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Uma Problematização sobre a Natureza das Ciências: análise da Nobel Lecture de Philipp Lenard e do movimento nazista “Deutsche Physik

A Problematization about the Nature of Science: an analysis of Philipp Lenard’s Nobel Lecture and the Nazi “Deutsche Physik” movement

Resumos

Um dos objetivos da educação científica atual é promover uma compreensão mais autêntica acerca da Natureza das Ciências (NdC). No entanto, uma dificuldade recorrente é a escassez de materiais históricos acessíveis que possibilitem aos professores implementar abordagens sobre aspectos da NdC. Diante desse contexto, realizou-se um estudo em duas etapas. Na primeira parte, foi feita uma análise e discussão da Nobel Lecture, proferida pelo físico alemão Philipp Lenard (1862–1947), por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Física de 1905. Na segunda etapa, foi construído um relato histórico sobre a gênese e desenvolvimento do movimento nazista “Física Alemã” (“Deutsche Physik”) durante os anos de 1920 e 1938, sob a liderança de Philipp Lenard e Johannes Stark (1874–1957). A seleção dos aspectos de NdC a serem problematizados foi realizada com base na abordagem investigativa por “temas” e “questões”, proposta pelo pesquisador André Martins (2015). Por meio de trechos específicos, realizou-se uma discussão, mostrando em que medida é possível problematizar as principais imagens distorcidas sobre o trabalho científico, apontadas por Gil-Perez et al. (2001). Ao final deste artigo, disponibiliza-se, como “material suplementar”, a tradução, na íntegra, do discurso de apresentação e do conteúdo da Nobel Lecture.

Palavras-chave:
História e Filosofia das Ciências; Natureza das Ciências; Física Alemã; Controvérsias Científicas; Efeito Fotoelétrico


One of the objectives of current scientific education is to promote a more authentic understanding of the Nature of Science (NoS). However, a recurring challenge is the scarcity of accessible historical materials that enable teachers to implement explicit and reflective approaches to aspects of NoS. In this context, a two-stage study was conducted. In the first part, an analysis and discussion of Nobel Lecture delivered by German physicist Philipp Lenard (1862–1947) upon receiving the Nobel Prize in Physics in 1905 were carried out. In the second stage, a historical account was constructed regarding the genesis and development of the Nazi movement “German Physics” (“Deutsche Physik”) during the years 1920 to 1938, under the leadership of Philipp Lenard and Johannes Stark (1874–1957). The selection of NoS aspects to be problematized was based on the investigative approach by “themes” and “questions” proposed by researcher André Martins (2015). Through specific excerpts, a discussion was conducted, demonstrating to what extent it is possible to problematize the main distorted images about scientific work, as pointed out by Gil-Perez et al. (2001). At the end of this article, the complete translation of the presentation speech and the content of the Nobel Lecture is made available as “supplementary material”.

Keywords
History and Philosophy of Sciences; Nature of Sciences; German Physics; Scientific Controversies; Photoelectric Effect


1. Introdução

Philipp Eduard Anton von Lenard (1862–1947) foi um físico experimental alemão, cujas contribuições científicas, no início do século XX, foram relevantes para a compreensão da natureza da matéria e da eletricidade. No entanto, destacou-se, também, como um membro fanático e influente do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Partido Nazista). Seu posicionamento político-ideológico extremista revelou um aspecto absolutamente inaceitável de sua personalidade e caráter, manifestado pela defesa pública da perseguição aos cientistas não-arianos, ou seja, judeus, e da política de eliminação em massa de opositores do regime nazista [1[1] B.R. Wheaton, Historical Studies in the Physical Sciences 9, 299 (1978)., 2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998).]. A análise histórica de sua obra e vida política oferece um estudo de caso que abrange diversos aspectos relacionados à chamada Natureza das Ciências (NdC)1 1 A expressão “Natureza da Ciência”, no singular, frequentemente é abreviada como NdC. No entanto, os autores deste trabalho compartilham da opinião de que essa expressão não transmite plenamente a riqueza e as particularidades do empreendimento científico. Portanto, optamos por utilizar a sigla NdC para se referir ao termo “Natureza das Ciências”, no plural. Essa escolha reflete a visão de muitos pesquisadores, que concordam que não existe uma única e verdadeira Ciência, mas sim várias áreas distintas de estudo científico, como Ciências Físicas, Ciências Biológicas, Ciências Sociais, Ciências Econômicas, Ciências Policiais, entre outras. .

Diante desse contexto, o objetivo deste estudo é contribuir para a produção de subsídios teóricos e recursos didáticos de caráter histórico que possam ser utilizados, por professores e pesquisadores, como suporte para novas abordagens investigativas sobre temas e questões relacionadas à NdC. O estudo insere-se, assim, na conjuntura atual de desafios da educação científica, buscando promover uma compreensão mais autêntica sobre aspectos da NdC, especialmente no ambiente de formação de professores de física, tanto em nível de graduação quanto de pós-graduação. Igualmente, visa colaborar para a redução do problema da escassez de materiais históricos acessíveis em língua portuguesa no ensino de física.

O escopo desta investigação é delimitado pelo recorte histórico das pesquisas de Philipp Lenard sobre os raios catódicos e o efeito fotoelétrico, entre 1892 e 1902. Além disso, abrange seu apoio incondicional ao partido nazista e sua liderança política no movimento “Física Alemã” (“Deutsche Physik”), durante os anos de 1920 e 1938.

No decorrer deste trabalho, apresenta-se uma contextualização histórica da carreira acadêmica de Philipp Lenard e de suas principais realizações científicas (Seção2 2. O Caminho até o Prêmio Nobel de Física de 1905: a Nobel Lecture de Philipp Lenard Philipp Eduard Anton von Lenard nasceu em Pozsony (Pressburg), Hungria, em 7 de junho de 1862. Naquela época, sua família havia se mudado de Tirol, um estado localizado no oeste da Áustria. Ele prosseguiu seus estudos em física, passando por Budapeste, Viena, Berlim e Heidelberg. Durante sua formação acadêmica, teve a oportunidade de trabalhar sob a orientação de cientistas alemães, como Robert Wilhelm Eberhard von Bunsen (1811–1899), Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz (1821–1894), Johann Königsberger (1874–1946) e Georg Hermann Quincke (1834–1924). Em 1886, aos 24 anos, obteve seu doutorado na Universidade de Heidelberg [1, 2]. Entre 1891 e 1898, Lenard trabalhou na Universidade Bonn, na Alemanha, onde conduziu extensas pesquisas sobre as propriedades de propagação, absorção e difusão dos raios catódicos, cujo entendimento ainda era limitado naquele período. Nesse período, por quatro anos, ele foi professor-assistente de Heinrich Rudolf Hertz (1857–1894). Uma de suas principais contribuições científicas, daquela época, ficou conhecida como a “janela de Lenard”. Um dispositivo inovador, que possibilitava o estudo dos raios catódicos em sua forma pura, ou seja, sem a interferência dos gases rarefeitos presentes nos tradicionais tubos de Crookes [1, 2]. Nesse meio tempo, ele recebeu prêmios internacionais em reconhecimento à sua contribuição para os estudos sobre os raios X, realizados por outros cientistas, por meio do seu novo aparato experimental. A primeira identificação desse fenômeno foi feita pelo físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen (1845–1923), em 1895, sendo menosprezadamente considerada por Philipp Lenard como “um bom exemplo de descoberta afortunada” [2, p. 105]. Em 1896, ambos receberam o “Baumgartner Prize” da Academia Austríaca de Ciências, além das “Rumford Medals” da Sociedade Real de Londres. No ano seguinte, a Academia de Ciências de Paris concedeu o “Prix La Caze”, em física, para Philipp Lenard e, em fisiologia, para Wilhelm Röntgen [1]. No entanto, o primeiro Prêmio Nobel de Física, em 1901, organizado pela Academia Real Sueca de Ciências, foi concedido apenas a Wilhelm Röntgen, “em reconhecimento dos serviços extraordinários que ele prestou pela descoberta dos raios notáveis, posteriormente nomeados em sua homenagem [‘raios Röntgen’, atualmente ‘raios X’] [2]. Esse posicionamento diferente do Comitê Científico sueco indica que as reivindicações de Philipp Lenard sobre a coautoria e participação nas observações experimentais dos raios X já haviam perdido força. Entre os anos 1898 e 1902, suas pesquisas o conduziu à necessidade de uma série de estudos sobre o efeito fotoelétrico. Esse fenômeno permitia a geração de raios catódicos com baixas velocidades, livres da interferência de gases rarefeitos durante sua produção, o que os tornava ideais para as investigações das forças eletromagnéticas no interior de uma estrutura atômica. Pouco tempo depois, em 1905, Philipp Lenard foi laureado com o prêmio Nobel de Física, “por seu trabalho sobre os raios catódicos” [1]. Por ocasião do recebimento do prêmio, ele proferiu a palestra (“Nobel Lecture”) intitulada “Sobre os Raios Catódicos” [2]. As Nobel Lectures têm sido consideradas importantes fontes primárias de pesquisa em ensino de ciências [3, 4, 5, 6, 7, 8]. Isso se deve ao fato de que, na maioria das vezes, a linguagem utilizada nos textos é acessível a professores e estudantes de disciplinas científicas, visto que tais palestras são elaboradas visando o público mais amplo que assiste ao evento. Embora exista a possibilidade de o cientista palestrante exagerar na reivindicação de suas próprias realizações, exigindo que os pesquisadores estejam atentos a eventuais distorções e narrativas egocêntricas, as Nobel Lectures contêm informações importantes e pouco divulgadas em textos acadêmicos e livros didáticos. Essas informações, muitas vezes, abordam questões epistemológicas fundamentais, como a origem do conhecimento científico, os métodos, os procedimentos e os processos da ciência, bem como a própria natureza do conhecimento produzido pelos cientistas e a influência do contexto histórico-social nas investigações científicas. A Nobel Lecture proferida por Philipp Lenard tem o mérito de evitar o uso de linguagem matemática complexa e de conter diversas figuras ilustrativas, facilitando a compreensão dos possíveis leitores. Além disso, a apresentação é retrospectiva, pois ele propõe um levantamento histórico das publicações que, em sua opinião, trouxeram importantes contribuições para a pesquisa sobre as propriedades e a natureza dos raios catódicos até aquele momento. Ele ressalta, em diversos momentos, como seu trabalho foi influenciado por outros e vice-versa. Ainda em sua Nobel Lecture, ele descreve o desenvolvimento das pesquisas nesse campo, baseando-se em sua própria experiência. Expõe os principais percalços técnicos e científicos enfrentados ao longo de suas investigações, assim como as soluções encontradas. O tema principal do texto aborda os detalhes da controvérsia científica sobre a natureza dos raios catódicos entre os físicos ingleses e alemães no final do século XIX, evidenciando como suas investigações experimentais foram relevantes para esse campo de estudo. Na seção a seguir, será descrita como a Nobel Lecture de Philipp Lenard foi utilizada como fonte primária histórica, bem como as implicações dos resultados obtidos para ampliação da investigação inicialmente pretendida. ). Em seguida, são descritos os referenciais teóricos adotados na identificação e problematização de aspectos sociológicos, históricos e epistemológicos relacionados à NdC (Seção3 3. Desenvolvimento e Procedimentos Metodológicos A metodologia empregada neste estudo de caso consistiu na análise de conteúdo de fontes primárias e secundárias, sendo dividida em duas etapas. Na primeira, seguindo a proposta sugerida pelo pesquisador André F. P. Martins [9] de abordagem investigativa por “temas” e “questões” sobre a NdC, realizou-se a leitura e análise da Nobel Lecture. O objetivo foi identificar os temas relacionados ao saber sobre ciências (conteúdo metacientífico), diretamente ligados a aspectos históricos, sociológicos e epistemológicos da construção do conhecimento científico. Como premissa de investigação, partiu-se do pressuposto de que os temas mais evidentes no texto selecionado seriam mais favoráveis para a problematização das visões distorcidas e de senso-comum sobre a atividade científica. Martins [9] propõe uma abordagem investigativa, aberta, plural e heterogênea como alternativa para superar as várias críticas à forma e ao conteúdo da “visão consensual sobre NdC”, divulgada pelo pesquisador americano Norman G. Lederman (1950–2021) e seus colaboradores [10, 11, 12]. Nessa nova abordagem, o papel do professor é fomentar momentos de discussão e reflexão explícitas sobre “temas” e “questões” relativas ao saber sobre ciências, em de vez privilegiar a mera transmissão e memorização de princípios heurísticos declarativos descontextualizados sobre a suposta essência da atividade científica. Com base em outros referenciais críticos citados na literatura de pesquisa em ensino de ciências, como Rosalind Driver et al. [13], Michael P. Clough [14], Douglas Allchin [15], Gürol Irzik e Robert Nola [16], Michael R. Matthews [17] e Agustín Adúriz-Bravo [18], Martins apresenta dois eixos principais e inter-relacionados para investigação e discussão de “temas” e “questões” sobre a NdC: o eixo sociológico/histórico e o eixo epistemológico. Vários saberes sobre ciências podem ser debatidos, conforme apresentado na Tabela 1 da página 719 de seu trabalho [9]: O primeiro eixo agruparia temas relativos ao papel do indivíduo e da comunidade científica; a intersubjetividade; questões morais, éticas e políticas; influências históricas e sociais; ciência como parte da cultura; comunicação do conhecimento. O segundo eixo, mais amplo, agruparia temas relativos à origem do conhecimento (experiência x razão; papel da observação, da experiência, da lógica e do pensamento teórico; influência da teoria sobre o experimento), aos métodos, práticas, procedimentos e processos da ciência (coleta, análise e avaliação de dados; inferência, correlação e causalidade; modelagem em ciência; papel da imaginação e criatividade; natureza da explicação), e ao conteúdo/natureza do conhecimento produzido (papel de leis e teorias; noção de modelo; semelhanças e diferenças entre ciência e outras formas de conhecimento) [9, p. 718]. É importante ressaltar a característica “aberta” e “flexível” da abordagem sugerida por Martins [9]. Por exemplo, o tema relacionado ao eixo sociológico/histórico, que aborda o “papel dos indivíduos/sujeitos e da comunidade científica”, permite questionar a imagem distorcida em torno da atividade científica, como algo realizado de forma isolada, quase sempre por homens geniais predestinados, cujos resultados obtidos por eles são suficientes para validar novos conhecimentos científicos. Todavia, esse tema não se restringe apenas à discussão e reflexão sobre essa visão individualista e elitista da NdC. Pelo contrário, outros “temas” e “questões” podem complementar a discussão, como “influências históricas e sociais”, que problematizam como o contexto histórico-social interno e externo da organização das comunidades científicas impulsionam ou objetam o desenvolvimento de certas linhas de pesquisas. Ou, “a ciência como parte de uma cultura mais ampla”, que possibilita discussões sobre as diferenças entre os países no que se refere a uma “cultura científica”, ou, ainda “objetivos da ciência/objetivos do cientista”, para questionar como é definido aquilo que é escolhido para ser investigado naquele momento histórico, permeado pelas tensões entre os interesses individuais de um cientista e os coletivos (ou de um grupo dominante) da comunidade científica à qual ele pertence. Portanto, enfatiza-se que, ao selecionar um determinado “tema” ou “questão”, dentre os vários sugeridos por Martins [9], isso não significa que outros, intrinsicamente articulados, não possam surgir naturalmente nas discussões e reflexões. Além do trabalho de Martins [9], considerou-se também a possibilidade de complementar a discussão com os apontamentos de Gil-Pérez et al. [19]. Nesse estudo, os autores identificaram as principais concepções distorcidas sobre o trabalho científico, explicitando aquilo que deve ser rejeitado ao discutir e refletir sobre a NdC em sala de aula. De acordo com Gil-Pérez et al. [19], existem sete visões distorcidas sobre o trabalho científico. Essas visões retratam as ciências de maneira equivocada e ingênua, apresentando concepções como: a ideia de que as ciências eliminam dúvidas e incertezas apenas por meio de observações experimentais diligentes (1. visão empírico-indutivista e a-teórica); a crença em um “método científico universal” que dispensa a criatividade e a imaginação, desconsiderando as influências subjetivas na investigação (2. visão rígida – algorítmica, exata e infalível); a noção de que os conhecimentos científicos são neutros e objetivos, desvinculados de questões éticas, sociais, políticas e dos problemas científicos e tecnológicos de seu contexto histórico-social (3. visão a-problemática e a-histórica); a abordagem analítica e reducionista, que fragmenta os fenômenos naturais sem levar em consideração sua complexidade e interdependência entre diferentes áreas de pesquisa (4. visão exclusivamente analítica); a ideia de avanço científico, que pressupõe um acúmulo contínuo de conhecimento científico baseado em evidências experimentais (5. visão acumulativa e de crescimento linear); a crença de que a produção científica é realizada apenas por indivíduos excepcionais e talentosos, geralmente homens brancos geniais de nacionalidade europeia, que trabalham isoladamente (6. visão individualista e elitista); e a visão de que a ciência é descontextualizada e socialmente neutra, não sendo influenciada por valores socioculturais ou pelos contextos histórico, cultural, social, político e econômico (7. visão descontextualizada e socialmente neutra) [19]2. Dessa forma, nessa primeira etapa, o estudo buscou responder às seguintes questões: Em que medida a proposta de abordagem investigativa sugerida por Martins [9], complementada pelo trabalho de Gil-Pérez et al. [19], tendo como recorte histórico a Nobel Lecture de Philipp Lenard de 1905, pode ser utilizada para fomentar discussões e reflexões explícitas sobre a NdC, no contexto de formação de professores? A partir desse recorte histórico, quais são os “temas” e “questões” mais evidentes e potencialmente mais favoráveis de serem explorados/investigados? Dentre as sete visões distorcidas do trabalho científico identificadas por Gil-Pérez et al. [19], quais são possíveis de serem exploradas e problematizadas nesse recorte histórico? Uma vez que o apoio incondicional de Philipp Lenard ao regime nazista e sua liderança na chamada “Física Alemã” são reconhecidos, é pertinente indagar: Em que medida os valores socioculturais compartilhados pela ideologia nazista, como o antissemitismo, a supremacia racial e o nacionalismo extremo, já estariam presentes, de algum modo, no levantamento histórico apresentado em sua Nobel Lecture de 1905? Para responder a essa última pergunta foi preciso incluir outras fontes históricas. Nessa segunda etapa, conduziu-se uma pesquisa sobre a gênese e o desenvolvimento do movimento nazista autointitulado “Física Alemã”, entre 1920 e 1938, com ênfase na participação de Philipp Lenard. Os resultados desse estudo possibilitaram a construção de um relato histórico sobre o assunto, acompanhado de uma análise sociológica e epistemológica (ver Seção4.2). Esse relato está em consonância com o objetivo principal deste trabalho, buscando fornecer subsídios adicionais para discussão e reflexão de aspectos relacionados à NdC, no contexto de formação de professores de física. Desse modo, busca-se problematizar as “questões éticas, morais e políticas” na atividade científica, assim como a tese de neutralidade científica. A discussão e reflexão sobre esse último tema torna-se ainda mais relevantes diante da recente constatação dos movimentos crescentes de negacionismo científico e de ataques às instituições acadêmicas e de pesquisa. Por fim, realizou-se uma nova leitura da Nobel Lecture de Philipp Lenard com o objetivo de identificar evidências relacionadas à possível influência dos valores socioculturais compartilhados pela ideologia nazista na elaboração do seu levantamento histórico. ). Posteriormente, realiza-se a análise e discussão dos resultados obtidos, a partir do conteúdo da palestra proferida por ele ao receber o Prêmio Nobel de Física em 1905 (Seção 4.1). Com base em outras fontes documentais, apresenta-se a construção de um relato histórico, com ênfase em sua atuação política, acompanhada de uma análise sociológica e epistemológica, explorando questões éticas, morais e político-ideológicas relacionadas à atividade científica no contexto social do regime nazista na Alemanha (Seção 4.2). Por fim, são expostas as considerações finais e conclusões acerca dos resultados obtidos (Seção5 5. Considerações Finais As Nobel Lectures têm sido consideradas importantes fontes primárias de estudo por pesquisadores em ensino de ciências [3–8]. Nesse sentido, nessas considerações finais, é válido discutir em que medida este trabalho se aproxima e se afasta do estudo de Licio e Silva (ref. [6]). Licio e Silva [6] realizaram uma análise crítica da palestra proferida por Richard Phillips Feynman (1918–1988) ao receber o Prêmio Nobel de Física, em 1965. O objetivo desse estudo foi fornecer informações e conhecimentos que promovam uma compreensão contextualizada e humanizada do físico e de sua obra e, ao mesmo tempo, afastar a visão superficial e anedótica que se construiu em torno de sua figura. De imediato, percebe-se a existência de diferenças entre os estudos no que diz respeito à forma de determinar quais aspectos de NdC serão problematizados na leitura de fontes históricas, uma vez que existem diferentes enfoques possíveis. Licio e Silva [6] optam pela abordagem de Ciência Integral, proposta por Douglas Allchin [30], a qual é dividida em três dimensões: observacional, conceitual e sociocultural. Os autores criam, posteriormente, quatro categorias relacionadas a aspectos de NdC para serem discutidas: 1. Cientistas cometem erros; 2. Influências de crenças pessoais no trabalho de Feynman; 3. O anedotário Feynmaniano; 4. Feynman porco sexista. Por outro lado, nosso trabalho, adotando a proposta de abordagem investigativa por “temas” e “questões”, sugerida por André Martins [9], teve como objetivo apresentar uma análise e discussão de aspectos sociológicos, históricos e epistemológicos mais proeminentes na Nobel Lecture de Philipp Lenard de 1905. Dentre os aspectos de NdC possíveis, realizou-se uma análise e discussão de dois aspectos sociológicos e históricos, considerados pelos autores como os mais proeminentes e amplos na Nobel Lecture, a saber: (i) o papel dos indivíduos/sujeitos e da comunidade científica; e (ii) controvérsias históricas e contemporâneas na ciência. Enquanto Licio e Silva [6] têm como objetivo principal “explicitar como Feynman enxergava o trabalho científico” [6, p. 151] e desmistificar alguns exageros anedóticos quanto à figura desse renomado cientista, nosso objetivo foi selecionar alguns aspectos de NdC dentre aqueles sugeridos por Martins [9], para problematizar as sete visões distorcidas da NdC apontadas por Gil-Perez et al. [19]. A metodologia de análise de conteúdo de ambos os estudos é semelhante, envolvendo a transcrição completa das respectivas palestras, a identificação e seleção de trechos representativos, a separação por tópicos abordados pelo cientista palestrante e que são de interesse dos autores, assim como a descrição e interpretação dos trechos selecionados, buscando relacioná-los com os objetivos do estudo. Em síntese, ambos os estudos, por meio de suas respectivas análises, discussões e reflexões apresentadas, exemplificam alternativas pedagógicas viáveis para que professores e estudantes, no contexto do ensino superior, possam promover abordagens explícitas e reflexivas sobre a atividade científica, com o intuito de favorecer uma compreensão mais autêntica acerca da NdC. A segunda etapa de nossa investigação contém elementos que representam uma aproximação com objetivos do estudo de Licio e Silva [6], uma vez ambos os estudos procuram explicitar a perspectiva epistemológica cientista palestrante, Feynmann e Lenard, respectivamente. Ao detalhar a gênese e desenvolvimento do movimento nazista “Física Alemã”, foi possível descrever a perspectiva epistemológica empirista e positivista de Lenard quanto ao processo de construção do conhecimento científico. Essa perspectiva, aparentemente, foi posteriormente distorcida com a incorporação de valores socioculturais da ideologia nazista. Paralelamente, com o objetivo de contribuir para atenuar o problema da escassez de materiais históricos acessíveis em língua portuguesa (que possibilitem aos professores implementarem abordagens investigativas sobre aspectos da NdC), ambos os estudos disponibilizam, em forma de “material suplementar”, a tradução na íntegra do conteúdo das Nobel Lecture de Philipp Lenard e de Richard Feynman por ocasião do recebimento do prêmio Nobel de Física em 1905 e 1965, respectivamente. Por fim, é válido ressaltar que aspectos selecionados, analisados e discutidos neste estudo não são os únicos possíveis de serem explorados. Outros “temas” e “questões” sugeridos por Martins [9] também poderiam ter sido escolhidos. Por exemplo, o tema “modelagem científica”, cuja análise estaria com a atenção voltada para as características, hipóteses, base empírica e inferências decorrentes do “modelo atômico dinamides”, proposto por Lenard em 1902. Nele, o átomo apresenta um enorme espaço vazio e os constituintes básicos de toda a matéria são análogos dipolos eletricamente neutros (“dinamides”). Esse tema seria outra possibilidade de discussão e reflexão explícita sobre aspectos da NdC. Entretanto, por questão de limitação de espaço em um artigo científico, já um tanto extrapolada, não pôde aqui ser apresentada, mas que pode ser considerada futuramente em um contexto de sala de aula. ).

Como “material suplementar”, disponibiliza-se a tradução completa, para o português, do discurso de apresentação e do conteúdo de sua Nobel Lecture. Dessa forma, oportuniza-se a avaliação por parte de outros professores e pesquisadores sobre as possíveis contribuições do uso desse recorte histórico, tanto para o ensino e aprendizagem em ciências, quanto para os estudos sobre ciências.

2. O Caminho até o Prêmio Nobel de Física de 1905: a Nobel Lecture de Philipp Lenard

Philipp Eduard Anton von Lenard nasceu em Pozsony (Pressburg), Hungria, em 7 de junho de 1862. Naquela época, sua família havia se mudado de Tirol, um estado localizado no oeste da Áustria. Ele prosseguiu seus estudos em física, passando por Budapeste, Viena, Berlim e Heidelberg. Durante sua formação acadêmica, teve a oportunidade de trabalhar sob a orientação de cientistas alemães, como Robert Wilhelm Eberhard von Bunsen (1811–1899), Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz (1821–1894), Johann Königsberger (1874–1946) e Georg Hermann Quincke (1834–1924). Em 1886, aos 24 anos, obteve seu doutorado na Universidade de Heidelberg [1[1] B.R. Wheaton, Historical Studies in the Physical Sciences 9, 299 (1978)., 2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998).].

Entre 1891 e 1898, Lenard trabalhou na Universidade Bonn, na Alemanha, onde conduziu extensas pesquisas sobre as propriedades de propagação, absorção e difusão dos raios catódicos, cujo entendimento ainda era limitado naquele período. Nesse período, por quatro anos, ele foi professor-assistente de Heinrich Rudolf Hertz (1857–1894). Uma de suas principais contribuições científicas, daquela época, ficou conhecida como a “janela de Lenard”. Um dispositivo inovador, que possibilitava o estudo dos raios catódicos em sua forma pura, ou seja, sem a interferência dos gases rarefeitos presentes nos tradicionais tubos de Crookes [1[1] B.R. Wheaton, Historical Studies in the Physical Sciences 9, 299 (1978)., 2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998).].

Nesse meio tempo, ele recebeu prêmios internacionais em reconhecimento à sua contribuição para os estudos sobre os raios X, realizados por outros cientistas, por meio do seu novo aparato experimental. A primeira identificação desse fenômeno foi feita pelo físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen (1845–1923), em 1895, sendo menosprezadamente considerada por Philipp Lenard como “um bom exemplo de descoberta afortunada” [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 105]. Em 1896, ambos receberam o “Baumgartner Prize” da Academia Austríaca de Ciências, além das “Rumford Medals” da Sociedade Real de Londres. No ano seguinte, a Academia de Ciências de Paris concedeu o “Prix La Caze”, em física, para Philipp Lenard e, em fisiologia, para Wilhelm Röntgen [1[1] B.R. Wheaton, Historical Studies in the Physical Sciences 9, 299 (1978).]. No entanto, o primeiro Prêmio Nobel de Física, em 1901, organizado pela Academia Real Sueca de Ciências, foi concedido apenas a Wilhelm Röntgen, “em reconhecimento dos serviços extraordinários que ele prestou pela descoberta dos raios notáveis, posteriormente nomeados em sua homenagem [‘raios Röntgen’, atualmente ‘raios X’] [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998).]. Esse posicionamento diferente do Comitê Científico sueco indica que as reivindicações de Philipp Lenard sobre a coautoria e participação nas observações experimentais dos raios X já haviam perdido força.

Entre os anos 1898 e 1902, suas pesquisas o conduziu à necessidade de uma série de estudos sobre o efeito fotoelétrico. Esse fenômeno permitia a geração de raios catódicos com baixas velocidades, livres da interferência de gases rarefeitos durante sua produção, o que os tornava ideais para as investigações das forças eletromagnéticas no interior de uma estrutura atômica. Pouco tempo depois, em 1905, Philipp Lenard foi laureado com o prêmio Nobel de Física, “por seu trabalho sobre os raios catódicos” [1[1] B.R. Wheaton, Historical Studies in the Physical Sciences 9, 299 (1978).]. Por ocasião do recebimento do prêmio, ele proferiu a palestra (“Nobel Lecture”) intitulada “Sobre os Raios Catódicos” [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998).].

As Nobel Lectures têm sido consideradas importantes fontes primárias de pesquisa em ensino de ciências [3[3] M.A.B. Whitaker, Physics Education 14, 239 (1979)., 4[4] M. Novaes, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, e4209 (2018)., 5[5] M.D. Cordeiro e L.O.Q. Peduzzi, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 27, 473 (2010)., 6[6] J.G. Licio e C.C. Silva, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 37, 146 (2020)., 7[7] L.S. Minella, Revista Brasileira de História da Ciência 10, 85 (2017)., 8[8] H. Eshach, Science & Education 18, 1377 (2009).]. Isso se deve ao fato de que, na maioria das vezes, a linguagem utilizada nos textos é acessível a professores e estudantes de disciplinas científicas, visto que tais palestras são elaboradas visando o público mais amplo que assiste ao evento. Embora exista a possibilidade de o cientista palestrante exagerar na reivindicação de suas próprias realizações, exigindo que os pesquisadores estejam atentos a eventuais distorções e narrativas egocêntricas, as Nobel Lectures contêm informações importantes e pouco divulgadas em textos acadêmicos e livros didáticos. Essas informações, muitas vezes, abordam questões epistemológicas fundamentais, como a origem do conhecimento científico, os métodos, os procedimentos e os processos da ciência, bem como a própria natureza do conhecimento produzido pelos cientistas e a influência do contexto histórico-social nas investigações científicas.

A Nobel Lecture proferida por Philipp Lenard tem o mérito de evitar o uso de linguagem matemática complexa e de conter diversas figuras ilustrativas, facilitando a compreensão dos possíveis leitores. Além disso, a apresentação é retrospectiva, pois ele propõe um levantamento histórico das publicações que, em sua opinião, trouxeram importantes contribuições para a pesquisa sobre as propriedades e a natureza dos raios catódicos até aquele momento. Ele ressalta, em diversos momentos, como seu trabalho foi influenciado por outros e vice-versa. Ainda em sua Nobel Lecture, ele descreve o desenvolvimento das pesquisas nesse campo, baseando-se em sua própria experiência. Expõe os principais percalços técnicos e científicos enfrentados ao longo de suas investigações, assim como as soluções encontradas. O tema principal do texto aborda os detalhes da controvérsia científica sobre a natureza dos raios catódicos entre os físicos ingleses e alemães no final do século XIX, evidenciando como suas investigações experimentais foram relevantes para esse campo de estudo.

Na seção a seguir, será descrita como a Nobel Lecture de Philipp Lenard foi utilizada como fonte primária histórica, bem como as implicações dos resultados obtidos para ampliação da investigação inicialmente pretendida.

3. Desenvolvimento e Procedimentos Metodológicos

A metodologia empregada neste estudo de caso consistiu na análise de conteúdo de fontes primárias e secundárias, sendo dividida em duas etapas.

Na primeira, seguindo a proposta sugerida pelo pesquisador André F. P. Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).] de abordagem investigativa por “temas” e “questões” sobre a NdC, realizou-se a leitura e análise da Nobel Lecture. O objetivo foi identificar os temas relacionados ao saber sobre ciências (conteúdo metacientífico), diretamente ligados a aspectos históricos, sociológicos e epistemológicos da construção do conhecimento científico. Como premissa de investigação, partiu-se do pressuposto de que os temas mais evidentes no texto selecionado seriam mais favoráveis para a problematização das visões distorcidas e de senso-comum sobre a atividade científica.

Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).] propõe uma abordagem investigativa, aberta, plural e heterogênea como alternativa para superar as várias críticas à forma e ao conteúdo da “visão consensual sobre NdC”, divulgada pelo pesquisador americano Norman G. Lederman (1950–2021) e seus colaboradores [10[10] N.G. Lederman, Journal of Research in Science Teaching 29, 331 (1992)., 11[11] N.G. Lederman, F. Adb-El-Khalick, R.L. Bell e R.S. Schwartz, Journal of Research in Science Teaching 39, 497 (2002)., 12[12] N.G. Lederman, em: Handbook of Research on Science Education, editado por S.K. Abell e N. G. Lederman (Routledge, New York, 2013).]. Nessa nova abordagem, o papel do professor é fomentar momentos de discussão e reflexão explícitas sobre “temas” e “questões” relativas ao saber sobre ciências, em de vez privilegiar a mera transmissão e memorização de princípios heurísticos declarativos descontextualizados sobre a suposta essência da atividade científica.

Com base em outros referenciais críticos citados na literatura de pesquisa em ensino de ciências, como Rosalind Driver et al. [13[13] R.H. Driver, J. Leach, S. Milliar e P. Scott (Open University Press, Londres, 1996).], Michael P. Clough [14[14] M.P. Clough, Science & Education 15, 463 (2006).], Douglas Allchin [15[15] D. Allchin, Science Education 95, 518 (2011).], Gürol Irzik e Robert Nola [16[16] G. Irzik e R. Nola, Science & Education 20, 591 (2011).], Michael R. Matthews [17[17] M.R. Matthews, em: Nature of Science Research, editado por M. Khine (Springer, Dordrecht, 2012).] e Agustín Adúriz-Bravo [18[18] A. Adúriz-Bravo, Review of Science, Mathematics and ICT Education 1, 41 (2007).], Martins apresenta dois eixos principais e inter-relacionados para investigação e discussão de “temas” e “questões” sobre a NdC: o eixo sociológico/histórico e o eixo epistemológico. Vários saberes sobre ciências podem ser debatidos, conforme apresentado na Tabela 1 da página 719 de seu trabalho [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).]:

O primeiro eixo agruparia temas relativos ao papel do indivíduo e da comunidade científica; a intersubjetividade; questões morais, éticas e políticas; influências históricas e sociais; ciência como parte da cultura; comunicação do conhecimento. O segundo eixo, mais amplo, agruparia temas relativos à origem do conhecimento (experiência x razão; papel da observação, da experiência, da lógica e do pensamento teórico; influência da teoria sobre o experimento), aos métodos, práticas, procedimentos e processos da ciência (coleta, análise e avaliação de dados; inferência, correlação e causalidade; modelagem em ciência; papel da imaginação e criatividade; natureza da explicação), e ao conteúdo/natureza do conhecimento produzido (papel de leis e teorias; noção de modelo; semelhanças e diferenças entre ciência e outras formas de conhecimento) [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015)., p. 718].

É importante ressaltar a característica “aberta” e “flexível” da abordagem sugerida por Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).]. Por exemplo, o tema relacionado ao eixo sociológico/histórico, que aborda o “papel dos indivíduos/sujeitos e da comunidade científica”, permite questionar a imagem distorcida em torno da atividade científica, como algo realizado de forma isolada, quase sempre por homens geniais predestinados, cujos resultados obtidos por eles são suficientes para validar novos conhecimentos científicos. Todavia, esse tema não se restringe apenas à discussão e reflexão sobre essa visão individualista e elitista da NdC. Pelo contrário, outros “temas” e “questões” podem complementar a discussão, como “influências históricas e sociais”, que problematizam como o contexto histórico-social interno e externo da organização das comunidades científicas impulsionam ou objetam o desenvolvimento de certas linhas de pesquisas. Ou, “a ciência como parte de uma cultura mais ampla”, que possibilita discussões sobre as diferenças entre os países no que se refere a uma “cultura científica”, ou, ainda “objetivos da ciência/objetivos do cientista”, para questionar como é definido aquilo que é escolhido para ser investigado naquele momento histórico, permeado pelas tensões entre os interesses individuais de um cientista e os coletivos (ou de um grupo dominante) da comunidade científica à qual ele pertence. Portanto, enfatiza-se que, ao selecionar um determinado “tema” ou “questão”, dentre os vários sugeridos por Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).], isso não significa que outros, intrinsicamente articulados, não possam surgir naturalmente nas discussões e reflexões.

Além do trabalho de Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).], considerou-se também a possibilidade de complementar a discussão com os apontamentos de Gil-Pérez et al. [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).]. Nesse estudo, os autores identificaram as principais concepções distorcidas sobre o trabalho científico, explicitando aquilo que deve ser rejeitado ao discutir e refletir sobre a NdC em sala de aula.

De acordo com Gil-Pérez et al. [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).], existem sete visões distorcidas sobre o trabalho científico. Essas visões retratam as ciências de maneira equivocada e ingênua, apresentando concepções como: a ideia de que as ciências eliminam dúvidas e incertezas apenas por meio de observações experimentais diligentes (1. visão empírico-indutivista e a-teórica); a crença em um “método científico universal” que dispensa a criatividade e a imaginação, desconsiderando as influências subjetivas na investigação (2. visão rígida – algorítmica, exata e infalível); a noção de que os conhecimentos científicos são neutros e objetivos, desvinculados de questões éticas, sociais, políticas e dos problemas científicos e tecnológicos de seu contexto histórico-social (3. visão a-problemática e a-histórica); a abordagem analítica e reducionista, que fragmenta os fenômenos naturais sem levar em consideração sua complexidade e interdependência entre diferentes áreas de pesquisa (4. visão exclusivamente analítica); a ideia de avanço científico, que pressupõe um acúmulo contínuo de conhecimento científico baseado em evidências experimentais (5. visão acumulativa e de crescimento linear); a crença de que a produção científica é realizada apenas por indivíduos excepcionais e talentosos, geralmente homens brancos geniais de nacionalidade europeia, que trabalham isoladamente (6. visão individualista e elitista); e a visão de que a ciência é descontextualizada e socialmente neutra, não sendo influenciada por valores socioculturais ou pelos contextos histórico, cultural, social, político e econômico (7. visão descontextualizada e socialmente neutra) [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).]2 2 Cada uma dessas visões distorcidas sobre o trabalho científico identificadas por Gil-Pérez et al. [19] será abordada na próxima seção, intitulada Análise e Discussão de Resultados, a fim de evitar repetições no texto. .

Dessa forma, nessa primeira etapa, o estudo buscou responder às seguintes questões:

  • Em que medida a proposta de abordagem investigativa sugerida por Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).], complementada pelo trabalho de Gil-Pérez et al. [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).], tendo como recorte histórico a Nobel Lecture de Philipp Lenard de 1905, pode ser utilizada para fomentar discussões e reflexões explícitas sobre a NdC, no contexto de formação de professores?

  • A partir desse recorte histórico, quais são os “temas” e “questões” mais evidentes e potencialmente mais favoráveis de serem explorados/investigados?

  • Dentre as sete visões distorcidas do trabalho científico identificadas por Gil-Pérez et al. [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).], quais são possíveis de serem exploradas e problematizadas nesse recorte histórico?

Uma vez que o apoio incondicional de Philipp Lenard ao regime nazista e sua liderança na chamada “Física Alemã” são reconhecidos, é pertinente indagar:

  • Em que medida os valores socioculturais compartilhados pela ideologia nazista, como o antissemitismo, a supremacia racial e o nacionalismo extremo, já estariam presentes, de algum modo, no levantamento histórico apresentado em sua Nobel Lecture de 1905?

Para responder a essa última pergunta foi preciso incluir outras fontes históricas. Nessa segunda etapa, conduziu-se uma pesquisa sobre a gênese e o desenvolvimento do movimento nazista autointitulado “Física Alemã”, entre 1920 e 1938, com ênfase na participação de Philipp Lenard. Os resultados desse estudo possibilitaram a construção de um relato histórico sobre o assunto, acompanhado de uma análise sociológica e epistemológica (ver Seção4.2 4.2. Segunda etapa da investigação Os temas e questões relacionados à NdC discutidos nesta seção requerem uma abordagem mais ampla, uma vez que as informações nela apresentadas não estão restritas apenas à Nobel Lecture analisada. Essa decisão se justifica por duas razões. Primeiramente, porque os resultados obtidos na primeira etapa deste estudo evidenciaram que a Nobel Lecture de Philipp Lenard enfatiza os aspectos epistemológicos (problemas, métodos e conteúdo) e influências histórico-sociais relacionadas apenas ao contexto interno da atividade científica, negligenciando informações relevantes a respeito do contexto externo. Isso limita a análise crítica sobre a “visão descontextualizada e socialmente neutra” do trabalho científico, uma das imagens distorcidas sobre a NdC identificada por Gil-Pérez et al. [19]. Por definição, os questionamentos a respeito dessa visão distorcida da NdC envolvem discussões e reflexões sobre “questões éticas, morais e políticas”, um dos temas sugeridos por Martins [9], no âmbito do eixo sociológico/histórico. Em segundo lugar, considerando o protagonismo de Philipp Lenard no contexto histórico-social da Alemanha nazista, na primeira metade do século XX, e sua liderança na chamada “Física Alemã”, surge uma oportunidade para que professores de física promovam discussões e reflexões sobre a complexa relação entre a produção do conhecimento científico e as questões éticas, morais e políticas – portanto, questões que envolvem valores socioculturais – que permeiam as sociedades nas quais esse conhecimento é produzido. Nesse contexto, surge a indagação sobre a possível presença dos valores socioculturais compartilhados pela ideologia nazista na Nobel Lecture analisada. Será que a defesa de Philipp Lenard da perspectiva ondulatória-eletromagnética dos raios catódicos foi influenciada por suas posições ultranacionalistas, em favor da ciência germânica, em detrimento da ciência inglesa? Para responder a essa questão, foi realizada uma pesquisa em outras fontes históricas que abordam a origem e o desenvolvimento do movimento nazista autointitulado “Física Alemã” entre 1920 e 1938. Os resultados desse estudo permitiram a construção de um relato histórico acompanhado de uma análise sociológica e epistemológica. Esse relato visa fornecer subsídios adicionais para discutir aspectos relacionados à NdC no contexto de formação de professores de física, problematizando questões éticas, morais e políticas na atividade científica, assim como a questionada a noção de neutralidade científica. (a) A “Deutsche Physik” sob a Liderança de Philipp Lenard e Johannes Stark Durante as décadas de 1920 e 1938, em uma sociedade alemã politicamente e ideologicamente conflituosa, com visões nacionalistas de extrema-direita (endurecidas após a derrota na Primeira Guerra Mundial) e com sentimento de ódio antissemita generalizado e crescente, surgiu o autointitulado movimento “Física Alemã” (“Deutsche Physik”) ou “Física Ariana” (“Arische Physik”). Sob a liderança dos físicos Philipp Lenard e Johannes Stark, ambos laureados com o Prêmio Nobel de Física (em 1905 e em 1919, respectivamente). Esse movimento teve grande influência durante o regime nazista, servindo como ferramenta para propagar sua ideologia antissemita e justificar suas políticas de discriminação e perseguição aos cientistas judeus [22–27]. Os dois físicos nazistas afirmavam que as características culturais e raciais judaicas “estragavam” a pureza do pensamento científico alemão, rotulando a ciência produzida pelos físicos judeus como uma “fraude judaica internacional”. Essa visão supremacista da perspectiva da “Física Alemã” acerca das relações intrínsecas entre ciência “autêntica” e a pureza racial ariana (ou entre a raça do povo judeu e a ciência “falsa”) é evidente em um trecho do artigo intitulado “Nacional Socialismo e a Ciência”, escrito por Johannes Stark em 1934: Na medida em que o trabalho científico não é meramente imitação, mas criação real, como qualquer outra atividade criativa, ele é condicionado pelos dons espirituais e caracterológicos de seus praticantes. Como os membros individuais de um povo têm um dom comum, a atividade criativa dos cientistas de uma nação, tanto quanto a de seus artistas e poetas, assim assume o selo de um distinto tipo Völkish [nativo alemão]. Não, a ciência não é internacional; é tão nacional quanto a arte. Isso pode ser evidenciado pelo exemplo de alemães e judeus nas ciências naturais [26, p. 206, tradução nossa]. Compartilhando da mesma crença supremacista, em agosto de 1935, Philipp Lenard enfatizou a ligação entre a ciência “autêntica” e a pureza racial ariana no primeiro parágrafo do “Prefácio à Física Alemã” de seu manual intitulado “Física Alemã em Quatro Tomos” (“Deutsche Physik in vier Bänden”). Ele ataca a visão daqueles que afirmavam que a ciência era um esforço coletivo internacional independente das características pessoais, como raça, gênero ou formação, do pesquisador individual: Alguém poderia perguntar: Física Alemã? Poderia ter dito também física ariana ou física dos povos de tipo Nórdico, física dos fundamentadores da realidade, dos perseguidores da verdade, a física daqueles que fundaram a pesquisa científica. Vocês poderiam contestar-me: “A ciência é internacional e permanecerá sempre assim!” Mas isso é inevitavelmente baseado em uma falácia. Na realidade, como tudo que o homem cria, a ciência é determinada pela raça e pelo sangue. Ela pode parecer internacional quando resultados científicos universalmente válidos são erroneamente atribuídos a uma origem comum, ou quando não se reconhece que a ciência fornecida por povos de diferentes países é idêntica ou semelhante à ciência alemã, e que sua ciência só poderia ter sido produzida em virtude e na medida em que outros povos são ou foram igualmente uma mistura racial predominantemente nórdica. Nações de diferentes misturas raciais praticam a ciência de maneira diferente [27, p. 100, tradução nossa, grifo do autor]. Observa-se que, por causa da crença nazista em uma suposta pureza do sangue ariano e nos dons espirituais exclusivos dos homens germano-nórdicos (um argumento racista, supremacista e nacionalista), os autodenominado “físicos arianos” defendiam que a ciência verdadeira só poderia ser desenvolvida por eles. Consequentemente, esta seria superior e mais confiável do que as ciências praticadas por outros povos. Para eles, os cientistas judeus, um povo considerado de sangue impuro, sem o dom espiritual ariano, de raça inferior, produzia uma ciência não apenas diferente, mas também significativamente inferior à ciência germano-nórdica. Os argumentos dos “físicos arianos” também abrangiam a dimensão epistemológica da natureza das ciências, apropriando-se, indevidamente, de questões sérias, relevantes e legítimas sobre o papel das hipóteses e da experimentação, entre elas: a separação entre ciência e metafísica, a importância da matemática na produção do conhecimento científico, bem como a definição de teoria científica e seus objetivos. Essas discussões foram distorcidas ao incorporar elementos racistas, baseados na linhagem sanguínea [23]. Johannes Stark afirmou: O respeito aos fatos e a aptidão para observação exata reside na raça germano-nórdica. (…) O espírito do alemão permite-lhe observar as coisas fora de si exatamente como são, sem a interpolação de suas próprias ideias e desejos, e seu corpo não se esquiva do esforço que a investigação da natureza exige dele. O amor do povo alemão pela natureza e sua aptidão para as ciências naturais são baseados nesse dom espiritual. Assim, é compreensível que a ciência natural seja predominantemente uma criação do componente sanguíneo nórdico-germânico do ariano [26, p. 206, tradução nossa]. Observa-se no trecho destacado uma perspectiva epistemológica fortemente empirista e positivista adotada pelos “físicos arianos” em relação ao processo de construção do conhecimento científico. Nessa visão, a coleta, a observação e a análise de dados são consideradas neutras, objetivas e imparciais, guiadas com total respeito aos fatos empíricos, e supostamente desprovidas de qualquer viés subjetivo, como preferências teórico-metodológicas, crenças pessoais, interesses ou expectativas de resultados. Além disso, os “físicos arianos” defendiam que a formulação, a publicação de hipóteses, das leis, dos princípios e das teorias científicas deveriam ser restringidas pelo apoio de correspondências empíricas amplas e sólidas, as quais teriam sido previamente obtidas, a partir da aplicação rigorosa, diligente e infalível do método científico experimental hipotético-dedutivo [22–27]. Evidentemente a epistemologia empirista e positivista não foi uma criação nazista. No entanto, o trecho destacado revela uma distorção dos fundamentos dessa epistemologia por Johannes Stark. Ele afirma que a pureza sanguínea e os dons espirituais da raça germano-nórdica conferiam aos “físicos arianos” uma aptidão inata para as ciências naturais. Observa-se que, essa suposta dádiva condicionava-os a um maior respeito aos fatos empíricos, tornando-os superiores a outros cientistas ao conseguir abandonar seus vieses subjetivos em seus trabalhos científicos. Para Philipp Lenard e Johannes Stark, cientistas como Isaac Newton (1643–1727), Johannes Kepler (1571–1630) e Charles Robert Darwin (1809–1882) eram os exemplos primordiais a serem seguidos pelos cientistas arianos [26]. Por outro lado, de acordo com a crença nazista de Stark e Lenard, os “físicos judeus”, em virtude de seu espírito judaico e a suposta impureza de sangue, eram uma raça inferior, considerada degenerada, sem escrúpulos e inerentemente corrupta. Consequentemente, isso os tornava incapazes de conduzir investigações científicas de maneira neutra, objetiva e imparcial. Alegava-se que o ego dos “físicos judeus”, juntamente com seus interesses por dinheiro, fama e prestígio, os levavam a misturar fatos empíricos e desejos pessoais, resultando em pouca aptidão para as ciências naturais. Segundo essa visão distorcida de Stark, o objetivo dos “físicos judeus” era a confirmação de suas teorias a qualquer custo, em vez de buscar uma compreensão exata da natureza [26]. Na perspectiva de Philipp Lenard e Johannes Stark, as teorias científicas desenvolvidas por cientistas de origem judaica deveriam ser consideradas meras abstrações e especulações fantasiosas, desprovidas de qualquer mérito científico. Ademais, os “físicos arianos” defendiam a ideia de que o conhecimento científico deveria estar fundamentado em uma visão determinista e mecanicista dos fenômenos naturais, rejeitando as especulações abstratas e probabilísticas que resultassem de um suposto exagero no formalismo matemático na interpretação física da realidade. Eles consideravam a teoria da relatividade e a física quântica como exemplos da “fraude judaica internacional” [22–27]. Philipp Lenard, em particular, elegeu, acima de tudo, a perspectiva epistemológica einsteiniana como a principal representação da decadência da ciência germano-nórdica. Em 13 de maio de 1933, ao escrever o artigo intitulado “Um grande dia para a Ciência: Johannes Stark é nomeado Presidente do Instituto Físico e Técnico do Reich”, ele fez as seguintes declarações sobre o ambiente acadêmico e científico, na época, e sua relação com as ideias de Einstein: Essa recente nomeação é um acontecimento de grande importância para todos aqueles envolvidos na ciência. Ela representa uma renúncia clara à predominância aparentemente inevitável do que pode ser brevemente denominado de pensamento einsteiniano na física, e é um movimento em sentido à reafirmação das antigas prerrogativas dos cientistas: pensar de forma independente, guiados unicamente pela natureza […]. […] Na física, o limite foi alcançado, isto é, de cima para baixo. Com a massiva introdução de judeus em posições influentes também em universidades e academias, a base de todo conhecimento científico, a observação direta da própria natureza, foi esquecida e deixou de ser considerada válida. O conhecimento das coisas do mundo externo supostamente deveria se basear nas fantasias da mente humana. Essas ideias, imediatamente chamadas de “teorias”, tinham então que ser “provadas” por experimentadores. Os últimos geralmente cumpriam com zelo e prontidão a pesquisa mais superficial possível. Com a repressão de comentários francos em oposição a tais procedimentos, a “liberdade de pesquisa” assumiu um novo sabor. Os resultados já podem ser sentidos em geral: grandes segmentos da população perderam a confiança na ciência atualmente aceita. Somente a tecnologia, que se baseia em conquistas de pesquisas sólidas anteriores, poderia continuar a ganhar essa confiança. (…) O exemplo mais proeminente da influência prejudicial dos judeus na ciência foi fornecido pelo Sr. Einstein com suas “teorias”, que são uma combinação de conhecimento [experimental] sólido que já existia anteriormente e algumas adições arbitrárias que foram unidas matematicamente. Essas teorias estão agora desmoronando, revelando o destino inevitável dos produtos antinaturais. Mesmo cientistas renomados não podem ser poupados de críticas, pois permitiram que o “judeu da relatividade” ganhasse um forte apoio na Alemanha em primeiro lugar, não vendo ou não querendo ver quão equivocado era, mesmo do ponto de vista não científico, considerar exatamente esse judeu como um “bom alemão” [27, p. 19–50, tradução nossa]. Dessa forma, percebe-se que as críticas dos “físicos arianos” não se baseavam somente em elementos raciais, sanguíneos e culturais. Esses elementos racistas foram indevidamente incorporados às controvérsias legítimas e relevantes, já existentes na comunidade científica, sobre a natureza epistemológica das ciências naturais. Especialmente quanto ao valor atribuído às bases empíricas, à matemática e ao papel das conjecturas abstratas e especulativas no processo de construção e validação de teorias científicas. De outro modo, na perspectiva dos “físicos arianos”, o problema epistemológico fundamental residia em uma abordagem estrangeira, judaica-internacional e degenerada, em contraste com a natureza empirista e positivista das ciências germânicas-nórdicas [23, 24, 25]. Os pressupostos epistemológicos da “Física Alemã” são coerentes e consistentes com a pragmática e tradicional educação científica germânica de Philipp Lenard e Johannes Stark. Ambos foram físicos experimentais muito talentosos. Em particular, as investigações de Lenard sobre os raios catódicos produziram contribuições significativas para compreensão da estrutura da matéria e da natureza da eletricidade. Isso é claramente observado não apenas no discurso de apresentação de sua Nobel Lecture pelo presidente da Real Academia Sueca de Ciências, mas também em seu detalhado levantamento histórico e pelas diversas homenagens e prêmios que ele recebeu ao longo de sua carreira. No entanto, conforme observado pelo escritor inglês John Cornwell em seu livro “Cientistas de Hitler: ciência, guerra e pacto com demônio”, “brilhantismo individual e êxito cedo na ciência não são, é claro, garantia dos princípios racionais, desapaixonados e universais. (…) A existência de um ambiente científico, bem financiado, independente e ideal para descobertas inovadoras, não é garantia de consciência política madura” [22, p. 100]. Embora ele fosse um físico experimental renomado e de elevado nível profissional, suas qualidades como físico teórico eram consideradas duvidosas por outros cientistas. Em resposta aos seus ataques públicos à teoria da relatividade, em 27 de agosto 1920, Einstein escreveu uma carta ao jornal Berliner Tageblatt intitulada “A minha resposta. Sobre a teoria da anti-relatividade”, na qual afirmou: Um grupo heterogêneo se uniu para formar uma organização sob o pretensioso nome de “Sindicato dos Cientistas Alemães [para a Preservação da Ciência Pura]”, atualmente com o único propósito de atacar a teoria da relatividade e a mim como seu autor aos olhos dos não-físicos. (…) Entre os físicos de renome internacional, só posso citar o Sr. Lenard como um crítico franco da teoria da relatividade. Admiro o Sr. Lenard como um mestre da física experimental; entretanto, ele ainda tem que realizar algo em física teórica, e suas objeções à teoria da relatividade geral são tão superficiais que eu não considerei necessário até agora respondê-las em detalhes. (…) Além disso, o Sr. Gehrke faz alusão às objeções do Sr. Lenard, muitas das quais estão ligadas a exemplos da mecânica da vida cotidiana. Essas objeções já estão invalidadas com base em muitas provas gerais de que, em primeira aproximação, as afirmações da teoria da relatividade geral estão de acordo com as da mecânica clássica [27, p. 1–3, tradução nossa]. Filósofos e historiadores sugerem que Philipp Lenard era um sujeito de caráter profundamente conturbado, com forte sentimento de que suas realizações científicas eram constantemente roubadas por outras “mentes inferiores” [23–25]. Conforme registrado em seu breve relato biográfico disponibilizado pela Fundação Nobel, “algumas de suas descobertas foram grandes e outras muito importantes, mas ele reivindicou para elas mais do que seu verdadeiro valor” [2, p. 137, tradução nossa]. O ressentimento por estar sendo ignorado e não recebendo o devido mérito pela comunidade científica internacional pode ser observado logo no primeiro parágrafo de sua Nobel Lecture: Assim – utilizando o símile que vocês, meus estimados colegas da Academia das Ciências, têm usado no topo do seu diploma de membro –, falarei agora não apenas dos frutos, mas também das árvores que os produziram, e daqueles que plantaram essas árvores. Essa abordagem é a mais adequada no meu caso, pois nem sempre fui contado entre aqueles que colhem os frutos; tenho sido repetidamente apenas um daqueles que plantaram ou cuidaram das árvores, ou que ajudaram a fazer isso [2, p. 105, tradução nossa]. Com efeito, três ocasiões são particularmente importantes para a compreensão dos seus ressentimentos amargurados em relação a outros cientistas. A primeira ocorreu em 1895, quando o físico alemão Wilhelm Konrad Röentgen (1845–1923) relatou a observação dos raios X, produzidos a partir de um novo “tubo de raios catódicos”, cuja construção é indiscutivelmente atribuída a Lenard. Ele considerou a realização científica de Röentgen como “um bom exemplo de descoberta afortunada” [2, p. 105] e reivindicou a coautoria e reconhecimento de sua participação na observação dos raios X, uma vez que sua colaboração tinha sido essencial para Röentgen obter uma válvula altamente sensível, necessária para produção dos raios X no novo tubo de Crookes. Entretanto, em 1901, o comitê científico do primeiro Prêmio Nobel considerou que suas reivindicações não se sustentavam, e decidiu que somente Röentgen era digno da honraria [2]. A segunda refere-se à resolução da controvérsia científica acerca da natureza dos raios catódicos entre os físicos do Reino Unido e da Alemanha, na qual a teoria corpuscular inglesa do elétron, defendida principalmente por meio dos trabalhos de Joseph John Thomson (1856–1940), se sobressaiu sobre a teoria ondulatória-eletromagnética defendida pelos cientistas alemães. “Lenard detestava seu ex-colaborador inglês J. J. Thomson. Acusava-o de explorar sua pesquisa sobre o efeito fotoelétrico sem reconhecê-lo, e, portanto, alimentava um profundo desprezo pela ciência inglesa como um todo, que achava desleixada” [22, p. 101], descreveu John Cornwell. Ele fez questão de registrar em sua Nobel Lecture que no livro publicado por J. J. Thomson em 1903, intitulado “Condução de Eletricidade através de Gases” (“Conduction of Electricity through Gases”), uma de suas publicações foi erroneamente datada (um ano depois do que foi mencionado), em virtude de uma reimpressão posterior, enquanto o original não foi alterado pelo autor6. A terceira desenvolveu-se a partir de 1905, quando Albert Einstein propôs sua “hipótese de quantum de luz” como um dos fundamentos para teoria quântica da radiação e sua famosa “lei do efeito fotoelétrico”, formulada e corroborada, parcialmente, com base nos dados empíricos obtidos por Lenard três anos antes em suas investigações sobre o efeito fotoelétrico. Nos 10 anos seguintes, a hipótese heurística revolucionária de Einstein foi responsável pelo ambiente de controvérsia científica na comunidade de físicos teóricos e experimentais, rivalizando diretamente com a, até então, bem aceita “hipótese de gatilho” de Lenard, proposta em 1902 e refutada em meados de 1911 a partir de suas próprias observações experimentais em colaboração com o físico alemão Carl Ramsauer7. Em contrapartida, a “lei fotoelétrica de Einstein” alcançou um consenso científico quanto à sua corroboração empírica após a série de testes experimentais realizada pelo físico norte-americano Robert Andrews Millikan (1868–1953) e seus colaboradores no Laboratório Ryerson na Universidade de Chicago entre 1914 e 19168. Compartilhando a avaliação subjetiva de Einstein em 1920, deve-se reconhecer que Philipp Lenard fez importantes contribuições para a física experimental. Entretanto, suas inferências teóricas e modelos científicos propostos, a partir de suas observações empíricas nem sempre foram tão bem-sucedidas. É possível conjecturar que, somada à ira inflamada decorrente da já mencionada resposta ácida de Einstein, em 1920, contra as objeções superficiais anti-relativistas, seus sentimentos de amargura (e de antissemitismo) se aprofundaram ainda mais quando, em 1921, Albert Einstein – um físico judeu de renome internacional crescente – foi laureado com o prêmio Nobel de Física “por seus serviços à Física Teórica, e especialmente por sua descoberta da lei do efeito fotoelétrico”9. O escritor John Cornwell cita duas tragédias pessoais que se abateram sobre Lenard após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, além do seu ferido orgulho ultranacionalista. A primeira, de caráter familiar, ocorreu quando seu único filho, Werner Lenard, com apenas 22 anos, faleceu em fevereiro de 1922, em decorrência de uma infecção renal latente e períodos, de desnutrição severa, durante a guerra. A segunda foi de caráter financeiro: “(…) Lenard foi um dos investidores que trocaram ouro por títulos que perderam o valor nos anos inflacionários da República Democrática de Weimar. Ele estava convencido de que fora roubado de sua fortuna por políticos judeus” [22, p. 102]. Do ponto de vista profissional, seu antissemitismo militante lhe trouxe uma delicada situação em junho de 1922. Ele foi duramente repreendido por ter-se recusado a içar a bandeira de seu instituto na Universidade Heidelberg a meio-mastro, em sinal de respeito ao ministro das Relações Exteriores de Weimar, Walther Rathenau que havia sido assassinado por dois oficiais militares fanáticos de extrema-direita. Rathenau era um amigo pessoal de Einstein, político, industrial judeu, que Lenard julgava ter causado danos irreparáveis à Alemanha. O episódio ganhou atenção da mídia após a ocupação do instituto pelo político social-democrata Carlo Mierendorff, apoiado por um grupo de estudantes e trabalhadores10. O Senado da Universidade de Heidelberg considerou suas atitudes e de Mierendorff muito graves. O ministro da Cultura de Baden propôs como penalidade sua suspensão temporária, que foi revogada após uma manifestação de apoio da Sociedade de Física [22]. Em decorrência dessa reprimenda, ele demitiu-se do instituto da Universidade de Heidelberg com bastante desgosto. Dois anos mais tarde, em 08 de maio de 1924, seis meses após o fracassado golpe em Munique com o qual Hitler e o Partido Nazista tentaram tomar o poder democrático e republicano de Weimar, Lenard e Stark11 escreveram um artigo intitulado “O Espírito de Hitler e a Ciência”, proclamando sua lealdade irrestrita a Hitler, no qual afirmaram: Ele [Adolf Hitler] e seus camaradas de luta nos aparecem como dons de Deus dos tempos antigos, quando as raças eram mais puras, as pessoas eram maiores e as mentes menos iludidas. Isto nós sentimos; e estes dons divinos não devem ser tirados de nós. Somente este pensamento já deveria ser uma base sólida o suficiente para manter o espírito alemão unido para seu grande objetivo: fundar uma nova Alemanha, com Hitler ‘batendo o tambor’, na qual o espírito alemão não é apenas tolerado novamente até certo ponto e libertado da prisão, não, mas na qual o espírito alemão é protegido, cuidado e assistido para que ele possa finalmente prosperar novamente e desenvolver-se ainda mais para a reivindicação da honra da vida em nosso planeta, que agora é dominado por um espírito inferior. As universidades e seus estudantes fracassaram, sobretudo naquelas matérias que já deveriam ter definido o ritmo há muito tempo. Mas também é muito melhor que “o homem do povo” esteja fazendo isso. Ele está aqui. Ele se revelou como o “Führer do sincero”. Nós vamos segui-lo [27, p. 9, tradução nossa]. Inicialmente, Lenard esteve diretamente envolvido em diversas campanhas publicitárias discriminatórias e racistas contra a teoria da relatividade de Einstein. Em 1920, em Berlim, com o auxílio do ativista de extrema-direita Paul Weyland, ele orquestrou uma denúncia pública durante um encontro realizado pelo “Sindicato dos Cientistas Alemães para a Preservação da Ciência Pura”. Em outra ocasião do mesmo ano, Einstein e Lenard debateram frente-a-frente e respeitosamente sobre aspectos científicos relacionados à teoria da relatividade no Congresso da Sociedade de Cientistas e Médicos Alemães, realizado na cidade de Bad Nauheim. Contudo, dois anos mais tarde, em 1922, Einstein recusou-se a participar do mesmo congresso, ocorrido em Leipzig, temendo ser fisicamente agredido por fanáticos antissemitas12. Em 1931, cerca de uma centena de intelectuais germânicos antissemitas contribuíram para um volume denunciando Einstein e suas teorias. No entanto, entre os signatários, havia pouquíssimos físicos alemães renomados além de Lenard e Stark. Como resultado da influência dos valores socioculturais nefastos defendidos pela ideologia nazista, tais como nacionalismo extremo, totalitarismo, antissemitismo e supremacia racial ariana, muitos cientistas judeus, como Albert Einstein, Max Born, James Franck, Lise Meitner e Niels Bohr, tiveram suas produções acadêmicas constantemente atacadas por campanhas publicitárias discriminatórias13 e sofreram perseguições institucionais baseadas em motivos raciais. As ações discriminatórias incluíram desde a não-nomeação para cargos e cátedras em institutos e universidades, recusas de publicações de artigos e livros por editoras, bloqueios de recursos financeiros por agências de fomento, expulsões de laboratórios de pesquisa, além de outros tipos de violências e arbitrariedades que restringiam a liberdade de pesquisa [23–25]. A crescente e violenta repressão nazista na comunidade científica, entre 1920 e 1933, causou um grande êxodo de cientistas da Alemanha, muitos dos quais migraram para outros países, especialmente para os Estados Unidos e, em menor grau, a Inglaterra, o Canadá e a América Latina, onde continuaram a contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico [25]. A partir de 1926, Lenard e Stark se tornaram membros convictos do Partido Nacional Socialista de Adolf Hitler e mantiveram adesão irrestrita a ele. Por sua vez, anos mais tarde, o partido correspondeu-lhes com o prestígio e status outrora tão desejados. Em poucos anos, eles estabeleceram influências sobre vários programas de pesquisas com aplicações militares, trabalhando em estreita colaboração com a Luftwaffe (força aérea tática) e o exército [23–28]. Johannes Stark (aos 59 anos) foi nomeado em maio de 1933 “Presidente do Instituto Físico e Técnico do Reich” (“Physikalisch-Technische Reichsanstalt – PTR, equivalente à Agência Brasileira de Normas Técnicas – ABNT), com certa influência nos postos-chave na gestão científica na Alemanha nazista. Philipp Lenard (aos 71 anos) tornou-se “Chefe da Física Alemã”, um tipo de “Führer” que representava e propagava os valores da ciência nazista, por meio de uma série de palestras, artigos e livros. Na Figura1, é possível observar Philipp Lenard sendo agraciado com um doutorado honorário pela Universidade de Heidelberg em 1942. O indivíduo vestindo um uniforme nazista é Wilhelm Ohnesorge, Ministro do Reich dos Correios, que foi aluno de Lenard durante seu tempo na Universidade de Kiel. Figura 1 Philipp Lenard recebendo um doutorado honorário na Universidade de Heidelberg em 1942. Fonte: AIP Emilio Segre Visual Archives. Em janeiro de 1933, quando Hitler assumiu o cargo de chanceler do Reich, uma das primeiras medidas antissemitas oficiais adotadas pelos nacional-socialistas foi a “Lei de Restauração do Serviço Público Profissional”. Essa lei, promulgada em 07 abril daquele ano, determinava que “§3 (1) Os funcionários públicos que não são descendentes de arianos devem ser aposentados; (…) e no caso de funcionários honorários, eles devem ser demitidos do cargo” (citado por ref. [26, p. 21–22, tradução nossa]). Essa lei teve um impacto negativo e imediato na comunidade científica de físicos alemães, pois cerca de 25% do total era considerado “não-ariano”. Além disso, o regime nacional-socialista colocava sob total controle político a ciência e a universidades alemães, em geral, e a física, em particular, por considerá-la um covil de judeus e comunistas [25]. Nos anos seguintes, as perseguições aos cientistas judeus e aos seus familiares, incluindo cônjuges e parentes não-arianos, intensificaram-se. Essas ações resultaram em prisões, assassinatos, perda de bens e propriedades, trabalhos forçados em campos de concentração e outras atrocidades. Rapidamente, a comunidade de física alemã perdeu sua primazia na ciência14. “Somente na Universidade de Göttingen, um dos maiores e principais centros de pesquisa alemães em física teórica da época, um quarto dos cientistas foi perdido” [25, p. 151]. Simbolicamente, pode-se dizer que o centro de gravidade da física teórica deslocou-se da Universidade de Göttingen (Alemanha) para Universidade de Princeton (Estados Unidos). De acordo com o escritor Philip Ball, ex-editor da revista Nature, autor do livro “Servindo ao Reich: a luta pela alma da física sob Hitler”, a resposta da comunidade científica alemã a esses éditos nazistas parece hoje perturbadoramente complacente [25]. Segundo o autor, após a década de 1930, Einstein, em geral, recebia apoio público de seus colegas físicos alemães quanto às suas ideias científicas revolucionárias. Entretanto, o autor ressalta que, na maioria das vezes, as discussões sobre política e raça eram evitadas, a fim de manter uma clara distinção entre tais assuntos “problemáticos” e as pesquisas científicas de Einstein. Philip Ball também realça uma citação do editor austríaco da revista científica Naturwissenschaften, Paul Rosbaud, expressando sua consternação com a falta de firmeza dos acadêmicos alemães em relação aos éditos nazistas da época: Lembro-me de um ilustre membro da Universidade de Göttingen dizendo-me: «Se eles se aventurarem a despedaçar nossa universidade, expulsando homens como James Franck, [Max] Born, [Richard] Courant, [Edmund] Landau (os dois últimos matemáticos), nos ergueremos como um homem para protestar contra isso». No dia seguinte, os jornais noticiaram que os mesmos cientistas e muitos outros haviam sido demitidos por causa de sua raça judaica e sua influência degenerada sobre universidades e estudantes. E todos os outros membros da Universidade de Göttingen permaneceram sentados e esqueceram sua intenção de se levantar e protestar (citado por ref. [25, p. 152, tradução nossa]). A avaliação da situação por Léo Szilárd15, físico húngaro que trabalhava na Universidade de Berlim em 1933, mas que em breve partiria para a Inglaterra, ainda segundo Philip Ball, retrata a sensação de impotência por muitos cientistas da época: Percebi que os alemães sempre adotaram um ponto de vista utilitário. Eles perguntam: «Bem, suponha que eu me opusesse a isso, que bem eu faria? Eu não faria muito bem, apenas perderia minha influência. Então, por que devo me opor a isso?» Veja, o ponto de vista moral estava completamente ausente, ou muito fraco, e toda consideração era simplesmente, qual seria a consequência previsível de minha ação. E com base nisso cheguei à conclusão em 1931 de que Hitler chegaria ao poder, não porque a força da revolução nazista fosse tão forte, mas porque pensei que não haveria resistência alguma (citado por ref. [25, p. 152, tradução nossa]). No entanto, as influências negativas da ideologia nazista não se restringiram apenas aos aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais do processo de construção do conhecimento científico na sociedade alemã durante o Terceiro Reich. Os valores socioculturais da ideologia nazista estavam presentes também no conteúdo das próprias conjecturas científicas formuladas na época, como no caso das “teorias eugênicas alemãs”. Nessas teorias, o valor da supremacia racial era proeminente, e sua função era estabelecer as bases científicas para a antropologia, a história, a sociologia e a política, incluindo a origem das desigualdades físico-mentais entre arianos e não-arianos, a evolução superior da raça ariana, as causas dos comportamentos aberrantes e dos desvios de condutas ético-morais dos não-arianos e a adoção de medidas governamentais de controle social e purificação da raça ariana, respectivamente16. Embora tenha alcançado algum sucesso na disseminação e estabelecimento de valores ideologicamente nazistas no sistema acadêmico alemão, tendo como alvo os cientistas judeus e os apoiadores das teorias científicas de Einstein, o pequeno grupo de fanáticos e nacionalistas extremistas autointitulados “físicos arianos” não obteve influência suficiente para garantir o apoio incondicional do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Partido Nazista) quanto aos rumos do desenvolvimento científico-tecnológico [23–27]. Mais do que um mecanismo de propaganda ideológica ou interesse em disputas puramente acadêmicas entre teorias científicas arianas e judaicas, o Partido Nazista sabia da importância crucial da física para o desenvolvimento científico-tecnológico de armamentos militares cada vez mais poderosos, independentemente de suas raízes epistemológicas e de seus valores socioculturais subjacentes. Isso se tornou bastante evidente após a publicação dos primeiros estudos sobre fissão nuclear em 1938. Quando se tornou clara a possibilidade e a necessidade da construção de uma “bomba nuclear nazista”, na qual as teorias da física quântica e da relatividade (antes rotuladas pejorativamente de “fraude judaica internacional”) tinham um papel essencial, por fornecer uma interpretação mais precisa da estrutura da matéria, o Partido Nazista e os físicos experimentais alemães passaram a defender cada vez mais explicitamente investimentos em pesquisas voltadas para a aplicação tecnológica dessas teorias científicas [23–25]. Segundo o historiador George H. Mosse: Há poucas dúvidas de que a ciência nazista, ao afastar-se da famosa tradição das realizações científicas alemãs, contribuiu para o fracasso final do Terceiro Reich no esforço de guerra. Não foi por acaso que os Aliados, e não a Alemanha, desenvolveram a bomba atômica, a “arma milagrosa” pela qual Hitler esperou em vão [26, p. 200, tradução nossa]. Muitos cientistas apoiadores das teorias de Einstein conseguiram ser cautelosos o suficiente para seguir uma linha muito tênue que evitasse que seus trabalhos fossem endossados pelas visões políticas “problemáticas” de Einstein. Em particular, pelo não reconhecimento muito explícito do constructo da teoria da relatividade quando a utilizavam. Durante a 22 Guerra Mundial, o físico alemão Werner Heisenberg, por exemplo, constantemente omitia as referências aos trabalhos de Einstein de suas palestras “culturais” nos territórios ocupados, embora os conteúdos desses trabalhos estivessem presentes em suas exposições [25]. Além desse fator pragmático-tecnológico, os historiadores das ciências argumentam que a falta de habilidade política e de persuasão de Lenard e Stark contribuíram para o fracasso do movimento “Física Alemã” em reunir mais adeptos influentes dentro da comunidade científica. De acordo com o historiador das ciências americano John. L. Heilbron, “quanto a [Johannes] Stark, que retratava [Max] Planck como uma criatura de Einstein e um viciado em internacionalismo, sua incapacidade para muito além de intrigas e injúrias logo neutralizou sua influência. Se ele fosse menos louco, teria sido muito mais perigoso” [29, p. 171, tradução nossa]. No estudo de implicações epistemológicas relacionadas ao movimento “Física Alemã”, os filósofos Fábio A. Costa e Antônio A. P. Videira argumentam que certas objeções à física teórica eram, de fato, problemas relevantes, sendo muitas vezes propostos por estudiosos que não compartilhavam crenças políticas e raciais antissemitas [23]. Por meio de uma análise da posição do físico Werner Heisenberg (1901–1976), os autores mostram que as críticas epistemológicas dos físicos arianos foram levadas a sério por ele, não apenas por motivos políticos, mas representavam dilemas reais nas ciências naturais. “Em 17 de setembro de 1934, (…) Heisenberg teve suficiente perspicácia para tocar nos temas centrais apresentados pelos oponentes da física teórica, fato este que pode ser constatado já no próprio título da sua palestra [Recentes Mudanças nos Fundamentos das Ciências Exatas]” [ref. 23, p. 327]. Costa e Videira enfatizam que a seriedade do posicionamento filosófico de Werner Heisenberg frente ao ataque dos físicos arianos (mantendo-se particularmente atento a fim de evitar qualquer brecha que permitisse uma refutação complexa por parte de seus oponentes) foi importante, não apenas para reflexões epistemológicas sobre a natureza das ciências, mas para impedir o avanço ainda maior da ideologia nazista, propagada por Lenard e Stark no seio da comunidade científica [23]. Lenard encerrou sua carreira como professor de física teórica-experimental na Universidade de Heidelberg em 1931, alcançando o status de emérito antes de ser expulso de seu cargo pelas forças de ocupação aliadas em 1945, aos 83 anos. De 1927 a 1945, o Helmholtz-Gymnasium Heidelberg levou o nome de Philipp Lenard Schule, porém, como parte da eliminação dos nomes de ruas e monumentos nazistas, foi renomeado, em setembro de 1945, por ordem do governo militar. Philipp Eduard Anton von Lenard, casado com Katharina Schlehner, faleceu em 20 de maio de 1947 em Messehausen. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1947, Stark foi classificado como “Major Ofensor” e condenado a quatro anos de prisão (posteriormente suspensa) por um tribunal de desnazificação. Mais tarde, Johannes Stark passou seus últimos anos de vida em Gut Eppenstatt, perto de Traunstein, na Alta Baviera, onde morreu em 1957, aos 83 anos de idade. A literatura específica sobre as relações entre ciência e a ideologia nazista é bastante ampla e, de forma alguma, as informações apresentadas nesta seção almejam abranger todas suas nuances. Por outro lado, objetivou-se a partir desse breve contexto histórico-social (envolvendo não apenas as realizações científicas de Philipp Lenard mas também seus valores socioculturais nazistas e sua liderança no movimento “Física Alemã”) fornecer subsídios mínimos para que professores possam mediar a problematização de uma imagem socialmente neutra do trabalho científico, na qual “(…) esquecem-se as complexas relações entre ciência, tecnologia, sociedade (CTS) [e ambiente] e proporciona-se uma imagem deformada dos cientistas como seres “acima do bem e do mal”, fechados em torres de marfim e alheios à necessidade de fazer opções” [19, p. 133, grifo do autor]. A problematização sobre questões ética, morais e políticas sobre a NdC é, na verdade, uma necessidade emergente da própria concepção de “educação científica crítica”, cujo propósito é formar cidadãos conscientes, com um entendimento mais preciso sobre as práticas científicas. Desse modo, podem dispor de conhecimentos, habilidades, competências e senso crítico para avaliação de informações e tomada de decisões socialmente mais responsáveis acerca de problemas que envolvem ciência, tecnologia, sociedade, ambiente e as relações existentes entre eles. A constatação dos movimentos crescentes de negacionismo científico e de ataques às instituições acadêmicas e de pesquisa, representa, de certa forma, uma advertência à negligenciada problematização das imagens distorcidas do trabalho científico e à necessidade de que os professores de disciplinas científicas apresentem uma compreensão mais aprofundada sobre NdC. O movimento nazista “Física Alemã” teve um efeito negativo significativo na ciência alemã, levando a uma perda irreparável de talentos científicos e à supressão da livre troca de ideias e do pensamento crítico. Essa experiência sombria pode ser utilizada por professores de física como um lembrete das consequências devastadoras do preconceito, do racismo e da discriminação nas práticas científicas e na sociedade como um todo. Reforça-se a importância de reconhecer e combater essas formas de opressão, promovendo uma ciência inclusiva e justa para todos. (b) Philipp Lenard: Raízes Sombrias ou Visões de Mundo Transformadas? Realizou-se uma nova leitura da Nobel Lecture de Philipp Lenard com o objetivo de identificar evidências relacionadas à possível influência dos valores socioculturais, posteriormente compartilhados pela ideologia nazista, na elaboração do seu levantamento histórico realizado 20 anos antes. Em particular, a atenção foi direcionada aos valores de nacionalismo extremo, supremacia racial e antissemitismo. A segunda análise de conteúdo da Nobel Lecture não evidenciou indícios de que os valores socioculturais associados à ideologia nazista tenham influenciado diretamente a defesa da perspectiva ondulatória-eletromagnética dos raios catódicos (germânica) por Philipp Lenard, em detrimento da perspectiva corpuscular (inglesa). Não há indícios claros de que suas crenças pessoais antissemitas, ultranacionalistas e racistas tenham afetado sua posição científica. Foi realizado um levantamento das nacionalidades e crenças religiosas dos 29 autores citados por Lenard em sua Nobel Lecture. Verificou-se que a maioria dos autores era de nacionalidade alemã (14 autores), seguida por autores ingleses (7), franceses (4) e representantes de outras nacionalidades (austro-húngaro, holandês, italiano, neozelandês, norueguês e polonês) com um autor cada. Dentre esses autores, conseguimos identificar que apenas quatro eram descendentes de famílias judaicas: Gotthilf-Eugen Goldstein (1850–1930), Heinrich Rudolf Hertz (1857–1894), Walter Kaufmann17 (1871–1947) e Franz Arthur Friedrich Schuster (1851–1934). Essa conclusão não implica necessariamente que Philipp Lenard, em 1905, fosse uma pessoa completamente diferente, considerando seus valores e identidade no sentido amplo, daquele que mais tarde apoiaria o nazismo e a “Física Alemã”. Ela apenas indica que a análise do conteúdo de sua Nobel Lecture não fornece suporte claro para a hipótese de que suas crenças socioculturais influenciaram diretamente sua perspectiva científica ou a seleção dos autores mencionados. No entanto, é importante destacar que essa análise abrange apenas aspectos específicos da palestra, não oferecendo uma visão abrangente sobre as possíveis influências ideológicas em sua obra ou em sua carreira científica como um todo. Adicionalmente, há dois outros fatos que sugerem a necessidade de uma conclusão bastante cautelosa em relação à possível presença consciente de um viés ultranacionalista, racista e antissemita nas posições defendidas por ele na controvérsia científica sobre a natureza dos raios catódicos. Em primeiro lugar, em 1893, Lenard aceitou mudar-se de Heidelberg para Bonn para trabalhar como professor-assistente de Heinrich R. Hertz, um descendente de família judaica18. Ele lamentou em sua Nobel Lecture não ter tido mais contato com Hertz naquele período: “Certo dia ele me chamou – um evento que, para meu grande pesar na época, não ocorria com frequência – e me mostrou o que ele havia acabado de observar: um vidro de urânio coberto com folha de alumínio dentro de um tubo de descarga, brilhava sob a folha quando irradiado por cima” [2, p. 107, tradução nossa]. Em segundo lugar, de acordo com o relato biográfico do físico alemão August Becker (1879–1953), que foi orientado por George H. Quincke, em 1901, e, posteriormente, tornou-se professor-assistente de Philipp Lenard por muitos anos, observou-se uma mudança radical no comportamento e em suas atitudes em relação ao antissemitismo e ao ultranacionalismo, por volta de 1919. Essa transformação tornou o ambiente de trabalho insuportável após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. A conhecida transformação de Lenard em um fervoroso nacional-socialista por volta de 1919 teve um impacto extremamente negativo no desenvolvimento da física em Heidelberg, assim como no trabalho e na vida de August Becker. Becker relatou que “a atividade política descontrolada de Lenard no instituto tornou o trabalho com ele uma tortura, especialmente porque ele rejeitava hostilmente todos os contra-argumentos”. (…) Somente em 1935, Becker foi nomeado Professor e Diretor do Instituto de Física. No entanto, mesmo após a aposentadoria, Lenard manteve sua influência na vida do instituto. Para proteger o instituto e a si mesmo de possíveis ataques, Becker sentiu-se compelido a se juntar ao NSDAP [Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães] em 1940, embora não concordasse com as políticas nazistas. No entanto, isso apenas proporcionou uma proteção parcial. August Becker permaneceu dependente da liderança nazista e teve suas oportunidades de emprego limitadas19. Nesse sentido, a conclusão inferida anteriormente está em concordância com as considerações de Costa e Videira [23]. O caráter profundamente conturbado e estado emocional turbulento de Philipp Lenard e Johannes Stark (juntamente com o persistente sentimento de que suas realizações científicas e posições acadêmicas estavam sendo subjugadas por outros cientistas judeus, considerados por eles como mentes inferiores), aliados a algumas tragédias pessoais e à tensa situação política-econômica-social que precedeu a ascensão de Adolf Hitler ao poder, podem ser considerados motivos significativos que explicam a origem das doutrinas que criticavam a física teórica. De fato, assim como todas as atividades da sociedade, como educação, indústria, comércio, cinema, artes, esporte, entre outras, as ciências naturais foram absorvidas pela cultura nazista e desempenharam um papel significativo na legitimação e atribuição de uma aparência de credibilidade e respeitabilidade intelectual. “A importância dos fatos empíricos nunca foi negada; em vez disso, eles foram integrados à visão de mundo nazista” [26, p. 200, tradução nossa]. Em outras palavras, o movimento nazista “Física Alemã”, sob a liderança de Lenard e Stark, não passava de diferentes abordagens dos principais temas que permeavam a sociedade alemã nas primeiras décadas do século XX. A participação dos dois cientistas laureados com o prêmio Nobel, foi fundamental para construir uma ponte entre as ciências naturais e visão de mundo nazista, tornando o movimento “Física Alemã” importante para o desenvolvimento científico-tecnológico da Alemanha, mas também para tornar as ciências naturais um instrumento ideológico relevante para a luta política [26]. A avaliação da congruência entre as ideias de Philipp Lenard e as visões nazistas pode lançar luz sobre a possível influência ou conexão entre seus pontos de vista e os valores socioculturais que sustentavam o nazismo. No entanto, é importante ressaltar que essa análise requer um exame cuidadoso de outras fontes históricas que possam fornecer evidências adicionais sobre as convicções e associações pessoais de Lenard durante esse período. Embora a compreensão completa do contexto e dos fatores que influenciaram suas perspectivas seja de grande importância, tais análises estão além do escopo e dos objetivos do presente estudo, que já abrangeu uma ampla gama de tópicos relevantes. ). Esse relato está em consonância com o objetivo principal deste trabalho, buscando fornecer subsídios adicionais para discussão e reflexão de aspectos relacionados à NdC, no contexto de formação de professores de física.

Desse modo, busca-se problematizar as “questões éticas, morais e políticas” na atividade científica, assim como a tese de neutralidade científica. A discussão e reflexão sobre esse último tema torna-se ainda mais relevantes diante da recente constatação dos movimentos crescentes de negacionismo científico e de ataques às instituições acadêmicas e de pesquisa.

Por fim, realizou-se uma nova leitura da Nobel Lecture de Philipp Lenard com o objetivo de identificar evidências relacionadas à possível influência dos valores socioculturais compartilhados pela ideologia nazista na elaboração do seu levantamento histórico.

4. Análise e Discussão de Resultados

4.1. Primeira etapa da investigação

Após a leitura do discurso de apresentação e da tradução da Nobel Lecture, definiu-se que a análise crítica dos aspectos da NdC seria concentrada em dois temas principais: (i) o papel dos indivíduos/sujeitos e da comunidade científica; e (ii) controvérsias históricas e contemporâneas na ciência.

A escolha do primeiro tema justifica-se tendo em vista o objetivo estabelecido pelo próprio Philipp Lenard com a sua Nobel Lecture: “Descreverei o desenvolvimento do tema (…) com base em minha própria experiência. Isso me dará uma oportunidade bem-vinda de mostrar, por um lado, como meu trabalho tem dependido de outros e, por outro, como (…) os trabalhos de outros investigadores estão relacionados ao meu” [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 105, tradução nossa]. O segundo, justifica-se pela temática principal do texto: a história não linear, ao longo de quase 50 anos, da controvérsia científica entre as interpretações inglesa e alemã sobre a natureza dos raios catódicos. Levando-se em consideração a característica “aberta” e “flexível” da proposta de Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).], esses dois temas são amplos o suficiente para abranger outros subtemas e questões diferentes, que complementam efetivamente as discussões e reflexões sobre a NdC.

(i) Papel dos Indivíduos/Sujeitos e da Comunidade Científica

A retrospectiva histórica apresentada por Philipp Lenard permite ao leitor reconhecer que a área de pesquisa em raios catódicos já era considerada fecunda, promissora e controversa na comunidade de físicos por volta de 1893, quando ele iniciou suas próprias investigações. Nas primeiras páginas da sua Nobel Lecture, ele recorda que a primeira observação experimental desses raios ocorreu cerca de 24 anos antes do início dos seus estudos, em 1869, com o trabalho do físico alemão Johan Wilhelm Hittorf (1824–1914). Em seguida, destaca as contribuições subsequentes do também físico alemão Eugen Goldstein (1850–1930), em 1876, e do químico e físico inglês William Crookes (1832–1919), em 1879, o primeiro em relação aos estudos de deflexão eletromagnética dos raios e o segundo quanto às melhorias instrumentais nos tubos de raios catódicos. Além disso, Lenard enfatiza que Heinrich Hertz também estava com a atenção voltada para esse fenômeno em 1892, quando Hertz lhe ofereceu uma oportunidade como professor-assistente na Universidade de Bonn, na Alemanha.

Com base nessas informações preliminares, é possível constatar que, ao iniciar suas investigações, Lenard se deparou com uma tradição de pesquisa consolidada nessa área, com problemas e desafios estabelecidos que exigiam soluções, além de métodos, técnicas e procedimentos experimentais validados pela cultura científica da comunidade de físicos. Dessa forma, percebe-se que seu objetivo era solucionar uma questão de pesquisa importante, que não foi estabelecida por ele, mas pela própria comunidade de físicos da época: qual é a natureza dos raios catódicos? Mais especificamente, ele buscava investigar se os raios catódicos poderiam existir em sua forma “pura”, no lado de fora do tubo de Crookes, seja no ar ou em um ambiente evacuado.

Ao descrever o contexto de suas investigações científicas, Philipp Lenard adotou uma abordagem que segue uma perspectiva internalista, do ponto de vista da historiografia moderna das ciências3 3 O “contexto internalista” enfatiza a importância dos elementos internos na construção do conhecimento científico, como problemas técnico-científicos, a lógica, as evidências experimentais e os métodos científicos. Já o “contexto externalista” destaca a influência de fatores externos na produção e validação do conhecimento científico, como o contexto social, político, econômico e cultural. A discussão sobre a relação entre o conhecimento científico e fatores internos e externos ao próprio processo científico foge ao escopo deste trabalho. Para uma abordagem mais aprofundada sobre o assunto, recomenda-se a leitura do artigo de Jonathan Egeland intitulado “Scientific Evidence and the Internalism–Externalism Distinction” publicado na revista Acta Analytica, v. 37, n. 3, páginas 375–395, em 2022. Disponível em:https://doi.org/10.1007/s12136-021-00491-z. . Essa abordagem se concentra exclusivamente nos problemas e desafios enfrentados pelos cientistas em sua época. Embora seja importante reconhecer que essa escolha limita a análise e discussão das influências históricas e sociais apenas ao ambiente acadêmico, ainda assim, a leitura desse texto pode proporcionar ao leitor uma visão mais autêntica sobre a natureza das ciências, destacando “o papel dos indivíduos e da comunidade científica”. Tal posicionamento é justificado, porque as discussões e reflexões sobre a presença desse tema na Nobel Lecture permitem aos professores desconstruir, ou pelo menos questionar, duas imagens distorcidas a respeito do trabalho científico: a visão a-problemática e a-histórica, e a visão individualista e elitista.

Pode-se discutir a visão a-problemática e a-histórica (portanto, dogmática e fechada), que apresenta “(…) os conhecimentos já elaborados, sem mostrar os problemas que lhe deram origem, qual foi a sua evolução, as dificuldades encontradas etc., e não dando igualmente a conhecer as limitações do conhecimento científico atual nem as perspectivas que, entretanto, se abrem” [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001)., p. 131].

Pode-se argumentar contra essa visão ressaltando a importância do problema da natureza dos raios catódicos para as investigações experimentais de Philipp Lenard, incluindo a controvérsia científica entre as interpretações germânica (ondulatória-eletromagnética) e inglesa (corpuscular). No início do discurso de apresentação, o professor Anders Lindstedt (1854–1939), Presidente da Real Academia Sueca de Ciências, deixa explícito o problema de pesquisa sobre o qual Lenard e outros cientistas se esforçaram por muitos anos para a solucionar:

As características gerais desses raios catódicos são conhecidas há muito tempo, embora não o suficiente para esclarecer sua verdadeira natureza. (…) Os experimentos realizados, no entanto, foram muito dificultados pelo fato de parecerem estar restritos a fenômenos dentro do próprio tubo de vidro, uma vez que os raios catódicos terminavam na parede do tubo. A questão de saber se eles poderiam existir fora do tubo permaneceu sem resposta. Essas eram as circunstâncias que prevaleciam quando Lenard começou seu trabalho sobre os raios catódicos, em 1893 [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 101–102, tradução nossa].

Ou, nas próprias palavras do homenageado:

Nada conhecido até agora havia tornado possível resolver esse dilema entre o fluxo de moléculas e o fenômeno do éter; esses experimentos fariam isso e, em qualquer caso, portanto, revelariam algo bastante novo [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 115–116, tradução nossa].

Também é possível problematizar essa imagem a-problemática e a-histórica do trabalho científico ao analisar os problemas técnico-científicos que impulsionaram o desenvolvimento das investigações após os trabalhos de J. Hittorf, em 1869. Quando H. Hertz e Philipp Lenard iniciaram suas investigações sobre o assunto, os demais cientistas dessa área de pesquisa enfrentavam dificuldades para estudar os raios catódicos em sua forma “pura”, ou seja, sem a interferência dos gases rarefeitos presentes no interior dos tradicionais tubos de Crookes, utilizados em sua produção e propagação.

A natureza problemática e histórica do trabalho científico, com ênfase nas tentativas de solucionar problemas técnico-instrumentais, assim como a relação entre diferentes áreas de pesquisas, também é evidente em outro trecho da Nobel Lecture, no qual Lenard relata como suas investigações sobre raios catódicos se conectaram com outras pesquisas sobre o efeito fotoelétrico:

Como os raios [catódicos] mais rápidos ou mais lentos se comportariam? Algumas predições podem ser feitas com base em meus primeiros experimentos, em que a voltagem e, portanto, a velocidade variava ligeiramente (18a, p. 266; 19; 21, p. 261)4 4 As referências dentro das citações da tradução da Nobel Lecture estão apresentadas na “Lista Cronológica das Publicações” organizada por Lenard ao final do seu texto (ver material suplementar). . Os raios muito rápidos poderiam ter uma capacidade de absorção extremamente leve (alto poder de penetração); os raios lentos, em contrapartida, pareciam mais adequados para produzir informações sobre as forças dos átomos, a constituição da matéria. Durante muito tempo, no entanto, parecia impossível realizar testes puros em uma gama suficientemente ampla de velocidades, uma vez que o vidro do tubo de descarga não podia suportar as fortes tensões necessárias para os raios muito rápidos, e os raios lentos, embora fáceis de produzir no tubo, não conseguiam emergir através da janela; eles eram muito absorvíveis. Outros arranjos também falharam. Ambos os problemas, o dos raios mais lentos e o dos mais rápidos, foram finalmente resolvidos de maneiras bastante inovadoras [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 120, tradução nossa].

O excerto mostra que havia um problema técnico-instrumental com relação ao seu estudo de absorção e difusão dos raios catódicos em meios materiais: como produzir raios catódicos em uma ampla gama de velocidades, que variam desde, extremamente rápidos (próximos à velocidade da luz), até muito lentos, sem que esses últimos fossem totalmente absorvidos dentro do tubo? A primeira solução veio do estudo dos fenômenos radioativos, em particular do fenômeno do decaimento beta, enquanto a segunda foi encontrada na produção de fotocorrente, por meio de iluminação com luz ultravioleta, ou seja, o efeito fotoelétrico.

É importante ressaltar o potencial dos resultados de uma determinada investigação científica para identificar problemas e questões de pesquisa, e, portanto, ampliar o corpus de conhecimentos científicos disponível. O relato de Lenard mostra que seus estudos revelaram-se fecundos para responder outra importante questão de pesquisa, no final do século XIX: qual a natureza dos átomos? Em suas palavras:

O que são esses finos constituintes dos átomos? Que em todos os átomos eles são os mesmos, presentes apenas em números variáveis, já foi concluído mediante a lei de proporcionalidade entre massa e absorção. Agora podemos aprender mais detalhes. Podemos usar os quanta dos raios catódicos como pequenas partículas de teste que permitimos atravessar o interior dos átomos e, assim, descobrir informações a respeito [da estrutura atômica] [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 120, tradução nossa].

Observa-se que essas informações podem ser suficientes para que os professores corroborem a afirmação de Gil-Pérez et al. [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).], citando o estudioso francês Gaston Bachelard: “todo o conhecimento é a resposta a uma questão”. Além disso, é possível reconhecer que os problemas de pesquisa, dificuldades técnico-instrumentais e as controvérsias científicas estão intrinsicamente relacionadas às limitações no conhecimento científico em determinada época e às incertezas decorrentes dessas limitações.

Em segundo lugar, é possível questionar a visão individualista do trabalho científico, na qual “os conhecimentos científicos aparecem como obras de gênios isolados, ignorando-se o papel do trabalho coletivo e colaborativo, dos intercâmbios entre equipes (…) Em particular, faz-se crer que os resultados obtidos por um só cientista ou equipe podem ser suficientes para verificar, confirmar ou refutar uma hipótese ou inclusive toda uma teoria” [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001)., p. 133]. Além de uma concepção individualista, transmite-se, em conjunto, uma concepção elitista, que retrata a atividade científica como exclusiva para minorias talentosas, predominantemente masculinas, perpetuando expectativas negativas e discriminações sociais e de gênero. Essa visão que retrata o trabalho do cientista (homem branco europeu) como sendo feito de forma isolada e autossuficiente, transmite uma percepção arrogante de que a contribuição dos estudos e críticas de outros cientistas é desprovida de qualquer relevância.

Essa imagem pode ser problematizada por meio de contra-argumentos sobre a relevância dos trabalhos científicos predecessores e contemporâneos sobre os raios catódicos, evidenciando o caráter coletivo e colaborativo da atividade científica. Lenard faz questão de explicitar:

Tenho o prazer de cumprir minha obrigação, como um ganhador do Prêmio Nobel, de falar aqui sobre os raios catódicos (…) Isso me dará uma oportunidade bem-vinda de mostrar, por um lado, como meu trabalho tem dependido de outros e, por outro, como em um ou dois pontos subsequentes, ou mais ou menos contemporâneos, os trabalhos de outros investigadores estão relacionados ao meu [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 105, tradução nossa].

No decorrer do texto, embora apresente uma abordagem um tanto egocêntrica em relação ao próprio trabalho, Lenard enfatiza a contribuição de outros 37 cientistas, correspondendo a quase 70% das referências citadas, os quais exerceram uma influência direta em suas pesquisas. É importante mencionar que, entre todas as referências citadas, apenas o trabalho de Marie Curie, uma cientista do sexo feminino, foi mencionado, evidenciando a escassez de mulheres na comunidade científica alemã (e europeia), revelando o pensamento científico elitista da época.

No entanto, é válido ressaltar que a imagem coletiva e cooperativa de trabalho científico retratada por ele corresponde exclusivamente aos atores sociais que compõem o “conjunto de cientistas”, deixando de mencionar a contribuição de técnicos, ilustradores, mestres de oficina e outros profissionais que frequentemente, desempenham um papel essencial no desenvolvimento científico-tecnológico, mas são negligenciados e invisibilizados nos artigos, relatórios científicos e demais documentos. Essa observação, quando problematizada por professores em sala de aula, oportuniza discussões e reflexões sobre o conceito mais abrangente de trabalho coletivo e colaborativo na atividade científica, além de questionar a visão elitista, e socialmente assumida, de um trabalho científico-intelectual sobrepondo-se a um trabalho técnico-prático.

Ainda nessa linha de raciocínio, no início da Nobel Lecture, Lenard destaca outro aspecto fundamental envolvendo “o papel dos indivíduos/sujeitos e da comunidade científica” e o caráter coletivo e colaborativo do trabalho científico: a disponibilidade de recursos materiais para realização de pesquisas avançadas. Ele escreveu:

Foi só mais tarde, quando eu era assistente de [Georg Hermann] Quincke em Heidelberg, que tive a oportunidade e as instalações para construir uma bomba de ar de mercúrio capaz de produzir uma rarefação muito alta – até então de forma alguma um equipamento padrão em institutos de física –, para eu mesmo realizar testes sobre os raios catódicos [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 106, tradução nossa].

Novamente, é importante enfatizar que a abordagem de Lenard restringe a análise e discussão das influências históricas e sociais exclusivamente ao contexto interno às ciências. Ou seja, na maneira como a organização das comunidades científicas impulsiona ou objeta o desenvolvimento de certas linhas de pesquisa. Posto isso, fica evidente que suas ações e decisões foram influenciadas pelo contexto econômico e histórico-social acadêmico alemão. No trecho mencionado acima, foram considerados os objetivos de pesquisa e a disponibilidade de recursos para as investigações avançadas sobre raios catódicos. Ele ressalta a relevância do período em que atuou como professor-assistente em Heidelberg (sob a orientação de Georg H. Quincke), destacando que teve acesso a recursos materiais e oportunidades para desenvolver uma bomba de ar de mercúrio capaz de gerar uma rarefação significativa no tubo de Crookes, o que viabilizou a realização de testes mais precisos sobre os raios catódicos.

Ao frisar a raridade desse equipamento tecnológico nos demais institutos de física da época, o relato de Lenard possibilita a reflexão sobre a necessidade de investimentos em pesquisa científica, tanto públicos quanto privados. Ademais, enfatiza-se a importância da colaboração e do intercâmbio entre equipes para superar a escassez de recursos e equipamentos específicos em alguns grupos de pesquisa. Essa reflexão possibilita a discussão sobre caráter coletivo e colaborativa do trabalho científico, evidenciado pela cooperação entre Lenard e outros físicos alemães, como Röntgen, Hertz e Quincke. Por fim, as informações trazidas por Lenard mostram como o contexto econômico e tecnológico pode influenciar a atividade científica, revelando que esta envolve muitos fatores além da simples curiosidade e intuição dos pesquisadores.

(ii) Controvérsias Históricas e Contemporâneas nas Ciências

A partir das informações apresentadas na Nobel Lecture, o debate e a análise crítica do tema “controvérsias históricas e contemporâneas nas ciências” possibilitam aos professores questionarem quatro imagens distorcidas sobre a NdC, conforme apresentadas no trabalho de Gil-Pérez et al. [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).]: a visão empírico-indutivista e a-teórica; a visão rígida (algorítmica, exata e infalível); a visão acumulativa e de crescimento linear; e a visão exclusivamente analítica.

No discurso de apresentação, o professor Anders Lindsted destaca a contribuição das investigações experimentais de Lenard para a resolução da controvérsia científica acerca da natureza dos raios catódicos, que existia principalmente entre os cientistas do Reino Unido e da Alemanha:

As características gerais desses raios catódicos são conhecidas há muito tempo, embora não o suficiente para esclarecer sua verdadeira natureza. Vinte anos atrás [aproximadamente 1885], dois conceitos basicamente diferentes prevaleciam. De acordo com um desses conceitos, que foi defendido especialmente pelos físicos alemães, os raios catódicos consistiam, como os raios normais de luz, em movimentos ondulatórios no éter. De acordo com o outro conceito, que era popular principalmente entre os cientistas ingleses, os raios catódicos deveriam consistir em partículas que eram ejetadas do cátodo e carregadas com eletricidade negativa. A decisão por uma ou outra dessas teorias baseou-se nos resultados da pesquisa experimental [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 101, tradução nossa].

Ao analisar esse episódio histórico, o leitor pode construir uma imagem mais bem-informada a respeito dos problemas enfrentados pela física no fim do século XIX, reconhecendo havia intensas discussões, debates e controvérsias entre duas teorias científicas acerca da natureza dos raios catódicos. Por um lado, havia a teoria corpuscular, que os concebia como partículas de matéria portadoras de eletricidade negativa (perspectiva inglesa). Por outro, havia a teoria ondulatória-eletromagnética, que os concebia como análogos à luz visível, ou seja, como movimentos oscilatórios no éter luminífero (perspectiva germânica).

Depois de conseguir mostrar que era possível a transmissão dos raios catódicos de dentro para fora do tubo de vidro, e realizar experimentos sobre sua absorção, difusão e permeabilidade em diferentes materiais sólidos, no ar livre e no vácuo extremo, Lenard descreveu como, em sua perspectiva, a controvérsia científica parecia ter sido resolvida em favor da interpretação germânica:

De imediato, podemos decidir se os raios catódicos são fenômenos que ocorrem na matéria ou no éter. (…) Agora, sabe-se há muito tempo, por exemplo, que o som não pode passar através de tais câmaras evacuadas, enquanto a luz e as forças elétricas e magnéticas podem. (…) Não havíamos conseguido realizar o teste correspondente em relação aos raios catódicos nos tubos de descarga comuns, porque, uma vez que todo o ar é retirado, a produção dos raios em tal tubo cessa. Contudo, sem o mínimo de interferência em sua produção, conseguimos evacuar completamente nossa câmara de observação do outro lado da janela e ver se, apesar disso, os raios catódicos se propagam nesta câmara. Descobrimos que a propagação dos raios é particularmente boa em vácuo extremo5 5 Segundo Roth [31, p. 204] as bombas de mercúrio do período atingiam pressões de até 10 microTorr. Levando em consideração os parâmetros atuais, o vácuo obtido por Lenard pode ser classificado como médio para alto. ; toda absorção e turbidez em virtude das moléculas de gás desaparecem, os raios atingem comprimentos de vários metros e são de tal nitidez retilínea que estamos acostumados a encontrar apenas em raios de luz (18). Assim, os raios catódicos são fenômenos no éter [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 114, tradução nossa, grifo do autor].

A partir desse trecho, é possível reconhecer o raciocínio por analogia nas conclusões de Lenard (propagação do som, da luz e dos raios catódicos no vácuo), algo bastante comum na atividade científica. Percebe-se que, a partir sua observação experimental de que os raios catódicos se propagavam por vários metros com nitidez e de forma retilínea no vácuo extremo, de forma análoga à luz visível, o físico alemão inferiu que os raios eram, necessariamente, um tipo de fenômeno ondulatório-eletromagnético propagando-se no éter luminífero.

Os professores têm a oportunidade de problematizar a visão empírico-indutivista e a-teórica do trabalho científico, uma imagem distorcida sobre a NdC amplamente identificada na literatura de pesquisa em ensino de ciências, de acordo com Gil-Pérez et al. [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).]. Segundo os autores, essa visão equivocada “(…) destaca um papel supostamente “neutro” e “objetivo” da observação e da experimentação, esquecendo o papel essencial das hipóteses como orientadoras da investigação científica, assim como dos corpos coerentes de conhecimentos (teorias) disponíveis, que orientam o processo” [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001)., p. 129].

Em outras palavras, muitas vezes apresenta-se as ciências como algo construído apenas por fatos empíricos e lógica dedutiva, desconsiderando (e, portanto, invalidando por omissão) a importância da imaginação, da criatividade e do raciocínio por analogia no desenvolvimento de uma teoria científica. No entanto, é crucial reconhecer que o uso de analogias é uma ferramenta guia importante na investigação científica. Ela permite aos cientistas fazer inferências ou criar novas hipóteses, a partir dos dados observados. Por meio de comparações entre situações semelhantes, os cientistas podem identificar padrões, fazer previsões e estabelecer relações causais.

O trecho anteriormente realçado ainda possibilita um debate a respeito das influências teóricas sobre as observações experimentais e sobre o papel das hipóteses na orientação das investigações científica. Além disso, ressalta a importante diferença entre observação e inferência. Pode-se comentar que, nesse estágio das investigações, Lenard afirmava que os raios catódicos não poderiam ser partículas tão diminutas de matéria a ponto de atravessar a vedação da janela de alumínio do tubo de raios catódicos (“a janela de Lenard”, como ficou conhecida) e propagar-se, em linha reta, por vários metros na câmara evacuada, como pequenos projéteis em alta velocidade. Em outras palavras, naquele momento, ele tinha uma forte crença no conceito de átomo indivisível. Daí, sua inferência subjetiva de que esses raios, uma vez atravessando a vedação, só poderiam ser algum tipo de fenômeno ondulatório no éter, análogo a outras radiações eletromagnéticas, como a luz visível.

No entanto, Joseph John Thomson (1856–1940) e outros cientistas ingleses discordavam dessa interpretação. Para eles, já existiam indícios suficientes a partir dos estudos de deflexão eletromagnética (mesmo realizados dentro do tubo de raios catódicos com a presença de gases rarefeitos) que apontavam para uma conclusão inequívoca: os raios catódicos consistiam em partículas de matéria muito menores do que o átomo de hidrogênio, que até então era considerado o menor átomo conhecido. Na perspectiva inglesa, sua propagação em linha reta, por vários metros, na câmara evacuada, análoga à trajetória de projéteis em alta velocidade, também corroborava as predições da teoria corpuscular. Logo, não poderia ser considerada uma evidência experimental crucial que implicava, indiscutivelmente, em uma natureza ondulatória-eletromagnética.

Essas e outras informações trazidas ao longo de sua Nobel Lecture envolvendo a controvérsia científica entre as perspectivas inglesa e germânica sobre a natureza dos raios catódicos, permitem aos professores explicitar a ocorrência natural de divergências entre cientistas, mas, também, mostrar as razões dessas discordâncias. Em muitos casos, podem ter um caráter subjetivo, relacionando às crenças pessoais dos cientistas e ao papel desempenhado na interpretação dos dados experimentais. Além do mais, nota-se que essas divergências são decorrentes das limitações do conhecimento científico disponível na época.

Ainda a respeito da questão relacionada à natureza das observações experimentais, em outra parte da do texto, Lenard faz um comentário sobre os preparativos para uma nova série de testes experimentais sobre os raios catódicos. Ele percebeu que muitos cientistas já estavam inclinados a aceitar a perspectiva inglesa, principalmente devido às recentes publicações de J. J. Thomson de 1897, que hoje são consideradas como os trabalhos que corroboraram a existência do elétron. Evidenciando a importância do ceticismo na atividade científica, Lenard afirmou: “Parecia-me que antes de fazer parte da estrutura da ciência, isso deveria ser testado tão diretamente e rigorosamente quanto possível, com os meios à nossa disposição” [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 116, tradução nossa]. As conclusões desses estudos, evidenciam a possibilidade de interpretações contraditórias sobre um mesmo fenômeno:

Os raios não são moléculas eletricamente carregadas emitidas, mas simplesmente transmissão de eletricidade. Assim, nos raios catódicos, encontramos, debaixo de nosso nariz, o que nunca acreditamos que veríamos: eletricidade sem matéria, cargas elétricas sem corpos carregados. Em certo sentido, descobrimos a própria eletricidade, uma coisa cuja existência ou inexistência e cujas propriedades intrigam os investigadores desde [William] Gilbert e [Benjamin] Franklin. (…) Descobrimos nos raios catódicos uma maneira tão boa de estudar a eletricidade quanto encontramos anteriormente apenas para as forças elétricas; podemos seguir o movimento da eletricidade para lá e para cá nesses raios por distâncias que se estendem por vários metros, à vontade e diretamente com nossos sentidos – sem quaisquer conclusões teóricas intermediárias; podemos ver como a eletricidade se comporta sob diferentes condições, e quais são suas propriedades; estamos agora em circunstâncias de dar ao antigo termo “eletricidade” um novo conteúdo baseado na experiência [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 116, tradução nossa].

As diferentes interpretações para a natureza dos raios catódicos são extremamente emblemáticas e têm grande relevância na compreensão autêntica do trabalho científico. A afirmação explícita de Lenard, em contradição com a conclusão de J. J. Thomson, sobre a possibilidade de ter observado “a própria eletricidade” (sem matéria), evidencia como suas hipóteses e previsões, construídas a priori, com base na teoria ondulatória-eletromagnética da natureza dos raios catódicos, influenciaram suas análises. Isso confirma o papel da subjetividade do cientista, em que suas crenças teóricas, metodológicas e epistemológicas, bem como suas expectativas pessoais, podem influenciar interpretações distintas, a partir de um mesmo conjunto de dados empíricos.

Ao continuar a leitura da Nobel Lecture, é possível perceber que as informações apresentadas propiciam discussões e reflexões explícitas sobre a visão simplista e dogmática do trabalho científico. Essa perspectiva distorcida sobre conhecimento científico, associada à abordagem empírico-indutivista, resulta na crença de que a aplicação rigorosa do “método científico” pode resolver todos os impasses e controvérsias científicas. Isso propicia uma visão rígida e infalível do trabalho científico, retratando-o como algo algorítmico, preciso e absolutamente correto [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).]. Em outras palavras, essa perspectiva transmite a ideia de que a aplicação diligente de um suposto “método científico universal” é suficiente para a resolução de qualquer controvérsia científica. Desse modo, as dúvidas e as incertezas são atribuídas apenas a fatores externos, ou subjetivos dos pesquisadores que não tenham aplicado diligentemente os procedimentos metodológicos.

É comum encontrar estudantes e professores que defendem a ideia de que a confiança e a credibilidade atribuídas pela sociedade ao trabalho científico derivam da aplicação rigorosa do “método científico”. Essa visão rígida e infalível sobre a natureza do conhecimento científico distorce sua imagem autêntica. Frequentemente, essa perspectiva é respaldada pela apresentação do “método científico hipotético-dedutivo” como um conjunto de etapas sequenciais, que devem ser seguidas rigidamente, com ênfase no controle quantitativo na coleta de dados. Com isso, são negligenciadas a importância da criatividade, da tentativa e erro, da dúvida e da reflexão intuitiva, assim como das limitações do conhecimento científico disponível. No entanto, esses aspectos são inerentes ao trabalho científico, que, essencialmente, é incerto [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).].

Nesse contexto, pode-se problematizar o trecho a seguir no qual Lenard relembra o estágio de suas investigações científicas, destacando a importância das novas observações experimentais acerca da deflexão eletromagnética dos raios catódicos, agora em um ambiente de vácuo extremo. Segundo ele, essas observações seriam cruciais para a resolução da controvérsia científica em favor da interpretação germânica:

Agora era hora de realizar esses testes importantes sob condições experimentais claramente definidas, ou seja, fora do tubo de descarga e em um vácuo muito alto, e alguma excitação quanto ao resultado era permissível. Quer dizer, se já sabemos que os raios são éteres, e não fenômenos materiais, deve ser espantoso que o seu comportamento ainda se assemelhasse tão enganosamente ao de moléculas de gás carregadas, negativamente ejetadas. Nada conhecido até agora havia tornado possível resolver esse dilema entre o fluxo de moléculas e o fenômeno do éter; esses experimentos fariam isso e, em qualquer caso, portanto, revelariam algo bastante novo [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 115–116, tradução nossa].

Pode-se constatar que a observação experimental anteriormente mencionada, que evidenciava a propagação retilínea por vários metros dos raios catódicos no vácuo extremo, não foi suficiente para resolver a controvérsia científica a respeito de sua natureza. Nesse sentido, o relato de Lenard é bastante explícito quanto às dificuldades de resolução, mostrando a persistências de dúvidas e incertezas, mesmo após diversas pesquisas experimentais. Isso ocorreu porque os mesmos resultados experimentais se encaixavam em ambas as teorias científicas concorrentes.

Todos esses temas e questões discutidos até o momento envolvem as “controvérsias históricas e contemporâneas nas ciências”, que geralmente são omitidas ou distorcidas em uma visão dogmática e fechada sobre o trabalho científico. Entretanto, quando explicitados e exemplificados, revelam-se as complexidades e dificuldades presentes na resolução, como neste caso. Essa compreensão permite reconhecer as implicações das limitações do conhecimento científico, tanto teórico quanto experimental, no final do século XIX. Nesse ponto, é oportuno analisar e discutir a interpretação que Lenard fez dos resultados experimentais obtidos sobre o efeito fotoelétrico em 1902, baseando-se na teoria clássica ondulatória-eletromagnética. Ele afirmou:

Em primeiro lugar – um ponto importante para experimentos puros – os raios catódicos também ocorrem em vácuo completo no qual o método usual falha. (…) Em segundo lugar considerando o efeito da luz ultravioleta na placa, devemos imaginar que as ondas de luz fazem vibrar o interior dos átomos da placa metálica. Mencionamos anteriormente que a descoberta de [Pieter] Zeeman provou que os átomos contêm eletricidade negativa capaz de vibração. Se a co-vibração de um quantum negativo no átomo com as ondas de luz se torna muito violenta, o quantum escapa do átomo e, portanto, da placa; temos um raio catódico […] [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 122–123, tradução nossa]. […] A velocidade de escape já mencionamos como muito baixa. Também descobri que a velocidade é independente da intensidade da luz ultravioleta, e assim concluí que a energia de escape não provém da luz, mas do interior do átomo em particular. A luz tem apenas uma ação iniciadora, semelhante a espoleta ao disparar uma arma carregada. Considero essa conclusão importante, pois dela aprendemos que não apenas os átomos do elemento rádio – cujas propriedades estavam apenas começando a ser discernidas com mais detalhes naquela época – contém reservas de energia, mas também os átomos dos outros elementos químicos; estes também são capazes de emitir radiação e, ao fazê-lo, talvez se decomponham completamente, correspondendo à desintegração e à rugosidade das substâncias em luz ultravioleta. Essa visão foi recentemente corroborada no Instituto Kiel por experimentos especiais que também mostraram que o efeito fotoelétrico ocorre com velocidades iniciais inalteradas mesmo na temperatura do ar líquido [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 123, tradução nossa, grifo do autor].

Essa interpretação, conhecida como “hipótese de gatilho”, foi amplamente aceita pela comunidade de científica por quase 10 anos. Percebe-se que, nessa perspectiva, os resultados experimentais obtidos fornecem um suporte adicional à teoria clássica ondulatória-eletromagnética. Portanto, em 1902, tanto para Lenard quanto para muitos outros físicos da época, o efeito fotoelétrico não representava uma anomalia para teoria clássica, mas sua confirmação experimental.

No entanto, a abordagem pseudo-histórica presente nos livros-didáticos (que remete à visão empírico-indutivista e à visão rígida e infalível) afirma que somente uma única interpretação foi possível, após as investigações sobre o efeito fotoelétrico: “esse resultado experimental não pode ser explicado pela física clássica” [20[20] D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos da Física: óptica e física moderna (LTC, Rio de Janeiro, 2016), v. 4., p. 593]. Dessa forma, são omitidas e desconsideradas quaisquer outras interpretações e conclusões, igualmente válidas, para o mesmo conjunto de observações empíricas, uma vez que suas investigações foram realizadas a partir da aplicação diligente do “método científico hipotético-dedutivo”. O ditado comum de que “contra fatos não há argumentos” é frequentemente usado para sustentar essa visão simplista e dogmática do trabalho científico.

A discussão anterior possibilita aos professores ampliar as reflexões ao abordar a visão distorcida da NdC que se baseia na ideia de um crescimento linear e acumulativo dos conhecimentos científicos. Essa perspectiva considera que “o desenvolvimento científico aparece como fruto de um crescimento linear, puramente acumulativo (…) que ignora as crises e as remodelações profundas (…) fruto de processos complexos que não se desejam e deixam moldar por nenhum modelo (pré)definido de mudança científica” [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001)., p. 132].

Essa visão está estreitamente articulada com a visão empírico-indutivista e com a visão rígida e infalível, transmitindo uma imagem distorcida do trabalho científico, desconsiderando os percalços para aceitação de novas ideias. Sem explorar como teorias concorrentes interpretam os novos resultados experimentais à luz de seus modelos teóricos. Sugere-se que, uma vez confirmada a correspondência empírica de uma determinada lei ou teoria, seguida de sua aceitação pela comunidade científica, tal conhecimento científico permanecerá totalmente preservado e se fortalecerá no futuro. Sofrerá, no máximo, pequenas modificações para aumentar a abrangência de explicação, o rigor, a precisão e a aplicação. Em outras palavras, as ciências são retratadas como um corpus de conhecimento que sempre cresce de forma acumulativa e linear ao longo da história.

O levantamento histórico analisado oferece subsídios para questões relevantes e estimula uma reflexão sobre a visão simplista da ciência como um processo cumulativo e linear. Talvez, o exemplo mais didático na Nobel Lecture seja a conclusão de Lenard sobre a hipótese de “variação quantitativa dos átomos e moléculas”. Elaborada no tempo dos alquimistas e esquecida, essa hipótese estava sendo revisitada entre os anos de 1893 e 1895, com a ajuda dos resultados experimentais de suas pesquisas sobre absorção e difusão dos raios catódicos, em relação a diferentes materiais sólidos. Ele afirmou:

(…) as moléculas dos mais variados materiais e, portanto, também os átomos dos diferentes elementos químicos variam, não qualitativamente, mas apenas quantitativamente, uns dos outros, ou seja, todos eles consistem no mesmo material básico, mas contêm diferentes quantidades dele. Essa antiga e quase esquecida hipótese dos alquimistas, mas por causa da falta de dados válidos, foi trazida de volta vividamente à nossa mente, desta vez, entretanto, não para desaparecer novamente, mas para ser provada; como evidência disso, podemos citar os resultados recentes de [William] Ramsay (54) e [Ernst] Rutherford (51) sobre a incrível transformação do rádio em outros elementos [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 113, tradução nossa].

No trecho citado, é mencionado que essa inferência foi possível porque os dados indicavam que tanto a absorção quanto a difusão e turbidez dos raios estavam relacionadas apenas à massa do material em questão, ou seja, à quantidade de matéria. Observa-se que ao descrever o ressurgimento dessa antiga hipótese dos alquimistas – “variação quantitativa dos átomos e moléculas” – como uma conjectura a ser corroborada experimentalmente, o relato histórico evidencia o desenvolvimento não linear das ciências, mostrando que mesmo hipóteses refutadas, no passado, não desaparecem por completo. Elas podem ser revisitadas e, até mesmo, confirmadas com o apoio de novos dados válidos.

A partir das informações apresentadas na Nobel Lecture é possível reconhecer um ambiente constante de divergência e argumentação entre os cientistas. Essa divergência abrange tanto os aspectos teóricos quanto validade dos métodos, procedimentos e resultados experimentais. A Nobel Lecture analisada evidencia uma história não linear de construção do conhecimento científico, com avanços e retrocessos, na busca pela melhor compreensão dos fenômenos.

A formulação posterior da “hipótese de quantum de luz” de Albert Einstein (1905), como uma alternativa à “hipótese de gatilho”, juntamente com sua interpretação quântica para o mesmo conjunto de resultados empíricos obtidos, em 1902, por Lenard, e a derivação da “lei do efeito fotoelétrico” mostram que não se pode descartar a possibilidade de ocorrer uma mudança significativa nos fundamentos conceituais em qualquer área da pesquisa científica. Isso ressalta que, mesmo uma teoria, consolidada e bem-sucedida, pode enfrentar crises, exigindo modificações, substituição por outra, ou tendo sua validade restringida a grupo específico de fenômenos. Exatamente como ocorreu com a teoria ondulatória-eletromagnética após o desenvolvimento da teoria quântica da radiação.

Essas informações refletem a dinâmica complexa e não linear da atividade científica, na qual a problematização, a discussão e a reflexão contribuem para a construção de uma imagem mais autêntica da prática científica. O episódio histórico analisado fornece subsídios para que professores e estudantes possam discutir e refletir explicitamente sobre como o conhecimento científico é construído, a partir de um processo complexo e dinâmico, permeado por debates e divergências, com possibilidades de mudanças significativas em teorias e concepções já consolidadas.

É válido fazer alguns comentários sobre a distorção sobre trabalho científico, designada visão exclusivamente analítica, e como o levantamento histórico na Nobel Lecture pode auxiliar os professores em suas discussões e reflexões sobre esse tema. Essa visão transmite uma imagem sobre a NdC como algo exclusivamente analítico e reducionista, realçando, como a própria designação da visão afirma, apenas a necessidade de dividir os estudos em partes cada vez menores, com o objetivo de aprofundar a compreensão dos fenômenos naturais. As áreas de pesquisas e as disciplinas científicas são retratadas como estudadas isoladamente, ignorando e omitindo a complexidade, a interdependência e as possíveis unificações entre os diferentes campos de estudo, ou seja, uma síntese [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).].

No discurso de abertura, o professor Anders Lindstedt comentou como as pesquisas de Lenard se conectava com outras investigações importantes: “A descoberta dos raios catódicos constitui o primeiro elo na cadeia de descobertas brilhantes com as quais os nomes de Röntgen, Becquerel e Curie estão ligados” [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 100, tradução nossa]. Em determinado momento da Nobel Lecture, Lenard descreve sua perspectiva sobre a importância das investigações sobre a natureza dos raios catódicos para diferentes áreas de pesquisa, especialmente para compreensão das propriedades físicas e químicas da matéria:

Aqui chegamos à conexão entre nossas descobertas e o conhecimento anterior. Tal conhecimento era muito escasso, e estava relacionado com fenômenos que aconteciam dentro e sobre átomos individuais, ou seja, fenômenos que não podiam ser estudados diretamente, mas a conexão foi muito boa e frutífera (…) Parecia provável que em todos esses casos, nos íons na eletrólise, nos átomos de metais luminosos e nos raios catódicos, e talvez em todos os lugares em que a eletricidade desempenha um papel, pudéssemos estar preocupados com os mesmos quanta elétricos elementares, cuja existência havia sido indicada pela primeira vez pela lei de eletrólise de Faraday e que poderia ser mais bem elucidada por meio de raios catódicos. Essa teoria foi provada, tanto que gerou um novo ramo da física, tão frutífero e já tão vasto que neste artigo, que é dedicado principalmente ao meu próprio trabalho, não posso dizer mais nada em geral sobre o assunto [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 118–119, tradução nossa, grifo do autor].

Essa mesma ação da luz, ou seja, a produção de raios catódicos, a vibração dos átomos e a liberação de quanta a partir deles, também está envolvida na fosforescência (50, p. 671) e, portanto, provavelmente também na fluorescência, e talvez também em todos os efeitos fotoquímicos. Tendo em mente que detectamos transformações de energias do interior dos átomos associadas ao efeito fotoelétrico, não devemos surpreender-nos se no futuro, talvez, encontrarmos fenômenos do mesmo tipo agindo como fontes de energia não introduzidas de fora [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 124, tradução nossa].

Também deve ser mencionado que a pesquisa realizada por [Pierre] Curie e [Georges] Sagnac (37), assim como a realizada por [Friedrich Ernst] Dorn (42), indica, em comum com a luz ultravioleta, que os raios X também têm o mesmo efeito de gerar raios catódicos. Isso é consistente com sua capacidade de tornar os gases eletricamente condutores e induzir efeitos fosforescentes e fotoquímicos [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 124, tradução nossa].

A partir dos trechos sublinhados, é possível reconhecer que no final do século XIX, as diferentes investigações relacionadas a fenômenos elétricos caminharam gradualmente para uma interpretação unificada por meio da “teoria do elétron”. Os estudos sobre a natureza dos raios catódicos de Lenard, de J. J. Thomson e de tantos outros cientistas representam um “elo” importante nesse processo de unificação de diferentes conhecimentos científicos. Atualmente, com o conhecimento científico disponível, é evidente a extensão e a abrangência dessa unificação, uma vez que o elétron desempenha um papel relevante em uma ampla variedade de fenômenos.

Ao destacar esses “esforços posteriores de unificação e de construção de corpos coerentes de conhecimentos cada vez mais amplos (ou o tratamento de “problemas-ponte” entre diferentes campos de conhecimento que podem chegar a unificar-se” [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001)., p. 132]), os professores podem incluir em suas discussões e reflexões informações relevantes sobre as diferenças de natureza e objetivos entre o processo de validação ou corroboração empírica de uma lei científica e o processo de escolha entre duas teorias concorrentes.

No primeiro caso, a lei científica é testada por meio de observações, experimentos e coleta rigorosa de dados, seguindo a abordagem empírica da Natureza das Ciências (NdC), mas não necessariamente indutivista. O objetivo é verificar se os resultados experimentais estão em concordância estrita com os enunciados da lei em questão. Nesse momento, há espaço para diferentes interpretações dos resultados, críticas às técnicas e procedimentos metodológicos de coleta e análise de dados, além da proposição de limites de validade da lei científica. Por outro lado, em geral, ambas as teorias possuem sólido apoio empírico para seus enunciados, o que reduz o peso da evidência empírica na escolha entre elas. Nesse contexto, as duas teorias são avaliadas com base em critérios adicionais, como coerência lógica, consistência teórica (tanto interna, quanto externa, em relação a outras teorias estabelecidas), simplicidade, capacidade de explicar uma ampla gama de fenômenos e, não menos importante, a fecundidade para estudos de novos fenômenos e projetos de pesquisa.

Em geral, as visões de senso comum empírico-indutivista e rígida/infalível exageram o valor do peso relativo do critério “corroboração empírica” no processo de aceitação de novas leis e teorias científicas. Ao mesmo tempo, subestimam a relevância dos outros critérios mencionados anteriormente, como simplicidade, consistência, abrangência e fecundidade. No entanto, construir uma compreensão mais autêntica sobre a NdC requer que professores e estudantes percebam que a prática interna das ciências é orientada por “valores primários” (critérios de avaliação) compartilhados e defendidos por seus membros praticantes [21[21] T. Kuhn, em: The Essencial Tension: selected studies in the scientific tradition and charge (University of Chicago, Chicago, 1977).]. No entanto, a utilização e a valorização individual de cada um desses critérios são frequentemente influenciadas por fatores subjetivos, tais como as crenças pessoais, preferências teórico-metodológicas e os interesses de cada grupo de pesquisa.

De outra forma, compartilhando o pensamento epistemológico de Thomas Kuhn sobre a NdC [21[21] T. Kuhn, em: The Essencial Tension: selected studies in the scientific tradition and charge (University of Chicago, Chicago, 1977).], é importante que os professores explorem como a diversidade subjetiva, na aplicação no peso relativo dos “valores primários”, desempenha um papel que, na verdade, fortalece cada vez mais o desenvolvimento das ciências. Essa diversidade deve-se ao fato de que, em diferentes tomadas de decisão pelos cientistas, há sempre presente uma análise de risco assumido, o que leva cada indivíduo ou grupo de pesquisa a tomar decisões particulares.

A partir de uma compreensão mais autêntica sobre a NdC, professores e estudantes podem entender as razões pelas quais nem todos os membros da comunidade científica respondem à uma nova anomalia como uma fonte iminente de crise em seu campo de pesquisa. Muito menos todos adotam, na prática, uma nova e audaciosa hipótese científica como promissora de uma teoria revolucionária. Do mesmo modo, nem todos rejeitam a fecundidade e as possibilidades inimagináveis surgidas a partir da anomalia e da nova hipótese proposta. Em resumo, torna-se possível transmitir saberes que mostram que “a escolha individual – sobre a aplicação dos ‘valores primários’ – pode ser a maneira que a comunidade científica encontrou de distribuir o risco e assegurar o sucesso de longo prazo de seu empreendimento” [21[21] T. Kuhn, em: The Essencial Tension: selected studies in the scientific tradition and charge (University of Chicago, Chicago, 1977)., p. 176].

4.2. Segunda etapa da investigação

Os temas e questões relacionados à NdC discutidos nesta seção requerem uma abordagem mais ampla, uma vez que as informações nela apresentadas não estão restritas apenas à Nobel Lecture analisada. Essa decisão se justifica por duas razões.

Primeiramente, porque os resultados obtidos na primeira etapa deste estudo evidenciaram que a Nobel Lecture de Philipp Lenard enfatiza os aspectos epistemológicos (problemas, métodos e conteúdo) e influências histórico-sociais relacionadas apenas ao contexto interno da atividade científica, negligenciando informações relevantes a respeito do contexto externo. Isso limita a análise crítica sobre a “visão descontextualizada e socialmente neutra” do trabalho científico, uma das imagens distorcidas sobre a NdC identificada por Gil-Pérez et al. [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).]. Por definição, os questionamentos a respeito dessa visão distorcida da NdC envolvem discussões e reflexões sobre “questões éticas, morais e políticas”, um dos temas sugeridos por Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).], no âmbito do eixo sociológico/histórico.

Em segundo lugar, considerando o protagonismo de Philipp Lenard no contexto histórico-social da Alemanha nazista, na primeira metade do século XX, e sua liderança na chamada “Física Alemã”, surge uma oportunidade para que professores de física promovam discussões e reflexões sobre a complexa relação entre a produção do conhecimento científico e as questões éticas, morais e políticas – portanto, questões que envolvem valores socioculturais – que permeiam as sociedades nas quais esse conhecimento é produzido.

Nesse contexto, surge a indagação sobre a possível presença dos valores socioculturais compartilhados pela ideologia nazista na Nobel Lecture analisada. Será que a defesa de Philipp Lenard da perspectiva ondulatória-eletromagnética dos raios catódicos foi influenciada por suas posições ultranacionalistas, em favor da ciência germânica, em detrimento da ciência inglesa?

Para responder a essa questão, foi realizada uma pesquisa em outras fontes históricas que abordam a origem e o desenvolvimento do movimento nazista autointitulado “Física Alemã” entre 1920 e 1938. Os resultados desse estudo permitiram a construção de um relato histórico acompanhado de uma análise sociológica e epistemológica. Esse relato visa fornecer subsídios adicionais para discutir aspectos relacionados à NdC no contexto de formação de professores de física, problematizando questões éticas, morais e políticas na atividade científica, assim como a questionada a noção de neutralidade científica.

(a) A “Deutsche Physik” sob a Liderança de Philipp Lenard e Johannes Stark

Durante as décadas de 1920 e 1938, em uma sociedade alemã politicamente e ideologicamente conflituosa, com visões nacionalistas de extrema-direita (endurecidas após a derrota na Primeira Guerra Mundial) e com sentimento de ódio antissemita generalizado e crescente, surgiu o autointitulado movimento “Física Alemã” (“Deutsche Physik”) ou “Física Ariana” (“Arische Physik”). Sob a liderança dos físicos Philipp Lenard e Johannes Stark, ambos laureados com o Prêmio Nobel de Física (em 1905 e em 1919, respectivamente). Esse movimento teve grande influência durante o regime nazista, servindo como ferramenta para propagar sua ideologia antissemita e justificar suas políticas de discriminação e perseguição aos cientistas judeus [22[22] J. Cornwell, Os Cientistas de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio (Imago, Rio de Janeiro, 2003).27[27] K. Hentschel, Physics and National Socialism: An anthology of primary sources (Birkhauser Verlag, Basel, 1996).].

Os dois físicos nazistas afirmavam que as características culturais e raciais judaicas “estragavam” a pureza do pensamento científico alemão, rotulando a ciência produzida pelos físicos judeus como uma “fraude judaica internacional”. Essa visão supremacista da perspectiva da “Física Alemã” acerca das relações intrínsecas entre ciência “autêntica” e a pureza racial ariana (ou entre a raça do povo judeu e a ciência “falsa”) é evidente em um trecho do artigo intitulado “Nacional Socialismo e a Ciência”, escrito por Johannes Stark em 1934:

Na medida em que o trabalho científico não é meramente imitação, mas criação real, como qualquer outra atividade criativa, ele é condicionado pelos dons espirituais e caracterológicos de seus praticantes. Como os membros individuais de um povo têm um dom comum, a atividade criativa dos cientistas de uma nação, tanto quanto a de seus artistas e poetas, assim assume o selo de um distinto tipo Völkish [nativo alemão]. Não, a ciência não é internacional; é tão nacional quanto a arte. Isso pode ser evidenciado pelo exemplo de alemães e judeus nas ciências naturais [26[26] G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966)., p. 206, tradução nossa].

Compartilhando da mesma crença supremacista, em agosto de 1935, Philipp Lenard enfatizou a ligação entre a ciência “autêntica” e a pureza racial ariana no primeiro parágrafo do “Prefácio à Física Alemã” de seu manual intitulado “Física Alemã em Quatro Tomos” (“Deutsche Physik in vier Bänden”). Ele ataca a visão daqueles que afirmavam que a ciência era um esforço coletivo internacional independente das características pessoais, como raça, gênero ou formação, do pesquisador individual:

Alguém poderia perguntar: Física Alemã? Poderia ter dito também física ariana ou física dos povos de tipo Nórdico, física dos fundamentadores da realidade, dos perseguidores da verdade, a física daqueles que fundaram a pesquisa científica. Vocês poderiam contestar-me: “A ciência é internacional e permanecerá sempre assim!” Mas isso é inevitavelmente baseado em uma falácia. Na realidade, como tudo que o homem cria, a ciência é determinada pela raça e pelo sangue. Ela pode parecer internacional quando resultados científicos universalmente válidos são erroneamente atribuídos a uma origem comum, ou quando não se reconhece que a ciência fornecida por povos de diferentes países é idêntica ou semelhante à ciência alemã, e que sua ciência só poderia ter sido produzida em virtude e na medida em que outros povos são ou foram igualmente uma mistura racial predominantemente nórdica. Nações de diferentes misturas raciais praticam a ciência de maneira diferente [27[27] K. Hentschel, Physics and National Socialism: An anthology of primary sources (Birkhauser Verlag, Basel, 1996)., p. 100, tradução nossa, grifo do autor].

Observa-se que, por causa da crença nazista em uma suposta pureza do sangue ariano e nos dons espirituais exclusivos dos homens germano-nórdicos (um argumento racista, supremacista e nacionalista), os autodenominado “físicos arianos” defendiam que a ciência verdadeira só poderia ser desenvolvida por eles. Consequentemente, esta seria superior e mais confiável do que as ciências praticadas por outros povos. Para eles, os cientistas judeus, um povo considerado de sangue impuro, sem o dom espiritual ariano, de raça inferior, produzia uma ciência não apenas diferente, mas também significativamente inferior à ciência germano-nórdica.

Os argumentos dos “físicos arianos” também abrangiam a dimensão epistemológica da natureza das ciências, apropriando-se, indevidamente, de questões sérias, relevantes e legítimas sobre o papel das hipóteses e da experimentação, entre elas: a separação entre ciência e metafísica, a importância da matemática na produção do conhecimento científico, bem como a definição de teoria científica e seus objetivos. Essas discussões foram distorcidas ao incorporar elementos racistas, baseados na linhagem sanguínea [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).]. Johannes Stark afirmou:

O respeito aos fatos e a aptidão para observação exata reside na raça germano-nórdica. (…) O espírito do alemão permite-lhe observar as coisas fora de si exatamente como são, sem a interpolação de suas próprias ideias e desejos, e seu corpo não se esquiva do esforço que a investigação da natureza exige dele. O amor do povo alemão pela natureza e sua aptidão para as ciências naturais são baseados nesse dom espiritual. Assim, é compreensível que a ciência natural seja predominantemente uma criação do componente sanguíneo nórdico-germânico do ariano [26[26] G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966)., p. 206, tradução nossa].

Observa-se no trecho destacado uma perspectiva epistemológica fortemente empirista e positivista adotada pelos “físicos arianos” em relação ao processo de construção do conhecimento científico. Nessa visão, a coleta, a observação e a análise de dados são consideradas neutras, objetivas e imparciais, guiadas com total respeito aos fatos empíricos, e supostamente desprovidas de qualquer viés subjetivo, como preferências teórico-metodológicas, crenças pessoais, interesses ou expectativas de resultados. Além disso, os “físicos arianos” defendiam que a formulação, a publicação de hipóteses, das leis, dos princípios e das teorias científicas deveriam ser restringidas pelo apoio de correspondências empíricas amplas e sólidas, as quais teriam sido previamente obtidas, a partir da aplicação rigorosa, diligente e infalível do método científico experimental hipotético-dedutivo [22[22] J. Cornwell, Os Cientistas de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio (Imago, Rio de Janeiro, 2003).27[27] K. Hentschel, Physics and National Socialism: An anthology of primary sources (Birkhauser Verlag, Basel, 1996).].

Evidentemente a epistemologia empirista e positivista não foi uma criação nazista. No entanto, o trecho destacado revela uma distorção dos fundamentos dessa epistemologia por Johannes Stark. Ele afirma que a pureza sanguínea e os dons espirituais da raça germano-nórdica conferiam aos “físicos arianos” uma aptidão inata para as ciências naturais. Observa-se que, essa suposta dádiva condicionava-os a um maior respeito aos fatos empíricos, tornando-os superiores a outros cientistas ao conseguir abandonar seus vieses subjetivos em seus trabalhos científicos.

Para Philipp Lenard e Johannes Stark, cientistas como Isaac Newton (1643–1727), Johannes Kepler (1571–1630) e Charles Robert Darwin (1809–1882) eram os exemplos primordiais a serem seguidos pelos cientistas arianos [26[26] G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966).].

Por outro lado, de acordo com a crença nazista de Stark e Lenard, os “físicos judeus”, em virtude de seu espírito judaico e a suposta impureza de sangue, eram uma raça inferior, considerada degenerada, sem escrúpulos e inerentemente corrupta. Consequentemente, isso os tornava incapazes de conduzir investigações científicas de maneira neutra, objetiva e imparcial. Alegava-se que o ego dos “físicos judeus”, juntamente com seus interesses por dinheiro, fama e prestígio, os levavam a misturar fatos empíricos e desejos pessoais, resultando em pouca aptidão para as ciências naturais. Segundo essa visão distorcida de Stark, o objetivo dos “físicos judeus” era a confirmação de suas teorias a qualquer custo, em vez de buscar uma compreensão exata da natureza [26[26] G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966).].

Na perspectiva de Philipp Lenard e Johannes Stark, as teorias científicas desenvolvidas por cientistas de origem judaica deveriam ser consideradas meras abstrações e especulações fantasiosas, desprovidas de qualquer mérito científico. Ademais, os “físicos arianos” defendiam a ideia de que o conhecimento científico deveria estar fundamentado em uma visão determinista e mecanicista dos fenômenos naturais, rejeitando as especulações abstratas e probabilísticas que resultassem de um suposto exagero no formalismo matemático na interpretação física da realidade. Eles consideravam a teoria da relatividade e a física quântica como exemplos da “fraude judaica internacional” [22[22] J. Cornwell, Os Cientistas de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio (Imago, Rio de Janeiro, 2003).27[27] K. Hentschel, Physics and National Socialism: An anthology of primary sources (Birkhauser Verlag, Basel, 1996).].

Philipp Lenard, em particular, elegeu, acima de tudo, a perspectiva epistemológica einsteiniana como a principal representação da decadência da ciência germano-nórdica. Em 13 de maio de 1933, ao escrever o artigo intitulado “Um grande dia para a Ciência: Johannes Stark é nomeado Presidente do Instituto Físico e Técnico do Reich”, ele fez as seguintes declarações sobre o ambiente acadêmico e científico, na época, e sua relação com as ideias de Einstein:

Essa recente nomeação é um acontecimento de grande importância para todos aqueles envolvidos na ciência. Ela representa uma renúncia clara à predominância aparentemente inevitável do que pode ser brevemente denominado de pensamento einsteiniano na física, e é um movimento em sentido à reafirmação das antigas prerrogativas dos cientistas: pensar de forma independente, guiados unicamente pela natureza […].

[…] Na física, o limite foi alcançado, isto é, de cima para baixo. Com a massiva introdução de judeus em posições influentes também em universidades e academias, a base de todo conhecimento científico, a observação direta da própria natureza, foi esquecida e deixou de ser considerada válida. O conhecimento das coisas do mundo externo supostamente deveria se basear nas fantasias da mente humana. Essas ideias, imediatamente chamadas de “teorias”, tinham então que ser “provadas” por experimentadores. Os últimos geralmente cumpriam com zelo e prontidão a pesquisa mais superficial possível. Com a repressão de comentários francos em oposição a tais procedimentos, a “liberdade de pesquisa” assumiu um novo sabor. Os resultados já podem ser sentidos em geral: grandes segmentos da população perderam a confiança na ciência atualmente aceita. Somente a tecnologia, que se baseia em conquistas de pesquisas sólidas anteriores, poderia continuar a ganhar essa confiança.

(…) O exemplo mais proeminente da influência prejudicial dos judeus na ciência foi fornecido pelo Sr. Einstein com suas “teorias”, que são uma combinação de conhecimento [experimental] sólido que já existia anteriormente e algumas adições arbitrárias que foram unidas matematicamente. Essas teorias estão agora desmoronando, revelando o destino inevitável dos produtos antinaturais. Mesmo cientistas renomados não podem ser poupados de críticas, pois permitiram que o “judeu da relatividade” ganhasse um forte apoio na Alemanha em primeiro lugar, não vendo ou não querendo ver quão equivocado era, mesmo do ponto de vista não científico, considerar exatamente esse judeu como um “bom alemão” [27[27] K. Hentschel, Physics and National Socialism: An anthology of primary sources (Birkhauser Verlag, Basel, 1996)., p. 19–50, tradução nossa].

Dessa forma, percebe-se que as críticas dos “físicos arianos” não se baseavam somente em elementos raciais, sanguíneos e culturais. Esses elementos racistas foram indevidamente incorporados às controvérsias legítimas e relevantes, já existentes na comunidade científica, sobre a natureza epistemológica das ciências naturais. Especialmente quanto ao valor atribuído às bases empíricas, à matemática e ao papel das conjecturas abstratas e especulativas no processo de construção e validação de teorias científicas. De outro modo, na perspectiva dos “físicos arianos”, o problema epistemológico fundamental residia em uma abordagem estrangeira, judaica-internacional e degenerada, em contraste com a natureza empirista e positivista das ciências germânicas-nórdicas [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007)., 24[24] A.O. Ferreira, Scientiae Studia 13, 175 (2015)., 25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020).].

Os pressupostos epistemológicos da “Física Alemã” são coerentes e consistentes com a pragmática e tradicional educação científica germânica de Philipp Lenard e Johannes Stark. Ambos foram físicos experimentais muito talentosos. Em particular, as investigações de Lenard sobre os raios catódicos produziram contribuições significativas para compreensão da estrutura da matéria e da natureza da eletricidade. Isso é claramente observado não apenas no discurso de apresentação de sua Nobel Lecture pelo presidente da Real Academia Sueca de Ciências, mas também em seu detalhado levantamento histórico e pelas diversas homenagens e prêmios que ele recebeu ao longo de sua carreira. No entanto, conforme observado pelo escritor inglês John Cornwell em seu livro “Cientistas de Hitler: ciência, guerra e pacto com demônio”, “brilhantismo individual e êxito cedo na ciência não são, é claro, garantia dos princípios racionais, desapaixonados e universais. (…) A existência de um ambiente científico, bem financiado, independente e ideal para descobertas inovadoras, não é garantia de consciência política madura” [22[22] J. Cornwell, Os Cientistas de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio (Imago, Rio de Janeiro, 2003)., p. 100].

Embora ele fosse um físico experimental renomado e de elevado nível profissional, suas qualidades como físico teórico eram consideradas duvidosas por outros cientistas. Em resposta aos seus ataques públicos à teoria da relatividade, em 27 de agosto 1920, Einstein escreveu uma carta ao jornal Berliner Tageblatt intitulada “A minha resposta. Sobre a teoria da anti-relatividade”, na qual afirmou:

Um grupo heterogêneo se uniu para formar uma organização sob o pretensioso nome de “Sindicato dos Cientistas Alemães [para a Preservação da Ciência Pura]”, atualmente com o único propósito de atacar a teoria da relatividade e a mim como seu autor aos olhos dos não-físicos. (…) Entre os físicos de renome internacional, só posso citar o Sr. Lenard como um crítico franco da teoria da relatividade. Admiro o Sr. Lenard como um mestre da física experimental; entretanto, ele ainda tem que realizar algo em física teórica, e suas objeções à teoria da relatividade geral são tão superficiais que eu não considerei necessário até agora respondê-las em detalhes. (…) Além disso, o Sr. Gehrke faz alusão às objeções do Sr. Lenard, muitas das quais estão ligadas a exemplos da mecânica da vida cotidiana. Essas objeções já estão invalidadas com base em muitas provas gerais de que, em primeira aproximação, as afirmações da teoria da relatividade geral estão de acordo com as da mecânica clássica [27[27] K. Hentschel, Physics and National Socialism: An anthology of primary sources (Birkhauser Verlag, Basel, 1996)., p. 1–3, tradução nossa].

Filósofos e historiadores sugerem que Philipp Lenard era um sujeito de caráter profundamente conturbado, com forte sentimento de que suas realizações científicas eram constantemente roubadas por outras “mentes inferiores” [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020).]. Conforme registrado em seu breve relato biográfico disponibilizado pela Fundação Nobel, “algumas de suas descobertas foram grandes e outras muito importantes, mas ele reivindicou para elas mais do que seu verdadeiro valor” [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 137, tradução nossa]. O ressentimento por estar sendo ignorado e não recebendo o devido mérito pela comunidade científica internacional pode ser observado logo no primeiro parágrafo de sua Nobel Lecture:

Assim – utilizando o símile que vocês, meus estimados colegas da Academia das Ciências, têm usado no topo do seu diploma de membro –, falarei agora não apenas dos frutos, mas também das árvores que os produziram, e daqueles que plantaram essas árvores. Essa abordagem é a mais adequada no meu caso, pois nem sempre fui contado entre aqueles que colhem os frutos; tenho sido repetidamente apenas um daqueles que plantaram ou cuidaram das árvores, ou que ajudaram a fazer isso [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 105, tradução nossa].

Com efeito, três ocasiões são particularmente importantes para a compreensão dos seus ressentimentos amargurados em relação a outros cientistas. A primeira ocorreu em 1895, quando o físico alemão Wilhelm Konrad Röentgen (1845–1923) relatou a observação dos raios X, produzidos a partir de um novo “tubo de raios catódicos”, cuja construção é indiscutivelmente atribuída a Lenard. Ele considerou a realização científica de Röentgen como “um bom exemplo de descoberta afortunada” [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 105] e reivindicou a coautoria e reconhecimento de sua participação na observação dos raios X, uma vez que sua colaboração tinha sido essencial para Röentgen obter uma válvula altamente sensível, necessária para produção dos raios X no novo tubo de Crookes. Entretanto, em 1901, o comitê científico do primeiro Prêmio Nobel considerou que suas reivindicações não se sustentavam, e decidiu que somente Röentgen era digno da honraria [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998).].

A segunda refere-se à resolução da controvérsia científica acerca da natureza dos raios catódicos entre os físicos do Reino Unido e da Alemanha, na qual a teoria corpuscular inglesa do elétron, defendida principalmente por meio dos trabalhos de Joseph John Thomson (1856–1940), se sobressaiu sobre a teoria ondulatória-eletromagnética defendida pelos cientistas alemães. “Lenard detestava seu ex-colaborador inglês J. J. Thomson. Acusava-o de explorar sua pesquisa sobre o efeito fotoelétrico sem reconhecê-lo, e, portanto, alimentava um profundo desprezo pela ciência inglesa como um todo, que achava desleixada” [22[22] J. Cornwell, Os Cientistas de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio (Imago, Rio de Janeiro, 2003)., p. 101], descreveu John Cornwell. Ele fez questão de registrar em sua Nobel Lecture que no livro publicado por J. J. Thomson em 1903, intitulado “Condução de Eletricidade através de Gases” (“Conduction of Electricity through Gases”), uma de suas publicações foi erroneamente datada (um ano depois do que foi mencionado), em virtude de uma reimpressão posterior, enquanto o original não foi alterado pelo autor6 6 Ver nota de rodapé n°. 23 no texto traduzido disponível como “material suplementar”). .

A terceira desenvolveu-se a partir de 1905, quando Albert Einstein propôs sua “hipótese de quantum de luz” como um dos fundamentos para teoria quântica da radiação e sua famosa “lei do efeito fotoelétrico”, formulada e corroborada, parcialmente, com base nos dados empíricos obtidos por Lenard três anos antes em suas investigações sobre o efeito fotoelétrico. Nos 10 anos seguintes, a hipótese heurística revolucionária de Einstein foi responsável pelo ambiente de controvérsia científica na comunidade de físicos teóricos e experimentais, rivalizando diretamente com a, até então, bem aceita “hipótese de gatilho” de Lenard, proposta em 1902 e refutada em meados de 1911 a partir de suas próprias observações experimentais em colaboração com o físico alemão Carl Ramsauer7 7 P. Lenard, C. Ramsauer, Sitzbr. Heidelberg Akad. Wiss, Math, Naturwiss. Kl., 2a, (1911). . Em contrapartida, a “lei fotoelétrica de Einstein” alcançou um consenso científico quanto à sua corroboração empírica após a série de testes experimentais realizada pelo físico norte-americano Robert Andrews Millikan (1868–1953) e seus colaboradores no Laboratório Ryerson na Universidade de Chicago entre 1914 e 19168 8 R. A. Millikan, Physical Review, 7, 3 (1916). .

Compartilhando a avaliação subjetiva de Einstein em 1920, deve-se reconhecer que Philipp Lenard fez importantes contribuições para a física experimental. Entretanto, suas inferências teóricas e modelos científicos propostos, a partir de suas observações empíricas nem sempre foram tão bem-sucedidas.

É possível conjecturar que, somada à ira inflamada decorrente da já mencionada resposta ácida de Einstein, em 1920, contra as objeções superficiais anti-relativistas, seus sentimentos de amargura (e de antissemitismo) se aprofundaram ainda mais quando, em 1921, Albert Einstein – um físico judeu de renome internacional crescente – foi laureado com o prêmio Nobel de Física “por seus serviços à Física Teórica, e especialmente por sua descoberta da lei do efeito fotoelétrico”9 9 Disponível em:https://www.nobelprize.org/prizes/physics/1921/summary/. Acesso em 08 de abril de 2023. .

O escritor John Cornwell cita duas tragédias pessoais que se abateram sobre Lenard após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, além do seu ferido orgulho ultranacionalista. A primeira, de caráter familiar, ocorreu quando seu único filho, Werner Lenard, com apenas 22 anos, faleceu em fevereiro de 1922, em decorrência de uma infecção renal latente e períodos, de desnutrição severa, durante a guerra. A segunda foi de caráter financeiro: “(…) Lenard foi um dos investidores que trocaram ouro por títulos que perderam o valor nos anos inflacionários da República Democrática de Weimar. Ele estava convencido de que fora roubado de sua fortuna por políticos judeus” [22[22] J. Cornwell, Os Cientistas de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio (Imago, Rio de Janeiro, 2003)., p. 102].

Do ponto de vista profissional, seu antissemitismo militante lhe trouxe uma delicada situação em junho de 1922. Ele foi duramente repreendido por ter-se recusado a içar a bandeira de seu instituto na Universidade Heidelberg a meio-mastro, em sinal de respeito ao ministro das Relações Exteriores de Weimar, Walther Rathenau que havia sido assassinado por dois oficiais militares fanáticos de extrema-direita. Rathenau era um amigo pessoal de Einstein, político, industrial judeu, que Lenard julgava ter causado danos irreparáveis à Alemanha. O episódio ganhou atenção da mídia após a ocupação do instituto pelo político social-democrata Carlo Mierendorff, apoiado por um grupo de estudantes e trabalhadores10 10 O escritor John Cornwell relata que na ocasião Philipp Lenard foi humilhado. “Um grupo de estudantes fez uma manifestação na frente do prédio, e esse grupo foi encharcado com água jogada de um andar superior, sem dúvida por orientação dele [Lenard]; em consequência, os jovens invadiram o instituto e o levaram com os braços presos às costas para o auditório, onde o submeteram a uma torrente de invectivas políticas” [22, p. 102]. . O Senado da Universidade de Heidelberg considerou suas atitudes e de Mierendorff muito graves. O ministro da Cultura de Baden propôs como penalidade sua suspensão temporária, que foi revogada após uma manifestação de apoio da Sociedade de Física [22[22] J. Cornwell, Os Cientistas de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio (Imago, Rio de Janeiro, 2003).]. Em decorrência dessa reprimenda, ele demitiu-se do instituto da Universidade de Heidelberg com bastante desgosto.

Dois anos mais tarde, em 08 de maio de 1924, seis meses após o fracassado golpe em Munique com o qual Hitler e o Partido Nazista tentaram tomar o poder democrático e republicano de Weimar, Lenard e Stark11 11 Johannes Stark, pouco depois de receber o Prêmio Nobel de Física por suas contribuições no campo do eletromagnetismo, viu-se obrigado a se aposentar de sua cátedra na Universidade de Würzburg, devido à suas críticas cientificamente infundadas contra Albert Einstein e a Teoria da Relatividade em 1922 [26]. escreveram um artigo intitulado “O Espírito de Hitler e a Ciência”, proclamando sua lealdade irrestrita a Hitler, no qual afirmaram:

Ele [Adolf Hitler] e seus camaradas de luta nos aparecem como dons de Deus dos tempos antigos, quando as raças eram mais puras, as pessoas eram maiores e as mentes menos iludidas. Isto nós sentimos; e estes dons divinos não devem ser tirados de nós. Somente este pensamento já deveria ser uma base sólida o suficiente para manter o espírito alemão unido para seu grande objetivo: fundar uma nova Alemanha, com Hitler ‘batendo o tambor’, na qual o espírito alemão não é apenas tolerado novamente até certo ponto e libertado da prisão, não, mas na qual o espírito alemão é protegido, cuidado e assistido para que ele possa finalmente prosperar novamente e desenvolver-se ainda mais para a reivindicação da honra da vida em nosso planeta, que agora é dominado por um espírito inferior. As universidades e seus estudantes fracassaram, sobretudo naquelas matérias que já deveriam ter definido o ritmo há muito tempo. Mas também é muito melhor que “o homem do povo” esteja fazendo isso. Ele está aqui. Ele se revelou como o “Führer do sincero”. Nós vamos segui-lo [27[27] K. Hentschel, Physics and National Socialism: An anthology of primary sources (Birkhauser Verlag, Basel, 1996)., p. 9, tradução nossa].

Inicialmente, Lenard esteve diretamente envolvido em diversas campanhas publicitárias discriminatórias e racistas contra a teoria da relatividade de Einstein. Em 1920, em Berlim, com o auxílio do ativista de extrema-direita Paul Weyland, ele orquestrou uma denúncia pública durante um encontro realizado pelo “Sindicato dos Cientistas Alemães para a Preservação da Ciência Pura”. Em outra ocasião do mesmo ano, Einstein e Lenard debateram frente-a-frente e respeitosamente sobre aspectos científicos relacionados à teoria da relatividade no Congresso da Sociedade de Cientistas e Médicos Alemães, realizado na cidade de Bad Nauheim. Contudo, dois anos mais tarde, em 1922, Einstein recusou-se a participar do mesmo congresso, ocorrido em Leipzig, temendo ser fisicamente agredido por fanáticos antissemitas12 12 Costa e Videira (ref. [23]), citando o trabalho de tradução do livro de memórias de Werner Heisenber – A Parte e o Todo: Encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política, considera adequado tomar o Congresso de Cientistas e Médicos Alemães, realizado no início do verão de 1922, em Leipzig, como marco inicial do movimento “Física Alemã”. . Em 1931, cerca de uma centena de intelectuais germânicos antissemitas contribuíram para um volume denunciando Einstein e suas teorias. No entanto, entre os signatários, havia pouquíssimos físicos alemães renomados além de Lenard e Stark.

Como resultado da influência dos valores socioculturais nefastos defendidos pela ideologia nazista, tais como nacionalismo extremo, totalitarismo, antissemitismo e supremacia racial ariana, muitos cientistas judeus, como Albert Einstein, Max Born, James Franck, Lise Meitner e Niels Bohr, tiveram suas produções acadêmicas constantemente atacadas por campanhas publicitárias discriminatórias13 13 Em 10 de maio de 1933, logo após o boicote das empresas judaicas no território alemão, a Associação dos Estudantes Alemães, declarou que a literatura deveria ser limpa do “espírito não-alemão”. O resultado foi a queima ritualística de dezenas de milhares de livros “estragados” pelo intelectualismo judaico. Estes incluíam obras de Sigmund Freud, Bertolt Brecht, Karl Marx, Stefan Zweig, Walter Benjamin e Albert Einstein [23]. e sofreram perseguições institucionais baseadas em motivos raciais. As ações discriminatórias incluíram desde a não-nomeação para cargos e cátedras em institutos e universidades, recusas de publicações de artigos e livros por editoras, bloqueios de recursos financeiros por agências de fomento, expulsões de laboratórios de pesquisa, além de outros tipos de violências e arbitrariedades que restringiam a liberdade de pesquisa [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020).].

A crescente e violenta repressão nazista na comunidade científica, entre 1920 e 1933, causou um grande êxodo de cientistas da Alemanha, muitos dos quais migraram para outros países, especialmente para os Estados Unidos e, em menor grau, a Inglaterra, o Canadá e a América Latina, onde continuaram a contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico [25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020).].

A partir de 1926, Lenard e Stark se tornaram membros convictos do Partido Nacional Socialista de Adolf Hitler e mantiveram adesão irrestrita a ele. Por sua vez, anos mais tarde, o partido correspondeu-lhes com o prestígio e status outrora tão desejados. Em poucos anos, eles estabeleceram influências sobre vários programas de pesquisas com aplicações militares, trabalhando em estreita colaboração com a Luftwaffe (força aérea tática) e o exército [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).28[28] J.L. Heilbron, The dilemmas of an upright man: Max Planck and the fortunes of German science (Harvard University Press, Cambridge, 2000).].

Johannes Stark (aos 59 anos) foi nomeado em maio de 1933 “Presidente do Instituto Físico e Técnico do Reich” (“Physikalisch-Technische Reichsanstalt – PTR, equivalente à Agência Brasileira de Normas Técnicas – ABNT), com certa influência nos postos-chave na gestão científica na Alemanha nazista.

Philipp Lenard (aos 71 anos) tornou-se “Chefe da Física Alemã”, um tipo de “Führer” que representava e propagava os valores da ciência nazista, por meio de uma série de palestras, artigos e livros. Na Figura1, é possível observar Philipp Lenard sendo agraciado com um doutorado honorário pela Universidade de Heidelberg em 1942. O indivíduo vestindo um uniforme nazista é Wilhelm Ohnesorge, Ministro do Reich dos Correios, que foi aluno de Lenard durante seu tempo na Universidade de Kiel.

Figura 1
Philipp Lenard recebendo um doutorado honorário na Universidade de Heidelberg em 1942. Fonte: AIP Emilio Segre Visual Archives.

Em janeiro de 1933, quando Hitler assumiu o cargo de chanceler do Reich, uma das primeiras medidas antissemitas oficiais adotadas pelos nacional-socialistas foi a “Lei de Restauração do Serviço Público Profissional”. Essa lei, promulgada em 07 abril daquele ano, determinava que “§3 (1) Os funcionários públicos que não são descendentes de arianos devem ser aposentados; (…) e no caso de funcionários honorários, eles devem ser demitidos do cargo” (citado por ref. [26[26] G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966)., p. 21–22, tradução nossa]).

Essa lei teve um impacto negativo e imediato na comunidade científica de físicos alemães, pois cerca de 25% do total era considerado “não-ariano”. Além disso, o regime nacional-socialista colocava sob total controle político a ciência e a universidades alemães, em geral, e a física, em particular, por considerá-la um covil de judeus e comunistas [25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020).].

Nos anos seguintes, as perseguições aos cientistas judeus e aos seus familiares, incluindo cônjuges e parentes não-arianos, intensificaram-se. Essas ações resultaram em prisões, assassinatos, perda de bens e propriedades, trabalhos forçados em campos de concentração e outras atrocidades. Rapidamente, a comunidade de física alemã perdeu sua primazia na ciência14 14 Entre 1901 e 1945, o percentual de prêmios Nobel dos alemães nas áreas de física, química e medicina foi de 30%. Entre 1946 e 2000, diminuiu para 12%, enquanto o percentual americano subiu de 15% para 51% respectivamente (The Nobel Prize citado por ref. [28, p. 193]). . “Somente na Universidade de Göttingen, um dos maiores e principais centros de pesquisa alemães em física teórica da época, um quarto dos cientistas foi perdido” [25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020)., p. 151]. Simbolicamente, pode-se dizer que o centro de gravidade da física teórica deslocou-se da Universidade de Göttingen (Alemanha) para Universidade de Princeton (Estados Unidos).

De acordo com o escritor Philip Ball, ex-editor da revista Nature, autor do livro “Servindo ao Reich: a luta pela alma da física sob Hitler”, a resposta da comunidade científica alemã a esses éditos nazistas parece hoje perturbadoramente complacente [25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020).]. Segundo o autor, após a década de 1930, Einstein, em geral, recebia apoio público de seus colegas físicos alemães quanto às suas ideias científicas revolucionárias. Entretanto, o autor ressalta que, na maioria das vezes, as discussões sobre política e raça eram evitadas, a fim de manter uma clara distinção entre tais assuntos “problemáticos” e as pesquisas científicas de Einstein.

Philip Ball também realça uma citação do editor austríaco da revista científica Naturwissenschaften, Paul Rosbaud, expressando sua consternação com a falta de firmeza dos acadêmicos alemães em relação aos éditos nazistas da época:

Lembro-me de um ilustre membro da Universidade de Göttingen dizendo-me: «Se eles se aventurarem a despedaçar nossa universidade, expulsando homens como James Franck, [Max] Born, [Richard] Courant, [Edmund] Landau (os dois últimos matemáticos), nos ergueremos como um homem para protestar contra isso». No dia seguinte, os jornais noticiaram que os mesmos cientistas e muitos outros haviam sido demitidos por causa de sua raça judaica e sua influência degenerada sobre universidades e estudantes. E todos os outros membros da Universidade de Göttingen permaneceram sentados e esqueceram sua intenção de se levantar e protestar (citado por ref. [25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020)., p. 152, tradução nossa]).

A avaliação da situação por Léo Szilárd15 15 Leó Szilárd (1898–1964) foi um renomado físico nuclear húngaro naturalizado norte-americano em 1943. A famosa “Carta Einstein–Szilárd” foi escrita por Leó Szilárd e assinada por Albert Einstein e enviada ao Presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, em 2 de agosto de 1939, na tentativa de convencê-lo a usar a energia atômica para fins militares. Em 1945, ele protestou contra o lançamento das bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão. , físico húngaro que trabalhava na Universidade de Berlim em 1933, mas que em breve partiria para a Inglaterra, ainda segundo Philip Ball, retrata a sensação de impotência por muitos cientistas da época:

Percebi que os alemães sempre adotaram um ponto de vista utilitário. Eles perguntam: «Bem, suponha que eu me opusesse a isso, que bem eu faria? Eu não faria muito bem, apenas perderia minha influência. Então, por que devo me opor a isso?» Veja, o ponto de vista moral estava completamente ausente, ou muito fraco, e toda consideração era simplesmente, qual seria a consequência previsível de minha ação. E com base nisso cheguei à conclusão em 1931 de que Hitler chegaria ao poder, não porque a força da revolução nazista fosse tão forte, mas porque pensei que não haveria resistência alguma (citado por ref. [25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020)., p. 152, tradução nossa]).

No entanto, as influências negativas da ideologia nazista não se restringiram apenas aos aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais do processo de construção do conhecimento científico na sociedade alemã durante o Terceiro Reich. Os valores socioculturais da ideologia nazista estavam presentes também no conteúdo das próprias conjecturas científicas formuladas na época, como no caso das “teorias eugênicas alemãs”. Nessas teorias, o valor da supremacia racial era proeminente, e sua função era estabelecer as bases científicas para a antropologia, a história, a sociologia e a política, incluindo a origem das desigualdades físico-mentais entre arianos e não-arianos, a evolução superior da raça ariana, as causas dos comportamentos aberrantes e dos desvios de condutas ético-morais dos não-arianos e a adoção de medidas governamentais de controle social e purificação da raça ariana, respectivamente16 16 Sobre as origens das “teorias eugênicas”, é relevante ressaltar que o primeiro trabalho científico sobre eugenia surgiu na Inglaterra em 1865. Francis Galton, sobrinho de Charles Darwin, publicou um artigo na Macmillan Magazine no qual utilizou as teorias científicas de seu tio para alertar sobre os riscos de uma reprodução indiscriminada e a necessidade de controle social dos casamentos, a fim de evitar a degeneração das melhores estirpes inglesas. A tentativa de construção de uma teoria científica eugênica que validasse, com base amplas e sólidas em evidências empíricas, o valor e a tese da supremacia racial de uma determinada sociedade em relação as outras, não pode ser atribuída e exclusivamente ao regime Nacional-Socialista alemão entre 1933 e 1945. No entanto, os rumos da eugenia no contexto histórico-social da Alemanha nazista possuem algumas peculiaridades em relação àqueles seguidos pela Inglaterra na segunda metade do século XIX [23]. .

Embora tenha alcançado algum sucesso na disseminação e estabelecimento de valores ideologicamente nazistas no sistema acadêmico alemão, tendo como alvo os cientistas judeus e os apoiadores das teorias científicas de Einstein, o pequeno grupo de fanáticos e nacionalistas extremistas autointitulados “físicos arianos” não obteve influência suficiente para garantir o apoio incondicional do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Partido Nazista) quanto aos rumos do desenvolvimento científico-tecnológico [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).27[27] K. Hentschel, Physics and National Socialism: An anthology of primary sources (Birkhauser Verlag, Basel, 1996).].

Mais do que um mecanismo de propaganda ideológica ou interesse em disputas puramente acadêmicas entre teorias científicas arianas e judaicas, o Partido Nazista sabia da importância crucial da física para o desenvolvimento científico-tecnológico de armamentos militares cada vez mais poderosos, independentemente de suas raízes epistemológicas e de seus valores socioculturais subjacentes.

Isso se tornou bastante evidente após a publicação dos primeiros estudos sobre fissão nuclear em 1938. Quando se tornou clara a possibilidade e a necessidade da construção de uma “bomba nuclear nazista”, na qual as teorias da física quântica e da relatividade (antes rotuladas pejorativamente de “fraude judaica internacional”) tinham um papel essencial, por fornecer uma interpretação mais precisa da estrutura da matéria, o Partido Nazista e os físicos experimentais alemães passaram a defender cada vez mais explicitamente investimentos em pesquisas voltadas para a aplicação tecnológica dessas teorias científicas [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020).]. Segundo o historiador George H. Mosse:

Há poucas dúvidas de que a ciência nazista, ao afastar-se da famosa tradição das realizações científicas alemãs, contribuiu para o fracasso final do Terceiro Reich no esforço de guerra. Não foi por acaso que os Aliados, e não a Alemanha, desenvolveram a bomba atômica, a “arma milagrosa” pela qual Hitler esperou em vão [26[26] G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966)., p. 200, tradução nossa].

Muitos cientistas apoiadores das teorias de Einstein conseguiram ser cautelosos o suficiente para seguir uma linha muito tênue que evitasse que seus trabalhos fossem endossados pelas visões políticas “problemáticas” de Einstein. Em particular, pelo não reconhecimento muito explícito do constructo da teoria da relatividade quando a utilizavam. Durante a 22 Guerra Mundial, o físico alemão Werner Heisenberg, por exemplo, constantemente omitia as referências aos trabalhos de Einstein de suas palestras “culturais” nos territórios ocupados, embora os conteúdos desses trabalhos estivessem presentes em suas exposições [25[25] P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020).].

Além desse fator pragmático-tecnológico, os historiadores das ciências argumentam que a falta de habilidade política e de persuasão de Lenard e Stark contribuíram para o fracasso do movimento “Física Alemã” em reunir mais adeptos influentes dentro da comunidade científica. De acordo com o historiador das ciências americano John. L. Heilbron, “quanto a [Johannes] Stark, que retratava [Max] Planck como uma criatura de Einstein e um viciado em internacionalismo, sua incapacidade para muito além de intrigas e injúrias logo neutralizou sua influência. Se ele fosse menos louco, teria sido muito mais perigoso” [29[29] R. Cesareo, Dos raios X à bomba atômica (1895–1945): os 50 anos que mudaram o mundo (Embrapa Informação Tecnológica, Brasília, 2010)., p. 171, tradução nossa].

No estudo de implicações epistemológicas relacionadas ao movimento “Física Alemã”, os filósofos Fábio A. Costa e Antônio A. P. Videira argumentam que certas objeções à física teórica eram, de fato, problemas relevantes, sendo muitas vezes propostos por estudiosos que não compartilhavam crenças políticas e raciais antissemitas [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).]. Por meio de uma análise da posição do físico Werner Heisenberg (1901–1976), os autores mostram que as críticas epistemológicas dos físicos arianos foram levadas a sério por ele, não apenas por motivos políticos, mas representavam dilemas reais nas ciências naturais. “Em 17 de setembro de 1934, (…) Heisenberg teve suficiente perspicácia para tocar nos temas centrais apresentados pelos oponentes da física teórica, fato este que pode ser constatado já no próprio título da sua palestra [Recentes Mudanças nos Fundamentos das Ciências Exatas]” [ref. 23, p. 327].

Costa e Videira enfatizam que a seriedade do posicionamento filosófico de Werner Heisenberg frente ao ataque dos físicos arianos (mantendo-se particularmente atento a fim de evitar qualquer brecha que permitisse uma refutação complexa por parte de seus oponentes) foi importante, não apenas para reflexões epistemológicas sobre a natureza das ciências, mas para impedir o avanço ainda maior da ideologia nazista, propagada por Lenard e Stark no seio da comunidade científica [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).].

Lenard encerrou sua carreira como professor de física teórica-experimental na Universidade de Heidelberg em 1931, alcançando o status de emérito antes de ser expulso de seu cargo pelas forças de ocupação aliadas em 1945, aos 83 anos. De 1927 a 1945, o Helmholtz-Gymnasium Heidelberg levou o nome de Philipp Lenard Schule, porém, como parte da eliminação dos nomes de ruas e monumentos nazistas, foi renomeado, em setembro de 1945, por ordem do governo militar. Philipp Eduard Anton von Lenard, casado com Katharina Schlehner, faleceu em 20 de maio de 1947 em Messehausen.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1947, Stark foi classificado como “Major Ofensor” e condenado a quatro anos de prisão (posteriormente suspensa) por um tribunal de desnazificação. Mais tarde, Johannes Stark passou seus últimos anos de vida em Gut Eppenstatt, perto de Traunstein, na Alta Baviera, onde morreu em 1957, aos 83 anos de idade.

A literatura específica sobre as relações entre ciência e a ideologia nazista é bastante ampla e, de forma alguma, as informações apresentadas nesta seção almejam abranger todas suas nuances. Por outro lado, objetivou-se a partir desse breve contexto histórico-social (envolvendo não apenas as realizações científicas de Philipp Lenard mas também seus valores socioculturais nazistas e sua liderança no movimento “Física Alemã”) fornecer subsídios mínimos para que professores possam mediar a problematização de uma imagem socialmente neutra do trabalho científico, na qual “(…) esquecem-se as complexas relações entre ciência, tecnologia, sociedade (CTS) [e ambiente] e proporciona-se uma imagem deformada dos cientistas como seres “acima do bem e do mal”, fechados em torres de marfim e alheios à necessidade de fazer opções” [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001)., p. 133, grifo do autor].

A problematização sobre questões ética, morais e políticas sobre a NdC é, na verdade, uma necessidade emergente da própria concepção de “educação científica crítica”, cujo propósito é formar cidadãos conscientes, com um entendimento mais preciso sobre as práticas científicas. Desse modo, podem dispor de conhecimentos, habilidades, competências e senso crítico para avaliação de informações e tomada de decisões socialmente mais responsáveis acerca de problemas que envolvem ciência, tecnologia, sociedade, ambiente e as relações existentes entre eles.

A constatação dos movimentos crescentes de negacionismo científico e de ataques às instituições acadêmicas e de pesquisa, representa, de certa forma, uma advertência à negligenciada problematização das imagens distorcidas do trabalho científico e à necessidade de que os professores de disciplinas científicas apresentem uma compreensão mais aprofundada sobre NdC.

O movimento nazista “Física Alemã” teve um efeito negativo significativo na ciência alemã, levando a uma perda irreparável de talentos científicos e à supressão da livre troca de ideias e do pensamento crítico. Essa experiência sombria pode ser utilizada por professores de física como um lembrete das consequências devastadoras do preconceito, do racismo e da discriminação nas práticas científicas e na sociedade como um todo. Reforça-se a importância de reconhecer e combater essas formas de opressão, promovendo uma ciência inclusiva e justa para todos.

(b) Philipp Lenard: Raízes Sombrias ou Visões de Mundo Transformadas?

Realizou-se uma nova leitura da Nobel Lecture de Philipp Lenard com o objetivo de identificar evidências relacionadas à possível influência dos valores socioculturais, posteriormente compartilhados pela ideologia nazista, na elaboração do seu levantamento histórico realizado 20 anos antes. Em particular, a atenção foi direcionada aos valores de nacionalismo extremo, supremacia racial e antissemitismo.

A segunda análise de conteúdo da Nobel Lecture não evidenciou indícios de que os valores socioculturais associados à ideologia nazista tenham influenciado diretamente a defesa da perspectiva ondulatória-eletromagnética dos raios catódicos (germânica) por Philipp Lenard, em detrimento da perspectiva corpuscular (inglesa). Não há indícios claros de que suas crenças pessoais antissemitas, ultranacionalistas e racistas tenham afetado sua posição científica.

Foi realizado um levantamento das nacionalidades e crenças religiosas dos 29 autores citados por Lenard em sua Nobel Lecture. Verificou-se que a maioria dos autores era de nacionalidade alemã (14 autores), seguida por autores ingleses (7), franceses (4) e representantes de outras nacionalidades (austro-húngaro, holandês, italiano, neozelandês, norueguês e polonês) com um autor cada. Dentre esses autores, conseguimos identificar que apenas quatro eram descendentes de famílias judaicas: Gotthilf-Eugen Goldstein (1850–1930), Heinrich Rudolf Hertz (1857–1894), Walter Kaufmann17 17 Não confundir com o filósofo e poeta teuto-americano Walter Arnold Kaufmann (1921–1980). (1871–1947) e Franz Arthur Friedrich Schuster (1851–1934).

Essa conclusão não implica necessariamente que Philipp Lenard, em 1905, fosse uma pessoa completamente diferente, considerando seus valores e identidade no sentido amplo, daquele que mais tarde apoiaria o nazismo e a “Física Alemã”. Ela apenas indica que a análise do conteúdo de sua Nobel Lecture não fornece suporte claro para a hipótese de que suas crenças socioculturais influenciaram diretamente sua perspectiva científica ou a seleção dos autores mencionados. No entanto, é importante destacar que essa análise abrange apenas aspectos específicos da palestra, não oferecendo uma visão abrangente sobre as possíveis influências ideológicas em sua obra ou em sua carreira científica como um todo.

Adicionalmente, há dois outros fatos que sugerem a necessidade de uma conclusão bastante cautelosa em relação à possível presença consciente de um viés ultranacionalista, racista e antissemita nas posições defendidas por ele na controvérsia científica sobre a natureza dos raios catódicos. Em primeiro lugar, em 1893, Lenard aceitou mudar-se de Heidelberg para Bonn para trabalhar como professor-assistente de Heinrich R. Hertz, um descendente de família judaica18 18 Em seu artigo intitulado “Respeito aos Fatos e Aptidão para Observação Exata Reside na Raça Germano-Nórdica”, em 1934, Johannes Stark argumentou que o notável sucesso de Heinrich Hertz na observação experimental das ondas eletromagnéticas somente foi possível devido à herança sanguínea e espiritual ariana de sua mãe alemã, apesar de suas origens judaicas [26]. . Ele lamentou em sua Nobel Lecture não ter tido mais contato com Hertz naquele período: “Certo dia ele me chamou – um evento que, para meu grande pesar na época, não ocorria com frequência – e me mostrou o que ele havia acabado de observar: um vidro de urânio coberto com folha de alumínio dentro de um tubo de descarga, brilhava sob a folha quando irradiado por cima” [2[2] NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998)., p. 107, tradução nossa].

Em segundo lugar, de acordo com o relato biográfico do físico alemão August Becker (1879–1953), que foi orientado por George H. Quincke, em 1901, e, posteriormente, tornou-se professor-assistente de Philipp Lenard por muitos anos, observou-se uma mudança radical no comportamento e em suas atitudes em relação ao antissemitismo e ao ultranacionalismo, por volta de 1919. Essa transformação tornou o ambiente de trabalho insuportável após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial.

A conhecida transformação de Lenard em um fervoroso nacional-socialista por volta de 1919 teve um impacto extremamente negativo no desenvolvimento da física em Heidelberg, assim como no trabalho e na vida de August Becker. Becker relatou que “a atividade política descontrolada de Lenard no instituto tornou o trabalho com ele uma tortura, especialmente porque ele rejeitava hostilmente todos os contra-argumentos”. (…) Somente em 1935, Becker foi nomeado Professor e Diretor do Instituto de Física. No entanto, mesmo após a aposentadoria, Lenard manteve sua influência na vida do instituto. Para proteger o instituto e a si mesmo de possíveis ataques, Becker sentiu-se compelido a se juntar ao NSDAP [Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães] em 1940, embora não concordasse com as políticas nazistas. No entanto, isso apenas proporcionou uma proteção parcial. August Becker permaneceu dependente da liderança nazista e teve suas oportunidades de emprego limitadas19 19 Disponível em:https://www.kipnis.de/index.php/alexander/kurzbiografien/309-becker-august-1879-1953-physiker. Acessado em 07 de julho de 2023. Infelizmente, não encontramos as fontes bibliográficas das informações transcritas pelo site. .

Nesse sentido, a conclusão inferida anteriormente está em concordância com as considerações de Costa e Videira [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).]. O caráter profundamente conturbado e estado emocional turbulento de Philipp Lenard e Johannes Stark (juntamente com o persistente sentimento de que suas realizações científicas e posições acadêmicas estavam sendo subjugadas por outros cientistas judeus, considerados por eles como mentes inferiores), aliados a algumas tragédias pessoais e à tensa situação política-econômica-social que precedeu a ascensão de Adolf Hitler ao poder, podem ser considerados motivos significativos que explicam a origem das doutrinas que criticavam a física teórica.

De fato, assim como todas as atividades da sociedade, como educação, indústria, comércio, cinema, artes, esporte, entre outras, as ciências naturais foram absorvidas pela cultura nazista e desempenharam um papel significativo na legitimação e atribuição de uma aparência de credibilidade e respeitabilidade intelectual. “A importância dos fatos empíricos nunca foi negada; em vez disso, eles foram integrados à visão de mundo nazista” [26[26] G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966)., p. 200, tradução nossa]. Em outras palavras, o movimento nazista “Física Alemã”, sob a liderança de Lenard e Stark, não passava de diferentes abordagens dos principais temas que permeavam a sociedade alemã nas primeiras décadas do século XX.

A participação dos dois cientistas laureados com o prêmio Nobel, foi fundamental para construir uma ponte entre as ciências naturais e visão de mundo nazista, tornando o movimento “Física Alemã” importante para o desenvolvimento científico-tecnológico da Alemanha, mas também para tornar as ciências naturais um instrumento ideológico relevante para a luta política [26[26] G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966).].

A avaliação da congruência entre as ideias de Philipp Lenard e as visões nazistas pode lançar luz sobre a possível influência ou conexão entre seus pontos de vista e os valores socioculturais que sustentavam o nazismo. No entanto, é importante ressaltar que essa análise requer um exame cuidadoso de outras fontes históricas que possam fornecer evidências adicionais sobre as convicções e associações pessoais de Lenard durante esse período. Embora a compreensão completa do contexto e dos fatores que influenciaram suas perspectivas seja de grande importância, tais análises estão além do escopo e dos objetivos do presente estudo, que já abrangeu uma ampla gama de tópicos relevantes.

5. Considerações Finais

As Nobel Lectures têm sido consideradas importantes fontes primárias de estudo por pesquisadores em ensino de ciências [3[3] M.A.B. Whitaker, Physics Education 14, 239 (1979).8[8] H. Eshach, Science & Education 18, 1377 (2009).]. Nesse sentido, nessas considerações finais, é válido discutir em que medida este trabalho se aproxima e se afasta do estudo de Licio e Silva (ref. [6[6] J.G. Licio e C.C. Silva, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 37, 146 (2020).]).

Licio e Silva [6[6] J.G. Licio e C.C. Silva, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 37, 146 (2020).] realizaram uma análise crítica da palestra proferida por Richard Phillips Feynman (1918–1988) ao receber o Prêmio Nobel de Física, em 1965. O objetivo desse estudo foi fornecer informações e conhecimentos que promovam uma compreensão contextualizada e humanizada do físico e de sua obra e, ao mesmo tempo, afastar a visão superficial e anedótica que se construiu em torno de sua figura.

De imediato, percebe-se a existência de diferenças entre os estudos no que diz respeito à forma de determinar quais aspectos de NdC serão problematizados na leitura de fontes históricas, uma vez que existem diferentes enfoques possíveis. Licio e Silva [6[6] J.G. Licio e C.C. Silva, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 37, 146 (2020).] optam pela abordagem de Ciência Integral, proposta por Douglas Allchin [30[30] D. Allchih, em: Teaching the Nature of Science: Perspectives & Resources, editado por D. Allchin (SHiPS Education Press, Saint Paul, 2013).], a qual é dividida em três dimensões: observacional, conceitual e sociocultural. Os autores criam, posteriormente, quatro categorias relacionadas a aspectos de NdC para serem discutidas: 1. Cientistas cometem erros; 2. Influências de crenças pessoais no trabalho de Feynman; 3. O anedotário Feynmaniano; 4. Feynman porco sexista.

Por outro lado, nosso trabalho, adotando a proposta de abordagem investigativa por “temas” e “questões”, sugerida por André Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).], teve como objetivo apresentar uma análise e discussão de aspectos sociológicos, históricos e epistemológicos mais proeminentes na Nobel Lecture de Philipp Lenard de 1905. Dentre os aspectos de NdC possíveis, realizou-se uma análise e discussão de dois aspectos sociológicos e históricos, considerados pelos autores como os mais proeminentes e amplos na Nobel Lecture, a saber: (i) o papel dos indivíduos/sujeitos e da comunidade científica; e (ii) controvérsias históricas e contemporâneas na ciência.

Enquanto Licio e Silva [6[6] J.G. Licio e C.C. Silva, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 37, 146 (2020).] têm como objetivo principal “explicitar como Feynman enxergava o trabalho científico” [6[6] J.G. Licio e C.C. Silva, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 37, 146 (2020)., p. 151] e desmistificar alguns exageros anedóticos quanto à figura desse renomado cientista, nosso objetivo foi selecionar alguns aspectos de NdC dentre aqueles sugeridos por Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).], para problematizar as sete visões distorcidas da NdC apontadas por Gil-Perez et al. [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).].

A metodologia de análise de conteúdo de ambos os estudos é semelhante, envolvendo a transcrição completa das respectivas palestras, a identificação e seleção de trechos representativos, a separação por tópicos abordados pelo cientista palestrante e que são de interesse dos autores, assim como a descrição e interpretação dos trechos selecionados, buscando relacioná-los com os objetivos do estudo. Em síntese, ambos os estudos, por meio de suas respectivas análises, discussões e reflexões apresentadas, exemplificam alternativas pedagógicas viáveis para que professores e estudantes, no contexto do ensino superior, possam promover abordagens explícitas e reflexivas sobre a atividade científica, com o intuito de favorecer uma compreensão mais autêntica acerca da NdC.

A segunda etapa de nossa investigação contém elementos que representam uma aproximação com objetivos do estudo de Licio e Silva [6[6] J.G. Licio e C.C. Silva, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 37, 146 (2020).], uma vez ambos os estudos procuram explicitar a perspectiva epistemológica cientista palestrante, Feynmann e Lenard, respectivamente. Ao detalhar a gênese e desenvolvimento do movimento nazista “Física Alemã”, foi possível descrever a perspectiva epistemológica empirista e positivista de Lenard quanto ao processo de construção do conhecimento científico. Essa perspectiva, aparentemente, foi posteriormente distorcida com a incorporação de valores socioculturais da ideologia nazista.

Paralelamente, com o objetivo de contribuir para atenuar o problema da escassez de materiais históricos acessíveis em língua portuguesa (que possibilitem aos professores implementarem abordagens investigativas sobre aspectos da NdC), ambos os estudos disponibilizam, em forma de “material suplementar”, a tradução na íntegra do conteúdo das Nobel Lecture de Philipp Lenard e de Richard Feynman por ocasião do recebimento do prêmio Nobel de Física em 1905 e 1965, respectivamente.

Por fim, é válido ressaltar que aspectos selecionados, analisados e discutidos neste estudo não são os únicos possíveis de serem explorados. Outros “temas” e “questões” sugeridos por Martins [9[9] A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).] também poderiam ter sido escolhidos. Por exemplo, o tema “modelagem científica”, cuja análise estaria com a atenção voltada para as características, hipóteses, base empírica e inferências decorrentes do “modelo atômico dinamides”, proposto por Lenard em 1902. Nele, o átomo apresenta um enorme espaço vazio e os constituintes básicos de toda a matéria são análogos dipolos eletricamente neutros (“dinamides”). Esse tema seria outra possibilidade de discussão e reflexão explícita sobre aspectos da NdC. Entretanto, por questão de limitação de espaço em um artigo científico, já um tanto extrapolada, não pôde aqui ser apresentada, mas que pode ser considerada futuramente em um contexto de sala de aula.

Material suplementar

O seguinte material suplementar está disponível online:

Tradução na íntegra, para o português, (1) Discurso de Apresentação do Professor Anders Lindsted, Presidente da Real Academia Sueca de Ciências; e (2) Nobel Lecture (“Sobre os Raios Catódicos”), proferida por Philipp Lenard, por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Física de 1905.

  • [1]
    B.R. Wheaton, Historical Studies in the Physical Sciences 9, 299 (1978).
  • [2]
    NOBEL FOUNDATION, Nobel Lectures in Physics: 1901–1921 (World Scientific Publishing, Singapore, 1998).
  • [3]
    M.A.B. Whitaker, Physics Education 14, 239 (1979).
  • [4]
    M. Novaes, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, e4209 (2018).
  • [5]
    M.D. Cordeiro e L.O.Q. Peduzzi, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 27, 473 (2010).
  • [6]
    J.G. Licio e C.C. Silva, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 37, 146 (2020).
  • [7]
    L.S. Minella, Revista Brasileira de História da Ciência 10, 85 (2017).
  • [8]
    H. Eshach, Science & Education 18, 1377 (2009).
  • [9]
    A.F.P. Martins, Caderno Brasileiro de Ensino de Física 32, 703 (2015).
  • [10]
    N.G. Lederman, Journal of Research in Science Teaching 29, 331 (1992).
  • [11]
    N.G. Lederman, F. Adb-El-Khalick, R.L. Bell e R.S. Schwartz, Journal of Research in Science Teaching 39, 497 (2002).
  • [12]
    N.G. Lederman, em: Handbook of Research on Science Education, editado por S.K. Abell e N. G. Lederman (Routledge, New York, 2013).
  • [13]
    R.H. Driver, J. Leach, S. Milliar e P. Scott (Open University Press, Londres, 1996).
  • [14]
    M.P. Clough, Science & Education 15, 463 (2006).
  • [15]
    D. Allchin, Science Education 95, 518 (2011).
  • [16]
    G. Irzik e R. Nola, Science & Education 20, 591 (2011).
  • [17]
    M.R. Matthews, em: Nature of Science Research, editado por M. Khine (Springer, Dordrecht, 2012).
  • [18]
    A. Adúriz-Bravo, Review of Science, Mathematics and ICT Education 1, 41 (2007).
  • [19]
    D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).
  • [20]
    D. Halliday, R. Resnick e J. Walker, Fundamentos da Física: óptica e física moderna (LTC, Rio de Janeiro, 2016), v. 4.
  • [21]
    T. Kuhn, em: The Essencial Tension: selected studies in the scientific tradition and charge (University of Chicago, Chicago, 1977).
  • [22]
    J. Cornwell, Os Cientistas de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio (Imago, Rio de Janeiro, 2003).
  • [23]
    F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).
  • [24]
    A.O. Ferreira, Scientiae Studia 13, 175 (2015).
  • [25]
    P. Ball, Métode Science Studies Journal 10, 147 (2020).
  • [26]
    G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966).
  • [27]
    K. Hentschel, Physics and National Socialism: An anthology of primary sources (Birkhauser Verlag, Basel, 1996).
  • [28]
    J.L. Heilbron, The dilemmas of an upright man: Max Planck and the fortunes of German science (Harvard University Press, Cambridge, 2000).
  • [29]
    R. Cesareo, Dos raios X à bomba atômica (1895–1945): os 50 anos que mudaram o mundo (Embrapa Informação Tecnológica, Brasília, 2010).
  • [30]
    D. Allchih, em: Teaching the Nature of Science: Perspectives & Resources, editado por D. Allchin (SHiPS Education Press, Saint Paul, 2013).
  • [31]
    A. Roth, Vacuum technology (Elsevier, Amsterdan, 1990).
  • 1
    A expressão “Natureza da Ciência”, no singular, frequentemente é abreviada como NdC. No entanto, os autores deste trabalho compartilham da opinião de que essa expressão não transmite plenamente a riqueza e as particularidades do empreendimento científico. Portanto, optamos por utilizar a sigla NdC para se referir ao termo “Natureza das Ciências”, no plural. Essa escolha reflete a visão de muitos pesquisadores, que concordam que não existe uma única e verdadeira Ciência, mas sim várias áreas distintas de estudo científico, como Ciências Físicas, Ciências Biológicas, Ciências Sociais, Ciências Econômicas, Ciências Policiais, entre outras.
  • 2
    Cada uma dessas visões distorcidas sobre o trabalho científico identificadas por Gil-Pérez et al. [19[19] D. Gil-Pérez, I.F. Montoro, J.C. Alís, A. Cachapuz e J. Praia, Ciência e Educação 7, 125 (2001).] será abordada na próxima seção, intitulada Análise e Discussão de Resultados, a fim de evitar repetições no texto.
  • 3
    O “contexto internalista” enfatiza a importância dos elementos internos na construção do conhecimento científico, como problemas técnico-científicos, a lógica, as evidências experimentais e os métodos científicos. Já o “contexto externalista” destaca a influência de fatores externos na produção e validação do conhecimento científico, como o contexto social, político, econômico e cultural. A discussão sobre a relação entre o conhecimento científico e fatores internos e externos ao próprio processo científico foge ao escopo deste trabalho. Para uma abordagem mais aprofundada sobre o assunto, recomenda-se a leitura do artigo de Jonathan Egeland intitulado “Scientific Evidence and the Internalism–Externalism Distinction” publicado na revista Acta Analytica, v. 37, n. 3, páginas 375–395, em 2022. Disponível em:https://doi.org/10.1007/s12136-021-00491-z.
  • 4
    As referências dentro das citações da tradução da Nobel Lecture estão apresentadas na “Lista Cronológica das Publicações” organizada por Lenard ao final do seu texto (ver material suplementar).
  • 5
    Segundo Roth [31[31] A. Roth, Vacuum technology (Elsevier, Amsterdan, 1990)., p. 204] as bombas de mercúrio do período atingiam pressões de até 10 microTorr. Levando em consideração os parâmetros atuais, o vácuo obtido por Lenard pode ser classificado como médio para alto.
  • 6
    Ver nota de rodapé n°. 23 no texto traduzido disponível como “material suplementar”).
  • 7
    P. Lenard, C. Ramsauer, Sitzbr. Heidelberg Akad. Wiss, Math, Naturwiss. Kl., 2a, (1911).
  • 8
    R. A. Millikan, Physical Review, 7, 3 (1916).
  • 9
    Disponível em:https://www.nobelprize.org/prizes/physics/1921/summary/. Acesso em 08 de abril de 2023.
  • 10
    O escritor John Cornwell relata que na ocasião Philipp Lenard foi humilhado. “Um grupo de estudantes fez uma manifestação na frente do prédio, e esse grupo foi encharcado com água jogada de um andar superior, sem dúvida por orientação dele [Lenard]; em consequência, os jovens invadiram o instituto e o levaram com os braços presos às costas para o auditório, onde o submeteram a uma torrente de invectivas políticas” [22[22] J. Cornwell, Os Cientistas de Hitler: ciência, guerra e o pacto com o demônio (Imago, Rio de Janeiro, 2003)., p. 102].
  • 11
    Johannes Stark, pouco depois de receber o Prêmio Nobel de Física por suas contribuições no campo do eletromagnetismo, viu-se obrigado a se aposentar de sua cátedra na Universidade de Würzburg, devido à suas críticas cientificamente infundadas contra Albert Einstein e a Teoria da Relatividade em 1922 [26[26] G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966).].
  • 12
    Costa e Videira (ref. [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).]), citando o trabalho de tradução do livro de memórias de Werner Heisenber – A Parte e o Todo: Encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política, considera adequado tomar o Congresso de Cientistas e Médicos Alemães, realizado no início do verão de 1922, em Leipzig, como marco inicial do movimento “Física Alemã”.
  • 13
    Em 10 de maio de 1933, logo após o boicote das empresas judaicas no território alemão, a Associação dos Estudantes Alemães, declarou que a literatura deveria ser limpa do “espírito não-alemão”. O resultado foi a queima ritualística de dezenas de milhares de livros “estragados” pelo intelectualismo judaico. Estes incluíam obras de Sigmund Freud, Bertolt Brecht, Karl Marx, Stefan Zweig, Walter Benjamin e Albert Einstein [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).].
  • 14
    Entre 1901 e 1945, o percentual de prêmios Nobel dos alemães nas áreas de física, química e medicina foi de 30%. Entre 1946 e 2000, diminuiu para 12%, enquanto o percentual americano subiu de 15% para 51% respectivamente (The Nobel Prize citado por ref. [28[28] J.L. Heilbron, The dilemmas of an upright man: Max Planck and the fortunes of German science (Harvard University Press, Cambridge, 2000)., p. 193]).
  • 15
    Leó Szilárd (1898–1964) foi um renomado físico nuclear húngaro naturalizado norte-americano em 1943. A famosa “Carta Einstein–Szilárd” foi escrita por Leó Szilárd e assinada por Albert Einstein e enviada ao Presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, em 2 de agosto de 1939, na tentativa de convencê-lo a usar a energia atômica para fins militares. Em 1945, ele protestou contra o lançamento das bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão.
  • 16
    Sobre as origens das “teorias eugênicas”, é relevante ressaltar que o primeiro trabalho científico sobre eugenia surgiu na Inglaterra em 1865. Francis Galton, sobrinho de Charles Darwin, publicou um artigo na Macmillan Magazine no qual utilizou as teorias científicas de seu tio para alertar sobre os riscos de uma reprodução indiscriminada e a necessidade de controle social dos casamentos, a fim de evitar a degeneração das melhores estirpes inglesas. A tentativa de construção de uma teoria científica eugênica que validasse, com base amplas e sólidas em evidências empíricas, o valor e a tese da supremacia racial de uma determinada sociedade em relação as outras, não pode ser atribuída e exclusivamente ao regime Nacional-Socialista alemão entre 1933 e 1945. No entanto, os rumos da eugenia no contexto histórico-social da Alemanha nazista possuem algumas peculiaridades em relação àqueles seguidos pela Inglaterra na segunda metade do século XIX [23[23] F.A. Costa e A.A.P. Videira, Revista Portuguesa de Filosofia 63, 309 (2007).].
  • 17
    Não confundir com o filósofo e poeta teuto-americano Walter Arnold Kaufmann (1921–1980).
  • 18
    Em seu artigo intitulado “Respeito aos Fatos e Aptidão para Observação Exata Reside na Raça Germano-Nórdica”, em 1934, Johannes Stark argumentou que o notável sucesso de Heinrich Hertz na observação experimental das ondas eletromagnéticas somente foi possível devido à herança sanguínea e espiritual ariana de sua mãe alemã, apesar de suas origens judaicas [26[26] G.L. Mosse, Nazi culture: Intellectual, cultural and social life in the Third Reich (Grosset & Dunlap, New York, 1966).].
  • 19
    Disponível em:https://www.kipnis.de/index.php/alexander/kurzbiografien/309-becker-august-1879-1953-physiker. Acessado em 07 de julho de 2023. Infelizmente, não encontramos as fontes bibliográficas das informações transcritas pelo site.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2023
  • Revisado
    04 Set 2023
  • Aceito
    13 Set 2023
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