobre o comportamento do calor em sólidos. Sem dúvida, a principal hipótese representacional considerada nesse processo é de que a matéria pode ser representada como um conjunto de elementos discretos em que cada um deles interage apenas com seus vizinhos. Fourier destaca tal decisão quando diz que: “O calor cedido por um ponto situado no interior de uma massa sólida só pode passar diretamente a uma distância extremamente pequena; é, podemos dizer, interceptado pelas partículas mais próximas; essas partículas só recebem o calor diretamente e atuam em pontos mais distantes” [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 34]. Além disso, Fourier considera que os elementos discretos da matéria estão fixos no espaço, e por isso limita seu estudo aos corpos sólidos:

Substâncias líquidas possuem também a propriedade de transmitir calor de molécula para molécula, e o valor numérico de sua condutibilidade varia de acordo com a natureza das substâncias: mas este efeito é observado com dificuldade em líquidos, uma vez que suas moléculas mudam de lugar com a mudança de temperatura [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 31].

Ao leitor familiarizado com a termodinâmica, pode parecer que a consideração de que sólidos podem ser representados por elementos discretos é trivial, mas ela é primordial no trabalho de Fourier. Jean-Baptiste Biot, por exemplo, ainda que tenha utilizado raciocínios semelhantes aos de Fourier, pautando-se na lei de resfriamento de Newton, não chegou em uma equação geral do calor principalmente por ter assumido que a difusão do calor era decorrente da interação entre pontos, e não entre elementos discretos [39[39] A. Pifer e K.M. Aurani, Revista Brasileira de Ensino de Física 37, 1603 (2015).]. Tal decisão foi provavelmente influenciada pelo seu compromisso com o programa laplaciano, que advogava que todos os fenômenos físicos eram produtos da ação newtoniana entre partículas. Ainda assim, os trabalhos de Biot influenciaram fortemente Fourier.

Outra hipótese representacional importante considerada por Fourier é a de que as diferenças de temperatura representadas em sua lei são pequenas:

[] as experiências nos ensinam que se a diferença for uma quantidade suficientemente pequena, o calor transmitido é sensivelmente proporcional a essa diferença, e que o número h pode, nestas primeiras pesquisas, ser considerado como tendo um valor constante, próprio de cada estado da superfície, mas independente da temperatura [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 43].

O número h ao qual Fourier se refere é o coeficiente de condutibilidade externa. Provavelmente o cuidado do autor em considerar pequenas diferenças de temperatura é decorrente dos estudos de Dulong e Petit, que mostram que a lei de resfriamento de Newton perde aderência aos dados empíricos na medida em que as diferenças de temperatura entre os corpos e os meios são maiores [44[44] A. Pifer, Teoria analítica do calor de Joseph Fourier: uma análise das bases conceituais e epistemológicas. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do ABC, Santo André (2015).]. É interessante notar que Fourier atribui tais diferenças à variação do coeficiente de condutibilidade dos corpos em decorrência de mudanças na temperatura. Contemporaneamente, sabemos, pela lei de Stefan–Boltzmann, que a emissão de radiação por um corpo é melhor representada como proporcional à sua temperatura na quarta potência, sendo um fator mais relevante no domínio de validade da lei de resfriamento de Newton do que as variações dos coeficientes de condutibilidade.

Fourier não apresenta explicitamente uma lei de conservação no seu livro, mas deixa claro que parte da hipótese ontológica de que o calor se conserva no seu estudo:

Para que o sistema de temperaturas seja permanente, é necessário que a quantidade de calor que, por unidade de tempo, atravessa uma seção feita a uma distância x da origem, equilibre exatamente todo o calor que, durante o mesmo tempo , escapa pela parte da superfície externa do prisma situada à direita da mesma seção [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 57].

Resumidamente, Fourier deduz a equação do calor considerando que a matéria é dividida em elementos discretos que interagem trocando calor. Ele analisa então a quantidade líquida de calor que um desses elementos recebe da (ou cede para a) sua vizinhança, concluindo que a variação da temperatura desse elemento é igual à razão entre essa quantidade e o que hoje denominamos de capacidade térmica.

Após expor a sua lei geral de difusão do calor, Fourier argumenta que a solução de tal equação demanda novas hipóteses representacionais sobre o objeto e/ou evento investigado:

Independentemente desta equação, o sistema de temperaturas está muitas vezes sujeito a várias condições definidas, para as quais não se pode dar uma expressão geral, pois dependem da natureza do problema. Se as dimensões da massa na qual o calor se propaga são finitas e se a superfície é mantida por alguma causa especial em um determinado estado [] [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 114].

Já no capítulo seguinte à apresentação da equação do calor Fourier usa a equação do calor para representar a propagação de calor em um sólido retangular infinito. Diversas hipóteses representacionais são feitas na primeira seção, intitulada “Declaração do problema”. Por exemplo, ele começa o artigo 164 dizendo: “Suponha que uma massa sólida homogênea esteja contida entre dois planos B e C verticais, paralelos e infinitos, e seja dividida em duas partes por um plano A perpendicular aos outros dois.” [38[38] J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822)., p. 131]. É a partir da solução deste problema que Fourier propõe as séries trigonométricas que hoje conhecemos como séries de Fourier.

Figura 2:
Síntese das principais hipóteses assumidas por Fourier na proposição da Equação do Calor.

A análise das hipóteses assumidas por Fourier expostas aqui evidenciam como fatores sociais e epistêmicos se entrelaçam na construção do conhecimento científico. A proximidade do autor com Augusto Comte foi marcante para a decisão de construir uma teoria que não se sustenta em uma hipótese essencial sobre o calor, ainda que Fourier admita hipóteses ontológicas sobre a natureza do calor, tomando-o como um tipo de radiação cujos fenômenos não podem ser explicados pelas leis de movimento e equilíbrio. Influenciado pelo seu contexto histórico, Fourier assume a hipótese cosmovisiva de que a matemática constitui a linguagem mais universal, simples e livre de erros que existe. Os conhecimentos das leis matemáticas é, no caso do calor, independente de todas as hipóteses ontológicas sobre ele. Duas hipóteses representacionais utilizadas por Fourier na construção da equação do calor se destacam quando analisadas a partir do seu contexto social. São elas: i. a matéria é constituída por um conjunto infinito de elementos discretos em que cada um deles interage apenas com seus vizinhos, e ii. a diferença de temperatura entre os elementos que interagem é pequena. A primeira dessas hipóteses foi o diferencial do trabalho de Fourier para que ele avançasse em relação aos estudos de Biot, que defendia o projeto laplaciano e, por isso, assumia os fenômenos do calor como interações entre pontos. O compromisso de Biot com o seu paradigma científico foi, portanto, um obstáculo para os seus estudos, o que não ocorreu com Fourier. A segunda, provavelmente decorre da hipótese cosmovisiva de simplicidade da natureza defendida por Fourier. A lei de resfriamento de Newton, que também foi explorada por Biot, já era bastante criticada por cientistas, mas representava a troca de energia na forma de calor de uma maneira muito simples, proporcional a diferenças de temperatura. A aplicação da equação do calor para casos particulares, então, demandou de Fourier uma série de outras hipóteses representacionais, que transpassam todo o seu livro. São hipóteses sobre o formato dos objetos, sobre suas constituições e sobre suas propriedades intrínsecas. Na Figura 2, são sintetizadas as hipóteses assumidas por Fourier no Teoria Analítica do Calor, destacando-se as influências sociais sofridas.

4.2. A Equação de Schrödinger

No início do século XX, uma série de estudos sobre o comportamento da radiação começou a indicar que as teorias clássicas apresentavam alguma limitação em sua explicação sobre a realidade. Apenas para mencionar os casos mais exemplares: em 1900, Planck [45[45] M. Planck, Annalen Der Physik 309, 553 (1901).] quantiza os níveis de energia dos osciladores que compõem a matéria; em 1905, Einstein [27[27] A. Einstein, On a Heuristic Point of View Concernig the Production and Transformation of Light (1905), disponível em: https://einsteinpapers.press.princeton.edu/vol2-doc/185#, acessado em 11/04/2023.
https://einsteinpapers.press.princeton.e...
] quantiza a radiação eletromagnética, propondo que essa seja tratada por um conjunto de porções de energia bem localizadas no espaço; e, em 1913, Bohr [46[46] N. Bohr, Philosophical Magazine 26, 1 (1913).] quantiza os níveis de energia do átomo, introduzindo a noção de saltos quânticos.

Essas propostas, em princípio, deveriam significar pequenas alterações ou complementações à Física Clássica. Com o avanço dos estudos nos anos subseqüentes, entretanto, ficava cada vez mais claro que era necessária uma revisão fundamental da Física. Em seu discurso de Nobel, por exemplo, Bohr reconhece que em seu artigo de 1913 há uma quebra significativa com a noção de causalidade, elemento fundamental da Física Clássica. Uma vez que essa conclusão ultrapassa os próprios dados empíricos e se refere à natureza da descrição da realidade, podemos a entender como uma hipótese cosmovisiva:

Esta explicação do princípio da combinação difere fundamentalmente das idéias usuais da eletrodinâmica, desde que consideremos que não existe uma relação simples entre o movimento do átomo e a radiação emitida. O afastamento de nossas considerações das idéias comuns da filosofia natural torna-se particularmente evidente, entretanto, quando observamos que a ocorrência de duas linhas espectrais, correspondendo a combinações do mesmo termo espectral com dois outros termos diferentes, implica que a natureza da radiação enviado do átomo não é determinado apenas pelo movimento do átomo no início do processo de radiação, mas também depende do estado para o qual o átomo é transferido pelo processo [47[47] N. Bohr, The structure of the atom – Nobel Lecture (1922), disponível em: https://www.nobelprize.org/uploads/2018/06/bohr-lecture.pdf, acessado em: 11/04/2023.
https://www.nobelprize.org/uploads/2018/...
, p. 10].

Em 1925, o físico alemão Werner Heisenberg dá um passo crucial no desenvolvimento da Teoria, realizando um trabalho que, no seu resumo, deixa explícita a adoção de uma hipótese cosmovisiva : “O presente artigo busca estabelecer uma base para a mecânica quântica teórica fundamentada exclusivamente nas relações entre quantidades que em princípio são observáveis” [48[48] W. Heisenberg, em: Sources of Quantum Mechanics, New York, editado por B.L. van der Waerden (Dover, New York, 1967)., p. 261]. Isto é, para Heisenberg, uma teoria física deveria tratar apenas de grandezas observáveis, o que indica uma forte influência do positivismo lógico, em alta na Europa do início do século.

Neste trabalho, Heisenberg, partindo de discussões de Bohr, mostra que posição e momento são grandezas que não comutam – o que levaria, posteriormente, à formação da chamada Mecânica Matricial, desenvolvida por Heisenberg, Pauli, Born e Dirac. Essa proposta se compromete, portanto, com a visão de que há um elemento novo na Teoria Quântica, o qual é totalmente irreconciliável com a Física Clássica (uma hipótese cosmovisiva), como expressou Bohr. Ademais, a noção de que somente grandezas observáveis deveriam ser descritas, conforme propõe Heisenberg, anuncia já um compromisso com outra hipótese cosmovisiva – uma concepção não-realista sobre o mundo natural, o que fica muito mais evidente em artigos subsequentes de Heisenberg e Bohr, como discutiremos na sequência.

Contrariando a visão da Mecânica Matricial, entretanto, Erwin Schrödinger vinha trabalhando em uma descrição diferente da realidade microscópica. Schrödinger não assumia o postulado quântico de Bohr, e representava os sistemas físicos por meio de uma função de onda contínua, obtida por meio da solução de uma equação diferencial (fugindo, portanto, inclusive do formalismo matemático da mecânica matricial).

A proposição de Schrödinger, em oposição à Mecânica Matricial, causou uma reação de Heisenberg, que avançou na descrição da Mecânica Quântica com uma concepção não-realista e indeterminista da realidade, no artigo em que apresenta o famoso Princípio da Incerteza. Em suas conclusões, podemos perceber, primeiramente, que Heisenberg defende o fim da noção de causalidade na física:

Mas o que está errado na formulação precisa da lei da causalidade, “quando conhecemos o presente com precisão, podemos prever o futuro”, não é a conclusão, mas a suposição. Mesmo em princípio, não podemos conhecer o presente em todos os detalhes. Por isso, tudo o que se observa é uma seleção de uma plenitude de possibilidades e uma limitação do que é possível no futuro [49[49] W. Heisenberg, em: Quantum Theory and Measurement, Princeton, editado por J.A. Wheeler e W.H. Zurek (Princeton University Pres, Princeton, 1983)., p. 83].

Por fim, essa visão é atada à renúncia à concepção de um mundo real, independente de qualquer medida:

Como o caráter estatístico da teoria quântica está tão intimamente ligado à inexatidão de todas as percepções, pode-se ser levado à presunção de que por trás do mundo estatístico percebido ainda se esconde um mundo “real” no qual a causalidade se mantém. Mas tais especulações nos parecem, digamos explicitamente, infrutíferas e sem sentido. A física deveria descrever apenas a correlação de observações. Pode-se expressar melhor o verdadeiro estado de coisas desta maneira: como todos os experimentos estão sujeitos às leis da mecânica quântica e, portanto, à equação (1), segue-se que a mecânica quântica estabelece a falha final da causalidade [49[49] W. Heisenberg, em: Quantum Theory and Measurement, Princeton, editado por J.A. Wheeler e W.H. Zurek (Princeton University Pres, Princeton, 1983)., p. 83].

Schrödinger, entretanto, seguiu defendendo sua visão antagônica à compreensão de Bohr e Heisenberg. Para Schrödinger, os sistemas físicos eram bem descritos por sua Mecânica Ondulatória e não precisava adotar as hipóteses não-realista e indeterminista. Qual eram, então, as hipóteses de Schrödinger que o permitiram chegar na sua famosa e bem-sucedida Equação de Onda?

Para discutir suas hipóteses, analisaremos trechos do discurso do Nobel [50[50] E. Schrodinger, The Fundamental idea of Wave Mechanics – Nobel Lecture (1933), disponível em: https://www.nobelprize.org/uploads/2017/07/schrodinger-lecture.pdf, acessado em: 11/04/2023.
https://www.nobelprize.org/uploads/2017/...
] e de trechos de aulas proferidas por ele em 1928, em que apresenta uma derivação de sua equação de onda [51[51] E. Schrodinger, Four Lectures on Wave Mechanics (Black and Son Limited, London, 1928).]. As hipóteses apresentadas por Schrodinger nesses trabalhos já estavam presentes em sua primeira derivação. Entretanto, por esses textos serem destinados a uma audiência mais ampla (como pesquisadores de outras áreas) e estudantes, nos textos que escolhemos, elas são explicitamente apresentadas. Ademais, ressaltamos que as hipóteses se referem aos trechos estudados. O estudo de outros textos ou mesmo outras partes do livro podem levar a outras hipóteses.

No discurso do Nobel, por exemplo, Schrödinger [50[50] E. Schrodinger, The Fundamental idea of Wave Mechanics – Nobel Lecture (1933), disponível em: https://www.nobelprize.org/uploads/2017/07/schrodinger-lecture.pdf, acessado em: 11/04/2023.
https://www.nobelprize.org/uploads/2017/...
] inicia falando sobre o Princípio de Fermat e como ele descreve a trajetória de raios de luz. Conforme ele argumenta, a descrição ondulatória não é antagônica à descrição por raios; pelo contrário, ela a explica. Ao descrever as frentes de onda, conseguimos, por exemplo, explicar a Lei de Snell, a qual também pode ser deduzida do Princípio de Fermat. Assim, podemos entender que, para Schrödinger, a luz tem natureza ondulatória (hipótese ontológica) mas, em alguns casos, pode ser representada como um raio (hipótese representacional).

Figura 3:
Síntese das principais hipóteses assumidas na construção da Equação de Schrödinger.

Da mesma forma, Schrödinger argumenta que o princípio de mínima ação descreve a trajetória de uma partícula. Podemos, entretanto, encontrar uma descrição ondulatória interna a essa representação. Assim a partícula seria só uma representação artificial (hipótese representacional); a verdadeira natureza do sistema seria ondulatória (hipótese ontológica). Quando o sistema físico está passando por um obstáculo da ordem de grandeza do comprimento de onda, a descrição ondulatória se torna fundamental. Caso contrário, a representação corpuscular é suficiente, assim como no caso da ótica geométrica e física. Isso é comentado por Schrödinger da seguinte forma:

A saída residia apenas na possibilidade, já indicada acima, de atribuir ao princípio de Hamilton, também, o funcionamento de um mecanismo ondulatório no qual se baseiam essencialmente os processos ponto-mecânicos, tal como há muito se habituou a fazer no caso dos fenômenos relativos à luz e do princípio de Fermat que os rege. Reconhecidamente, o caminho individual de um ponto de massa perde seu significado físico próprio e torna-se tão fictício quanto o raio de luz isolado individual. A essência da teoria, o princípio do mínimo, porém, não só permanece intacta, como revela seu verdadeiro e simples significado apenas sob o aspecto ondulatório, como já explicado. A rigor, a nova teoria não é de fato nova, é um desenvolvimento completamente orgânico, quase poderíamos ser tentados a dizer uma exposição mais elaborada da velha teoria [50[50] E. Schrodinger, The Fundamental idea of Wave Mechanics – Nobel Lecture (1933), disponível em: https://www.nobelprize.org/uploads/2017/07/schrodinger-lecture.pdf, acessado em: 11/04/2023.
https://www.nobelprize.org/uploads/2017/...
, p. 309].

Ou seja, percebemos que Schrödinger entende o sistema microscópico como um fenômeno ondulatório (hipótese ontológica), sendo que esse fenômeno é algo realmente existente, independente de ser representado por uma grandeza observável (hipótese cosmovisiva), e, por fim, a nova teoria é compatível com a Mecânica Clássica, ou seja, não há nada de irreconciliável como na proposta da Mecânica Matricial (hipótese cosmovisiva).

Schrödinger reconhece, entretanto, que há algo na descrição corpuscular que também é real, embora não haja certeza sobre o que isso significa. No trecho a seguir a concepção essencialista de Schrödinger fica explícita:

Eu definiria o estado atual de nosso conhecimento da seguinte maneira. O raio ou o caminho da partícula corresponde a uma relação longitudinal do processo de propagação (ou seja, na direção da propagação), a superfície da onda, por outro lado, a uma relação transversal (ou seja, normal a ela). Ambos os relacionamentos são sem dúvida reais; um é provado por caminhos de partículas fotografados, o outro por experimentos de interferência. Combinar ambos em um sistema uniforme provou ser impossível até agora [50[50] E. Schrodinger, The Fundamental idea of Wave Mechanics – Nobel Lecture (1933), disponível em: https://www.nobelprize.org/uploads/2017/07/schrodinger-lecture.pdf, acessado em: 11/04/2023.
https://www.nobelprize.org/uploads/2017/...
, p. 316].

Para deduzir sua equação, Schrödinger [51[51] E. Schrodinger, Four Lectures on Wave Mechanics (Black and Son Limited, London, 1928).] parte da seguinte proposta: o caminho percorrido por uma partícula com energia mecânica constante é dada pelo princípio de Maupertuis. Por outro lado, podemos caracterizar um fenômeno ondulatório cujo raio vetor tenha a mesma trajetória, obedecendo o princípio de Fermat. Para encontrar tal igualdade, Schrödinger precisa assumir que uma partícula é um grupo de ondas (hipótese ontológica). Nesse caso, a velocidade de grupo deve ser igual à velocidade da partícula (vpastícula=vgrupo, hipótese cosmovisiva e um axioma apresentado posteriormente). A partir de conceitos básicos de teoria ondulatória clássica, e da imposição de uma nova hipótese ontológica, a dizer, que a energia é uma função linear da frequência (E=hν) em que h é uma constante de proporcionalidade, Schrödinger mostra que é possível obter a expressão da velocidade de fase da partícula, vfase=E2m(E-V). Essa relação é uma hipótese ontológica (caracteriza como a onda de fase é), e é uma derivação. Substituindo essa expressão de velocidade de fase na equação de onda clássica, com a hipótese adicional de que a onda pode ser descrita como uma componente espacial vezes uma função temporal harmônica (Ψ=ψ(x,y,z)eiωt) (hipótese representacional), Schrödinger, finalmente, chega a sua equação de onda. Representamos, esquematicamente, a relação entre as hipóteses na construção de Schrödinger na Figura 3.

5. Considerações Finais

Como área de pesquisa, perseguimos um ensino de Ciências reflexivo, que provoque nos estudantes inquietações tanto sobre a natureza quanto sobre as origens e consequências dos conhecimentos que construímos sobre ela. Entre tantos caminhos possíveis para se contribuir com esse objetivo, o enfoque histórico da Ciência tem se destacado, fornecendo uma alternativa tanto para o ensino de conteúdos científicos como de elementos vinculados com a NdC.

Neste artigo, apresentamos uma possibilidade para a exploração de episódios históricos a partir da noção de hipótese científica. Apresentamos uma categorização didática dos diferentes tipos de hipóteses que costumam ser mobilizadas na construção do conhecimento científico, oferecendo uma estrutura teórica para quem deseja explicitar as relações entre aspectos sociais e epistêmicos no ensino de Física. A originalidade do que foi apresentado não repousa na apresentação de uma categorização de hipóteses, o que já foi feito por tantos outros filósofos da Ciência com maior detalhe do que a nossa proposta (e.g., [20[20] M. Bunge, La investigación científica: Su estrategia e su filosofía (Editora Ariel, Barcelona, 1989).]). Nossa contribuição está na aproximação da discussão sobre o conceito de hipótese com a área de ensino de Física por meio da proposição de uma categorização didática.

Assim como a nossa proposta tem potencial para sustentar complexas iniciativas focadas na exploração de episódios históricos em aulas de Física em diferentes contextos formativos, ela dá suporte também para quem procura o delineamento de ações mais simples, como a incorporação de discussões sobre os tipos de hipóteses que sustentam a construção dos conhecimentos nas tradicionais deduções e/ou apresentações das leis científicas. Essas iniciativas, sendo simples ou complexas, são muito importantes para alcançarmos o objetivo central ao qual nos propomos: contribuir para o ensino de Ciências e sobre Ciências de forma integrada. Como mostramos analisando a história da Equação do Calor e da Equação de Schrödinger, hipóteses cosmovisivas, ontológicas e representacionais dirigem o trabalho científico, e a tomada de decisão sobre o uso delas é amplamente influenciada pelo contexto histórico e social dos cientistas. Desse modo, a discussão, por exemplo, sobre as hipóteses subjacentes à construção da Equação do Calor em uma aula em que ela é deduzida em um curso de Termodinâmica pode contribuir para promover concepções mais sofisticadas sobre a NdC ao mesmo tempo em que proporciona uma melhor compreensão do sentido e do significado dos conceitos envolvidos na teoria estudada. Promovemos, assim, de forma concomitante, tanto a aprendizagem da Física desejada como proporcionamos um aprofundamento das concepções dos estudantes sobre o fazer científico, evidenciando-o como uma atividade essencialmente humana.

Mais do que propor uma categorização de hipóteses científicas, nosso objetivo com este artigo é apresentar uma alternativa para professores e pesquisadores. Entendemos que, para a consolidação dessa proposta, é fundamental que estudos sejam conduzidos em contexto de sala de aula, analisando as suas potencialidades tanto para a aprendizagem de Ciências como sobre Ciências. Como mencionamos, entendemos que tal proposta pode ser explorada principalmente em narrativas históricas, atividades didáticas ou de pesquisa sobre investigações históricas e atividades de modelagem computacional. Nossa esperança é que, dando suporte a atividades como essas, possamos contribuir com um ensino de Física mais significativo, proporcionando concepções mais sofisticadas dos estudantes sobre a natureza das Ciências.

Referências

  • [1]
    D. Hodson, International Journal of Science Education 36, 2534 (2014).
  • [2]
    W.F. McComas, em: Adapting Historical Knowledge Production to the Classroom, editado por P.V. Kokkotas, K.S. Malamitsa e A.A. Rizaki (Sense Publishers, Rotterdam, 2011).
  • [3]
    P.V. Kokkotas e A.A. Rizaki, em: Adapting Historical Knowledge Production to the Classroom, editado por P.V. Kokkotas, K.S. Malamitsa e A.A. Rizaki (Sense Publishers, Rotterdam, 2011).
  • [4]
    D. Allchin, Canadian Journal of Science, Mathematics and Technology Education 17, 18 (2017).
  • [5]
    S. Erduran e Z. Dagher, Reconceptualizing the Nature of Science for Science Education: Scientific Knowledge, Practices and Other Family Categories. Contemporary Trends and Issues in Science Education (Springer, Berlin, 2014).
  • [6]
    W.F. McComas, em: Nature of science in science instruction, editado por W. F. McComas (Springer Nature, Switzerland, 2020).
  • [7]
    R.N. Giere, em: Testing scientific theories, editado por J. Earman (University of Minnesota Press, Minneapolis, 1983).
  • [8]
    M. Kim, Y.J. Joung e H. Yoon, em: Issues and Challenges in Science Education Research, editado por K.C.D. Tan e M. Kim (Springer, Berlin, 2012).
  • [9]
    J. Park, International Journal of Science Education 28, 469 (2006).
  • [10]
    M. Wenham, International Journal of Science Education 15, 231 (1993).
  • [11]
    J. Gyllenpalm e P. Wickman, International Journal of Science Education 33, 1993 (2011).
  • [12]
    O. Ioannidou e S. Erduran, Science & Education 30, 345 (2021).
  • [13]
    W.F. McComas, em: Nature of science in science instruction, editado por W.F. McComas (Springer Nature, Switzerland, 2020).
  • [14]
    P.K. Strode, The American Biology Teacher 77, 500 (2015).
  • [15]
    R.N. Giere, Understanding scientific reasoning (Holt, Rinehart & Winston, Forth Worth, 1991).
  • [16]
    M. Bunge, Diccionario de Filosofía (Siglo XXI Editores, Ciudad de México, 2005).
  • [17]
    N. Abbagnano, Dicionário de Filosofia (Martins Fontes, São Paulo, 2007).
  • [18]
    K. Popper, Conjecturas e Refutações (Editora da UnB, Brasília, 2008).
  • [19]
    E.R. Cruz, Interações 15, 470 (2020).
  • [20]
    M. Bunge, La investigación científica: Su estrategia e su filosofía (Editora Ariel, Barcelona, 1989).
  • [21]
    H. Poincaré, La Science et l’Hypothèse (Flammarion, Paris, 1902).
  • [22]
    O. Allanson, Theory of One-Dimensional Vlasov-Maxwell Equilibria (Springer International Publishing, 2018).
  • [23]
    M. Bunge, Teoria e Realidade (Editora Perspectiva, São Paulo,1974).
  • [24]
    J.M.F. Bassalo, Caderno Catarinense de Ensino de Física 3, 138 (1986).
  • [25]
    C.C. Laranjeiras, J.L. Silva e J.R.N. Chiappin, Revista Brasileira de Ensino de Física 39, e4602 (2017).
  • [26]
    M.R. Matthews, Science, Worldviews and Education (Springer, Berlin, 2009).
  • [27]
    A. Einstein, On a Heuristic Point of View Concernig the Production and Transformation of Light (1905), disponível em: https://einsteinpapers.press.princeton.edu/vol2-doc/185#, acessado em 11/04/2023.
    » https://einsteinpapers.press.princeton.edu/vol2-doc/185#
  • [28]
    R. Karam e N. Lima, em: Connecting Research in Physics Education with Teacher Education 3, editado por J. Guisasola e E. McLoughlin (The International Commission on Physics Education, Dublin, 2022).
  • [29]
    R. Karam, Revista Brasileira de Ensino de Ciências e Matemática 4, 1067 (2021).
  • [30]
    M.A. Moreira, em: Aprendizagem Significativa Crítica (Porto Alegre, 2010), disponível em: https://www.if.ufrgs.br/~moreira/apsigcritport.pdf
    » https://www.if.ufrgs.br/~moreira/apsigcritport.pdf
  • [31]
    N. Lima e C. Rosa, Espaço Pedagógico 29, 484 (2022).
  • [32]
    Y. Chevallard, Journal de la Théorie Anthropologique du Didactique & Ingénierie Didactique du Développement (2009), disponível em: http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip/IMG/pdf/journal-tad-idd-2009-2010-3.pdf, acessado em 11/04/2023.
    » http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip/IMG/pdf/journal-tad-idd-2009-2010-3.pdf
  • [33]
    H. Kragh, An Introduction to the historiography of science (Cambridge University Press, Cambridge, 1987).
  • [34]
    N.W. Lima, Review of Science, Mathematics and ICT Education 15, 101 (2022).
  • [35]
    P. Garik, L. Garbayo, Y. Benétreau-Dupin, C. Winrich, A. Duffy, N. Gross, e M. Jariwala, Science & Education 24, 387 (2015).
  • [36]
    M. Develaki, Journal of Science Education and Technology 28, 353 (2019).
  • [37]
    I.M. Greca, E. Seoane e I. Arriassecq, Science & Education 23, 897 (2014).
  • [38]
    J.B.J. Fourier, The Analytical Theory of Heat (Cambridge University Press, New York, 1822).
  • [39]
    A. Pifer e K.M. Aurani, Revista Brasileira de Ensino de Física 37, 1603 (2015).
  • [40]
    U. Besson, em: International Handbook of Research in History, Philosophy and Science Teaching, editado por M.R. Matthews (Springer, Boston, 2014).
  • [41]
    P.S. Laplace, Oeuvres de Laplace, Vol. VII: Théorie des probabilités (Imprimerie Royale, Paris, 1847).
  • [42]
    A. Comte e L. Debnath, International Journal of Mathematical Education in Science and Technology 43, 589 (2012).
  • [43]
    J.B.J. Fourier, Théorie du Mouvement de la Chaleur dans les Corps Solides, disponível em: https://www.cambridge.org/core/books/abs/oeuvres-de-fourier/theorie-du-mouvement-de-la-chaleur-dans-les-corps-solides-suite/795C423CDB7A123AA8F9F98E133CD951, acessado: 11/04/2023.
    » https://www.cambridge.org/core/books/abs/oeuvres-de-fourier/theorie-du-mouvement-de-la-chaleur-dans-les-corps-solides-suite/795C423CDB7A123AA8F9F98E133CD951
  • [44]
    A. Pifer, Teoria analítica do calor de Joseph Fourier: uma análise das bases conceituais e epistemológicas Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do ABC, Santo André (2015).
  • [45]
    M. Planck, Annalen Der Physik 309, 553 (1901).
  • [46]
    N. Bohr, Philosophical Magazine 26, 1 (1913).
  • [47]
    N. Bohr, The structure of the atom – Nobel Lecture (1922), disponível em: https://www.nobelprize.org/uploads/2018/06/bohr-lecture.pdf, acessado em: 11/04/2023.
    » https://www.nobelprize.org/uploads/2018/06/bohr-lecture.pdf
  • [48]
    W. Heisenberg, em: Sources of Quantum Mechanics, New York, editado por B.L. van der Waerden (Dover, New York, 1967).
  • [49]
    W. Heisenberg, em: Quantum Theory and Measurement, Princeton, editado por J.A. Wheeler e W.H. Zurek (Princeton University Pres, Princeton, 1983).
  • [50]
    E. Schrodinger, The Fundamental idea of Wave MechanicsNobel Lecture (1933), disponível em: https://www.nobelprize.org/uploads/2017/07/schrodinger-lecture.pdf, acessado em: 11/04/2023.
    » https://www.nobelprize.org/uploads/2017/07/schrodinger-lecture.pdf
  • [51]
    E. Schrodinger, Four Lectures on Wave Mechanics (Black and Son Limited, London, 1928).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2022
  • Revisado
    27 Mar 2023
  • Aceito
    03 Abr 2023
Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: marcio@sbfisica.org.br